Número 17 - Septiembre 2009

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Pressupostos fundamentais para reformulação dos códigos de ética médica (CEM)

Nedy Maria Branco Cerqueira Neves
Doutoranda do PPgMS-FMB-UFBA. Mestra em Educação pela FACED-UFBA. Professora de Ética Médica e Bioética da EBMSP-FBDC.

José Eduardo de Siquiera
Doutor em Medicina pela UEL. Mestre em Bioética pela Universidade do Chile. Professor de Clínica Médica e Bioética da UEL.


Resumo

As obrigações profissionais dos médicos para com os seres humanos estão expressas em vários documentos médicos. O Código de Ética Médica (CEM) tem diferentes atribuições, entre elas, manter, promover e preservar o prestígio profissional; proteger a união profissional; garantir à sociedade padrões de prática profissional com amparo ético; estabelecer valores, deveres e virtudes profissionais. Considerando que os CEM enunciam normas éticas de vigência restrita no tempo, faz-se necessário que os mesmos sejam revistos periodicamente. Todo este novo cenário nos remete a muitas reflexões. Quais diretrizes deveriam ser contempladas num CEM que pretenda responder aos conflitos morais ora presentes na sociedade? O objetivo deste trabalho é o de identificar alguns parâmetros essenciais para integrar este novo documento. Material e Métodos: Foi realizada uma busca de artigos e publicações sobre códigos de ética, códigos de conduta profissional e códigos de ética médica na base de dados Lilacs (combinando os descritores). Discussão: A reflexão ética é realizada tendo como finalidade o aperfeiçoamento da norma ética instituída. A ética reflete sobre as normas morais vigentes, buscando adequá-las às novas realidades da vida social, tornando-as mais adequadas para uma convivência interpessoal mais harmônica. Sugestão de Princípios Fundamentais a serem contemplados num CEM: Dignidade Humana; Justiça Social; Responsabilidade; Confidencialidade; Autonomia de paciente e médico; Direitos dos médicos; Meio ambiente saudável. Proposta de normas deontológicas de um CEM: Administração; Conflito de interesses; Documentação; Ensino; Novas tecnologias; Pesquisas; Publicidade e propaganda; Relações com pacientes, familiares e demais profissionais; Responsabilidade pericial. Considerações finais: As relações sociais são intermediadas por valores, considerando sempre o tempo e o lugar. As reflexões apresentadas neste ensaio pretendem colaborar para a construção de um instrumento de controle da atividade médica, por meio de um CEM que atenda aos anseios da sociedade contemporânea.

Unitermos

Código de ética; Códigos de Ética Médica; Ética Médica; Bioética.


Abstract

The doctors’ professional obligations are expressed in various medical documents. The Medical Ethics Code (MEC) has different functions, among them, maintain, promote and preserve the professional reputation, protect the professional union, to ensure company standards of professional practice with moral support, establish values, duties and professional virtues. Whereas MEC state ethical standards of validity limited in time, it is necessary a review periodically. Everyone in this new position refers to many reflections. What guidelines should be reflected in MEC wishing to respond to the moral conflicts present in society now? The objective of this study is to identify some essential parameters to integrate this new document. Methods: We performed a search of articles and publications on codes of ethics, codes of professional conduct and codes of medical ethics in the LILACS database (combining the descriptors). Discussion: The ethical debate is conducted with the aim of improving the ethical standards established. The ethical standards reflects on the moral force, seeking to fit them into new realities of social life, making them more suitable for living a more harmonious interpersonal. Tip of Fundamental Principles to be included in MEC: Human Dignity; Social Justice; Responsibility; Confidentiality; Patient and doctor autonomy; Medical rights; Healthy environment. Proposal for ethical standards in MEC: Administration; Conflict of interests; Documentation; Teaching; New technologies; Research; Advertising and propaganda; Relationship with patients, families and other professionals; Liability expert. Final considerations: The social relations are intermediated by values, considering time and place. The reflections presented on this trial intend to create an instrument of control the medical activity, using a MEC that meets the aspirations of contemporary society.

Key words

Codes of ethics; Medical Codes of ethics; Medical ethics; Bioethics.


Introdução

As obrigações profissionais dos médicos para com os seres humanos estão expressas em vários documentos médicos, assim, a ética médica incorpora os valores nos quais a profissão deve estar embasada1. Nas normas deontológicas contidas nos códigos vêem-se incluídas as relações com pacientes e seus familiares, colegas e demais profissionais da área da saúde, além de normas relativas à responsabilidade profissional e direitos humanos2-6.

A lei é um dos instrumentos que compõem, com o bem e a liberdade, a edificação da ética7. As normas codificadas são instituídas como fronteiras, não restrita aos códigos profissionais, mas como raízes fundacionais do reconhecimento da dignidade intrínseca do ser humano8,9. Essas normas transcendem o âmbito da vida humana individual, demarcando no tempo e espaço as formas de relacionamento interpessoais de uma coletividade, o que favorece convivência social harmônica10.

O Código de Ética Médica (CEM) tem diferentes atribuições, entre elas, manter, promover e preservar o prestígio profissional; proteger a união profissional; garantir à sociedade padrões de prática profissional com amparo ético; estabelecer valores, deveres e virtudes profissionais. Assim, define-se um código de ética médica como um conjunto sistemático de princípios fundamentais e normas de conduta moralmente aceitas por um grupo social em determinado momento histórico11.

Por outro lado, as revoluções científicas têm ocorrido em intervalos de tempo cada vez mais curtos, e os produtos oriundos do conhecimento tecnocientífico são amplamente divulgados e comercializados sem respeitar as fronteiras nacionais. Neste cenário de rápidas mudanças, muitas ações têm enorme potencial de impacto quer no meio social como no ambiental12.

O Brasil detém um complexo sistema de regulação da prática da medicina 13. Nos últimos anos ocorreram grandes mudanças no exercício profissional, como o inadequado assalariamento e o atendimento médico controlado preferencialmente por empresas de medicina de grupo, assim como a incorporação incontrolada e acrítica de tecnológica de ponta13,14.

Considerando que os CEM enunciam normas éticas de vigência restrita no tempo, faz-se necessário que os mesmos sejam revistos periodicamente15. As normas não podem ser estacionárias, precisam ser reavaliadas ao longo da história da humanidade16. Assim, o CEM vigente requer uma revisão que o compatibilize com a moralidade social imperante neste início de milênio13.

O Conselho Federal de Medicina assumiu, em 2007, a iniciativa de promover uma revisão do atual CEM vigente desde 198817. Vale ressaltar, que de onze CEM reformulados em diferentes países do Ocidente,a maioria teve sua versão atualizada após o ano 2000.

Todo este novo cenário nos remete a muitas reflexões. Quais diretrizes deveriam ser contempladas num CEM que pretenda responder aos conflitos morais ora presentes na sociedade?

O objetivo deste trabalho é o de identificar alguns parâmetros essenciais para integrar este novo documento.

Material e Métodos

Foi realizada uma busca de artigos e publicações sobre códigos de ética, códigos de conduta profissional e códigos de ética médica na base de dados Lilacs (combinando os descritores). Adicionalmente, foram verificadas as referências dos artigos encontrados sobre o tema em livros e publicações. Este trabalho foi realizado através do Programa de Pós-graduação em Medicina e Saúde da Universidade Federal da Bahia, na linha de pesquisa em Bioética.

Discussão

Desde suas origens com os filósofos da antiga Grécia, a ética foi apresentada como um tipo de saber normativo, isto é, um saber que pretendia orientar as ações humanas. A moral proporia normas relativas a ações concretas em casos concretos. A ética, como ramo da filosofia, passou a ser mais identificada às reflexões sobre as diferentes moralidades e as maneiras de justificar racionalmente as ações morais, de modo que sua ação passou a ser considerada indireta, ou seja, como horizonte dos máximos morais e as normas passaram a representar o território do horizonte da mínima moralia, de obediência obrigatória por todos os membros de uma comunidade humana18.

Em suma, a reflexão ética é realizada tendo como finalidade o aperfeiçoamento da norma ética instituída.

Preocupado com a insuficiência de valores universais na ordem ética, Kant propôs um recurso à conduta moral. O chamado imperativo categórico kantiano é parte da tentativa de universalizar uma conduta moral particular: Segundo a proposta do filósofo alemão, toda ação humana para ser revestida de amparo ético deveria ser assim condicionada: “(...) age de maneira tal que possas também querer que a máxima de teu agir se transforme em Lei universal da natureza (...)” 19.

De acordo com Nietzsche, a orientação da cultura ocidental advém da exacerbação do uso da razão e desconsiderando instintos mais primordiais do ser humano. O resultado deste desequilíbrio resultaria no crescimento da violência e o enfraquecimento moral das massas, destruindo a civilização e os valores morais mais elevados20.

Hans Jonas refez os termos do imperativo categórico kantiano afirmando:

(...) age de maneira que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de autêntica vida humana sobre a terra; ou formulado com outras palavras: age de maneira tal que os efeitos de tua ação não sejam destrutivos da possibilidade de autêntica vida humana futura na terra21.

Neste sentido, já se percebe uma preocupação com o meio ambiente e o futuro da humanidade, frente à destruição do planeta. Assim, Jonas, considera que não somente o ser humano, mas também, a natureza extra-humana deve ser caracterizada como portadora de igual respeito, sendo, portanto, um fim em si mesma.

É reconhecido que, no campo conceitual existem diferentes correntes de percepções filosóficos nem sempre convergentes, contudo, é imperioso considerar que dois são os níveis de valoração dos atos humanos, já anteriormente mencionados como a ética de máximos e de mínimos. Na elaboração de um CEM, os últimos seriam tipificados como normas e os primeiros comporiam a categoria dos princípios fundamentais.

Todos os códigos deontológicos brasileiros já elaborados apresentam um capítulo que trata das questões dos Princípios Fundamentais e o fazem utilizando denominações similares como: Dignidade Profissional (CEM de 1929 e 1945), Normas Fundamentais (CEM de 1953 e 1965) e Princípios Fundamentais (CEM de 1984 e 1988). Todos os documentos mencionados explicitam os princípios fundamentais como metas valiosas de caráter amplo e genérico que devem nortear a moralidade no exercício da medicina. Expõem grandes conceitos e se enquadram na categoria de moralidade máxima. Simultaneamente, apontam normas deontológicas de cumprimento obrigatório por todos os médicos e que descrevem situações específicas de possíveis transgressões ao CEM que caracterizariam o território da moralidade mínima exigida para o exercício da medicina.

O contexto humano

O ser humano é, essencialmente, um ser de relações, como diria Heidegger, um ser-no-mundo. Este complexo pode ser compreendido em três diferentes dimensões, o das coisas, o das pessoas e o da transcendência. O horizonte das coisas é representado pelos objetos mais simples, passando pelos diferentes estágios de vida vegetal e animal. As pessoas ocupam a dimensão do sujeito das ações exercidas sobre o reino das coisas. A transcendência representa o horizonte acima das coisas e das pessoas, abrindo-se para o campo dos valores com alto grau de abstração22.

Ante o exposto, a ética ficaria demarcada entre o domínio das relações, do tempo e do lugar. No campo das relações humanas há uma pluralidade de percepções morais, o que justifica os diferentes critérios de argumentação, julgamento e escolha. Portanto, na escala animal, somente o ser humano consciente é crítico, criativo e reflexivo22.

Na dimensão da temporalidade, Freire (1969) percebe a verdadeira medida das diferentes dimensões do tempo, antes considerado unidimensional,

“(...) atinge o ontem, reconhece o hoje e descobre o amanhã. Na história de sua cultura terá sido o tempo – o da dimensionalidade do tempo – um dos seus primeiros discernimentos... que o leva à historicidade”23.

Segundo Heidegger (1996) “(...) a existência humana é ontologicamente marcada e constituída pela temporalidade (...)”. O ser-no-mundo, o que coloca o ser humano como estando simultaneamente:

Está dentro. Está fora. Herda. Incorpora. Modifica. Porque não está preso a um tempo reduzido a um hoje permanente que o esmaga, emerge dele. Banha-se nele. Temporaliza-se24.

A interpretação da história da humanidade pode ser modificada, mas não é razoável retirar o ser humano deste contexto. “(...) mas destruir a capacidade/potencial de o homem fazer e fazer-se história seria condicionar-lhe à objetificante animalidade, ou coisificação” 24.

Igualmente significativa é a herança cultural que depende da integração das relações humanas no tempo e em determinado ambiente, pois o ser humano é capaz de dar sentido ao que faz, de alterá-lo ou modificá-lo22.

Em síntese, o ser de relações é a pessoa. Não um simples fato biológico, menos ainda uma substância metafísica, mas trata-se de uma existência – ex-sistere - porquanto acontece ao longo de toda a vida22. Heidegger (1988) considerou que: “Nunca acabamos de nos construir, somos sempre um vir-a-ser de um ser que está aí (...)” 24.

Na arte das relações com as coisas e pessoas faz-se uma escala fazendo distinção entre elas, ou seja, classificando tudo e a todos. Dessa forma, acrescenta-se a este processo um novo elemento, o valor. O valor, portanto, é algo essencial que necessita ser considerado a respeito de uma coisa, de um fato ou de um fenômeno. Os valores fazem parte da vida concreta dos indivíduos e de suas relações com o mundo22.

O pensar e o agir humano são ações interdependentes. A ação é consciente, livre, escolhida, decidida e praticada com inteira responsabilidade sobre suas consequências. Logo, o individuo é um agente livre e responsável pelas suas ações, assumindo, assim, a condição de agente moral22.

Nesta condição, nota-se que a essência humana emerge da relação com os outros num determinado tempo e lugar, criando a cultura e valorizando seu entorno. Assim sendo, a ética reflete sobre as normas morais vigentes, buscando adequá-las às novas realidades da vida social, tornando-as mais adequadas para uma convivência interpessoal mais harmônica.

Princípios Fundamentais

Todas estas escolhas estão embasadas num sistema interno de valores, sem perder de vista o ordenamento jurídico a que cada cidadão está submetido na sociedade onde vive. Os médicos dentro da lógica da liberdade de escolha, também estão submetidos a leis e códigos que definem a boa prática profissional.

A relação médico-paciente será sempre assimétrica, considerando que o profissional é detentor de extenso conhecimento científico, o que torna muito difícil a transferência de todas as informações técnicas necessárias para a tomada de decisões clínicas. O paciente, nesta circunstância, encontra-se fragilizado, o que impõem ao profissional a obrigação de valer-se à exaustão do diálogo como instrumento para o encontro de soluções para os diferentes conflitos morais presentes no cotidiano da prática clínica. O paternalismo médico oriundo da ética hipocrática foi sempre marcado pelo princípio de que o doente seria incapaz de tomar decisões autônomas A partir do século XX uma nova realidade se impõe, quando sentenças judiciais proferidas por tribunais estadunidenses passaram a condenar médicos que desrespeitavam as decisões autônomas de seus pacientes,sepultando o tradicional paternalismo da profissão médica17.

O principialismo é um conjunto de postulados básicos que, mesmo sem um caráter de princípios absolutos, assessora no ordenamento dos debates bioéticos. Em contrapartida, possui a desvantagem de ser insuficiente com apenas quatro condições para resolver todos os conflitos, sendo necessária a busca de outras teorias para fundamentar a discussão25.

A seguir, enunciaremos alguns Princípios Fundamentais que, a nosso juízo, deveriam ser contemplados em todo CEM:

1. Dignidade Humana

A base conceitual que melhor define dignidade humana é localizada no imperativo kantiano ao considerar que todo ser humano deve ser considerado, em princípio, como um fim em si mesmo A dignidade da pessoa seria o objetivo para o qual os demais princípios deveriam dirigir-se, ou seja, o valor intrínseco de cada ser humano o faz merecedor de respeito e consideração. Incluídos nesta linha de referência, estariam a solidariedade e a compaixão. Outrossim, o respeito à dignidade deve abranger as crenças pessoais.

Importante salientar, que a Declaração dos Direitos Humanos e a Declaração de Helsinque, que orientam a ética em pesquisas realizadas com seres humanos, preocupam-se em seus enunciados em contemplar a dignidade do ser humano

2. Justiça Social

A justiça é um princípio secular do convívio humano que se coloca na interface entre a ética privada e a social26. Segundo Adela Cortina, a justiça é o princípio norteador da ética dos mínimos, necessária para que as pessoas possam atingir seu projeto de felicidade em uma sociedade moralmente pluralista18.

 Para Aristóteles (1996), a justiça poderia ser dividida em comutativa (corretiva) e distributiva. Defendia tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais. Vale ressaltar, que atualmente a justiça na área da saúde leva em conta a equidade proposta por Aristóteles27.

Desse modo, a justiça social está diretamente relacionada à noção de justa distribuição dos recursos de acordo com as necessidades das pessoas. Especificamente no campo da saúde esta distribuição mais eqüitativa busca beneficiar os mais vulnerabilizados da sociedade.

3. Responsabilidade

A responsabilidade é um dos pressupostos éticos fundamentais e está correlacionada à liberdade, uma vez que se é responsável pelas ações que se escolhe voluntariamente. A responsabilidade é constitutiva do ato e não consecutiva ao mesmo. Isto significa que a responsabilidade está intrinsecamente ligada a escolha e a realização do ato e não apenas das suas conseqüências28.

A responsabilidade é o compromisso em responder pelas próprias ações, sendo por esta maneira vinculada ao livre-arbítrio. Assim, a responsabilidade médica implica em assumir as conseqüências das decisões tomadas em relação à saúde do paciente e da comunidade.

4. Confidencialidade

Um dos maiores valores éticos da prática médica é a confidencialidade. Como regra geral, o médico deverá guardar sigilo sobre todas as informações que obtiver no âmbito do exercício profissional. O conceito de privacidade é compreendido como condição de inacessibilidade às informações e baseia-se na definição sobre quem pode ou não ter acesso às informações29. A garantia do sigilo determina a confiança, sobre a qual repousa a boa relação médico-paciente.

5. Autonomia de paciente e médico

A autonomia pessoal refere-se à capacidade de todo ser humano decidir sobre o que é “bom” e o que representa seu “bem-estar” e deve significar a liberdade do paciente para escolher, entre diferentes propostas terapêuticas, aquela que mais lhe convier. A pessoa autônoma tem o direito de tomar decisões baseadas em crenças e estimativas pessoais, mesmo que estes sejam discordantes dos valores presentes na comunidade nas quais estejam inseridas. Em vista da extrema diversidade de valores pessoais, a autonomia plena e irrestrita dificilmente poderá ser exercida por qualquer paciente, sem que se considere a sensata moderação representada por valores dos familiares do enfermo, o melhor saber científico e o conteúdo racional das opções terapêuticas escolhidas pelo paciente. Caracteriza a figura denominada por Hannah Arendt de “a tirania das possibilidades”, o que na prática médica significaria reservar aos médicos a tarefa de meros cumpridores acríticos das vontades de seus pacientes30.

A autonomia do paciente, considerada como o respeito à sua vontade pessoal, o direito sobre o próprio corpo do início até o final da vida, a participação ativa em todos os processos de decisão diagnóstica e/ou terapêutica é um conceito recente na história da medicina. A publicação do Código de Direitos dos Pacientes foi editada pela Associação Americana de Hospitais apenas em 197317.

O esforço pelo reconhecimento da liberdade e autonomia humana é um projeto inacabado da modernidade

A autonomia do médico, datada de tempos imemorais da cultura humana, tem sofrido profundas modificações, sobretudo a partir dos anos 1960 do passado século. O incontido avanço da tecnologia biomédica, o assalariamento vil oferecido pela empresas de medicina de grupo e do próprio Estado têm sido fatores importantes no desgaste da imagem do médico e na relação médico-paciente. Outrossim, é fundamental entender que a autonomia do médico deve ser respeitada e o restabelecimento de um vínculo de confiança entre profissional e paciente deverá ser feito por meio de diálogo respeitoso para que se alcance condições adequadas para tomada de decisões prudentes.

6. Direitos dos médicos

O CEM deve registrar em seus Princípios Fundamentais, os direitos atinentes à prática profissional. Assim, o médico poderá, desde bem fundamentado, deixar de realizar procedimentos que contrariem seus valores e crenças pessoais, o que é conhecido como objeção de consciência. As condições de trabalho médico, reivindicar seus direitos trabalhistas e o exercício profissional digno; exercer a medicina sem sofrer qualquer discriminação de caráter de gênero, étnico, ideológico, de orientação sexual ou filiação religiosa. Deverá poder exercer sua profissão com liberdade de escolha de métodos diagnósticos e terapêuticos, desde que conte com a concordância de seus pacientes e respeitem as normas legais e as melhores práticas científicas. Devem, sobretudo, poder dedicar ao paciente o tempo necessário para o adequado exercício profissional,assim como ter a liberdade de apontar aos dirigentes de instituições sanitárias e gestores públicos,as condições que mostrarem-se desfavoráveis para o atendimento médico, negando-se, inclusive a exercer a profissão em ambientes que não disponham de infra-estrutura suficiente para garantir sua própria saúde, assim como de seus pacientes.

7. Meio ambiente saudável

Finalmente, considerando sua condição de cidadão, um ser-no-mundo, deve o médico compartilhar com toda iniciativa que vise a preservação de meio-ambiente saudável. Schramm (2008) e Morin (2000) postularam que a ética está relacionada ao indivíduo, à sociedade e à espécie e necessita do controle mútuo da sociedade pelo indivíduo e do indivíduo pela sociedade, convocando todos ao exercício da cidadania planetária31,32.

De acordo com Siqueira (2008) o modelo apresentado pela ética principialista tornou-se insuficiente para dirimir dúvidas em situações clínicas mais complexas. A mera aplicação dos princípios propostos por Beauchamp e Childress tornou-se instrumento precário para dirimir os conflitos morais da atualidade33.

Simultaneamente, ao reconhecimento de valores essenciais apresentados como Princípios Fundamentais, norteadores da ética de máximos, torna-se imprescindível a tipificação de normas deontológicas, caracterizadas como ética mínima que comporão o território das regras que, caso descumpridas pelos médicos, facultarão aos Conselhos de Medicina a aplicação de punições. Dentro deste capítulo, enunciaremos alguns tópicos que, a nosso juízo, parecem essenciais:

1. Administração – direcionadas aos médicos na posição de administradores; gestores de orçamentos destinados à saúde seja na área pública ou privada, de instituições, hospitais e clínicas.

2. Conflito de interesses – relacionados à indústria de equipamentos, materiais médicos, órteses, próteses, etc., e farmacêutica, entre outras relações de interesse.

3. Documentação – prontuários, fichas, exames, declarações, atestados, certificados e informações contidas em base de dados da informática médica.

4. Ensino – dirigidas ao médico enquanto professor, preceptor e orientador de escolas médicas públicas ou privadas e de outras instituições.

5. Novas tecnologias – abarcando todos os avanços tecnológicos, como a fertilização assistida, transplante de órgãos, clonagem, terapia gênica, utilização de novos fármacos.

6. Pesquisas – conduzidas por médicos na condição de pesquisador.

7. Publicidade e propaganda – orientando a utilização ética dos meios de divulgação por toda mídia, inclusive a virtual.

8. Relações com pacientes, familiares e demais profissionais – todas as relações que um médico está obrigado a estabelecer durante sua atividade profissional, com os pacientes e seus familiares, assim como entre médicos, com as demais equipes de profissionais da área da saúde, considerando inclusive a relacionada com alunos, residentes, diretores e administradores de instituições que ofereçam atendimento à saúde.

9. Responsabilidade pericial – todas as atribuições vinculadas ao adequado cumprimento da atividade médica relativa à perícia médica.

Considerações Finais

As relações sociais são intermediadas por valores, considerando sempre variáveis de tempo e lugar. O ordenamento jurídico é um conjunto de normas hierarquizadas que disciplinam as condutas humanas com o objetivo de proporcionar harmonia e paz entre as pessoas de uma comunidade Os códigos deontológicos reconhecidos por lei compõem a essência do mundo do dever-ser e dentro deste campo está o CEM, como instrumento hábil para exercer o controle ético do exercício da medicina.

Dessa maneira, a reflexão sobre os valores e normas a serem inseridos nos CEM, devem fazer parte de um exercício permanente de atualização para que possam atender as demandas apresentadas pelo avanço do conhecimento científico e do crescente pluralismo moral da sociedade humana.

As reflexões apresentadas neste ensaio pretendem colaborar para a construção de instrumentos de controle da atividade médica, por meio de códigos que atendam aos anseios da sociedade moderna.

Conflito de interesse: não há.


Notes

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