Número 19 - Mayo 2010

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Questões éticas em xenotransplantação: fundamentos e orientações jurídicas

Ramiro Délio Borges de Meneses
Investigador do Instituto de Bioética da Universidade Católica Portuguesa – Centro Regional do Porto. Professor Adjunto do Instituto Politécnico de Saúde do Norte (Gandra e Famalicão) – Portugal.


Palavras-chave

Xenotransplantação; Órgãos; Animais; Risco/Benefício; Questões Éticas.


Palabras clave

Xenotrasplantes; Órganos; Animales; Riesgo/Beneficio; Cuestiones Éticas.


Introdução

Nas últimas décadas, tem vindo a aumentar o interesse científico na possibilidade de transplantar células, tecidos e órgãos de origem animal para recipientes humanos. Os avanços nas técnicas cirúrgicas, na preservação de órgãos e no desenvolvimento de imussupressores efectivos permitiram que a alotransplantação se tornasse um meio de tratamento estabelecido e importante em casos de insuficiência orgânica (4). No entanto, a necessidade actual de órgãos humanos excede largamente a sua disponibilidade, apesar dos esforços evidentes de encorajamento à sua doação. Estima-se que metade dos potenciais recipientes morre enquanto espera pelo seu transplante (19). Desta forma, a escassez de órgãos humanos aliada ao avanço tecno-farmacológico destacam a xenotransplantação como um meio de tratamento ilimitado e mundialmente disponível que poderia reverter a actual crise de órgãos.

Definição

De acordo com os mais recentes documentos publicados por United States Public Health Service e United States Food and Drug Administration, a xenotransplantação define-se como qualquer procedimento que envolve o transplante, a implantação ou a infusão num recipiente humano de qualquer produto das seguintes 2 categorias: (a) células, tecidos ou órgãos vivos de uma fonte animal não humana, (b) fluidos corporais, células ou tecidos humanos que contactaram ex vivo com produtos de origem animal não humana. Os produtos utilizados neste procedimento são então células, tecidos ou órgãos vivos (8, 15). São exemplos: o transplante de um fígado não humano para um paciente com insuficiência hepática grave; a implantação de células neuronais em cérebros de indivíduos com doença de Parkinson e a infusão de células de medula óssea animal em doentes imunodeprimidos.

Resenha histórica

O uso de produtos animais no tratamento de patologias humanas não é uma ideia recente. Datam do início do século XVII tentativas de ressuscitar pessoas moribundas com transfusões de sangue animal. Em 1682, na Rússia, um crânio de um soldado ferido numa batalha foi reparado com osso de cão. Posteriormente, no século XIX, registaram-se inúmeras tentativas de transplantar tecidos animais para indivíduos, nomeadamente, retalhos de pele, uretras de ovelha ou olhos de coelhos. Até fragmentos de testículo de macaco foram usados na esperança de reverter a impotência sexual (9).

Produtos

Apesar dos babuínos e chimpanzés serem, quer imunológica quer filogeneticamente, mais próximos do Homem, os porcos são, na actualidade, considerados a melhor fonte de órgãos para xenotransplantação, até porque existem em abundância e dispersamente. Outras vantagens da utilização destes animais incluem: menor risco de transferência de infecções em relação a um primata não-humano; crescimento fácil e rápido; semelhanças fisiológicas incríveis quer em função quer em tamanho e menor contestação pública uma vez que diariamente são objecto da nossa alimentação (9). Por seu turno, o uso de primatas acarreta maior risco de transmissão de doenças dada a maior proximidade biológica; desperta mais contestação pública, pois são notórias as suas demonstrações de inteligência e as suas interacções sociais complexas e, como o seu período de gestação é longo e as gestações são geralmente únicas, aumentam os custos necessários para satisfazer a procura de órgãos.

Potencialidades

Em 2002, o número de pacientes em lista de espera para transplante em todo o mundo superou os 250.000 e menos de 1/3 destes receberam-no (20).

Nos EUA, por exemplo, estão disponíveis anualmente 20000 orgãos humanos, a maioria oriundos de dadores com morte cerebral, mas são cerca de 60000 os candidatos em lista de espera, evidenciando-se uma falha profunda entre oferta e procura, que tem vindo a aumentar 10-15% ao ano. O desejável seria atingir os 50 dadores por milhão de habitante e com uma percentagem de dadores multi-orgãos situada nos 90%. Em, 2002, Portugal atingiu os 21,7 dadores por milhão de habitante, com uma taxa de colheita multi-orgânica na ordem dos 76%, conservando uma posição de destaque entre os países europeus, mas ainda assim claramente insuficiente (16). Deste modo, a espera por um transplante é longa e muitos não resistem e morrem no entretanto. Estima-se que mais de 5% dos candidatos morre anualmente, percentagem que tem vindo a aumentar catastroficamente nos últimos anos (20). Mas, o problema assemelha-se mais grave do que as estatísticas sugerem … Muitos dos pacientes que indubitavelmente beneficiariam do alotransplante nem sequer são inscritos nas listas de espera, simplesmente porque são candidatos menos competitivos. Assim, os escassos órgãos disponíveis são distribuídos preferencialmente aos pacientes que terão maior probabilidade de sucesso pós-transplante, excluindo-se à priori os indivíduos muito debilitados, para os quais se advinham complicações graves no peri-operatório; os candidatos borderline, ou seja, indivíduos com doenças concomitantes que inviabilizam o sucesso do transplante e os indivíduos que já receberam um transplante mas que desenvolveram uma rejeição crónica ou recorrência da doença primária. Para todos estes casos a transplantação assemelha-se como a única hipótese de sobrevida e, no entanto, é-lhes negado de imediato essa possibilidade, em detrimento de uma utilização racionalizada dos recursos disponíveis. Para agravar ainda mais a situação, em várias regiões do globo, a doação cadavérica é proibida em nome de princípios religiosos ou culturais (9). Neste quadro negro, a xenotransplantação adivinha-se como um potencial reversor, assegurando um banco inesgotável de órgãos e o tratamento conveniente do paciente antes do agravamento clínico da doença (após o estudo e preparação adequados), mas também em situações de emergência. Sempre que necessário, em qualquer parte e em qualquer altura, a possibilidade de cura seria oferecida ao doente sem restrições e com um outcome mais favorável!

Apesar dos benefícios e potencialidades inquestionáveis da xenotransplantação, existem obstáculos variados à sua utilização, nomeadamente incompatibilidades biológicas, riscos de novas epidemias e questões éticas e psicossociais que incendeiam a opinião pública.

Código de Nuremberga - Adoptado pelo Tribunal Internacional de Nuremberga, em 1947

1. O consentimento voluntário do experimentado humano é absolutamente essencial. Significa isto que o participante deve possuir a capacidade legal de dar o seu consentimento; deve encontrar-se em situação tal que o torne capaz de exercer livremente a sua capacidade de escolha, sem a intervenção de qualquer elemento de força, fraude, ilusão, coacção, engano, ou qualquer outra forma de constrangimento ou coerção; e deve possuir suficiente conhecimento e compreensão dos elementos da matéria em questão, que lhe permitam entendê-la e tomar uma decisão esclarecida. Este último elemento exige que, antes da aceitação de uma decisão afirmativa pelo sujeito submetido a experimentação, se lhe deve dar conhecimento da natureza, da duração e da finalidade da experiência; do método e dos meios pelos quais ela será conduzida; de todos os inconvenientes e perigos que se podem razoavelmente esperar; e dos efeitos sobre a sua saúde e a sua pessoa que possam advir da sua participação na experiência. O dever e a responsabilidade de verificar a qualidade do consentimento recai sobre cada indivíduo que tenha a iniciativa, que dirija ou que se empenhe na experimentação. Trata-se de um dever e de uma responsabilidade pessoais que não podem ser delegados a outrém impunemente.

2. A experiência deve ser de molde a levar a resultados frutíferos para o bem da sociedade, impossíveis de obter por outros métodos ou meios de estudo e não despropositada e desnecessária na sua natureza.

3. A experiência deve ser concebida e baseada sobre os resultados da experimentação animal e num conhecimento da história natural da doença ou outros problemas em estudo, de tal modo que os resultados previstos justifiquem a execução da experiência.

4. A experiência deve ser conduzida de modo a evitar todo o sofrimento e lesão física e mental desnecessários.

5. Não se deveria proceder a nenhuma experiência quando haja uma razão a priori para crer que a morte ou uma lesão incapacitante podem ocorrer; excepto, talvez, nas experiências em que os médicos experimentadores também sirvam como experimentados.

6. O grau de risco em que se incorre nunca deveria exceder aquele que é determinado pela importância humanitária do problema que a experiência se propõe resolver.

7. Deve fazer-se uma conveniente preparação e disponibilizar-se instalações adequadas para proteger o experimentado contra as possibilidades, ainda que remotas, de lesão, incapacidade ou morte.

8. A experiência deve ser executada apenas por pessoas cientificamente qualificadas. Deve exigir-se a quantos a dirigem ou nela se empenham o mais alto grau de competência e de prestação de cuidados ao longo de todos os estádios da experimentação.

9. O experimentado deve ter a liberdade de pôr termo à experiência enquanto ela decorre, se atingiu o estado físico ou mental em que a prossecução da experiência lhe parece impossível.

10. No decurso da experiência, o cientista encarregado tem de estar preparado para lhe pôr termo em qualquer estádio, se tiver causa provável para crer, no uso da boa fé, da superior competência e do ponderado juízo que lhe são exigidos, que a prossecução da experiência é de molde a resultar em lesão, incapacidade ou morte para o experimentado. (Anexo 1)

Barreiras e riscos

Um dos principais obstáculos à xenotransplantação é a capacidade de rejeição do transplante animal, capacidade esta que não é, geralmente, tão intensa nem tão fatal na alotransplantação, em parte devido às mais atenuadas diferenças biológicas intra-espécie (1). Verificou-se ainda que o ataque imunológico é mais rápido e feroz quando se usam órgãos sólidos, ao invés de células ou tecidos isolados, provavelmente porque a preservação da árvore vascular desperta uma resposta imediata contra as estranhas proteínas de superfície das células endoteliais dos vasos. São conhecidas 3 vias de rejeição imunológica: (a) rejeição hiperaguda, (b) rejeição retardada e (c) rejeição celular. A rejeição hiperaguda é mediada por anticorpos humanos naturais em circulação que reagem com os antigénios expressos nos tecidos de espécies diferentes e que leva à activação do sistema do complemento com formação de áreas de hemorragia, trombose e necrose em minutos ou horas. Este fenómeno também é observado na alotransplantação quando há incompatibilidade entre os grupos sanguíneos ABO do dador e receptor (1). A sua potência é em parte função da distância filogenética entre as espécies envolvidas sendo, portanto, mais evidente entre espécies discordantes (Homem-porco) do que entre espécies concordantes (Homem-primata) (14). A rejeição retardada caracteriza-se por uma resposta inflamatória que pode ocorrer entre as 36-38h mas que, tipicamente, ocorre dentro de dias ou meses após o transplante. Envolve igualmente a acção de anticorpos naturais xeno-reactivos e a activação/lise das células endoteliais vasculares sendo, contudo, mais dependente da actuação de linfócitos B. Se o xenotransplante sobreviver o tempo suficiente no hospedeiro pode desencadear-se uma resposta de rejeição mediada por células, nomeadamente linfócitos T, células natural-killer, macrófagos e leucócitos polimorfonucleares. Mas, mesmo que o transplante consiga escapar à resposta imune do hospedeiro, coloca-se a questão se as células, tecidos ou órgãos transplantados poderão desempenhar as mesmas funções do sector afectado. Ainda não se explorou muito bem esta questão, mas pensa-se que existam várias condicionantes de função, como discrepâncias anatomo-fisiológicas e bioquímicas, nomeadamente a presença de citocinas com actividades especificas de espécie (4).

Várias estratégias têm vindo a ser formuladas na tentativa de prevenir ou reduzir a resposta de rejeição imunológica, incluindo a engenharia genética, a imunossupressão, os inibidores do complemento e as barreiras físicas (4). Por engenharia genética é possível adicionar ou substituir genes do genoma animal (criação de animais transgénicos), que permitam aumentar a compatibilidade entre o xenotransplante e o receptor e reduzir a potência da reacção de rejeição mediada pelo complemento. Estes animais transgénicos nascem por cesariana, são privados do contacto com a progenitora e crescem em ambientes esterilizados sob o olhar atento dos investigadores, para evitar a transmissão de infecções. A discussão em torno da engenharia genética assenta na preocupação natural do Homem na criação de “novas” espécies mais humanizadas e no perigo evidente de extinção de espécies “antigas”, violando as regras da evolução (6). A imunossupressão, com larga experiência no campo da alotransplantação, garante alguma protecção contra a reacção de rejeição celular, mas não afecta os anticorpos ou complemento activo pré-existentes. As doses necessárias para surtir efeito são geralmente tóxicas para o receptor e predispõem para infecções oportunistas fatais. As barreiras físicas incluem encapsular os produtos transplantados em membranas semi-permeáveis ou outros aparelhos, protegendo-os do ataque imunológico (18). Também o recurso à depleção de anticorpos pré-existentes por adsorção ou perfusão do sangue do receptor, através de colunas impregnadas de antigénios complementares, pode suavizar a rejeição hiperaguda. Vários outros métodos têm sido estudados, nomeadamente métodos de indução de hipo-sensibilização especifica ou tolerância funcional aos tecidos xenogénicos.

Para além das barreiras inerentes à xenotransplantação mencionadas, este procedimento comporta riscos para o indivíduo e para a sociedade que não podem ser menosprezados (Anexo 2). O uso de produtos de origem animal acarreta a possibilidade de transmissão de agentes infecciosos patogénicos para o receptor, para os seus contactos e para a população geral, gerando um tipo de infecção que não era previamente endémica na população humana – xenozoonose. Quando um agente infeccioso é introduzido num novo hospedeiro a sua capacidade de produzir doença, a sua virulência é imprevisível. Veja-se o exemplo do Herpesvirus Cercopithecine 1 que, no macaco, provoca doença ligeira mas que, no Homem, causa uma mieloencefalite rapidamente progressiva com 70% de mortalidade (4). As zoonoses mais comuns são: encefalopatia espongiforme transmissível, mediada por priões; retroviroses com risco de mutação do vírus e propagação horizontal e vertical na população; viroses de DNA, que causam frequentemente tumores e outras patologias no receptor. Na tentativa de as evitar, têm-se desenvolvido técnicas que permitam eliminar os agentes infecciosos nos animais utilizados. No entanto, mesmo que eficazes na eliminação de microorganismos exógenos, estas técnicas não conseguiriam prevenir a transferência de pró-virus integrados nos cromossomas do animal, tal como os chamados Retrovirus Endógenos Porcinos (RVEP). Cerca de 1% do genoma de um mamífero consiste destes pró-virus presentes na espécie durante milhões de anos e que podem tornar-se patogénicas quando transferidas para uma espécie diferente ou combinar-se com segmentos de DNA do receptor originando vírus novos imprevisíveis e prejudiciais para este e para a comunidade (9).

Questões éticas

Risco-benefício

A razão risco-benefício é favorável quando o benefício potencial para o indivíduo é superior aos riscos decorrentes de um dado procedimento. No caso da xenotransplantação, a avaliação deste item é ainda mais complicada, pois terá de ser devidamente avaliado o potencial risco para o indivíduo e para a comunidade. O bem-estar da população não pode ser posto em causa em detrimento do bem-estar de um grupo restrito de indivíduos (4). Assim os ensaios clínicos só deverão ser iniciados quando os objectivos científicos na experimentação animal tiverem sido atingidos (demonstração de sobrevida prolongada, optimização de drogas imunossupressoras, entre outros), quando a segurança da xenotransplantação for suficientemente compreendida e assegurada e quando se criarem regulamentos e legislações minimamente consensuais. E, numa fase inicial, os ensaios clínicos deverão ser limitados a um grupo restrito de doentes para asseverar a segurança, remarcar vantagens e aumentar a confiança da população neste procedimento (2).

Consentimento informado

A selecção dos candidatos deverá ser pautada por etapas rigorosas, uma vez que estão em jogo riscos importantes para o paciente e respectiva comunidade. Os pacientes deverão ser informados das restrições que terão de cumprir religiosamente e da monitorização apertada e prolongada que se impõe. A adesão ao tratamento é uma questão imperiosa, uma vez que a não-adesão associa-se a resultados menos favoráveis. O risco de não-adesão aliado ao risco aumentado de rejeição do xenotransplante torna necessário um estudo multidisciplinar e rigoroso do padrão social, psiquiátrico, familiar e comportamental dos candidatos, de forma a não serem afectadas a morbilidade e a sobrevida por factores extrínsecos ao procedimento em causa. Será, igualmente, undamental coordenar o apoio psicológico ao doente e à família, para que o stress e os difíceis desafios sejam mais facilmente superados. O direito à privacidade deverá ser respeitado, mas cabe ao profissional de saúde alertar para a previsível atenção e pressão mediática a que todos serão sujeitos (4).

A aquisição de consentimento informado é um processo fundamental, devendo o paciente ser informado cuidadosamente dos benefícios e perigos mesmo que, a quantidade de informação seja abismal ou até de difícil compreensão (cabe ao médico tornar perceptível e sucinta a informação). O doente tem sempre o direito à informação clara, precisa e abrangente para que, de sua consciência e liberdade, conclua aceitar ou recusar um dado procedimento. E isto é, particularmente, importante nos doentes em fim de vida e desesperados, que se oferecem, de imediato, para uma experimentação em seu benefício ou em prol da humanidade. Não devendo ser desencorajados a fazê-lo, cabe à equipa médica não presumir o consentimento, mas sim construí-lo, veiculando informação, levantando questões e analisando com minúcia os prós e contras (9). Só assim, o doente poderá, de forma racional, livre e informada, dar o seu consentimento informado, livre e esclarecido. Em relação à obtenção de consentimento para a realização de um xenotransplante, é importante referir a necessidade de introduzir modificações no modelo standard de obtenção do consentimento informado individual, uma vez que os riscos deste procedimento envolvem também a família, os contactos do doente e a população em geral. Desta forma, o complexo e demorado processo de tomada de decisão deverá abranger 3 níveis: o social, o institucional e o individual. A população deve ser informada dos riscos conhecidos que podem advir da xenotransplantação, bem como, do tremendo desconhecimento e incerteza que envolvem algumas questões deste procedimento e a sua opinião deve ser indagada para a formulação de guidelines. As instituições devem assegurar a qualidade dos cuidados prestados, o estabelecimento e controlo dos riscos, a monitorização dos pacientes e seus relativos e a avaliação da eficácia dos procedimentos de acordo com as deliberações e regulamentos públicos. São, igualmente, responsáveis, caso a xenotransplantação prossiga sem a existência de regras de segurança e sem o consenso social, científico e legislativo. O doente, por sua vez, deve estar ciente dos riscos individuais, familiares e sociais implicados e deve assumir perante a sociedade a obrigação de cumprir os protocolos, de respeitar a monitorização médica exigida e de aderir a todos os tratamentos necessários.

Aspectos psico-sociais

Está bem documentado que os indivíduos sujeitos a alotransplantação são afectados por vários stresses psicossociais com um impacto considerável na sua recuperação (13). Decerto, a xenotransplantação trará consigo novas questões psicossociais para além de, necessariamente, obrigar a alterações no estilo de vida e dificultar a reintegração na sociedade. Ao contrário da alotransplantação, será possível com o uso de animal diminuir o tempo de espera do indivíduo, o qual é sempre um período de intensa ansiedade, tensão e isolamento familiar e social. Adicionalmente, estes indivíduos não mais sentirão culpa e tristeza por serem salvos à custa de uma vida humana e não mais serão alvo da atenção da família do dador (9). Mas as desilusões, desvantagens e perigos são múltiplos…Dada a natureza experimental da xenotransplantação, os ensaios iniciais realizados são desanimadores, o sucesso é incerto e a morbilidade é significativa. O doente terá de se submeter a um isolamento inevitável e prolongado (o que pode enfraquecer os laços familiares e sociais), será encorajado à monogamia restrita e com a devida protecção, será desencorajado a ter filhos dada a provável transmissão vertical dos VREP e será certamente alvo da atenção dos media, com restrição da sua privacidade. Como se não bastasse, terá de travar uma luta diária entre evitar a rejeição e prevenir as infecções oportunistas, recorrendo ao uso de potentes fármacos imunossupressores, com efeitos laterais deletérios (por exemplo: patologia tumoral maligna, depressão e psicose, insuficiência renal, neurotoxicidade e diabetes). Em termos emocionais, o indivíduo poderá sentir-se menos humanizado e menos digno, particularmente, os transplantados de coração - órgão tido no senso comum como o centro das emoções (9).

O Homem é um ser social e, como tal, as atitudes e a aceitação públicas são determinantes no seu bem-estar. É muito provável que os xenotransplantados enfrentem desafios sociais devastadores. Para além de suportarem o estigma da doença, poderão ser considerados desumanizados e ridicularizados por transportarem um órgão de porco, por exemplo - que é considerado um animal sujo e que não desperta afecções. O temor de uma possível infecção pode levar a atitudes sociais evasivas e desumanas, levando ao isolamento destes doentes de si já tão fragilizados. Verifica-se claramente que a qualidade de vida pós-transplante melhora, exponencialmente, com a reinserção na profissão. Contudo, estes doentes não escapam geralmente ao despedimento, por receio do patronato de ausências laborais prolongadas e de custos e seguros médicos avultados (11). Mesmo em meio hospitalar podem ser alvo de atitudes negativas, quer por medo das tão divulgadas infecções, quer devido a conflitos de interesse entre profissionais com ideias opostas em relação à xenotransplantação (12). E a principal e mais grave consequência será a quebra de confiança nos profissionais de saúde e, mais importante ainda, em si próprio!

Respeito pelo animal

“Durante muito tempo, não se levantaram objecções de natureza ética à experimentação no animal, mesmo quando cruenta e causadora de desconforto e dor” (Nunes R, 1999). Com a evolução da sociedade questiona-se, cada vez mais, se o uso de animais para fins terapêuticos é compatível com princípios éticos e morais. Surgiram algumas correntes mais extremistas que, de forma radical, defendem a exclusão dos animais de qualquer experimentação científica, recorrendo a três argumentos-base: o sofrimento do animal é indistinguível do do ser humano; não se pode fazer sofrer um animal e os animais têm direitos que é imperioso respeitar. No entanto, estes argumentos não são concordantes com a ética (17). De facto, os animais não são dotados do nível de consciência, racionalidade e sensibilidade que caracterizam o Homem, pelo que não é legitimo extrapolar para o animal tudo que causa dor e desconforto no Homem. Também não se pode afirmar que os animais são sujeitos de direito. O Homem sim é que tem deveres para com o animal, que deve solenemente cumprir. O Homem deve sempre evitar infringir todo e qualquer sofrimento desnecessário ao animal e deve, sempre que possível, recorrer à anestesia ou analgesia. Deve, também, assegurar uma alimentação, acomodação e higiene adequadas e usar somente animais quando outros métodos não são possíveis. Todas as formas e tipos de vida são vidas e a vida é um bem essencial e imprescindível! Em suma, a experimentação animal deve cumprir e reger-se pelas leis aplicáveis e deve ter por base uma utilidade estabelecida e justificada para a humanidade ou para a própria vida animal. No campo da xenotransplantação, tudo isto ganha ainda mais fundamento: é essencial realizar transplantação entre animais previamente à experimentação humana; todos os animais devem ser tratados com o máximo cuidado e higiene, para evitar o desenvolvimento e a transmissão de infecções e devem ser seguidos com rigor todos os protocolos ético-legais vigentes.

Alocação de recursos

Globalmente, as necessidades médicas são ilimitadas mas os recursos disponíveis são limitados. E, como tal, o objectivo será assegurar um determinado nível de assistência à saúde que satisfaça as necessidades da maioria dos indivíduos, adoptando, portanto, uma politica de optimização de recursos. Contudo, gera-se um dilema ético: o uso de uma boa parte dos recursos na investigação de novos procedimentos que visem melhorar os cuidados de saúde a longo prazo ou o uso dos recursos disponíveis para assegurar que todos os indivíduos tenham acesso, a curto prazo, a uma assistência médica minimamente satisfatória. Acerca da problemática dos transplantes humanos e, na tentativa de equilibrar a procura e a oferta de órgãos, criaram-se as chamadas listas de espera únicas, baseadas na ordem de entrada dos doentes. Mas será isto eticamente correcto? Estarão assegurados os princípios éticos básicos de justiça e igualdade, na sua concepção original de tratar desigualmente os desiguais na medida das suas desigualdades? (5) Pensamos que não. Esta organização em lista de espera, sem a análise técnica e fundamentada, caso a caso, quanto à necessidade preeminente, acaba por institucionalizar desigualdades, relegando os pacientes à própria sorte e apartando-se, assim, do ratio legis, que visa atingir maior justiça no que tange ao transplante de órgãos (5). Noutra perspectiva, o financiamento de tecnologias e procedimentos sofisticados, como a xenotransplantação, é um tema controverso. Esta técnica poderá vir a resolver o problema das listas de espera e salvar mais vidas atempadamente, mas implicaria o uso avultado de recursos, os quais poderiam ser usados num leque mais vasto de procedimentos que abrangessem o bem-estar de mais doentes. Assim, têm sido propostas outras alternativas para vencer a crise de orgãos para transplante como: (a) projectos de investigação em novas técnicas cirúrgicas para reparação do órgão malformado ou não-funcionante, ou então, em técnicas de produção de órgãos sintéticos; (b) prevenção de estilos de vida e comportamentos prejudiciais à saúde, permitindo reduzir a incidência de doença; (c) incentivar à doação de órgãos, incluindo retornos financeiros; (d) consentimento presumido, ou seja, presunção legal de que todo e qualquer individuo é um potencial dador, excepto se tiver declarado o seu dissentimento. O nosso sistema corrente presume a ausência de consentimento e obriga o cidadão a expressar a sua recusa à doação, inscrevendo-se no Registo Nacional de Não-Dadores – RENNDA (17). Mas a decisão cabe sempre e unicamente ao individuo e não à família, respeitando por inteiro o principio da auto-determinação.

Caso clínico

No dia 26 de Outubro de 1984, o Dr. Leonard Baily e a equipa de transplantes do Centro Medico Universitário Loma Linda, na Califórnia, conduzem um transplante de coração do babuíno Goobers para uma paciente pediátrica do sexo feminino com hipoplasia ventricular esquerda, conhecida com Baby Fae, com 5 kg de peso e nascida poucas semanas antes. A mãe, a avó e o namorado da mãe (que não era o pai biológico da criança) estiveram reunidos durante 7 horas com o Dr. Bailey no noite do dia 20 de Outubro, que assegura ter explicado com minúcia os seus conhecimentos e a sua experiência na área da transplantação inter-espécies. A mãe e o pai biológico, que não esteve presente na explicação médica, consentiram a intervenção cirúrgica. Os médicos previam que o coração transplantado só poderia ajudar transitoriamente a criança, que acabou por morrer, por rejeição do transplante, no dia 15 de Novembro, 20 dias após o procedimento cirúrgico, um tempo recorde até então. Este caso verídico foi amplamente divulgado na imprensa, suscitando inúmeras questões éticas no seio da opinião pública.

Síndrome de hipoplasia do ventrículo esquerdo (SHVE)

Trata-se de uma malformação cardíaca que envolve o ventrículo esquerdo, a aorta e a válvula mitral. Nesta cardiopatia observa-se um subdesenvolvimento da câmara esquerda do coração, com consequente diminuição significativa do débito cardíaco. Sendo o quarto defeito congénito mais comum e crítico do coração, ocorre em 0,267 neonatos por 1000 nados vivos (Ferenz et al., 1985). Quando não sujeitos a qualquer tratamento, a taxa de mortalidade é de 95% ao 1º mês, com uma taxa de sobrevida nula a partir de 4 meses (21). As opções terapêuticas actualmente disponíveis para um neonato diagnosticado com SHVE incluem:

1. Interrupção médica da gravidez - Apenas quando a malformação é detectada precocemente, nas primeiras 24 semanas de gravidez, e comprovada ecografica e/ou ecocardiograficamente.

2. Cuidados médicos paliativos - Iniciados quando se excluiu o tratamento cirúrgico, estando associados a uma taxa de sobrevida de 1 semana.

3. Transplante cardíaco - Vantagens: a criança é dotada de um coração estrutural e funcionalmente normal; quando efectuado no 1º mês de vida, apresenta uma significativa taxa de sucesso; taxa de sobrevida de 82%-89%, dos quais 61% traduzem neonatos que sobrevivem até 1 ano e 55% neonatos com uma esperança de vida de 5 anos. Desvantagens: pouca experiência em crianças; reduzido número de dadores compatíveis; restrição de certas actividades físicas e sociais e necessidade de prevenir a rejeição do transplante, a longo prazo, com terapia imunossupressora, a qual contribui para um aumento da susceptibilidade a infecções potencialmente fatais e comporta gastos avultados.

4. Xenotransplante cardíaco - Método não terapêutico, em fase experimental. A taxa de sucesso documentada é nula e a experiência/conhecimento médico escasso.

5. Cirurgia reconstrutiva paliativa - Envolve três procedimentos cirúrgicos: (a) Procedimento Norwood - tem de ser realizado nos primeiros dias de vida do neonato e pretende converter o ventrículo direito no ventrículo principal ou sistémico. A taxa de sobrevida é de 80%, requerendo uma hospitalização prolongada, responsável pela considerável taxa de mortalidade associada a este método; (b) Cirurgia bidireccional de Glenn - realizado aos seis meses de idade, tem por objectivo desviar metade da circulação sistémica para os pulmões. A taxa de sobrevida é de 100%; (c) Cirurgia de Fontan - corresponde ao último estadio desta cirurgia paliativa, sendo realizado aos 2 anos de idade. Desvia a totalidade da circulação sistémica para os pulmões. A taxa de sobrevida é de 95% (21). Na totalidade a taxa de sobrevida conferida pela cirurgia reconstrutiva paliativa é de 70-75% aos 5 anos de idade. Considerando estes doentes que sobreviveram aos três estadios desta terapêutica, observou-se que uma reduzida percentagem dependia de medicamentos, a maioria apresentava um crescimento e desenvolvimento normais e uma minoria tinha restrições às actividades físicas e/ou sociais.

Questões éticas

1. Qual a finalidade da intervenção médica: o tratamento ou a investigação científica?

Neste caso questiona-se a utilização de um bebé numa experimentação não terapêutica, pois o transplante não traria benefícios reais. A Declaração de Helsínquia distingue dois tipos de investigação médica: a terapêutica e a não terapêutica (17). Se, em princípio, todo o sujeito da experimentação terapêutica poderá beneficiar com a sua participação no estudo que lhe é proposto, já na experimentação não terapêutica é improvável que a sua participação lhe conceda algum benefício que não o sentimento de altruísmo, solidariedade ou desejo de prestar um serviço relevante à Humanidade. Não admira, então, que sejam exigidas mais garantias de segurança e rigor no recrutamento de voluntários para este último tipo de estudo. Será que neste caso essas normas e garantias de segurança foram cumpridas? Esta e muitas outras perguntas não têm resposta, mas cremos que, por um lado, a equipe médica não terá elaborado um rigoroso protocolo ético-legal, não terá informado devidamente os pais de todos os tratamentos disponíveis e não terá dado conhecimento a uma comissão de ética (nessa altura ainda poucas estavam implementadas) dos propósitos da intervenção. Por outro lado, os pais de crianças com hipoplasia ventricular esquerda são confrontados, logo ao nascimento, com uma doença que desconhecem por completo, mas que rapidamente compreendem que é bastante letal e que terão de agir e decidir com a maior brevidade possível (21). E, neste clima turbulento, não conseguem ter o discernimento necessário nem a exigida rápida capacidade de decisão, optando muitas vezes ou pelo que lhes é aconselhado pelos profissionais de saúde ou por posições emocionais que não vão de encontro com o melhor interesse dos próprios filhos. Caberá, portanto, aos profissionais de saúde garantir que toda a informação importante seja veiculada e sobretudo compreendida pelos pais e auxiliar na escolha da melhor opção de tratamento (mas nunca impô-la!). Outra questão igualmente plausível é se será cientificamente necessário recorrer a crianças, sujeitos vulneráveis sem capacidade para exercer a sua autonomia, para testar procedimentos médicos, nomeadamente, a xenotransplantação? Embora a Declaração de Helsínquia preveja a realização de experiências em sujeitos incapazes, mediante o consentimento informado dos seus responsáveis legais, a verdade é que o pretenso direito moral de um tutor dispor de um filho menor, recusando ou autorizando a inclusão deste num estudo com eventuais riscos é um tema bastante polémico (17). Haverá sempre o receio em usar a criança como um objecto e a incerteza se o melhor para a criança estará a ser assegurado. A investigação na esfera da pediatria rege-se, então, por critérios específicos e só é legítimo realizar estudos com objectivo terapêutico com benefícios directos e riscos mínimos, como é o caso dos estudos para avaliação da eficácia de medicamentos com finalidade pediátrica que não pode ser determinada em adultos. É igualmente fundamental que o protocolo da investigação seja analisado por uma Comissão de Ética por forma a garantir que o melhor será feito em prol do bem-estar do individuo. Todo o ensaio clínico deve satisfazer exigências mínimas de natureza ética para que não desperte objecções sérias à sua realização. Deve, portanto, ter validade científica fundamentada e plausível; garantir o respeito por direitos básicos dos indivíduos, como o direito à liberdade e autonomia, o direito à integridade física ou psíquica e o direito à confidencialidade; ser gratuito; assegurar a indemnização em caso de danos involuntários e a continuação do tratamento utilizado.

Como já referimos, a cirurgia reconstrutiva paliativa oferece a maior probabilidade de sucesso em termos da percentagem de sobrevivência sendo, geralmente, a alternativa terapêutica ética e moralmente preferível. Porém, os pais não terão tido conhecimento desta hipótese por decisão consciente dos médicos, desrespeitando o artigo 26º do Código Deontológico Médico que nos diz que o médico que aceite o encargo ou tenha o dever de atender um doente obriga-se por esse facto à prestação dos melhores cuidados ao seu alcance, agindo com correcção e delicadeza, no exclusivo intuito de promover ou restituir a saúde, suavizar os sofrimentos e prolongar a vida, no pleno respeito pela dignidade do ser humano.

2. Foram respeitados os princípios éticos básicos que deverão reger a actuação clínica dos profissionais de saúde?

Beauchamp e Childress idealizaram um conjunto de princípios tidos como os pilares da ética, sendo de extrema importância enquanto regras de actuação clínica (3). O princípio do respeito pela autonomia individual refere-se ao direito à auto-determinação e decorre da doutrina da dignidade e dos direitos fundamentais que assistem todo e qualquer sujeito (17). As decisões individuais do doente devem ser sempre consideradas, quando se trata de optar por um tratamento ou procedimento médico entre vários. As crianças, sujeitos incompetentes e vulneráveis, não têm a capacidade de escolha em função do seu próprio bem e são incapazes do exercício pleno da sua liberdade e autonomia inerentes. Assim, a sua autonomia é transitoriamente transferida para os adultos competentes. Parte-se do princípio, portanto, que os representantes legais da criança tomam decisões que zelam pelos melhores interesses da criança. Caso estas decisões sejam questionáveis, o profissional poderá requerer a retirada do poder paternal ao Tribunal de Menores e agir segundo a doutrina do melhor para o paciente. Os princípios da beneficência e não-maleficência asseguram que a vontade do indivíduo é respeitada na óptica do seu melhor interesse e, preferencialmente, sem o prejudicar (primum non nocere) (17). Caberá ao médico fornecer, transmitir e explicar toda a informação acerca dos benefícios, consequências e riscos de um tratamento para que o indivíduo possa optar em consciência. No caso apresentado, estes princípios foram, na nossa opinião, claramente desrespeitados, na medida em que da transplantação só advieram, como previsto, danos fatais e nenhum benefício para o doente. Em termos de interesse colectivo, pensamos que pouco ou nada contribuiu esta experiência para a evolução do conhecimento médico e científico, uma vez que só veio a confirmar o resultado negativo de outras tantas tentativas realizadas. O conceito de “justiça distributiva” refere-se ao uso racionado dos recursos disponíveis para garantir o melhor para o maior número de pessoas possível (17). A saúde é um bem básico e imprescindível, devendo ser promovida e protegida de forma equitativa para todos os sujeitos. Mas, nos tempos que correm e com os escassos recursos disponíveis é obrigatório efectuar escolhas e estabelecer prioridades, no âmbito da saúde, pois o uso inapropriado dos recursos num limitado grupo de doentes prejudicará, indubitavelmente, a adequação e disponibilidade dos serviços de saúde prestados a um outro grupo muito maior de pacientes. Os custos da xenotransplantação são avultados e ultrapassam largamente os benefícios, a taxa de sucesso é nula e só irão sempre beneficiar um grupo restrito de doentes. Assim, os financiamentos empregues na xenotransplantação, técnica ainda tão pouco estudada, poderiam, tendo em vista o princípio da justiça e equidade, ter sido aplicados noutros procedimentos que ajudariam uma maior parte da população. Mas como poderá a ciência evoluir se não se financiarem novos projectos, mesmo que à partida pouco rentáveis?

O médico deve ser imparcial e pautar a sua actuação clínica pela doutrina do melhor interesse do paciente, em primeiro plano, e da sociedade, em segundo plano. Deve garantir que todos os direitos consagrados dos doentes são respeitados, nomeadamente o respeito pela integridade e pela dignidade que prevalecem sobre os interesses da sociedade e ciência (7). Não deve, portanto, colocar as suas necessidades, ambições e quereres à frente dos consagrados direitos do doente. No entanto, é com bastante frequência que surgem situações de conflito de interesses no exercício profissional entre o dever de agir segundo a leges artis e factores alheios à relação com o doente que colocam em causa a ética da actuação clínica. Tal como aconteceu neste caso, são confrontados o querer científico com o bem do doente, só explicado por uma necessidade, um impulso crescente de progredir no conhecimento científico, renegando, até um certo ponto, o direito à integridade física e psíquica da criança e da família e os princípios básicos da beneficência e não-maleficência. Há que atender que nem sempre tudo o que é tecnicamente possível é eticamente aceitável. E se devemos ir até ao limite, devemos apenas fazê-lo em prol do bem-estar do doente, pois o fim último da nossa intervenção, enquanto médicos, é sempre e só o doente! (Serrão D, 1999)

No caso Baby Fae, como existiam tratamentos alternativos com taxas de sucesso conhecidas e mais satisfatórias, como a informação existente acerca da xenotransplantação era insuficiente e sugeria resultados invariavelmente péssimos, e como a criança não estava apta a dar o seu consentimento informado e a aceitar sacrificar-se em prol do avanço científico, as atitudes médicas não respeitaram definitivamente os principio éticos básicos e os cânones da experimentação humana.

3. Poder-se-á considerar válido o consentimento obtido dos pais?

Para que um consentimento seja considerado válido são várias as condições que escrupulosamente terá de satisfazer. O sujeito deve ser competente para agir, deve receber toda a informação necessária de forma legível e deve decidir de forma voluntária, livre de qualquer tipo de coerção, para que dê o seu consentimento informado, livre e esclarecido. Os menores de idade são considerados incapazes para dar um consentimento válido, sendo delegado aos representantes legais o dever e o direito de decidir segundo os melhores interesses do menor e dentro de padrões éticos socialmente aceites. Em consonância com o Artº 38º-3 do Código Penal Português, considera-se que, a partir dos catorze anos, o adolescente dispõe já de capacidade de discernimento que lhe permite tomar uma decisão válida, no plano ético. Mas a opinião do menor deve ser tida progressivamente em consideração, no processo de decisão, em proporção à sua idade e grau de maturidade. Neste caso, ambos os pais como representantes legítimos do bébé deveriam ter sido total e explicitamente informados de todas as alternativas e possibilidades de tratamento (e não de forma apressada e limitada a 7 horas), para que livremente pudessem optar por um tratamento que, segundo a sua óptica, asseguraria o melhor para o seu filho. Tão só, se optassem por uma terapia prejudicial ao bem-estar da criança, poderia a equipe médica apelar ao Tribunal a retirada do poder legal paternal e decidir, de acordo com a deontologia de não fazer o mal, o futuro do menor. No entanto, para além de não terem veiculado de forma clara e íntegra toda a informação que, por direito, os pais deveriam ter recebido e compreendido, os médicos embrenharam por um caminho que já sabiam, de antemão, não ter qualquer possibilidade de sucesso, negando à criança o direito à protecção da vida e da dignidade. E esta atitude, obviamente, desrespeita as leis da arte, o Código Deontológico Profissional e a ética comum devendo, como tal, ser reprimida e punida.

4. O sacrifício do babuíno foi consistente com os deveres do Homem para com os animais?

As experiências com uso de animais devem ser evitadas se existirem meios alternativos fiáveis, devem abranger o menor número possível de animais, especialmente criados para este fim e devem ser sempre realizadas em instalações adequadas, por profissionais treinados e com técnicas humanizadas, que evitem ao máximo a dor, o sofrimento e o desconforto (17). Neste caso, poder-se-ia ter recorrido a outros tipos de tratamento que excluíam o sacrifício de animais e, inclusivamente, com maior probabilidade de sobrevida do doente e menos complicações. O recurso à xenotransplantação foi, então, errado, fútil e desnecessário.

5. Qual a responsabilidade da equipa médica na quebra de privacidade e mediatização deste caso?

Tal como na assistência médica aos adultos, também na esfera pediátrica, o médico é responsável pela salvaguarda da confidencialidade da informação, não permitindo que ultrapasse os limites da relação médico-doente-pais (17). Outrossim, os legítimos representantes da criança não podem violar o sigilo e a confidencialidade, se estiverem em causa aspectos da vida íntima ou sensibilidade do filho, mormente quando pode suscitar atitudes fóbicas e discriminativas na comunidade.

Conclusão

Novos poderes induzem novos problemas! Os progressos da tecnologia biológica levam a medicina a modificar a natureza do organismo doente, a fim de lutar contra uma doença, seja por intermédio de transplantes de órgãos ou terapia genética… Em todo este processo o conflito entre os interesses do indivíduo doente e os da colectividade ou entre duas exigências opostas – prolongar a vida do doente sem aumentar o seu sofrimento, por exemplo – poderão sobrepor-se ao papel do médico. As responsabilidades do médico para com os seus pacientes e a sociedade, bem como as regras que devem presidir ao exercício da sua profissão estão codificadas no Juramento de Hipócrates. Mas, a par das questões de moral profissional postas pelo exercício quotidiano da medicina e que relevam da deontologia médica, é necessário instaurar uma reflexão sobre os problemas resultantes do progresso tecnológico. A xenotransplantação, numa altura em que a necessidade de órgãos humanos excede a sua disponibilidade, trouxe consigo um mundo de possibilidades terapêuticas, de grande potencial curativo mas que, rapidamente, se desvaneceria perante tantas dificuldades quer na sua aplicabilidade quer nas questões éticas que suscitaria. Quando, perante a escassez de recursos terapêuticos e a urgência em salvar a vida humana, o médico é confrontado com a possibilidade de empregar recursos tão imaturos como a xenotransplantação, a relação risco/benefício pode, segundo alguns, ser relegada para segundo plano em detrimento da esperança de vida ínfima que oferece. A xenotransplantação está longe de ser considerada um método terapêutico válido e viável na sua inocuidade para a qualidade de vida, apesar de grandes avanços se terem observado. A sobrevivência dos recipientes com xenotransplante é, apenas, de dias ou semanas. Apesar da precária taxa de sobrevida até hoje obtida com xenotransplantação não ser suficientemente significativa para justificar procedimentos clínicos, a sua investigação pré-clínica contínua. (10) Sim, é certo que a xenotransplantação pode vir a assegurar um banco inesgotável de órgãos e o tratamento conveniente do paciente antes do agravamento clínico da doença, mas será isto suficiente para sobrevalorizar o benefício ao risco?! O procedimento, em si, comporta inúmeras e graves consequências anatomofisiopatológicas, psicossociais e éticas: desencadeia um ataque imunológico rápido e feroz; as discrepâncias anatómicas e fisiológicas entre o produto e o recipiente do xenotransplante impõem uma necessidade imperativa de imunossupressores que aumentam o risco de infecções oportunistas potencialmente fatais; a possibilidade de transmissão de agentes infecciosos patogénicos para o receptor, para os seus contactos e para a população em geral; o isolamento a que o doente tem de se submeter para evitar a propagação de qualquer infecção, bem como a monogamia restrita e com a imposta protecção e o ter de suportar o estigma da doença, a eventual desumanização e ridicularização. Concomitantemente a todos estes aspectos negativos há ainda a questão ética da experimentação animal. Só devemos recorrer ao uso de animais para fins experimentais quando outros métodos alternativos não são possíveis ou quando deles não conseguimos obter toda a informação pretendida.

É verdade que a xenotransplantação é um assunto de extrema complexidade. E se formos a avaliar as questões éticas inerentes, constatamos que a mais importante não é respeitada – risco/benefício. Sem dúvida que o risco para o indivíduo e para a sociedade, decorrente deste procedimento, é muito superior ao benefício potencial que se esperaria! Será então lícito avançar para a xenotransplantação sem se assegurar a viabilidade e segurança deste processo na espécie humana? Claramente não, apesar das inúmeras experiências históricas já realizadas. E porquê continuar a investir de modo tão significativo em estudos clínicos nesta área, se a experiência nos tem sido tão pouco gratificante?! Talvez a verdade, a solução para o problema, esteja no interior do Homem, talvez o ser do Homem seja mais natureza e menos “matéria estranha”, talvez o nosso investimento, a convergência de esforços deva ser dirigida para procedimentos alternativos como: (a) a cirurgia in útero com reparação do órgão-malformado ou não-funcionante; (b) a produção de órgão sintéticos ou mesmo naturais, por melhor aproveitamento da engenharia genética; (c) a prevenção de estilos de vida e comportamentos, no sentido de reduzir a incidência de patologia e (d) o consentimento presumido legalizado. Por vezes, acontece que certas hipóteses, mesmo que falsas, obtêm a aprovação duradoura da comunidade social e científica, simplesmente, porque oferecem à primeira vista uma aparência de verdade e ninguém se esforça por indagar atentamente se são dignas de crédito. Mas também é verdade, e citando Athanasius Kircher (1602-1680), “a natureza revela muitas vezes espantosas maravilhas, mesmo nos factos mais simples, mas só aqueles que, com sagacidade e um espírito voltado para a investigação, ouvem os conselhos da experiência, nossa mestra em todas as coisas, podem reconhecê-las”.


Referências

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2. Bach F, Fishman J, Daniels A: Uncertainly in xenotransplantation: individual benefit versus collective risk. Nature Med 4; 1998: 141-144.

3. Beauchamp T, Childress J. Principles of biomedical Ethics, Fourth Edition. Oxford University Press, New York, 1994.

4. Bloom E: Xenotransplantation. Organ Transplant, 2002. Disponível no Medscape desde 06/17/2002.

5. Cohen C, Meireles J: Transplants-Bioethics and Justice. Rev. Hosp. Clín. Fac. Med. S.Paulo 58 (6); 2003: 293-298.

6. Conference on the ethics of genetic engineering and animal patents: xenotransplantation – animal as spare parts. University of Wiscosin, Madison, October 12, 1996.

7. Convention for the Protection of Human rights and Dignity of the Human Being with regard to the application of Biology and Medicine: Convention on Human Rights and Biomedicine. Council of Europe, Strasbourg. November, 1996.

8. Draft Guidance for Industry: Precautionary Measures to Reduce the Possible Risk of Transmission of Zoonoses by Blood and Blood Products from Xenotransplantation Product Recipients and Their Contacts, FDA, December 23, 1999.

9. James Z, Ian P, Cooper C: Xenotransplantation – the challenge to current psychosocial attitudes. Prog Transplante 10(1); 2000: 217-225 .

10. Louisa E, Chapman MD, Eda T.Bloom: Clinical Xenotransplantation. JAMA,vol. 285, nº18. 2001: 2304-2306.

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12. Paris W, Cooper DKC, Samara S, et al. A comparison of organ transplant patient and professional staff attitudes. Int J Rehabil Health. 1995;1:167-178.

13. Paris W, Muchmore J, Pribil A, Zuhdi N, Cooper DKC. Study of the relative incidences of psychosocial factors before and after heart transplantation and the influence of posttransplantation psychosocial factors on heart transplantation outcome. J Heart Lung Transplant. 1994;13:424-432.

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15. PHS Guideline on Infectious Disease Issues in Xenotransplantation, USPHS, January 19, 2001

16. Relatório de actividades de 2002. Organização Portuguesa de Transplantação, 2002.

17. Serrão D, Nunes R: Ética em cuidados de saúde. Porto Editora, Porto, 1999

18. Sun Y-L, Ma X, Zhou D, Vacek I, Sun AM. Porcine pancreatic islets: isolation, microencapsulation, and xenotransplantation. Artif Organs. 1993;17:727-733.

19. United Network for Organ Sharing. The 1995 Annual Report of the U.S. Scientific Registry of Transplant Recipients and the Organ Procurement and Transplantation Network. 1995.

20. United Network for Organ Sharing. UNOS Annual Report, 1998. Richmond, Va: UNOS; 1998

21. Zeigler V: Ethical Principles and Parental Choice: Treatment Options for Neonates with hipoplastic left heart syndrome. Pediatric Nursery 29 (1); 2003: 65-69.


Anexo 1 – Declaração de Helsínquia 1964-1996

Adoptada pela 52ª Assembleia da Associação Médica Mundial, Edinburgo, Escócia, Outubro de 2000

Introduction

The World Medical Association has developed the Declaration of Helsinki as a statement of ethical principles to provide guidance to physicians and other participants in medical research involving human subjects. Medical research involving human subjects includes research on identifiable human material or identifiable data. It is the duty of the physician to promote and safeguard the health of the people. The physician’s knowledge and conscience are dedicated to the fulfillment of this duty.

The Declaration of Geneva of the World Medical Association binds the physician with the words, “The health of my patient will be my first consideration,” and the International Code of Medical Ethics declares that, “A physician shall act only in the patient’s interest when providing medical care which might have the effect of weakening the physical and mental condition of the patient.”

Medical progress is based on research which ultimately must rest in part on experimentation involving human subjects. In medical research on human subjects, considerations related to the well-being of the human subject should take precedence over the interests of science and society.

The primary purpose of medical research involving human subjects is to improve prophylactic, diagnostic and therapeutic procedures and the understanding of the aetiology and pathogenesis of disease. Even the best proven prophylactic, diagnostic, and therapeutic methods must continuously be challenged through research for their effectiveness, efficiency, accessibility and quality.

In current medical practice and in medical research, most 136 prophylactic, diagnostic and therapeutic procedures involve risks and burdens.

Medical research is subject to ethical standards that promote respect for all human beings and protect their health and rights. Some research populations are vulnerable and need special protection. The particular needs of the economically and medically disadvantaged must be recognized. Special attention is also required for those who cannot give or refuse consent for themselves, for those who may be subject to giving consent under duress, for those who will not benefit personally from the research and for those for whom the research is combined with care.

Research Investigators should be aware of the ethical, legal and regulatory requirements for research on human subjects in their own countries as well as applicable international requirements. No national ethical, legal or regulatory requirement should be allowed to reduce or eliminate any of the protections for human subjects set forth in this Declaration.

I. Basic principles for all medical research

1. It is the duty of the physician in medical research to protect the life, health, privacy, and dignity of the human subject.

2. Medical research involving human subjects must conform to generally accepted scientific principles, be based on a thorough knowledge of the scientific literature, other relevant sources of information, and on adequate laboratory and, where appropriate, animal experimentation.

3. Appropriate caution must be exercised in the conduct of research which may affect the environment, and the welfare of animals used for research must be respected.

4. The design and performance of each experimental procedure involving human subjects should be clearly formulated in an experimental protocol. This protocol should be submitted for consideration, comment, guidance, and where appropriate, approval to a specially appointed ethical review committee, which

137 must be independent of the investigator, the sponsor or any other kind of undue influence. This independent committee should be in conformity with the laws and regulations of the country in which the research experiment is performed. The committee has the right to monitor ongoing trials. The researcher has the obligation to provide monitoring information to the committee, especially any serious adverse events. The researcher should also submit to the committee, for review, information regarding funding, sponsors, institutional affiliations, other potential conflicts of interest and incentives for subjects.

5. The research protocol should always contain a statement of the ethical considerations involved and should indicate that there is compliance with the principles enunciated in this Declaration.

6. Medical research involving human subjects should be conducted only by scientifically qualified persons and under the supervision of a clinically competent medical person. The responsibility for the human subject must always rest with a medically qualified person and never rest on the subject of the research, even though the subject has given consent.

7. Every medical research project involving human subjects should be preceded by careful assessment of predictable risks and burdens in comparison with foreseeable benefits to the subject or to others. This does not preclude the participation of healthy volunteers in medical research. The design of all studies should be publicly available.

8. Physicians should abstain from engaging in research projects involving human subjects unless they are confident that the risks involved have been adequately assessed and can be satisfactorily managed. Physicians should cease any investigation if the risks are found to outweigh the potential benefits or if there is conclusive proof of positive and beneficial results.

9. Medical research involving human subjects should only be conducted if the importance of the objective outweighs the inherent risks and burdens to the subject. This is especially important when the human subjects are healthy volunteers.

10. Medical research is only justified if there is a reasonable likelihood

138 that the populations in which the research is carried out stand to benefit from the results of the research.

11. The subjects must be volunteers and informed participants in the research project.

12. The right of research subjects to safeguard their integrity must always be respected. Every precaution should be taken to respect the privacy of the subject, the confidentiality of the patient’s information and to minimize the impact of the study on the subject’s physical and mental integrity and on the personality of the subject.

13. In any research on human beings, each potential subject must be adequately informed of the aims, methods, sources of funding, any possible conflicts of interest, institutional affiliations of the researcher, the anticipated benefits and potential risks of the study and the discomfort it may entail. The subject should be informed of the right to abstain from participation in the study or to withdraw consent to participate at any time without reprisal. After ensuring that the subject has understood the information, the physician should then obtain the subject’s freely-given informed consent, preferably in writing. If the consent cannot be obtained in writing, the non-written consent must be formally documented and witnessed.

14. When obtaining informed consent for the research project the physician should be particularly cautious if the subject is in a dependent relationship with the physician or may consent under duress. In that case the informed consent should be obtained by a well-informed physician who is not engaged in the investigation and who is completely independent of this relationship.

15. For a research subject who is legally incompetent, physically or mentally incapable of giving consent or is a legally incompetent minor, the investigator must obtain informed consent from the legally authorized representative in accordance with applicable law. These groups should not be included in research unless the research is necessary to promote the health of the population represented and this research cannot instead be performed on legally competent persons.

16. When a subject deemed legally incompetent, such as a minor child, is able to give assent to decisions about participation in research,

139 the investigator must obtain that assent in addition to the consent of the legally authorized representative.

17. Research on individuals from whom it is not possible to obtain consent, including proxy or advance consent, should be done only if the physical/mental condition that prevents obtaining informed consent is a necessary characteristic of the research population. The specific reasons for involving research subjects with a condition that renders them unable to give informed consent should be stated in the experimental protocol for consideration and approval of the review committee. The protocol should state that consent to remain in the research should be obtained as soon as possible from the individual or a legally authorized surrogate.

18. Both authors and publishers have ethical obligations. In publication of the results of research, the investigators are obliged to preserve the accuracy of the results. Negative as well as positive results should be published or otherwise publicly available. Sources of funding, institutional affiliations and any possible conflicts of interest should be declared in the publication. Reports of experimentation not in accordance with the principles laid down in this Declaration should not be accepted for publication.

II. Additional principles for medical research combined with medical care

1. The physician may combine medical research with medical care, only to the extent that the research is justified by its potential prophylactic, diagnostic or therapeutic value. When medical research is combined with medical care, additional standards apply to protect the patients who are research subjects.

2. The benefits, risks, burdens and effectiveness of a new method should be tested against those of the best current prophylactic, diagnostic, and therapeutic methods. This does not exclude the use of placebo, or no treatment, in studies where no proven prophylactic, diagnostic or therapeutic method exists.

3. At the conclusion of the study, every patient entered into the study.

140 should be assured of access to the best proven prophylactic, diagnostic and therapeutic methods identified by the study.

4. The physician should fully inform the patient which aspects of the care are related to the research. The refusal of a patient to participate in a study must never interfere with the patient-physician relationship.

5. In the treatment of a patient, where proven prophylactic, diagnostic and therapeutic methods do not exist or have been ineffective, the physician, with informed consent from the patient, must be free to use unproven or new prophylactic, diagnostic and therapeutic measures, if in the physician’s judgement it offers hope of saving life, re-establishing health or alleviating suffering. Where possible, these measures should be made the object of research, designed to evaluate their safety and efficacy. In all cases, new information should be recorded and, where appropriate, published. The other relevant guidelines of this Declaration should be followed.


Anexo 2 – Directivas éticas internacionais para a investigação biomédica em seres humanos

Adoptadas pelo Conselho para as Organizações Internacionais de Ciências Médicas.

Organização Mundial de Saúde. 1993.

Princípios Éticos Gerais

Toda a investigação que inclua seres humanos deve ser levada a cabo de acordo com três princípios éticos básicos, designadamente o respeito pelas pessoas, a beneficência e a justiça. É de geral concordância que estes três princípios que, em abstracto, possuem igual força moral, guiam a preparação conscienciosa das propostas de estudos científicos. Em circunstâncias variáveis, eles podem ser expressos de modo diferente e usufruir de diferente peso moral e a sua aplicação pode conduzir a diferentes decisões ou cursos de acção. As presentes directivas orientam-se para a aplicação destes princípios à investigação em seres humanos. O respeito pelas pessoas incorpora pelo menos duas considerações éticas fundamentais, nomeadamente:

(a) o respeito da autonomia, que exige que aqueles que são capazes de deliberação acerca das suas escolhas pessoais devam ser tratados com respeito para com a sua capacidade de autodeterminação; e (b) a protecção das pessoas com autonomia comprometida ou diminuida, o que exige que àqueles que são dependentes ou vulneráveis seja concedida segurança contra dano ou abuso.

A beneficência refere-se à obrigação ética de maximizar os benefícios e minimizar os danos ou males. Este princípio dá lugar a normas que exigem que os riscos da investigação sejam razoáveis à

luz dos benefícios esperados, que a concepção da investigação seja idónea e que os investigadores sejam competentes tanto na condução da investigação como na salvaguarda do bem-estar dos sujeitos de investigação. A beneficência proscreve ainda que deliberadamente se inflija dano às pessoas; este aspecto da beneficência exprime-se por vezes num princípio separado, a não-maleficência (não causar dano).

A justiça refere-se à obrigação ética de tratar cada pessoa de acordo com o que é moralmente justo e adequado, de dar a cada pessoa o que lhe é devido. Na ética da investigação em seres humanos, o princípio refere-se em primeiro lugar à justiça distributiva, o que exige a distribuição equitativa tanto dos encargos como dos benefícios da participação na investigação. As diferenças na distribuição de encargos e benefícios só se justificam se forem baseadas em distinções moralmente relevantes entre as pessoas; uma dessas distinções é a vulnerabilidade. “Vulnerabilidade” refere-se a uma incapacidade substancial de proteger os interesses próprios em virtude de impedimentos tais como a falta da capacidade de dar consentimento informado, a falta de meios alternativos de usufruir de cuidados médicos ou outros cuidados dispendiosos, ou o facto de se ser menor ou um membro subordinado de um grupo hierárquico. Consequentemente, têm de se fazer disposições especiais para a protecção dos direitos e do bem-estar das pessoas vulneráveis.

As Directivas – O Consentimento informado dos Sujeitos

1ª Directiva (Consentimento informado individual) para toda a investigação biomédica em seres humanos, o investigador tem de obter o consentimento informado do potencial sujeito ou, no caso de um indivíduo que não seja capaz de dar o consentimento informado, o consentimento informado por procuração de um representante devidamente autorizado.

2ª Directiva (Informação essencial para os potenciais sujeitos de investigação) Antes de se solicitar a um indivíduo o consentimento para participar em investigação, o investigador tem de fornecer ao indivíduo a informação seguinte, em linguagem que ele seja capaz de compreender:

– que cada indivíduo é convidado a participar como sujeito na investigação e os fins e métodos da investigação;

– a duração esperada da participação do sujeito;

– os benefícios que se pode razoavelmente esperar que resultem da investigação para o sujeito ou para outrém;

– quaisquer riscos ou desconforto previsíveis, associados à sua participação na investigação;

– quaisquer procedimentos ou cursos de tratamento alternativos que possam ser tão vantajosos para o sujeito como o procedimento ou tratamento a ser testado;

– em que medida será mantida a confidencialidade dos registos nos quais o sujeito é identificado;

– o grau de responsabilidade do investigador, se algum, para proporcionar cuidados médicos ao sujeito;

– que será proporcionada gratuitamente terapia para lesões relacionadas com a investigação;

– se o sujeito ou a família do sujeito serão compensados pela incapacidade ou a morte resultante dessa lesão; e – que o indivíduo é livre de recusar participar e será livre de se retirar da investigação a qualquer momento sem penalização ou perda de benefícios a que de outro modo teriam direito.

3ª Directiva (Obrigações dos investigadores quanto ao consentimento informado) O investigador tem o dever de:

– transmitir ao potencial sujeito toda a informação necessária a um adequado consentimento informado,

– dar ao potencial sujeito total oportunidade e encorajamento para fazer perguntas;

– excluir a possibilidade de engano injustificado, influência indevida e intimidação;

– só solicitar o consentimento depois de o potencial sujeito ter o devido conhecimento dos factos relevantes e das consequências da participação e de ter tido oportunidade suficiente para considerar se há-de participar ou não;

– em regra geral, obter de cada potencial sujeito um documento assinado como prova do consentimento informado; e – renovar o consentimento informado de cada sujeito se houver alterações substanciais nas condições ou procedimentos da investigação.

4ª Directiva (Indução à participação) Os sujeitos podem ser remunerados pela inconveniência e o tempo gasto e devem ser reembolsados pelas despesas relacionadas com a sua participação na investigação; podem também receber cuidados médicos. No entanto, os pagamentos não devem ser grandes, ou os cuidados médicos amplos, ao ponto de induzirem os potenciais sujeitos a consentirem participar na investigação contra o seu melhor juízo (“indução indevida”). Todos os pagamentos, reembolsos e cuidados médicos a serem proporcionados aos sujeitos devem ser aprovados por uma comissão de avaliação ética.

5ª Directiva (Investigação em crianças) Antes de se empreender investigação em crianças, o investigador tem de assegurar que:

– as crianças não serão incluídas em investigação susceptível de ser igualmente levada a cabo em adultos;

– o propósito da investigação é obter conhecimento relevante para as necessidades de saúde das crianças;

– um dos pais ou tutores legais de cada criança tenha dado consentimento por procuração;

– o consentimento de cada criança tenha sido obtido na medida das capacidades da criança;

– a recusa da criança em participar na investigação tem de ser sempre respeitada a menos que, de acordo com o protocolo de investigação, a criança receba terapia para a qual não existe alternativa medicamente aceitável;

– o risco apresentado pelas intervenções que não tenham a intenção de beneficiar a criança-sujeito individual é baixo e proporcional à importância do conhecimento a ser adquirido; e – as intervenções que tenham a intenção de proporcionar benefício terapêutico são pelo menos passíveis de ser tão vantajosas para a criança-sujeito individual como qualquer alternativa disponível.

6ª Directiva (Investigação em pessoas com deficiências mentais ou comportamentais) Antes de se empreender investigação que inclua indivíduos que, em virtude de desordens mentais ou comportamentais não sejam capazes de dar adequadamente consentimento informado, o investigador tem de assegurar que:

– tais pessoas não serão sujeitas a investigação que possa igualmente ser levada a cabo em pessoas em plena posse das suas faculdades mentais;

– o propósito da investigação é adquirir conhecimento relevante para as necessidades de saúde específicas das pessoas com desordens mentais ou comportamentais;

– o consentimento de cada sujeito foi obtido na medida das capacidades do sujeito e a recusa do potencial sujeito em participar em investigação não clínica é sempre respeitada;

– no caso dos sujeitos incompetentes, o consentimento informado é obtido junto do tutor legal ou outra pessoa devidamente autorizada,

– o grau de risco ligado às intervenções que não tenham a intenção de beneficiar o sujeito individual é baixa e proporcional à importância do conhecimento a ser adquirido; e – as intervenções que tenham a intenção de proporcionar benefício terapêutico são pelo menos susceptíveis de ser tão vantajosas para o sujeito individual como qualquer alternativa.

7ª Directiva (Investigação em presos) Aos presos com doenças graves ou em risco de doença grave não deve ser arbitrariamente negado acesso a medicamentos, vacinas ou outros agentes experimentais que prometam benefício terapêutico ou preventivo.

8ª Directiva (Investigação em sujeitos de comunidades desfavorecidas) Antes de se empreender investigação que inclua sujeitos de comunidades desfavorecidas, quer em países desenvolvidos, quer em países em desenvolvimento, o investigador tem de assegurar que:

– as pessoas de comunidades desfavorecidas não são de ordinário incluídas em investigação que possa ser razoavelmente bem levada a cabo em comunidades desenvolvidas;

– a investigação dá resposta às necessidades e às prioridades de saúde da comunidade em que há-de ser levada a cabo;

– serão feitos todos os esforços no sentido de garantir o imperativo ético de que o consentimento dos sujeitos individuais seja informado; e – as propostas de investigação foram examinadas e aprovadas por uma comissão de avaliação ética que, entre os seus membros ou consultores inclua pessoas minuciosamente familiarizadas com os costumes e tradições da comunidade.

9ª Directiva (Consentimento informado em estudos epidemiológicos) Para muitos tipos de investigação epidemiológica, o consentimento informado individual é, ou impraticável ou desaconselhado. Em tais casos, a comissão de avaliação ética deve determinar se é eticamente aceitável prosseguir sem o consentimento informado individual e se os planos do investigador para proteger a segurança e o respeito da privacidade dos sujeitos de investigação e para manter a confidencialidade dos dados são adequados.

Selecção de Sujeitos de Investigação

10ª Directiva (Distribuição equitativa de encargos e benefícios) Os indivíduos ou comunidades a serem convidados a ser sujeitos de investigação devem ser seleccionados de maneira a que os encargos e os benefícios da investigação sejam equitativamente distribuídos. É exigida justificação especial para se convidar indivíduos vulneráveis e, se forem seleccionados, os meios para proteger os seus direitos e bem-estar têm em particular de ser estritamente aplicados.

11ª Directiva (Selecção de mulheres grávidas ou que amamentem como sujeitos de investigação)

As mulheres grávidas ou que amamentem em nenhuma circunstância devem ser sujeitos de investigação não clínica, a menos que a investigação não acarrete risco superior ao mínimo para o feto ou o lactante e o objecto da investigação seja a aquisição de novos conhecimentos acerca da gravidez ou a amamentação. Em regra geral, as mulheres grávidas ou que amamentem não devem ser sujeitas a quaisquer ensaios clínicos, excepto aqueles ensaios que são concebidos para proteger ou fazer avançar a saúde das mulheres grávidas ou que amamentem, ou os fetos ou os lactantes, e para os quais as mulheres que não estejam grávidas ou que não amamentem não constituem sujeitos adequados.

Confidencialidade dos Dados

12ª Directiva (Salvaguarda da confidencialidade) O investigador tem de estabelecer salvaguardas seguras da confidencialidade dos dados da investigação. Deve dizer-se aos sujeitos quais são os limites da capacidade de o investigador salvaguardar a confidencialidade e das consequências previsíveis das quebras de confidencialidade.

Compensação dos Sujeitos de Investigação por Dano Acidental

13ª Directiva (Direito dos sujeitos a compensação) Os sujeitos de investigação que sofram lesão física em resultado da sua participação têm direito a assistência financeira ou outra que os compense equitativamente de qualquer incapacidade ou compromisso temporário ou permanente. Em caso de morte, os seus dependentes têm direito a compensação material. O direito a compensação não pode ser retirado.

Procedimentos de Avaliação

14ª Directiva (Constituição e responsabilidades das comissões de avaliação ética)

Todas as propostas para efectuar investigação que inclua seres humanos têm de ser submetidas para exame e aprovação a uma ou mais comissões de avaliação ética e científica. O investigador tem de obter essa aprovação da proposta de efectuar investigação antes do início da investigação.

Investigação com Patrocínio Externo

15ª Directiva (Obrigações dos países financiadores e de acolhimento) A investigação com financiamento externo acarreta duas obrigações éticas:

– Uma instituição financiadora externa deve submeter o protocolo de investigação a avaliação ética e científica de acordo com os padrões do país da instituição financiadora e os padrões éticos aplicados não devem ser menos exigentes do que aquilo que seriam no caso de investigação levada a cabo nesse país. – Após a aprovação científica e ética no país da instituição financiadora, as devidas autoridades do país de acolhimento, incluindo uma comissão de avaliação ética nacional ou local, ou o seu equivalente, devem dar-se por satisfeitos que a investigação proposta cumpre os seus próprios requisitos éticos.