Número 19 - Mayo 2010

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O animal não-humano e seu status moral para a ciência e o Direito no cenário brasileiro

Anamaria Gonçalves dos Santos Feijó
Doutora em Filosofia, com ênfase em Bioética, pela Universidade de Buenos Aires/Argentina; Coordenadora do Comitê de Ética para o Uso de Animais (CEUA) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); Coordenadora do Laboratório de Bioética e de Ética aplicada a Animais, no Instituto de Bioética da PUCRS; Bióloga Docente da PUCRS.

Cleopas Isaías do Santos
Mestrando em Ciências Criminais pela PUCRS; Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pela Universidade de Coimbra e em Ciências Criminais pela Universidade Estácio de Sá/RJ; Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da Faculdade São Luís/Maranhão (MA) e da Academia Integrada de Segurança Pública do Estado do MA; Pesquisador Associado do Laboratório de Bioética e de Ética aplicada a Animais, no Instituto de Bioética da PUCRS; Delegado de Polícia Civil/MA.

Natália de Campos Grey
Mestre em Direito (PUCRS); Especialista em Direito Ambiental (PUCRS); e Pesquisadora Associada do Laboratório de Bioética e de Ética aplicada a Animais, no Instituto de Bioética da PUCRS; Membro do CEUA/PUCRS; Advogada.


Resumo

A admissão dos animais não-humanos como seres sensíveis e possuidores de interesses é um processo histórico e cultural em constante crescimento, não mais se restringindo ao campo filosófico, alcançando também o meio jurídico e fomentando a discussão quanto ao seu uso ou não na investigação. O objetivo deste trabalho, portanto, é mostrar como o debate a respeito do animal não-humano tem sido recepcionado no Brasil e como a legislação vem acompanhando essa temática. Através de uma análise teórica e jurídico-normativa, o presente estudo constata a crescente preocupação em proteger os animais contra a crueldade, em direção ao reconhecimento desses como seres dignos e até como sujeitos de direitos. Contudo, é necessário que a sociedade, ainda essencialmente antropocêntrica, seja capaz de recepcionar uma ética que respeite os animais como fins em si mesmos e internalize a existência da relevância moral dos animais não-humanos.

Palavras-chave

Bioética; Ética Animal; Status Moral; Sujeito de Direito; Crueldade Animal; Legislação Brasileira.


Abstract

The admission of non-human animals as sensible beings and possessors of interests is a historical and cultural process in constant development, no more restricted to the philosophical field, reaching also the legal scope and fomenting the discussion about the use (or not) of animals in experiences. Therefore, the objective of this work is to show how the debate about the non-human animal has been received in Brazil and how its legislation has following this theme. Through a theoretical and legal-normative analysis, the present study concludes that exist an increasing concern in protecting the animals against cruelty, towards their recognition as beings with dignity and also subjects of rights. However, it is necessary that society (which still is deeply anthropocentric) be capable of receive an ethic which respects the animals as ends in itselfs, as well as incorporates the existence of the moral relevance of non-human animals.

Key words

Bioethics; Animal Ethics; Moral Status; Subjects of Rights; Animal Cruelty; Brazilian Legislation.


Introdução

No cenário brasileiro, a ética animal apresenta-se como um tópico relativamente novo e cada vez mais em evidência, pedindo reflexões sérias a partir de profícuas discussões. O debate foi ampliado pela recente aprovação de uma lei oficial que norteia a utilização de animais não-humanos no ensino e pesquisa do território brasileiro, fomentando o diálogo entre cientistas e filósofos da moral em torno desta temática.

No Brasil, a herança do uso indiscriminado de animais apresenta-se tão arraigada à nossa cultura que chega a causar estranheza a muitos o fato de algumas pessoas se dedicarem a tentar estabelecer limites a esta utilização. Porém já se percebe, de forma tímida, a busca por uma alteração do status moral do animal não-humano a partir de uma nova releitura de nosso ordenamento jurídico onde se pode detectar, em algumas situações, a aceitação dos animais não-humanos como sujeitos de direito, sendo reconhecidos sua dignidade e valor intrínseco.

Estas discussões de vanguarda estão apenas começando no Brasil, embora tenhamos que reconhecer que a tutela legal dos animais já venha sendo uma preocupação brasileira que data do período colonial porém sem a consideração desses como indivíduos ou sujeitos de direitos, mas sim como integrantes de um meio ambiente a ser preservado e protegido. Nos debates atuais em torno da ética animal, argumentos provenientes de antagônicas correntes (como a abolicionista, defendendo os direitos dos animais, e a reformista, clamando por um uso adequado dos mesmos) vêm aparecendo com freqüência, mas ainda é necessário um bom amadurecimento desses tópicos, de modo a que possam criar raízes e estabelecer mudanças efetivas na sociedade brasileira, ainda extremamente antropocêntrica.

Este artigo busca, então, trazer um panorama geral do Brasil no que tange às discussões sobre o animal não-humano. Para tanto, se abordarão não só noções no âmbito da ética, mas também as normas brasileiras que tutelam os animais e as perspectivas que se descortinam desta reflexão hodierna em nosso país.

1. Correntes filosóficas atuantes no país

No Brasil constata-se a presença de duas correntes contemporâneas atuantes em se tratando do tema ética animal: a corrente abolicionista e a corrente reformista, ambas norteando distintas posições e antagônicos argumentos nos moldes do que vem acontecendo no mundo todo.

A corrente abolicionista aceita os animais não-humanos como seres com valor intrínseco, como fins em si mesmos, nos moldes da escola kantiana ampliada para além da vida humana (Feijó, 2008), defendendo a total abolição de todo e qualquer uso de animais pelo homem. Um dos maiores expoentes do abolicionismo é o filósofo contemporâneo Tom Regan, o qual acredita que o certo de uma ação depende não do valor das conseqüências dessa ação, mas do correto tratamento aos seus sujeitos no âmbito individual, incluindo-se aí o âmbito individual dos animais não-humanos (Regan, 1983).

Em nosso país, a corrente abolicionista vem ganhando espaço e tem influenciado vários movimentos reivindicatórios que originaram novas leis ou levaram a novas interpretações das leis mais antigas. Já existe, inclusive, profissionais do Direito no Brasil vinculados a esta corrente e que defendem a necessidade da existência de leis que propiciem a abolição do uso de animais não-humanos em território nacional, fato este não imaginável há alguns anos atrás.

O abolicionismo, todavia, não conquista ainda grande popularidade entre boa parcela dos profissionais e pesquisadores das áreas biomédicas, os quais, quando provocados, em geral inclinam-se para outra corrente: a chamada reformista (welfarista), ou corrente do bem-estar animal. Sabe-se que a concepção do bem-estar animal iniciou em 1926, com a fundação da University of London Animal Welfare Society (ULAWS), pelo prefeito Charles Hume, baseada na premissa de que o “problema animal deve ser resolvido com uma base científica com o máximo de simpatia mas um mínimo de sentimentalismo” (Hau e Van Hoosier, 2003, p. 102).

A corrente do bem-estar animal se funda na doutrina utilitarista de Jeremy Bentham, sendo que seu maior representante da atualidade é certamente o autor e filósofo Peter Singer, segundo o qual, em que pese o bem-estar ser um conceito ambíguo, a capacidade de sofrimento de um ser é o marco para conceder a este uma igual consideração dos interesses, tais como o de não ter a si infligida a dor (Singer, 1990). Em nosso país, essa corrente sustenta modificações graduais de atitudes e concepções dos seres humanos em relação aos animais, o que se reflete em legislações atualizadas e na exigência de qualidade da pesquisa científica, por exemplo, dentro de padrões éticos.

Os cientistas welfaristas buscam defender uma situação de bem-estar animal na criação e uso de animais, aceitando a alteração de determinadas condutas quando essas podem minimizar a dor e o sofrimento do animal. Na área científica, tende-se ao seguimento da “teoria dos 3R’s”, proposta por Burch e Russel em 1959. Os 3R’s referem-se às expressões reduction, refinement e replacement, que significam respectivamente reduzir, aperfeiçoar e substituir. O principal propósito almejado é a substituição (replacement) dos testes em animais por métodos alternativos, sendo que, na hipótese de haver experiências que realmente precisassem utilizar animais, o intuito se daria no sentido de reduzir (reduction) o número de animais utilizados e aperfeiçoar (refinement) as técnicas de forma que fosse provocado o menor sofrimento possível aos animais (Russel e Burch, 1992).

Essa teoria recebe críticas severas por parte de defensores dos animais que argumentam que os 3R’s, na verdade, legitimam a experimentação animal, visto que seu princípio admite como válido o simples refinamento das experiências e a mera redução dos animais usados, quando o correto seria a aplicação da substituição dos testes em animais por métodos que não os utilizassem (Greif e Tréz, 2000). É importante, porém, salientar que os 3R’s não são uma teoria ética e sim uma proposta procedimental com vistas de estabelecer limites ao uso de animais (o que é extremamente necessário!), mas ela só será concebida como norma moral se os cientistas a internalizarem a priori, concebendo noções sobre quem é o animal, por que deve ser respeitado e por que, em função disto, não cabe usa-lo de forma fútil.

2. Animais não-humanos e seu espaço na sociedade humana

2.1 Status moral dos animais como fins em si mesmos

Se na modernidade convivemos com o embate entre as correntes abolicionista e welfarista, anteriormente, durante muito tempo, quase toda a consideração realizada no tocante aos animais se construía de forma a priva-los de qualquer importância moral. Apenas ao homem eram conferidas qualidades que proibiam que este fosse utilizado como coisa ou como simples meio para alcançar algo, pois essas qualidades, em geral, concerniam a elementos como razão e capacidade de autodeterminação, as quais eram atribuídas exclusivamente ao seres humanos (Kant, 2004). Todavia, hoje percebe-se que tais critérios são insuficientes mesmo para uma abordagem quanto ao humano, uma vez que, em verdade, a vedação de que certo indivíduo seja tratado como mero objeto não toma por base a capacidade de raciocínio do sujeito, mas sim sua sensibilidade e consciência quanto ao mal que lhe é provocado em decorrência desse tratamento.

Isso remonta à antiga colocação de Bentham (1839, p. 143) quanto a que “the question is not, Can they reason? nor Can they talk? but Can they suffer?”. É nessa linha que os animais ganham um espaço dentro das preocupações humanas, não só com relação àquilo em que possam servir ao homem (como o equilíbrio ecológico), mas também como indivíduos que não podem ser arbitrariamente utilizados.

Ressalte-se que defendemos que a “vida” como um todo apresenta uma relevância moral, assim como uma dignidade intrínseca. Entretanto, ao abordarmos o status moral de determinado ser vivo individualmente apreciado, há a necessidade de se definirem critérios passíveis de justificar porque esse ser, independentemente de qualquer outro, deve ser levado em consideração. Para tanto, acreditamos que na atualidade um dos critérios mais confiáveis a se recorrer é o da sensibilidade.

Esclareça-se que a sensibilidade não envolve necessariamente a capacidade de sentir dor ou sofrer, mas a dor (e o sofrimento dela decorrente) é uma das formas de sensibilidade, importando em que nem toda percepção sensível é dolorosa. De fato, é sabido que todos os seres vivos conhecidos, inclusive unicelulares, apresentam alguma forma de sensibilidade, o que dificulta a aplicação do critério caso não sejam examinadas algumas diferenças quanto ao grau de capacidade sensível e aquilo que ela acarreta em cada espécie animal (Prada, 2008).

Sabe-se que quanto mais próxima filogeneticamente forem as espécies, maiores serão as semelhanças entre elas, principalmente nas suas estruturas sensíveis. É por essa razão que pelo menos aos animais do subfilo vertebrata é admitida a existência de uma capacidade de sentir dor e de sofrer muito similar àquela apresentada pelos humanos, sendo isso desconhecido com relação a outros seres vivos, pois simplesmente evitar estímulos desagradáveis não significa propriamente sentir dor. A verdade é que, cientificamente, não há como afirmar ou negar se seres não-vertebrados experienciem a dor, o que implica na recomendação de Feijó (2005, p. 70) no sentido de que, não importando a espécie, sempre que forem observadas respostas aversivas diante de determinados estímulos, esses devem, por cautela, ser entendidos como dolorosos e, por isso, evitados.

Segundo Feijó (2005, p. 128), “fazem parte da comunidade moral aqueles seres que apresentam condições de sentir interesse em evitar a dor”, devendo ser vistos não só como meros meios ou objetos, mas como fins em si mesmos. Essa forma de reconhecimento dos animais acarreta um alargamento da noção de dignidade kantiana, antes restrita apenas aos seres humanos, assumindo-se que também os animais possuem um valor que lhes é intrínseco, uma dignidade a ser respeitada, obrigando o homem a adotar para com eles um tratamento cuidadoso e adequado, contemplando as características e necessidades de cada espécie.

 

2.2 Os animais não-humanos como sujeitos de direitos

Entre as controvérsias existentes sobre a temática ora abordada, destaca-se a possibilidade de considerar-se, ou não, como sujeito de direito, o animal não-humano. No epicentro dessas discussões, encontra-se o argumento – com origem no contratualismo clássico – de que somente aqueles sujeitos capazes de obrigações também poderiam ser capazes de direitos. E as obrigações (ou deveres) pressupõem razão, consciência, autonomia, liberdade para agir de um ou outro modo, bem como capacidade de arcar com as conseqüências do não-cumprimento do que foi contratado. A partir desse raciocínio, conclui a doutrina tradicional que apenas aos humanos pode ser atribuído esse status.

Tal pensamento, porém, encontra na atualidade profundos questionamentos que ameaçam sua afirmação, vivenciando-se isso também no Brasil. Como todos os conceitos, segundo compreendemos, o de sujeito de direito não se dá a partir de uma condição natural do ser humano, mas sim de uma consideração que foi gradualmente impregnada na nossa cultura, não sendo possível olvidar que, outrora na história da humanidade, prisioneiros de guerra, escravos, índios e mulheres não eram tidos como sujeitos de direitos.

Ainda na mesma linha de conta da historicidade e culturalidade dos conceitos, observamos entes despossuídos de atributos que seriam pressupostos da condição de sujeitos de direitos, sendo que, não obstante, as legislações lhes atribuem essa condição. O maior exemplo nos parece ser o das pessoas jurídicas, tidas como sujeitos de direitos por meio do mecanismo da “ficção jurídica”. E é exatamente disso que se tratam, de uma ficção, pois consideram o que não é como sendo.

Nossa crítica não reside, entretanto, em criar ficções jurídicas e atribuir aos entes coletivos as mesmas condições dos sujeitos humanos, mas em não considerar os animais não-humanos como sujeitos de direitos, os quais, como já referido, possuem vida, integridade física e psicológica e merecem que tais direitos lhes sejam reconhecidos e garantidos, vedando-se que a eles seja infligida dor, sofrimento ou qualquer espécie de crueldade. Estes, sim, devem ser os critérios norteadores do reconhecimento dos animais não-humanos como sujeitos de direitos, e não aqueles de cunho nitidamente antropocêntricos.

A toda evidência, essa tutela não seria feita diretamente por seres não-humanos, mas através de órgãos que os representassem, como o Ministério Público ou associações criadas com o fim específico de protegê-los. É o que acontece nas ações civis públicas propostas para proteger o meio ambiente e outros interesses.

3. Animais Não-Humanos no Direito Brasileiro

Vistas as considerações sobre o status moral dos animais e admitida sua relevância como seres dotados de uma dignidade intrínseca, resta observar como esses animais estão sendo de fato recepcionados pelo Direito brasileiro. Como não poderia ser diferente, o debate filosófico quanto aos animais não-humanos alcança também o âmbito jurídico, sendo refletido, ainda que em modesta escala, na criação de novas normas legais e na aplicação das mesmas.

Em verdade, desde o Brasil Colônia, algumas espécies animais já recebiam certa atenção no sentido de não serem caçados com meios cruéis, como fios de arame e redes. Na maior parcela da legislação brasileira, porém, os animais foram tradicionalmente tutelados ou sob a ótica do equilíbrio ecológico ou sob a perspectiva de propriedade, tendo o já revogado Código Civil de 1916 os classificado como “bens móveis suscetíveis de movimento próprio”.

Mesmo na vigência desse antigo Código, em 1934, promulgou-se o Decreto 24.645, tido como ainda em vigor e versando sobre a proteção dos animais. Este Decreto, apesar de hoje ser considerado como desatualizado em algumas de suas partes, se apresentou à época de sua criação como muito avançado em relação à proteção dos animais contra a crueldade, sendo possível realizar dele uma leitura pela qual se deduz que, ainda que de forma velada, havia um reconhecimento dos animais como seres dignos e moralmente relevantes, que deveriam ser respeitados e protegidos independentemente de algum benefício direto ao ser humano.

Em 1988, adveio a atual Constituição Federal do Brasil, que pela primeira vez em nível constitucional tratou acerca da proteção dos animais contra a crueldade, mais especificamente, no seu artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII, do qual se constata a existência de um dever, a ser cumprido pelo Estado e a coletividade, em proteger os animais contra práticas cruéis, sendo possível notar aqui, novamente, uma preocupação pelo animal em si.

Na tentativa de regulamentar, na esfera penal, o referido dispositivo constitucional, o legislador tipificou, no art. 32, caput, da Lei 9.605/98, como crime a conduta de “praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”, culminando pena de detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa. Além disso, o parágrafo primeiro do mesmo dispositivo acrescenta que “incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos”.

Destaque-se que antes da previsão do artigo 32, a Lei das Contravenções Penais (art. 64, caput e § 1º do Dec-lei nº 3.688/41) já censurava tais condutas, mas com o legislador percebendo que o enquadramento de contravenção não se fazia suficiente, optou-se por elevá-las à condição de crime. Na prática, porém, não houve mudanças, vez que os crimes em questão são tidos como de menor potencial ofensivo, sendo tratados quase do mesmo modo que se contravenções fossem.

Já em uma análise jurídico-normativa especificamente quanto ao parágrafo 1º do artigo 32, pode-se afirmar que o bem jurídico ali protegido é a dignidade animal, sendo o sujeito passivo o animal individualmente considerado. O sujeito ativo pode ser qualquer pessoa (física ou jurídica), não se exigindo qualquer qualidade especial do agente, tratando-se de crime comum. A conduta descrita no tipo consiste em realizar (fazer, efetivar, satisfazer, efetuar) experiência (ato de exercitar, treinar para adquirir conhecimento) dolorosa (que causa dor ou sofrimento) ou cruel (comovente, desumano, infeliz) em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos (métodos outros que dispensem o uso indevido, com a causação de dor ou sofrimento, de animais, como modelos e simuladores mecânicos e computacionais, filmes e vídeos interativos, método in vitro, utilização não invasiva e não prejudicial em animais, etc.). O objeto material é o animal vivo, individualmente considerado, submetido à experimentação. O tipo apresenta elementos normativos, quais sejam: “experiência dolorosa ou cruel”, “fins didáticos ou científicos” e “recursos alternativos”. Possui também elemento descritivo, representado pela expressão “animal vivo”.

Trata-se de crime material, exigindo para a sua consumação, resultado naturalístico, o qual ocorre quando o bem jurídico “dignidade animal” é ofendido, através da causação de dor, sofrimento, mutilações e até morte do animal utilizado no experimento. É admitida a tentativa. Quanto ao resultado, pode ser classificado como crime de dano, sendo o fato punível apenas a título de dolo (direto ou eventual), consistente na vontade e consciência de praticar a conduta descrita no tipo objetivo. A ação penal é pública incondicionada (art. 26 da Lei nº 9.605/1998).

Como já mencionado, a pena cominada é de 3 meses a 1 ano, aumentada (art. 32, § 2º, da lei nº 9.605) de um sexto a um terço em caso de morte do animal. Com ou sem aumento de pena, entretanto, o crime de crueldade experimental é de menor potencial ofensivo (art. 61 da Lei nº 9.099/1995), não sendo possível, como regra, a prisão em flagrante e a instauração de inquérito policial (art. 69, parágrafo único), o qual é substituído por um “termo circunstanciado de ocorrência” (art. 69, caput) – procedimento bem mais simples. Ainda como conseqüência processual de sua natureza, admitem-se a composição civil (art. 74), a transação penal (art. 76) e a suspensão condicional do processo (art. 89).

Com base nessas referências apresentadas quanto ao dispositivo 32 da lei 9.605, tem-se que, infelizmente, o potencial que o §1º traz não é aproveitado, pois, na prática, até então, a substituição de animais por outros meios depende de uma avaliação subjetiva realizada pelo próprio cientista. Ocorre que, mesmo havendo várias alternativas consagradas internacionalmente, para sua adoção ser legalmente obrigatória, essas dependem de uma validação em nível interno.

Apenas recentemente, entretanto, começa a ser realmente definido no Brasil um procedimento para a validação de recursos alternativos ao uso de animais na pesquisa científica e no ensino. Tal acontecimento se deve ao advento da lei 11.794, de 2008, um ano depois complementada pelo Decreto 6899. Essa legislação recebeu várias críticas, dentre as quais a consideração de que ela representaria um retrocesso na matéria de ambiental. Todavia, não cabe aqui realizarmos uma crítica a esses documentos (o que já foi feito em outros trabalhos), mas apenas avaliarmos o reflexo que estes possuem no tocante à tutela dos animais não-humanos.

O objetivo geral da lei 11.794 é regular o uso científico de animais. Para tanto, criou o Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (CONCEA) e – vedando a atuação independente do pesquisador, pessoa física, para realizar experimentos com animais – obrigou a todas as instituições que pretendam utilizar animais, na pesquisa ou no ensino, a se cadastrarem no Conselho e comporem uma Comissão de Ética para Uso de Animais (CEUA), que analisará cada projeto de pesquisa ou plano de aula envolvendo vertebrados (exceto a espécie humana).

As CEUAs de cada entidade são diretamente vinculadas ao CONCEA, representando uma extensão deste último. As respectivas comissões têm a atribuição de avaliarem e expedirem pareceres sobre os projetos apresentados, podendo condicionar a realização de certo experimento ao cumprimento de determinados requisitos, ou mesmo proibir sua realização por completo. Destaque-se que as CEUAs possuem o poder (e o dever) de fiscalização, respondendo ao CONCEA quando averiguadas irregularidades.

O CONCEA, por sua vez, tem natureza normativa (além de consultiva, deliberativa e recursal), regulando administrativamente a experimentação animal no Brasil. Através do CONCEA serão definidos os critérios para validar alternativas ao uso de animais, assim como os próprios métodos considerados como válidos.

Ainda que possam ser tecidas as mais diversas críticas, não só às normas de experimentação animal, mas à legislação brasileira como um todo, é possível crer que o debate filosófico acerca da importância moral dos animais tem amadurecido também no campo do Direito. Por mais que os documentos legais brasileiros sejam marcadamente antropocêntricos, é perceptível um caminhar gradual (ainda que lento) para um efetivo reconhecimento dos animais não-humanos como seres intrinsecamente dignos e relevantes per si. Por conseguinte, para esse reconhecimento ser concreto, cabe o aproveitamento dos recursos jurídicos já existentes de forma a proteger os animais não-humanos não somente com vistas a benefícios para o homem, mas para proporcionar a preservação da integridade do animal pelo valor que este possui como forma de vida sensível e capaz de se importar com aquilo que lhe ocorre.

Conclusão

O status que o ser humano tem designado ao animal não-humano é tema que ocupou a filosofia desde tempos remotos, ainda que para colocar esse animal em uma situação de desprestígio. Todavia, os posicionamentos a respeito dos animais não-humanos passaram (e continuam passando) por processos históricos e culturais, conquistando tamanha importância a ponto de hoje não poderem ser vistos apenas como considerações filosóficas, mas sim como elementos de um debate crucial que se estende ao Direito e a vários outros ramos científicos.

De fato, o campo jurídico já vem a muito manifestando uma preocupação com relação aos animais não-humanos e não só naquilo em que possa ser visualizado um benefício direto para homem, mas também no tocante a uma preocupação com o animal como um ser individualmente considerado e que merece ocupar uma posição moral de respeito. Isso resulta na necessidade urgente e emergente do abandono da noção antropocentrista de mundo, abrindo-se o caminho para o reconhecimento do animal ser dotado de uma dignidade intrínseca e também como verdadeiro sujeito de direito.

No âmbito brasileiro, em que pese a legislação já ter demonstrado sinais de amadurecimento no que concerne ao tema, os instrumentos jurídicos para a proteção dos animais contra a crueldade ainda são precários. Tal situação é agravada também em razão da noção do animal como ser sensível e possuidor de interesses ainda constituir um fenômeno não internalizado por boa parte da sociedade, na qual estão cientistas que optam pela experimentação animal sem a realização de maiores considerações. Nesse sentido, a soma do mencionado tipo penal do artigo 32 (lei 9.605) à lei 11.794 compõe uma importante ferramenta para o combate ao uso de animais na ciência de forma indiscriminada, cabendo a aplicação desses instrumentos ser realizada de forma concreta e comprometida com a condição dos animais não-humanos como seres dignos e relevantes tanto para a moral como para o Direito.


Referências

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