Número 27 - Enero 2013

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Por uma bioética da biodiversidade

For a biodiversity bioethics

Bruno Torquato de Oliveira Naves
Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas - Brasil); Professor do Mestrado em "Direito Ambiental e Desenvolvimento Sustentável" da Escola Superior Dom Helder Câmara (Brasil); Professor nos Cursos de Graduação e Especialização em Direito na PUC Minas; Pesquisador do Centro de Estudos em Biodireito – CEBID. E-mail: brunotorquato@hotmail.com

Maria de Fátima Freire de Sá
Doutora em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (Brasil) e Mestra em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (Brasil); Professora nos Cursos de Graduação, Especialização, Mestrado e Doutorado em Direito da PUC Minas; Pesquisadora do Centro de Estudos em Biodireito – CEBID. E-mail: mfatimasa@uol.com.br


Índice

1. O problema da ética para o meio ambiente

2. Bioética ambiental: surgimento

3. É possível uma ética para o meio ambiente?

4. Ética social e biodiversidade

5. Conclusão

6. Referências


Resumo

A Bioética continua a expandir seus horizontes, mas ainda é incipiente a teorização filosófica de uma Ética para o meio ambiente. Este trabalho aborda a questão de fundo dos textos bioéticos ambientais, contra a posição da Ética clássica: é possível construir uma Ética para os outros seres vivos? Avalia-se, ainda, as características dessa nova Ética e a necessidade, principalmente no Brasil, das obras sobre o assunto possuírem uma filiação mais clara a uma teoria ética.

Palavras-chave: ética, meio ambiente, biodiversidade, bioética, princípios.


Abstract

Bioethics continues to expand its horizons, but is still incipient philosophical theorizing of an Ethics for the environment. This paper addresses the fundamental issue of environmental bioethics texts, against the position of classical Ethics: Is it possible to build an Ethics for the other living beings? Evaluates also the characteristics of this new Ethics and the need, especially in Brazil, works on the subject having a membership to a clearer ethical theory.

Key words: ethics, environment, biodiversity, bioethics, principles.


1. O problema da ética para o meio ambiente

Há, indubitavelmente, uma nítida e crescente preocupação com a Bioética nas diversas áreas do conhecimento científico, inclusive na área jurídica que se ocupa da problemática ambiental. Contudo, é curioso perceber que nem sempre há um substrato ético nos tratamentos que juristas dispensam aos temas supostamente bioéticos.

É importante perquirir qual a Ética, se é que ela existe, que está por detrás dos argumentos. Ou ainda: será mesmo possível construir um arcabouço ético aplicável à natureza e aos outros organismos vivos, que não o homem?

Se partirmos de uma visão antropocêntrica a resposta provavelmente será: "Não! Não se pode falar de Ética para a biodiversidade!" Essa provavelmente seria a resposta de Immanuel Kant, que construiu uma Ética racional, que reconciliava empirismo e idealismo, dogmatismo e ceticismo, mas que sempre teve como únicos partícipes o ser humano. Seus escritos constituem a base do Direito moderno e por isso, ainda hoje, são o fundamento ético que profissionais do Direito tentam trazer para a Bioética.

E, embora o meio ambiente brasileiro ocupe uma importante função no equilíbrio planetário, ainda são poucos os trabalhos de Bioética Ambiental.

Tem-se, pois, duas situações-problema a se enfrentar: 1) Nem sempre quando se diz tratar de Bioética, há realmente um substrato ético; 2) Muitos que exprimem tal substrato, o fazem pautados na Ética clássica, o que é um contrassenso. A Filosofia kantiana, por exemplo, não parece ser adequada para fundamentar argumentos bioéticos que pretendem transcender uma Ética para os homens, chegando na "Ética animal" ou Ética para a natureza.

Em síntese: é possível uma Ética para o meio ambiente?

2. Bioética ambiental: surgimento

Embora nos últimos anos a Bioética Médica tenha ocupado o centro de muitas discussões, o nascedouro da Bioética é mais abrangente e confunde-se com a Bioética Ambiental.

O vocábulo Bioética foi cunhado pelo filósofo alemão Fritz Jahr pela junção de duas conhecidas palavras gregas – bios, vida e ethos, comportamento –, em seu artigo "Bioethik: eine Übersicht der Ethik und der Beziehung des Menschen mit Tieren und Pflanzen", publicado na revista Kosmos, em 1927.

Jahr propôs um imperativo bioético de respeito a todas as formas de vida, como um fim em si mesmas. A Bioética seria uma disciplina acadêmica, um princípio e uma virtude, que, como tal, imporia obrigações morais em relação a todos os seres vivos. (1924)

Jahr conta que o impacto da Teoria da Evolução, de Darwin, sobre Nietzsche fez com que este último visse o homem como um ser inferior em transição para uma fase superior. Esta reviravolta no antropocentrismo levou muitos estudiosos a utilizarem em outros seres vivos, analogicamente, métodos antes aplicáveis somente a seres humanos. Como exemplo, Jahr cita a Psicologia, que tem por objeto "o estudo de todos os seres vivos em seus limites. [...] Da Biopsicologia à Bioética só um passo é necessário: a aceitação de obrigações morais a todos os seres vivos, não só em relação aos seres humanos." (1924, p. 24) E acrescenta:

Desta forma, quanto aos animais, a alegação moral tornou-se irrefutável, pelo menos em termos de não fazê-los sofrer desnecessariamente. Não é o mesmo com as plantas. Pode parecer absurdo para algumas pessoas que também devêssemos manter algumas obrigações éticas para com elas. [...]

A nossa ordem social de leis e determinações para a proteção de plantas ou flores isoladas em uma determinada região (por exemplo, plantas alpinas) também é baseada em uma perspectiva completamente diferente: a ordem social quer preservar estas plantas para impedir a sua destruição na região e, em seguida, elas podem ser um prazer para os humanos. (1924, p. 24)

A primeira preocupação bioética com a biodiversidade encontra aí seu nascedouro. No entanto, a expressão Bioética popularizou-se a partir da obra "Bioethic: Bridge to the Future", do oncologista estadunidense Van Rensselaer Potter, publicada em 1971. Potter propõe a construção de uma Ética ponte, capaz de mediar as relações entre as Ciências e as Humanidades, e voltada para os problemas ambientais e as questões de saúde.

Outro importante marco para a Bioética, mas voltado para as práticas de profissionais de saúde, foi a criação, em 1974, nos Estados Unidos, da Comissão Nacional para a Proteção dos Interesses Humanos de Biomedicina e Pesquisa Comportamental (National Commission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research), que quatro anos mais tarde apresentou o Relatório Belmont, com os princípios éticos básicos que norteiam a experimentação com seres humanos – autonomia, beneficência e justiça.

A Bioética é, portanto, a disciplina que estuda os aspectos éticos das práticas dos profissionais das Geociências, Ciências Biológicas, Ciências Humanas e Ciências da Saúde sobre os organismos vivos, humanos ou não humanos, e seus impactos sobre os ecossistemas. Avalia, pois, as interações entre os homens, entre estes e outros seres vivos, isto é, é a Ética em todas as suas implicações com a vida, de forma a garantir sua continuidade e a construir parâmetros de dignidade.

3. É possível uma ética para o meio ambiente?

Para avaliar a possibilidade de uma Ética para o meio ambiente, tomaremos por ponto de partida as ideias de Hans Jonas em duas de suas obras – "O princípio vida" e "O princípio responsabilidade".[1]

Jonas alerta-nos dos riscos do progresso técnico global e de seu uso inadequado, denunciando os riscos de uma Ética antropocêntrica, como a Ética clássica.

Dessa forma, seu pensamento é estimulado por dois grandes eixos: a intervenção tecnológica na natureza, submetendo-a ao uso humano e passível de ser alterada drasticamente; e a intervenção extra-humana, por meio da manipulação do patrimônio genético. Será a partir dessas constatações que sugerirá como necessária uma Ética que contemple a natureza e não somente a pessoa humana, impondo alterações na própria natureza da Ética.

Outra preocupação que assalta Jonas está na apreensão com as gerações vindouras, uma vez que o futuro carece de representação no presente. É necessário que a nova Ética contemple a preocupação com o futuro, com as gerações futuras. Por isso, tais ditames só se fazem possível a partir da responsabilidade. Porém, tal responsabilidade não trata da reparação de danos ou da imputação de penas, pois a natureza não comporta reparo, devido à manipulação equivocada. Trata-se de uma responsabilidade assentada num novo modelo de relação, que se estende a todos os seres vivos. Assim, a responsabilidade direciona-se à liberdade e pode ser expressa por um imperativo categórico.

Os imperativos categóricos, segundo a tradição kantiana, advêm da razão pura prática, isto é, de leis morais "a priori" (pois não dependem de comprovação empírica).

Da razão pura prática infere-se princípios morais universais. Esses princípios práticos dividem-se em máximas e imperativos. Máxima é o princípio subjetivo da vontade. Vale apenas para aquele que a propõe. Já os imperativos têm uma pretensão de universalidade. Eles expressam a necessidade objetiva de ação e podem ser divididos em duas classes: imperativos hipotéticos e imperativos categóricos.

Os imperativos hipotéticos consideram sempre uma hipótese, uma condição de se atingir certo fim.

O imperativo categórico é único e seu conteúdo é indeterminado, pois determiná-lo seria submetê-lo às coisas e, portanto, às leis da natureza, o que retiraria seu caráter a priori e sua validade universal. Não há, pois, conteúdo definido. O imperativo categórico é só forma, preceito racional formal, e pode ser expresso da seguinte forma: "Age como se a máxima da tua acção se devesse tornar, pela tua vontade, em lei universal da natureza." (KANT, 1997, p. 59 (BA52))

Consistindo o imperativo categórico na lei moral, será ele que determinará o bem moral.

O imperativo categórico de Kant coloca a vontade humana, e consequentemente a liberdade, no centro da Ética da Primeira Modernidade[2]. O agir ético dependeria sempre da possibilidade do agente avaliar sua conduta racionalmente. A liberdade suprema da vontade seria estar vinculado ao dever, ao dever imposto pela própria razão. "[...A]ssim, pois, vontade livre e vontade submetida a leis morais são uma e a mesma coisa." (KANT, 1997, p. 94 (BA 98))

Teóricos da Primeira Modernidade aproveitaram-se do imperativo categórico kantiano para afirmar que a ausência de racionalidade na vida extra-humana impediria que a Ética alcançasse outros seres vivos, posto que estes não possuem um agir moral. A Ética da "sociedade moderna" pressuporia uma alteridade racional (reciprocidade) e restringir-se-ia, pois, ao ser humano como sujeito e destinatário de sua ação. Seria, também, uma Ética voltada ao indivíduo no seu agir imediato.

Hans Jonas, em contrapartida, sugere um novo imperativo categórico, que se estenderá em direção ao futuro. Vale citá-lo ipsis litteris:

O Imperativo categórico de Kant dizia: ‘Aja de modo que tu também possas querer que tua máxima se torne lei geral’ [...] para um imperativo mais condizente ao novo tipo do agir humano: ‘Aja de modo a que os efeitos de tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida humana sobre a Terra’; ou expresso negativamente: ‘Aja de modo a que os efeitos de tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida’; ou simplesmente: ‘não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra’; ou, em um uso novamente positivo: ‘inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer.’ (JONAS, 2006, p. 47-48)

Ao reformular o velho imperativo kantiano à justa medida da responsabilidade, há uma convergência do privado para o público, isto é, do indivíduo (Kant) para a sociedade (Jonas). Jonas aduz, ainda, que se pode promover a destruição do indivíduo, mas não se pode, sob nenhuma justificativa, intentar a destruição e a aleatória reconstrução tecnológica do homem e do meio ambiente.

Nesse substrato, Jonas afirma a extinção da reciprocidade, isto é, o fim da ideia tradicional de direitos e deveres éticos, "segundo a qual o meu dever é a imagem refletida do dever alheio [...], de modo que, uma vez estabelecidos certos direitos do outro, também se estabelece o meu dever de respeitá-los e, se possível [...], promovê-los". (JONAS, 2006, p. 89)

A projeção da ética para o futuro conduz a um "sujeito" que não existe, não reivindica e não tem seus direitos lesados. "[...A] ética almejada lida exatamente com o que ainda não existe" (JONAS, 2006, p. 89), enquanto futuro da humanidade, mas dirige-se também a outras formas de vida, já que "a ética passa a ser uma parte da filosofia da natureza". (JONAS, 2004, p. 271)

A nova Ética preocupa-se com o ser e não somente com o ser humano:

 [...] só uma ética fundamentada na amplitude do ser, e não apenas na singularidade ou na peculiaridade do ser humano, é que pode ser de importância no universo das coisas. Ela terá esta importância se o ser humano a tiver; e se ele a tem, nós teremos que aprendê-lo a partir de uma interpretação da realidade como um todo, ou pelo menos a partir de uma interpretação da vida como um todo. [...] Portanto, enquanto a investigação ontológica extra-humana puder levar-nos para a teoria universal do ser e da vida, ela não se terá afastado realmente da ética, mas terá ido atrás de sua fundamentação possível. (JONAS, 2004, p. 272)

Hans Jonas não foi o primeiro a conceber uma Ética para além da reciprocidade entre seres racionais e vários importantes filósofos após sua obra têm escrito sobre essa nova Ética. Todavia, é seu pressuposto fundamental a mudança para um paradigma biocêntrico. E é igualmente importante que a filiação a determinada teoria ou base ética esteja explícita nos trabalhos de ética prática.

4. Ética social e biodiversidade

A biodiversidade pode ser entendida como toda a gama de organismos vivos existentes no planeta, de forma a destacar a essencial vinculação e interdependência entre as espécies. Dito de outra forma: a biodiversidade representa o complexo sistema de variabilidade biológica, que abrange desde os seres humanos, passando por outras espécies animais, vegetais, fúngicas, protistas, bacterianas ou mesmo viróticas.

Destaque-se, neste conceito, a inter-relação entre os aspectos biológicos, geológicos, culturais e sociais.

Apesar de nossa Constituição reconhecer a necessidade de proteção da biodiversidade, o principal marco regulatório do tema veio em 1992, com a Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB).

Ratificada por mais de 180 países, a CDB é um dos principais resultados da Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento, ocorrida no Rio de Janeiro em 1992 – a Eco-92.

Fruto de negociações entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento, a Convenção é o parâmetro obrigatório para a formulação do Direito interno dos Estados-partes e tem por objetivos a conservação da diversidade biológica, a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos.

Observando as normas e os objetivos da CDB, são muitas as perspectivas bioéticas que se pode adotar. No Brasil, merece destaque a obra "Ética Socioambiental", de Josafá Carlos de Siqueira, em que o autor traça princípios éticos específicos à biodiversidade. Ele elenca o princípio da anterioridade da biodiversidade; o princípio da dimensão subjetiva dos seres vivos e o princípio do valor desconhecido:

Atualmente, diante da crise nas relações do homem com a natureza, têm surgido alguns princípios éticos voltados para a questão da biodiversidade. Um deles consiste na anterioridade histórica, biológica e evolutiva, pois a diversidade da vida no planeta é anterior ao surgimento da espécie humana e, portanto, deve ser respeitada. Outro princípio insiste na dimensão subjetiva dos seres vivos, contrapondo a abordagem objetiva que historicamente predominou. Dessa forma, os seres que integram os biomas e ecossistemas têm valores e direitos, devendo, portanto, ser respeitados e preservados. Finalmente, existe recentemente o princípio do valor desconhecido, ou seja, a megabiodiversidade nos trópicos é depositária de um patrimônio biológico e axiológico ainda desconhecido, tanto pelas ciências como pela sociedade, justificando assim os esforços de preservação dos biomas e das espécies. (2009, p. 60)

Neste breve ensaio, entretanto, nos deteremos na justiça, em sua vertente social, como princípio bioético para o meio ambiente.

Antes de mais nada, é bom recordar que sociedade e natureza não são conceitos estanques e independentes. Muito ao contrário, há um inquestionável viés social na questão ambiental, consubstanciado na tensão entre conservação ambiental e desenvolvimento econômico.

A sustentabilidade – divulgada aos quatro ventos como palavra de ordem e quase como uma "cura para todos os males" – é um objetivo só alcançável pelo enfrentamento dos problemas sociais e da distribuição de riquezas no mundo. Por isso, falar da repartição financeira de benefícios advindos da biodiversidade é tanto um assunto pertinente à Bioética Ambiental quanto ao Direito Ambiental, à Economia e à Política.

Mas antes de adentrar neste assunto, é importante perguntar: o que é natureza?

Ulrich Beck alerta-nos sobre o risco de se "naturalizar" o conceito de natureza, como algo oponível à sociedade. O conceito de natureza não é natural, ontológico e imutável. Ao inverso, forma-se no tempo e no espaço como construção cultural.

Por isso,

En el debate ecologista, los intentos de utilizar la naturaleza como una bandera contra su propia destrucción se basan en una falacia naturalista. Pues la naturaleza invocada ya no existe. Lo que existe, y lo que crea semejante inquietud política, son formas diferentes de socialización y diferentes mediaciones simbólicas de la naturaleza (y de la destrucción de la naturaleza). Son esos conceptos culturales de la naturaleza, esas concepciones opuestas de la naturaleza y de sus tradiciones culturales (nacionales) los que, tras las discusiones entre los expertos y las fórmulas y peligros técnicos, tienen una influencia determinante sobre los conflictos ecológicos […]. (BECK, 2002, p. 33)

A espécie humana não só é parte da natureza, como a própria natureza não é mais algo externo ao homem, que ele contempla e domina. O homem, hoje, intervém na formação do meio ambiente. Além disso, o próprio conceito de natureza é determinado muitas vezes pelo saber "científico", com fórmulas técnicas e poderes tecnocráticos.

Por tudo isso, a condição intervencionista da humanidade, capaz mesmo de "construir" um organismo vivo por meio da manipulação genética, também exige uma mudança de postura em relação à pobreza. Sociedades pobres tendem a negligenciar o problema ambiental em prol do acesso a bens básicos. Como já alertava Beck, em 1986: "[n]a concorrência entre a morte pela fome, visivelmente iminente, com a morte por intoxicação, iminente mas invisível, impõe-se a premência do combate à miséria material." (2011, p. 50)

Superado este primeiro ponto, voltemos à repartição justa e equitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos previstos na CDB. As pesquisas e a exploração comercial de recursos genéticos só podem ser realizadas com o consentimento do Estado-parte, que participará dos benefícios, fazendo-os chegar à sociedade diretamente afetada.

Este preceito ganha um novo colorido ao tratar do conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético. O conhecimento tradicional pode ser entendido como aquele formulado por povos e comunidades tradicionais, definidos, no Brasil, pelo Decreto n. 6.040, de 2007, como:

[...] grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição. (art. 3º, I)

Assim, comunidades que estabelecem um vínculo de dependência e harmonia com a natureza, valendo-se dos recursos naturais como forma de vida e representação cultural, trazem consigo conhecimentos tradicionais sobre tais recursos e sua utilização prática. Raízes e folhas de plantas, bem como substâncias advindas de animais, são utilizadas na elaboração de chás, produtos de higiene, complementos alimentares etc. A divulgação desse conhecimento e sua utilização comercial requer que os dividendos sejam partilhados com essas comunidades.

A Convenção prescreve que cada parte contratante deve:

Em conformidade com sua legislação nacional, respeitar, preservar e manter o conhecimento, inovações e práticas das comunidades locais e populações indígenas com estilo de vida tradicionais relevantes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica e incentivar sua mais ampla aplicação com a aprovação e a participação dos detentores desse conhecimento, inovações e práticas; e encorajar a repartição equitativa dos benefícios oriundos da utilização desse conhecimento, inovações e práticas; (art. 8º, j)

O Direito Ambiental Internacional tem se dedicado, nos últimos anos, a buscar mecanismos de justiça social, pois desenvolvimento sustentável pressupõe qualidade de vida e garantia de acesso a direitos. A Rio+20 foi uma tentativa neste rumo, mas em um momento econômico nada propício para os países ricos renunciarem a vantagens ou empenharem sua economia no combate à pobreza nos países em desenvolvimento.

A dificuldade inicial em trabalhar o princípio da justiça na Bioética Ambiental vem da própria fluidez de seu conceito. Em uma sociedade global e pluralista e em um meio ambiente natural e culturalmente interdependente, os comportamentos humanos são justos quando permitem que a dignidade alcance todos os seres humanos e ainda se estenda para as demais espécies, garantindo qualidade de vida para as gerações presentes e futuras, humanas ou não.

De certa forma, tal justiça encontra no desenvolvimento sustentável seu instrumento. O que para alguns pode parecer uma solução, na prática é mais uma prova da fluidez de institutos e conceitos, pois gera dúvidas e conduz a modernidade a si mesma.[3]

O que está acontecendo hoje é, por assim dizer, uma redistribuição e realocação dos "poderes do derretimento" da modernidade. Primeiro, eles afetaram as instituições existentes, as molduras que circunscreviam o domínio das ações-escolhas possíveis, como os estamentos hereditários com sua alocação por atribuição, sem chance de apelação. Configurações, constelações, padrões de dependência e interação, tudo isso foi posto a derreter no cadinho, para ser depois novamente moldado e refeito [...]. (BAUMAN, 2001, p. 13)

Valemo-nos, ainda, dos ensinamentos de John Rawls, que, ao escrever A Teoria da Justiça (2000), coloca como imprescritíveis alguns direitos individuais e sociais, que poderiam ser assim elencados: liberdade de pensamento e liberdade de consciência, que possibilitariam a tomada de decisões por parte dos indivíduos; liberdade de rendas e de riquezas, bem como de livre escolha de ocupações; e condições sociais para o respeito a todo indivíduo como pessoa moral.

Deve-se, todavia, estender a concepção moral de Rawls para além do Estado-nação, base para sua teoria, e conceber que a Ética biocêntrica ultrapassa fronteiras. É uma verdadeira Ética Global, que se preocupa com as gerações futuras e que atende à necessidade de estabelecer normas éticas para todos os elementos do meio ambiente.

5. Conclusão

Apesar de muitos textos de Bioética Ambiental não trazerem, de forma nítida, uma concepção ética da relação "homem-meio ambiente", ela é necessária e urgente no contexto da sociedade de risco.

As éticas antropocêntricas clássicas partiram do pressuposto de que o agente ético constrói-se no presente num contexto humano de alteridade. A sociedade de risco altera essa necessidade ética, trazendo novos elementos para esse difícil enlace. A conduta eticamente recomendável do ser humano deve se estender a seres humanos não presentes e a seres não humanos.

Uma justiça procedimental não é suficiente para atender aos anseios dessa sociedade, pois divorciada de conteúdo, desfaz-se de sua própria estrutura valorativa e garante a primazia do raciocínio iluminista, pautado no individualismo e na especialização do conhecimento. Diz-se que o homem tudo pode, desde que preserve a autonomia e respeite a diferença do outro, assumindo as consequências de suas condutas. Isso não é suficiente.

A Ética da consciência de Hans Jonas traz ricas contribuições para a Bioética da Biodiversidade, mas é importante não a apartar da normatividade, capaz de sustentar a justiça social entre os homens, de garantir a continuidade dos bens ambientais para as gerações futuras e o convívio harmônico do ser humano com outros seres vivos.

Enfim, a complexa condição da modernidade líquida, intrinsecamente de risco, é buscar em sua própria contradição a Ética que norteie a convivência entre todas as espécies. Exige-se um retorno da Ética à base do conjunto do ser, uma Ética mais holística, afirmando que a antiga separação entre o reino subjetivo e o objetivo é superada na nova visão, que propõe a "re-união" desses reinos, o que só pode ser alcançado pelo lado objetivo (JONAS, 2004), isto é, pela revisão do papel da natureza.


6. Referências

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

BECK, Ulrich. "A reinvenção da política: rumo a uma teoria da modernização reflexiva". In: GIDDENS, Anthony; BECK, Ulrich; LASH, Scott. Modernização reflexiva. São Paulo: UNESP, 1997, p.11-71.

BECK, Ulrich. "¿La sociedad del riesgo global como sociedad cosmopolita? Cuestiones ecológicas en un marco de incertidumbres fabricadas". In: BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo Veintuno de España, 2002, p. 29-73.

BECK, Ulrich. Liberdade ou capitalismo: Ulrich Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: UNESP, 2003.

BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011.

JAHR, Fritz. "Bioethik: eine Übersicht der Ethik und der Beziehung des Menschen mit Tieren und Pflanzen". Kosmos, Gesellschaft der Naturfreunde, Stuttgart, Nr. 24, p. 21-32, 1924.

JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: ensaio de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro: PUC Rio/Contraponto, 2006.

JONAS, Hans. O princípio vida: fundamentos para uma biologia filosófica. Petrópolis: Vozes, 2004.

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 1997.

NAVES, Bruno Torquato de Oliveira; BRITO, Franclim Jorge Sobral de. Segunda modernidade e responsabilidade: a questão ambiental a partir da interface entre tecnociência e ética à luz do pensamento de Hans Jonas. In: ENCONTRO NACIONAL DO CONPEDI, 21, 2012, Uberlândia, Anais do XXI Encontro Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2012. p. 1514-1530. Disponível em: <http://www.publicadireito.com.br/artigos/?cod=3d8e28caf901313a>.

RAWLS, John. Uma teoria da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

SIQUEIRA, Josafá Carlos de. Ética socioambiental. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2009.


Fecha de recepción: 1 de septiembre 2012
Fecha de aceptación: 4 de octubre 2012


Notas

[1] Este tópico baseia-se no pensamento desenvolvido em conjunto com Franclim Jorge Sobral de Brito, em trabalho apresentado no XXI Encontro Nacional do CONPEDI, intitulado "Segunda modernidade e responsabilidade: a questão ambiental a partir da interface entre tecnociência e ética à luz do pensamento de Hans Jonas".

[2] Ulrich Beck explica que a Primeira Modernidade é fruto da sociedade industrial e do pensamento antropocêntrico, em que a natureza "é uma fonte inesgotável de recursos para o processo de industrialização, natureza como mero conceito daquilo que é estranho, daquilo que está fora da sociedade e precisa ser controlado." (BECK, 2003, p. 21)

[3] Ulrich Beck denomina este movimento de "modernidade reflexiva". A crise ecológica, por exemplo, não é "mais um problema do mundo que nos cerca [...], mas sim uma crise institucional profunda da própria sociedade industrial. [...] Na sociedade de risco, o reconhecimento da imprevisibilidade das ameaças provocadas pelo desenvolvimento técnico-industrial exige a auto-reflexão em relação às bases da coesão social e o exame das convenções e dos fundamentos predominantes da ‘racionalidade’. No autoconceito da sociedade de risco, a sociedade torna-se reflexiva (no sentido mais estrito da palavra), o que significa dizer que ela se torna um tema e um problema para ela própria." (BECK, 1997, p.19).