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X Coloquio Internacional de Geocrítica

DIEZ AÑOS DE CAMBIOS EN EL MUNDO, EN LA GEOGRAFÍA Y EN LAS CIENCIAS SOCIALES, 1999-2008

Barcelona, 26 - 30 de mayo de 2008
Universidad de Barcelona

 

UM OLHAR SOBRE AS REDES DE PROSTITUIÇÃO E TRÁFICO DE MULHERES
NA FRONTEIRA BRASIL-VENEZUELA A PARTIR DAS RODOVIAS BR-174 E TRONCAL 10

Rafael da Silva Oliveira
Universidade Federal de Roraima (Brasil)
rafasol@bol.com.br


Um olhar sobre as redes de prostituição e tráfico de mulheres na fronteira Brasil-Venezuela a partir das rodovias BR-174 e Troncal 10 (Resumo)

O estado de Roraima, situado na região Amazônica e estabelecendo fronteira com a Venezuela e a República Cooperativista da Guiana, é considerado uma das principais áreas de passagem – no território brasileiro – do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual comercial, sendo tal atividade estruturada no cerne das redes de prostituição e demais atividades ilícitas que marcam a fronteira Brasil-Venezuela.

Os fluxos da referida rede ilícita ganharam contornos mais expressivos após a pavimentação da BR-174, rodovia que conecta a cidade de Manaus (importante centro da Amazônia brasileira) a Venezuela que somada com a facilidade para entrar e sair do país, pela via terrestre, potencializaram tais práticas.

Isto posto, a pesquisa em tela apresenta análise das interações sócio-espaciais, a partir da BR-174, da atividade da prostituição e do tráfico de mulheres que constituem uma das redes dentro da malha das atividades ilícitas estruturadas na fronteira.

Palavras-chave: redes de prostituição, tráfico de mulheres, fronteira Brasil-Venezuela, BR-174.


A view concerning the nets of prostitution and women traffic in the frontier Brazil – Venezuela from the roads BR-174 and Troncal 10 (Abstract)

Roraima state, situated in the Amazon region and stablishing frontier with Venezuela and the Republic Cooperativist of Guyana, is considerated one of the principal area of  transit – in brasilian territory – of women traffic with the objective of sexual comercial exploration and others  unlawfuls activities that marked Brazil – Venezuela frontier.

The flux of the unlawful net mentionated earn a more expressive contour after the pavement of BR-174, road that connects Manaus city (important center of brazilian amazon) with Venezuela that summed with the facilities to come in and out of the country, by via terrestrial, potencialized this practices. In fact, the present research presents analysis of the socio-spacial interactions from the BR-174 (Brazil) and Troncal 10 (Venezuela), of the prostitution activity and the women traffic that constitute one of the nets into the mesh of unlawfuls activities structurated in the frontier.

Key words: nets of prostitution, women traffic, Brazil-Venezuela frontier, BR-174, Troncal 10.


O tráfico de humanos, sobretudo de mulheres, e as redes internacionais de prostituição são temas amplamente discutidos na agenda das atuais preocupações mundiais. Diversas pesquisas e programas de enfrentamento a referida atividade ilícita vêm sendo desenvolvidas por inúmeros países do globo, promovidos geralmente pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) e demais organismos envolvidos no combate a exploração sexual para fins comerciais.

No Brasil, dentre os principais relatórios publicados, que buscam compreender melhor o fenômeno e traçar um perfil da exploração e do tráfico de pessoas,  está o PESTRAF – Pesquisa sobre o Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para fins de Exploração Sexual Comercial no Brasil1. No referido relatório, o estado de Roraima é apontado como um dos principais eixos da rota internacional do tráfico via BR-174, de Manaus para Boa Vista e depois para Pacaraima, na fronteira com a Venezuela, visando atingir a Europa.

A atividade em tela no estado de Roraima, há mais de uma década, tem despertado discussões e ações de diversos organismos e instituições que atuam no enfrentamento do tráfico de humanos e exploração sexual de crianças, mulheres e adolescentes, entre eles figuram  a Secretaria do Trabalho e Bem-Estar Social (SETRABES) - do Governo do Estado de Roraima - e a Universidade Federal de Roraima2. Vários projetos em parceria têm contribuído para ampliar os conhecimentos sobre o conjunto de articulações e a intensidade dos fluxos do problema supramencionado, como também sua relação com outras redes ilícitas - dentre elas, destacamos: o tráfico de drogas, a falsificação de documentos e o contrabando de combustível, ouro e diamante.

Desde 2006, até o presente momento, temos nos dedicados à reflexão e estudo da identificação da constituição e manutenção das redes sociais que favorecem as práticas ilegais do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual na região amazônica brasileira, na Venezuela, República Cooperativista da Guiana e Suriname, pois nessa área, assim como em diversos outros pontos do Brasil, ocorre significativa saída de brasileiras que são exploradas sexualmente tanto nos países estudados quanto na Europa (principal destino das redes de aliciamento, tráfico e exploração sexual comercial de mulheres).

Mulheres brasileiras são traficadas sem passaporte ou com documentos falsificados em direção a Venezuela, Rep. Cooperativista da Guiana e Suriname, através de rodovias, aeroportos e barcos onde durante o percurso, para trabalharem no mercado do sexo, realizam diversas paradas temporais, desde capitais e principais centros dos quatro países em tela, passando por cidades de mineração e turísticas, até alcançarem seu destino final: a Europa - sobretudo Portugal, Espanha e Holanda.

Neste sentido, dedicaremos atenção concernente às rodovias BR-174 (Brasil) e Troncal 10 (Venezuela), pois através desses eixos de transportes se constituem pontos que, por conta da intensidade das ações do tráfico de mulheres, adquirem expressão espacial ocasionada pelos conjuntos de práticas desempenhadas durante o percurso.   

Cumpre, de início, apresentarmos sucintamente alguns apontamentos sobre a metodologia empregada para coleta de dados e, principalmente registrar nosso entendimento acerca da noção de tráfico para fins de exploração sexual.

Alguns apontamentos metodológicos

Pesquisar e buscar identificar os pontos de atração-dispersão e os principais fluxos de origem-destino das redes de tráfico de mulheres com fins de exploração sexual comercial, além de ser uma tarefa difícil requer muito cuidado no tratamento das fontes e dados coletados, pois como nos chama atenção Tyldum e Brunovskis3, em seu artigo intitulado Describing the unobserved: methodological challenges in empirical studies on human trafficking, publicado pelo International Migration Journal, em muitos casos as preocupações com a quantificação podem comprometer a própria natureza do desenvolvimento da pesquisa e, sobretudo, a divulgação dos resultados levantados.

Assim sendo, não prenderemos nossa atenção as "exigências quantitativas", muitas vezes impostas aos pesquisadores, pois acreditamos que, até o momento hodierno, não existam instrumentos capazes de quantificar a rede de prostituição por conta de sua própria natureza: a invisibilidade (ocasionada pela clandestinidade).  Neste sentido, quando identificamos quantidades sabemos que estamos, em muitos casos, apenas descrevendo a ponta de um iceberg ou, até mesmo, superproduzindo um dado a partir de conclusões sem muita credibilidade (influenciado, em diversos casos, por posicionamentos políticos e/ou militância!). Neste sentido encontramos literaturas sobre o tema em tela, cujo não detalhamento das metodologias aplicadas ou a reprodução indiscriminada de outras fontes acabam gerando muita confusão no plano das pesquisas concernentes as redes de prostituição e tráfico de mulheres. Ao versar sobre a polêmica discussão, o Grupo Davida, associação constituída por cientistas sociais que estudam a prostituição do ponto de vista do/a trabalhador/a do sexo, contribui sobre o assunto ao afirmar de maneira enfática:

"essa confusão é oriunda da natureza refratária do objeto estudado. Como o tráfico é uma atividade clandestina, definida de forma vaga e conflitante pelos vários Estados e entidades que o combatem, os dados quantitativos não são confiáveis. As estimativas em relação ao fluxo de traficadas, fornecidas por vários órgãos governamentais e associações civis, variam radicalmente de acordo com quem fez a avaliação, o ano em que foi realizada, a metodologia empregada e - o mais importante - a definição de 'tráfico' utilizada. A atual confusão epistemológica que parece reger os estudos sobre esse fenômeno não é só e simplesmente efeito de sua natureza multifacetada, mas se deve às diferentes metodologias adotadas por pesquisadores que se auto-rotulam 'combatentes do tráfico' e que optam por repetir, acriticamente, dados oriundos de diversas origens, sem analisar as diferentes visões epistemológicas do 'tráfico' que orientam a produção dessas informações"4.

Neste contexto, afirmamos que nossa opção metodológica está inclinada numa perspectiva qualitativa e não quantitativa.  A preocupação primeira que ambienta nossas reflexões está calcada no esforço de compreender as redes, suas manifestações e atores, pois acreditamos que dessa maneira iremos contribuir de forma significativa para enriquecer o debate em tela. Isto posto, não iremos apresentar, nem tampouco, buscar consolidar nenhum dado quantitativo publicado sobre o assunto, nos ateremos somente às fontes captadas durante as pesquisas de campo.

Outro ponto importante a ser ressaltado diz respeito à confusão comumente entre tráfico e auxílio à imigração ilegal (conhecido como smuggling). No que concerne o smuggling, este ocorre quando uma pessoa, interessada em entrar em um país clandestinamente, paga para que seja facilitada sua entrada, cujo smuggler atua em muitos casos forjando e conseguindo documentação falsificada, além de, também, realizar travessias com o imigrante ilegal5. Já no tráfico humano, além de haver a ação facilitadora da entrada da pessoa ilegalmente no país, existe ainda o interesse em explorar e adquirir benefícios financeiros a partir do trabalho do imigrante irregular.

Quatro fatores contribuem para o entendimento das principais diferenças entre o fenômeno da atuação do smuggler e do traficante de pessoas:

"(1) primeiro, as pessoas que recorrem ao smuggling fazem-no sempre voluntariamente, no caso do tráfico pode haver engano, coacção ou mesmo rapto; (2) as pessoas que foram traficadas tendem a ser exploradas por um longo período de tempo; (3) nos casos de tráfico cria-se uma interdependência entre traficados e traficantes, nomeadamente porque as pessoas que usam os serviços do smuggling pagam à partida, e quem é traficado paga no início apenas uma percentagem, contraindo uma dívida que será paga à chegada, continuando assim dependente dos traficantes no país de destino; e (4) os traficados são passíveis de virem a ser cooptados para outras actividades criminosas, designadamente recrutar novas vítimas"6.

Isto posto, é indubitável que o tráfico de pessoas extrapola a noção de migração ilegal, ou simplesmente, de discussão em torno da fragilidade ou controle das fronteiras entre os países, pois ela não somente inclui tais questões como necessita de reflexões específicas, pois trata-se, sobretudo, de uma violação dos direitos humanos. Nesse sentido, estudos que buscam entender as dinâmicas, os principais fluxos e destinos das redes de prostituição e tráfico de mulheres com o intuito de exploração sexual comercial são de suma importância para municiar o planejamento e a constituição de ações integradas de combate a esse segmento ilícito. 

Assim sendo, nossas pesquisas realizadas ao longo da BR-174 (Brasil) e na Troncal 10 (Venezuela) ocorreram durante distintos dias da semana (por diversas vezes desde fevereiro de 2006 até março de 2008), nos mais diferentes horários, visando perceber o período de maior incidência da ação ilícita, como também a regularidade das práticas de exploração sexual comercial.  Atuamos concernente a coleta de dados através da imersão, ou seja, freqüentando os diversos locais identificados como possíveis fixos da atuação estudada. É indubitável que esta foi a parte mais delicada e, em alguns momentos, perigosa do trabalho, mas de fundamental importância, pois consistiu na visita informal dos bares e clubes noturnos da cidade, onde freqüentamos por várias vezes os mesmos ambientes para ganharmos a confiança das pessoas do entorno para, posteriormente, pinçar - a partir de conversas - informações sobre a rede, os locais e os agentes envolvidos. 

Cumpre mencionar que em momento algum nos identificamos como pesquisador e, nem tampouco, comentamos sobre a realização do estudo, pois por conta da natureza informal da atividade estudada certamente as pessoas abordadas não passariam as informações necessárias, comprometendo os resultados.

Após as visitas registrávamos os resultados obtidos, descrevendo as conversas e as reflexões pessoais em um caderno de campo para, posteriormente, a partir de diversas visitas e conversas, cruzarmos as informações, as impressões e observações, tentando assim estabelecer uma análise isenta e consistente da referida rede ilícita.

Cumpre destacar que realizamos, também, visitas em delegacias, conversamos com taxistas, proprietários de bares e gerentes dos hotéis próximos às casas noturnas, no intuito de conferir a veracidade das fontes coletadas, conseguir novas informações e, até mesmo, extrair dúvidas que surgiam no decorrer das pesquisas de campo.

Estabelecidas sucintas considerações, passaremos para a discussão acerca das redes de prostituição e tráfico de mulheres, considerando a atuação da referida atividade, as territorialidades e os atores ao longo da BR-174 e da Troncal 10.

O percurso pela BR-174 até a fronteira Brasil-Venezuela

A BR-174, rodovia interestadual que conecta a capital do estado do Amazonas (Manaus) com a fronteira entre o Brasil e a Venezuela, é um dos principais eixos de articulação da região norte brasileira, além de desempenhar importante papel de integração na América Latina, pois atua como porta de entrada, via terrestre, do Brasil para os países do norte do continente, sobretudo da região caribenha.  

Durante o deslocamento Manaus-Venezuela, que dista cerca de 1.020 quilômetros pela BR-174 e chega a durar mais de 14 horas de travessia, é possível identificar quatro cidades no cerne do estado de Roraima que assumem função de parada temporária para fins de exploração sexual comercial, a saber: Rorainópolis, Caracaraí, Boa Vista e Pacaraima (figura 1).

Figura 1
Principais pontos da rota do tráfico de mulheres na fronteira Brasil-Venezuela

Fonte: Rafael da Silva Oliveira

Nas quatro cidades supramencionadas, foram identificados estabelecimentos com atuação da prostituição fechada com mulheres que saíram de Manaus (procedentes de diversas cidades do norte do Brasil) em direção à Santa Elena de Uairén (Venezuela). A fama da frágil fronteira, entre os dois países, aliada ao sonho de galgar melhores oportunidades financeiras nas cidades garimpeiras e turísticas da Venezuela, acaba sendo um significativo fator de atração de jovens que são aliciadas pela rede de tráfico de mulheres para fins de exploração sexual comercial.

A cidade de Rorainópolis, sede do município de mesmo nome, possui 9.790 habitantes7, sendo este caracterizado, de acordo com os resultados obtidos, como um centro de passagem da rota internacional do tráfico de mulheres para fins sexuais comerciais, pois geralmente é o primeiro destino de parada, para algumas das mulheres, antes de migrarem para a fronteira – principal objetivo.

A cidade em tela teve sua gênese atrelada a abertura da rodovia interestadual, onde diversos projetos de colonização agrícola, comandados pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), estabeleceram zonas de ocupação pioneira às margens da BR-174.  A principal área de ocupação, conhecida inicialmente como Vila do INCRA, posteriormente, passou por um processo de desenvolvimento e incremento urbano, onde se constituiu na cidade do município de Rorainópolis - emancipado em 19958.

Alguns fatores locacionais favorecem para hodiernamente a cidade de Rorainópolis ser um dos principais nós da rede do tráfico de mulheres que tentam cruzar a fronteira do país com a Venezuela: a) a posição geográfica do núcleo urbano - cortado pela BR-174 -, pois sua disposição contribuiu para a abertura de bares e casas noturnas ao longo da rodovia, visando o atendimento do intenso fluxo de motoristas que cruzam a rodovia; b) a rodovia passa por dentro da Reserva Indígena Waimiri-Atroari - desde a sua abertura na década de 1970 existe um acordo entre a Fundação Nacional de Amparo aos Índios (FUNAI) e o Governo Federal Brasileiro, em respeito à autonomia das áreas indígenas, onde a referida reserva é fechada das 18:00 às 06:00, impedindo assim o tráfego de veículos pela rodovia. Vale ressaltar que Rorainópolis é a última cidade, no sentido Boa Vista-Manaus, antes da reserva indígena, cuja interrupção do fluxo na BR-174 ocasiona grande concentração de pessoas que pernoitam nos hotéis da cidade durante o deslocamento para Manaus e; c) a cidade de Rorainópolis está situada no meio do cansativo percurso entre Manaus-Venezuela (a estrada encontra-se, em grande parte de seu trajeto, com sérios problemas de manutenção comprometendo o tráfego dos veículos), sendo geralmente a opção de parada para descansar e passar à noite. 

A rotatividade de pessoas que se instalam na cidade para descansar durante a viagem, gerando um grande movimento durante o período noturno,  se torna um grande atrativo para a instalação de casas noturnas destinadas à exploração sexual comercial e, também do trottoir. Identificamos, durante diversas pesquisas de campo, duas áreas onde se configuram a prostituição de rua: uma, no perímetro urbano da BR-174 e, a outra, nas proximidades do Terminal Rodoviário. No tocante à prostituição fechada em Rorainópolis, destacamos duas casas noturnas, onde foi constatada presença de garotas procedentes de outros estados da região norte que alegavam estar passando uma pequena temporada para depois seguir viagem rumo a fronteira. Cumpre ressaltar que, além dos dois territórios de entretenimento identificados, diversos hotéis no núcleo urbano apresentavam grupos de garotas que estavam pernoitando na cidade para seguir viagem.

Caracaraí  apresenta situação preocupante em relação às demais cidades (Rorainópolis, Boa Vista e Pacaraima), pois além de servir como ponto de parada temporária e captação de garotas para o circuito internacional da prostituição, identificamos crianças e adolescentes sendo exploradas sexualmente em diversos bares e casas de entretenimento da cidade9.

A atual situação da cidade supramencionada e sua vulnerabilidade para a atuação das redes de prostituição e tráfico de mulheres estão atreladas as transformações históricas ocorridas na localidade, pois Caracaraí possui relação muito peculiar com a BR-174, cuja abertura do eixo terrestre desarticulou sobremaneira sua economia (que era altamente atrelada ao rio Branco). Assim sendo, apresentaremos, sucintamente, alguns apontamentos históricos que contribuíram nas transformações espaciais de Caracaraí.

Durante décadas a cidade em tela assumiu importante papel na estrutura econômica e de fluxos no contexto regional no extremo norte do país, em especial na articulação dos fluxos de mercadorias que se deslocavam de Manaus (capital do estado do Amazonas) para Boa Vista (capital do estado de Roraima).

O porto às margens do rio Branco que estimulou as primeiras ocupações em Caracaraí, desenvolveu importante papel no escoamento e fluxo de pessoas, cujo mesmo foi instalado após as Corredeiras do Bem Querer que, no período do ano em que se apresentam escassas chuvas, impossibilita o tráfego das embarcações rumo à cidade de Boa Vista.  Cumpre mencionar que as Corredeiras do Bem Querer representam um marco significativo ao longo do rio Branco, pois após vencer o referido obstáculo, no sentido Manaus, inicia o trecho chamado baixo rio Branco.

Isto posto, desde o início da sua ocupação no século XIX, a cidade de Boa Vista esteve atrelada a importante função desempenhada pelo porto de Caracaraí, sendo este o principal estímulo para ocasionar a criação do município de mesmo nome em 1955.

Tais interações cidade-rio perderam parte de seu fôlego após a abertura da BR-174, pois a cidade de Boa Vista, passou a se valer do transporte rodoviário que era mais rápido e não dependia dos períodos de chuva ou seca para desenvolver suas funções.  Assim sendo, Caracaraí passa a perder vertiginosamente sua importância no cenário econômico regional, perdendo seu status de eixo de transporte de mercadorias e cargas, no trecho Manaus-Boa Vista, tornando-se uma área de passagem (sendo literalmente “cortado” pela rodovia interestadual).

Assim sendo, a BR-174 passa a imprimir uma nova lógica de ordenamento das práticas sócio-espaciais, não somente atrelada ao fluxo de pessoas e mercadorias, mas também na configuração territorial e práticas cotidianas de todo o seu entorno. Dentre as diversas alterações, podemos destacar que municípios foram criados às margens da rodovia recém-construída (como ocorreu com Rorainópolis, já registrado anteriormente), comércios surgiram, economias decaíram, significados e símbolos foram alterados, entre outros. É fora de dúvida que o declínio do transporte fluvial, substituído pelo rodoviário, afetou a função originária de Caracaraí (Barros, 1995), cuja decadência do porto comprometeu o desenvolvimento local, pois toda economia estava direta ou indiretamente associada à referida atividade que por conta das alterações na dinâmica sócio-econômica-espacial ocasionou grande desemprego. A antiga cidade portuária, pólo de atração de levas de migrantes já não é mais tão procurada, pelo contrário, está ocorrendo um deslocamento de pessoas que viviam em Caracaraí rumo às cidades do entorno, visando assim estabelecer negócio, ou simplesmente, melhorar as condições de vida. Hodiernamente Caracaraí (que possui 9.744 habitantes em sua sede) divide o título de segunda maior cidade de Roraima com Rorainópolis, pois as duas apresentam quase o mesmo quantitativo populacional na área urbana10.

Outro fator relevante diz respeito à dinâmica econômica, pois Caracaraí que perdeu parte do vínculo e da interação cidade-rio após a construção da BR-174, apostou no setor comercial e de serviços, acreditando que exerceria influência sobre os municípios recém-criados. Entretanto, atualmente Rorainópolis apresenta melhores estruturas comerciais, contribuindo assim para o encerramento de grande parte das atividades comerciais de diversos estabelecimentos em Caracaraí.  

A atual configuração geográfica da cidade de Caracaraí, situada exatamente entre o rio Branco e a rodovia BR-174, contribuiu para que a cidade perdesse importância no contexto regional tornando-se uma área de passagem por conta do deslocamento do eixo econômico do rio Branco para a BR-174.  Isto posto, podemos destacar três características que marcam a atual cidade de Caracaraí: a) uma cidade que perdeu sua relação sócio-econômica com o rio Branco, ficando seus vínculos apenas enraizados no imaginário da população ao contarem histórias do passado recente da intensa atividade portuária de Caracaraí; b) comércio decadente, cujo centro apresenta um número surpreendente de estabelecimentos fechados por conta da fraca influência exercida em seu entorno e; c) predomínio do funcionalismo público, situação esta muito comum na realidade do estado de Roraima como um todo.

Em meio às diversas alterações sofridas e o atual declínio econômico, a paisagem da cidade desperta atenção até mesmo do transeunte menos atento devido à existência do expressivo número de hotéis e quartos para realização de pernoite com alta rotatividade e, sobretudo da grande quantidade de bares nos mais variados pontos da cidade e ao longo da BR-174, sendo geralmente freqüentado por pessoas das mais diversas faixas de idade - inclusive crianças e adolescentes. Ao desenvolvermos nossas pesquisas de campo identificamos que muitos desses espaços atuam no cerne da rede de exploração sexual de mulheres, crianças e adolescentes para fins de exploração sexual que se estrutura ao longo de toda BR-174.  

Assim como salientamos anteriormente, Caracaraí encontra-se como uma das principais áreas de passagem pela BR-174, cuja sua localização favorece ao intenso fluxo de carros e caminhões que efetuam paradas nos bares ao longo da rodovia. Durante as pesquisas de campo identificamos que Caracaraí também é um dos locais de maior preferência de parada durante o deslocamento Manaus-Venezuela. Encontramos diversos bares, entre eles os situados nas proximidades do único posto de gasolina na entrada da cidade, cujos proprietários (geralmente mulheres) iniciam as negociações oferecendo as garotas, que ficam dispostas dentro dos bares e misturadas com os demais clientes (entre elas menores de idade), para prestarem serviços sexuais para os caminhoneiros e turistas que realizam paradas pela cidade (durante as pesquisas de campo a iniciativa, em quase todos os casos, partiu do dono do estabelecimento e, em poucas situações, de pessoas sentadas aparentando, também, estarem na condição de cliente do estabelecimento).

A naturalidade dos agenciadores ao tratarem do assunto é algo que desperta muita atenção, apresentando assim um alto grau de confiança nas pessoas do entorno, parecendo que os bares são normalmente freqüentados pelas mesmas pessoas, salvo o caso dos "turistas".

Os bares situados no cerne da cidade e os dois localizados nas margens da BR-174 apresentaram tendência e casos explícitos de exploração sexual comercial de mulheres procedentes de outros estados da região norte do Brasil, como, também, de crianças e adolescentes residentes nos bairros mais carentes da própria cidade.

A terceira cidade identificada como estratégica para a atuação da rede do tráfico de mulheres, é Boa Vista - fundada às margens do rio Branco no século XIX, até o início do XX era considerada a única cidade existente em toda região do rio Branco, atual estado de Roraima11. Principal centro do estado, Boa Vista concentra quase toda a população do estado em sua cidade, pois possui 244.971 habitantes, enquanto a população total do estado contabiliza 395.725 habitantes12 -, além de polarizar as funções e os fluxos em Roraima.

Atualmente Boa Vista é evidenciada com um importante nó de articulação das redes de prostituição e agenciamento para fins de exploração sexual comercial, pois existem duas importantes rotas de atuação do tráfico internacional, a saber: uma caracterizada pelo deslocamento por via terrestre para Venezuela e, a outra, através do transporte aéreo, cujo destino inicial é a República Cooperativista da Guiana e o Suriname para, posteriormente, tentar atingir a Europa.

Na capital, identificamos, a partir de levantamento de campo, forte presença da rede de entretenimento – caracterizada por boates, casas noturnas, prostíbulos e motéis – em diversos bairros da cidade, mas prioritariamente nos que apresentam maior vulnerabilidade sócio-espacial, cuja precariedade infraestrutural, altos índices de criminalidade e desemprego são característicos.

Concernente às casas que oferecem serviços de prostituição situados na cidade de Boa Vista, podemos destacar os situados na zona oeste por apresentar expressiva concentração de fixos com esta funcionalidade. Cumpre mencionar que a cidade boavistense vem crescendo desordenadamente rumo à zona oeste desde o início da década de 1980 com o chamado boom do garimpo. Sobre o surto de crescimento destacamos:

"áreas na periferia, com lotes doados gratuitamente pelo poder público, foram freneticamente ocupadas por habitações no período recente do garimpo (1987-90), como o bairro de Asa Branca, enquanto ao mesmo tempo aconteciam invasões no bairro do Beiral (sic), às margens do rio Branco, ao sul e contíguo à ‘velha cidade’ (ao sul do centro antigo, i. é, do centro ribeirinho). Antes que muitas casas estivessem prontas, a desarticulação do garimpo deixou centenas de habitações semi-acabadas, e fechadas, posto que a razão para a permanência destes moradores em Boa Vista não mais existia"13.

Entre os anos de 1987 e 1990, foi registrado, segundo os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística de Roraima (IBGE/RR), o maior fluxo migratório em direção à Boa Vista estimulado, sobretudo, pela busca do ouro e do diamante nos garimpos do estado - o contingente populacional no referido período quase dobrou: de 72.758 em 1987 para 115.247 em 1990.

Tal crescimento na cidade de Boa Vista, ocasionado pelo desejo de encontrar ouro e diamante nos garimpos do estado, favoreceu para o surgimento, em poucos anos, de milhares de casas auto-construídas, onde bairros surgiram da noite para o dia na porção oeste não havendo assim planejamento para implantação de amenidades e equipamentos urbanísticos que, na década em evidência, se encontravam somente no centro e nos bairros imediatos, ocasionando a (re)produção da injustiça sócio-espacial e o surgimento de focos de vulnerabilidades (Barros, 1995 e Oliveira, 2007).

A maioria da população que migrou para morar no estado de Roraima foi estimulada pelas minas de ouro e diamantes, cujo garimpo movimentava a economia do estado. Com a extinção da atividade garimpeira, na transição do final da década de 1990 e início de 2000, a base econômica do estado se volta, em sua quase totalidade, para o setor terciário que acaba sendo animado pela “economia do contra-cheque”, por conta da predominância do funcionalismo público e a falta de outros meios produtivos. Essa situação vai contribuir para o aumento do desemprego, da criminalidade, ampliação do número de prostíbulos, dentre outros.

A zona oeste, área onde historicamente o crescimento ocorreu de maneira acelerada e sem um prévio planejamento urbano, é a área onde se concentra o maior número de casas de entretenimento com serviços sexuais da cidade boavistense, sendo também onde predomina o desemprego, a violência doméstica e a criminalidade.

Ao pesquisarmos sobre a procedência das mulheres exploradas sexualmente que vivem nas “casas de entretenimento” para compreendermos melhor a rede do tráfico de mulheres pela BR-174 e suas práticas cotidianas, identificamos um significativo número de garotas cuja parada anterior tinha sido a cidade de Manaus - sendo estas procedentes das mais diversas localidades da região norte do Brasil - e que afirmavam estar só de passagem por Boa Vista, ou seja, que em poucas semanas (ou meses) iriam para Venezuela. Tal padrão de deslocamento das mulheres envolvidas na rede de prostituição no estado de Roraima aponta para o esquema do tráfico de mulheres onde, desde o início da saída de Manaus, as mesmas são informadas sobre as paradas temporárias em bares e casas noturnas durante todo o percurso até chegar à Venezuela.

Após a capital Boa Vista o próximo destino é a cidade fronteiriça de Pacaraima, situada no limite dos dois países, tendo Santa Elena de Uairén como porta de entrada para Venezuela, onde, apesar da continuidade da rodovia, termina a BR-174 e inicia a Troncal 10 no território Venezuelano.  

La Línea: Pacaraima (Brasil) - Santa Elena de Uairén (Venezuela)

Pacaraima é marcada por intensos fluxos de entrada e saída de pessoas que se deslocam para a cidade de Santa Elena de Uairén (Venezuela) para realizarem compras por preços mais baixos, devendo assim grande parte dos empregos ao significativo comércio bilateral. Cumpre mencionar que saem diariamente ônibus e táxis de Boa Vista para Pacaraima (cerca de 215 km de distância entre as duas cidades – o percurso leva aproximadamente três horas). Ao chegar em Pacaraima, em menos de 10 minutos se alcança o centro de Santa Elena de Uairén (a 15 km de Pacaraima). A proximidade física e os preços baixos no centro comercial da cidade venezuelana atraem a população e maximizam as interações.

O grande atrativo na fronteira Brasil-Venezuela que contribui para aumentar a dinâmica das interações sociais é o conjunto de atividades ilícitas em seu núcleo urbano. Tais práticas contribuem para potencializar o grau de vulnerabilidade sócio-espacial da localidade, tornando, assim, a área mais propícia para a atividade do tráfico de pessoas associadas à exploração sexual.

No tocante às atuações do mercado ilícito em Pacaraima, destacamos dois facilmente identificados: o tráfico de combustível e o câmbio ilegal. O combustível se configura como uma fonte de renda para muitas famílias de Roraima, pela falta de postos de trabalho e pelo baixo preço deste produto no país vizinho, o que, apesar de caracterizar trabalho ilícito, não coíbe o grande aumento desta economia observada na cidade fronteiriça.

O tráfico de combustível é, certamente, uma das atividades informais – juntamente com a exploração sexual – que mais movimenta os negócios da cidade. Caminhões e carros enfileirados em busca de combustível mais barato, casas que atuam clandestinamente na venda de gasolina e a forte presença de mulheres, que chegam e saem de Pacaraima com os caminhoneiros e carros que abastecem na fronteira, constituem o cenário da fronteira Brasil-Venezuela (também chamada pelos brasileiros de BV-8 e pelos Venezuelanos de La Línea).

Apesar das fiscalizações, tanto do lado Venezuelano quanto no lado do Brasil, a atividade informal ocorre diariamente cruzando a fronteira, chegando – no lado brasileiro – a serem vendidos litros de gasolina durante todo o dia a poucos metros de distância da barreira policial. A venda de combustível é prática conhecida entre os moradores da fronteira que chegam a comercializar o produto clandestinamente.

Concernente ao câmbio ilegal, presente nos município de Pacaraima e Santa Elena de Uairén, esta é conseqüência do grande fluxo de pessoas que atravessam a fronteira, tanto para o turismo quanto para realizarem compras por preços mais baixos no comércio venezuelano. No lado venezuelano, a prática é mais intensa, sendo facilmente percebida ao transitar pelo comércio, onde é quase impossível não ser abordado por um “cambista”.

As casas noturnas e prostíbulos que apresentam shows de strip-tease e outros tipos de “entretenimento” são comuns em Pacaraima e Santa Elena de Uairén que atendem, sobretudo, turistas e caminhoneiros. Em Santa Elena de Uairén, na Venezuela, esse segmento da prostituição fechada é maior do que em Pacaraima, tendo na sua maioria mulheres brasileiras.

Grande fluxo de pessoas para comprar em Santa Elena de Uairén por preços mais cômodos, turistas dos mais diferentes pontos do norte do Brasil, caminhoneiros e a existência de diversas atividades ilícitas animam e contribuem para o intenso deslocamento de brasileiros e venezuelanos que cruzam diariamente a fronteira diversas vezes por dia. A ausência de um ônibus regular no percurso favorece a atuação dos taxistas que, através de cooperativas, prestam serviços durante todo o período em que a fronteira está aberta (das 06:00 às 22:00) chegando a realizar dezenas de travessias em um único dia. A intensidade dos fluxos favorece para que os motoristas dos táxis adquiram laços sociais com os fiscais da fronteira, facilitando no convencimento da entrada de pessoas ilegalmente na Venezuela através da rodovia Troncal 10.

A Troncal 10, importante eixo de articulação entre o sul da Venezuela com a região portuária caribenha, é a principal via de entrada e saída de produtos ilícitos, a saber: drogas, produtos importados, diamantes e combustível. A intensidade da mobilidade das redes em tela são geralmente associadas a prostituição e tráfico de mulheres, onde as mesmas, geralmente, durante a entrada clandestina são obrigadas a favorecer ou contribuir para entrada e saída dos produtos ilícitos.

Troncal 10: a extensão da rota da prostituição e do tráfico de mulheres brasileiras para Venezuela

É muito comum, ao conversarmos com taxistas brasileiros e venezuelanos que trabalham em Santa Elena de Uairén, escutar relatos sobre a travessia de brasileiras para as áreas de garimpo e turísticas do território Venezuelano. Vale ressaltar que a entrada é realizada, em sua maioria, sem passaporte, onde os taxistas - se valendo da "amizade e convívio" com o exército Venezuelano estruturam uma rede para transladarem com as garotas brasileiras até as zonas garimpeiras. Apesar da intensa fiscalização na saída e entrada de pessoas ao longo de toda Troncal 10 existem diversos pontos de fiscalização, conhecidos como Alcabalas onde o exército venezuelano realiza o controle e vistoria sobre os veículos e pessoas.  Entretanto, passar pelo intenso controle é encarado pelos atravessadores como uma ação natural do dia-a-dia, pois misturam os garimpeiros portando valores ilegais e/ou garotas de programa sem passaporte com passageiros venezuelanos e, até mesmo, turistas em condições legais - colocando assim a vida de pessoas desavisadas em risco durante o deslocamento. Tal situação é tão corriqueira que durante as pesquisas de campo, realizadas entre julho de 2006 e março de 2008, passamos quatro vezes pela situação supramencionada. Só é possível perceber que o taxista está transportando garotas brasileiras ilegalmente minutos antes de atravessarmos a primeira Alcabala, momento em que ocorre o primeiro telefonema para efetuar o esquema da travessia ilegal.

Sobre a realização da travessia com garotas sem documentação legal para entrar na Venezuela, podemos destacar que os principais procedimentos são: a) antes de chegar em cada Alcabala o taxista que transporta as garotas informa para outro taxista sobre sua localização e o tempo estimado para cruzar o posto de fiscalização; b) o outro taxista, após receber a ligação, se dirige para a Alcabala, antes do veículo que transporta as mulheres traficadas, para pagar a passagem do táxi com as garotas sem passaporte; c) os guardas que recebem o pagamento já são avisados sobre o carro que irá atravessar com as garotas (em muitos casos portando drogas, ouro e/ou diamante) para que não ocorra nenhum problema; d) ao chegar o carro com as mulheres traficadas, os guardas fazem uma "leve" inspeção na bagagem e não solicitam os passaportes das mulheres e, nem tampouco, revista as bagagens, conforme acordado anteriormente, deixando assim o carro atravessar a fiscalização normalmente.

Vale ressaltar que o referido procedimento ocorre, ao longo da rodovia Troncal 10, diversas vezes (em média existe uma Alcabala em cada limite municipal, chegando a custar, em cada Posto de fiscalização, R$100,00 por garota  - geralmente são atravessadas quatro por carro - o pagamento é realizado em Real (R$) por conta da valorização da referida moeda frente ao Bolívar Fuerte (Bs.F.). O mesmo procedimento ocorre para efetuar travessia de garimpeiros brasileiros que se deslocam para o Brasil com grandes somas de dinheiro e, normalmente, expressivas quantidades de ouro.

Os táxis cooperativados existem por toda a Venezuela, sendo comum à utilização desses serviços para o deslocamento entre as cidades.  O baixo preço do combustível, somado ao fato dos ônibus que cruzam cidades separadas por longas distâncias só funcionarem durante a noite, favorecem a atuação dos táxis que cobram tarifas razoáveis para transportar passageiros por longas distâncias.

Neste sentido, convém ressaltar que o tráfico de seres humanos para atuarem na prostituição é muitas vezes oportunizado pela fragilidade da fiscalização, tanto na Venezuela quanto no Brasil, onde as polícias federal e rodoviária federal ao longo da BR-174 estão tão somente preocupadas em coibir os casos de tráfico de drogas, de armas e de combustível, pouco observando a presença de mulheres que migram para atravessar a fronteira ilegalmente, ao passo que na Venezuela, assim como no Brasil, a corrupção se faz presente nas instituições que exercem funções de controle e fiscalização ao longo das BR-174 e Troncal 10, contribuindo assim para manter a invisibilidade do tráfico de mulheres com fins de exploração sexual comercial. 

Vale ressaltar que os smugglers (geralmente no caso da fronteira Brasil-Venezuela são taxistas) são contratados pelos traficantes que levam as garotas direto para as casas de entretenimento ou bares situados em zonas de garimpo previamente combinado. A dívida e dependência financeira das mulheres que são traficadas normalmente iniciam nesse momento, onde seduzidas pelo discurso do enriquecimento rápido aceitam entrar clandestinamente para trabalharem nas casas noturnas e bares como garotas de programa.    

Santa Elena de Uairén é apenas a primeira cidade dentre tantas outras situadas ao longo da rodovia Troncal 10 que possuem diversos centros marcados pela existência de prostíbulos, caracterizadas como localidades onde ocorre a atuação da rede de tráfico de mulheres – entre elas destacamos Km 88, El Callao, El Dorado, Tumeremo, Puerto Ordaz, Puerto La Cruz e Margarita (Figura 01). Isto posto, percebemos que existem dois tipos de rotas específicas no cerne do tráfico de mulheres brasileiras que entram na Venezuela, tendo assim lógica e dinâmica distinta, a saber: uma dedicada ao atendimento das zonas garimpeiras e, a outro, voltada para o porno-turismo – o destino das mulheres para uma dessas rotas é definido principalmente a partir da idade e atributos físicos (quanto mais nova for a mulher traficada maior será a possibilidade de ir para os grandes centros turísticos). Localizamos significativa presença de brasileiras exploradas sexualmente nas redes de entretenimento existentes no núcleo urbano das cidades supramencionadas.

Prostituição nas áreas de garimpo venezuelanas: o tráfico ilegal de mulheres brasileiras

O interesse pelas cidades venezuelanas com vocação garimpeira reafirma a forte tendência na região norte do Brasil como rota para a rede de agenciamento para projetos de desenvolvimento e infra-estrutura. “O mercado da prostituição desenvolveu-se acompanhando a mesma lógica, isto é, seguindo os fluxos migratórios, aumentando e diminuindo de acordo com o ritmo da movimentação das obras e da garimpagem"14.

Guiana, Suriname e, principalmente, Venezuela têm sido consideradas áreas de grande atração de brasileiras, assim como parte dos destinos venezuelanos, por conta da atividade do garimpo nesses países ser liberado, ao contrário do Brasil, que a partir do ano 2000 proibiu a referida atividade. A fama das extensas áreas de garimpo de ouro e diamante nesses países alimenta o afã do enriquecimento rápido e atraem diversos garimpeiros brasileiros provenientes das antigas áreas de garimpo do território nacional. A migração dos garimpeiros propicia o estímulo do deslocamento, junto com eles, de todo aparato existente nas minas, inclusive para a criação de bares e casas destinadas a atividade da prostituição, em sua maioria de brasileiras.    

A prostituição que se instala nas áreas de garimpo é voltada, quase que exclusivamente, para atender os garimpeiros, sendo assim muito perigoso freqüentar os bares onde estão estruturadas as atividades da prostituição desse segmento. Assim sendo, a prostituição nas cidades de garimpo apresenta maior risco para os "de fora", pois parece que já existe um público (clientela) específico, onde a presença de turistas à procura desse tipo de atividade é encarada pelos garimpeiros e proprietários dos estabelecimentos dedicados à prostituição com muita estranheza e desconfiança.

Em El Dorado, El Callao e Tumeremo além da existência de bares específicos para atender a demanda garimpeira, a prostituição de mulheres ocorre, sobretudo, nas "Tascas" (estabelecimentos que agregam bar, restaurante e pista de dança que executam músicas regionais como salsa e calypso) e nas ruas - sendo comum, ao caminhar durante a noite, encontrar mulheres brasileiras oferecendo seus serviços nas avenidas principais.

Já no Km 88 despertou muita atenção, durante a pesquisa ao local, um bar chamado Ciudad Dorada (fazendo alusão ao local que é um importante centro de extração de ouro da Venezuela), onde identificamos garotas provenientes dos mais variados países, tendo em sua maioria brasileiras, sendo que as mesmas apresentavam melhores atributos físicos quando comparado com as mulheres que atuavam nos bares das cidades garimpeiras vizinhas (El Callao, Tumeremo, El Dorado). O que desperta curiosidade é que o Km 88 é a localidade que possui piores condições infra-estruturais, tanto urbanas quanto de oferta de bens e serviços.  Ao entrevistarmos um garimpeiro brasileiro, este afirmou que o bar Ciudad Dorada é conhecido entre os garimpeiros que trabalham nas cidades do entorno que desenvolvem a mesma atividade pela capacidade de trazer belas mulheres, geralmente com a maioridade recém completada, para trabalharem na prostituição do referido bar.  

Puerto Ordaz, Puerto La Cruz e Margarita: o porno-turismo e o sonho de ir para Europa

Em Puerto Ordaz, Puerto La Cruz e Margarita, ao contrário das cidades dedicadas ao garimpo, não encontramos brasileiras trabalhando nas ruas e/ou bares, somente em night clubs. Além da diferença no que tange o ambiente de trabalho, as brasileiras que se deslocam para as áreas turísticas apresentam melhores atributos físicos quando comparadas com as garotas que se destinam aos garimpos.  Vale ressaltar que, segundo as pesquisas e entrevistas realizadas, identificamos que as mulheres destinadas a exercem suas funções nas cidades dedicadas ao atendimento do porno-turismo não realizam nenhuma parada nas áreas de garimpo. No que tange as que entraram na Venezuela pela BR-174, identificamos que a última parada realizada pelas mulheres para trabalhar na prostituição antes do atual destino na Venezuela tinha sido a cidade de Boa Vista (Brasil).

Encontramos garotas de Manaus, Boa Vista, Rondônia e Maranhão - quase todas  alegavam estar de passagem, pois iriam tentar entrar, via Venezuela, para Europa (entre os destinos mais almejados estão Espanha e Holanda). Entretanto, diversas já trabalham ilegalmente na Venezuela há mais de dois anos, mudando segundo determinação dos agenciadores para outras casas de entretenimento em cidades vizinhas.  A rotatividade nas áreas onde o turismo é mais intenso ocorre com maior freqüência, pois as garotas chegam e partem há cada três/seis semanas para diferentes casas noturnas entre as cidades do entorno.

No que diz respeito aos night clubs, apesar das grandes diferenças em termos de ostentação e valores do programa com as garotas (as casas variam desde o porno-turismo de luxo até os estabelecimentos voltados para o atendimento de clientes com médio poder aquisitivo), todas as boates apresentaram, de certa forma, a mesma estrutura. Em todos os estabelecimentos visitados existiam quartos discretos onde se dirigiam os clientes junto com as garotas, após acordar sobre os serviços sexuais e realizar o pagamento.  No principal ambiente do night club, diversas mesas e cadeiras reservadas para facilitar o estabelecimento dos acordos, pista de dança, passarela e palco para realização de shows de strip-tease a cada uma hora - a execução de música eletrônica mesclada com salsa caribenha contribui para potencializar o clima de sedução nas casas noturnas voltadas para o oferecimento de serviços sexuais na Venezuela.

Independente das imensas diferenças existentes nos valores cobrados pelos estabelecimentos, para iniciar qualquer tipo conversa com as garotas de programa é necessário pagar uma bebida específica cobrada pela casa - o "trago".  O "trago" é a bebida mais cara da boate. As garotas de programa são proibidas pelo gerente do estabelecimento de tomar outra bebida, além de serem obrigadas a convencer os clientes a pagarem para elas uma quantidade mínima de "tragos". Vale ressaltar que, em diversos casos, os clientes não realizam os serviços sexuais tendo apenas o interesse de se divertir com amigos e relaxar do stress diário, onde as garotas acabam faturando com o percentual do "trago" que elas recebem dos clientes durante a noite.

Durante as visitas nos clubes noturnos o que mais despertou nossa atenção foi que em dias distintos notamos que as roupas usadas durante o trabalho eram passadas de garota para garota.  Perguntamos sobre a curiosa situação onde uma afirmou que as roupas são do estabelecimento e que todas residiam juntas nos próprios quartos onde ocorrem os programas.

A grande presença das brasileiras que atuam na Venezuela pode ser identificada pelo turista até mesmo sem realizar, ao menos, uma visita nos night clubs através dos anúncios dos classificados nos jornais locais. Nos jornais que apresentam notícias sobre o Estado Bolívar como, por exemplo, o Diario Independiente Nueva Prensa de Guayana o termo Chicas brasileñas aparece com freqüência, sendo as colombianas as segundas entre as garotas estrangeiras no que concerne o número de anúncios nos jornais da região estudada.

Palavras finais

O fenômeno do tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, no caso da fronteira Brasil-Venezuela, é fortalecido pelas condições sócio-econômicas das cidades fronteiriças e propiciado pela falta de fiscalização, além dos inúmeros atos ilícitos que acompanham essa relação entre as cidades, a saber: o tráfico de drogas, o contrabando de combustível e produtos importados, o garimpo ilegal de ouro/diamante e o câmbio ilegal.

A intensidade das outras atividades ilícitas na região contribui para fragilização da atuação ostensiva da polícia no enfrentamento a exploração sexual comercial e ao tráfico de mulheres para Venezuela pela rodovia, pois a preocupação em conter os tráficos de drogas, de combustível, de produtos importados e de pedras preciosas faz com que as polícias rodoviária e federal não percebam o intenso fluxo de mulheres traficadas para os garimpos e áreas turísticas venezuelanas que, geralmente, retroalimentam as outras práticas ilícitas. São inúmeros os relatos de mulheres que são exploradas sexualmente e obrigadas a atravessarem portando drogas e diamantes, pois os próprios agenciadores e donos das “casas de entretenimento” obrigam as mulheres a atuarem na captação de outras garotas e, também, na distribuição e travessia de drogas, equipamentos importados e diamantes ao longo das rodovias em diversos pontos de interesse.

A BR-174 além de ser uma rota de desenvolvimento para o estado de Roraima, com suas possibilidades de intercâmbio com Manaus e o restante do Brasil e com o Caribe e Europa via Venezuela, também é reconhecida como facilitadora das atividades ilícitas, entre elas o tráfico de drogas, de combustível e, principalmente, de mulheres para fins de exploração sexual, referendado pelas pesquisas realizadas na região corroborando o relatório da PESTRAF (2002) como rota internacional de tráfico.

O presente artigo apresenta apenas uma análise das redes estruturadas em um dos eixos de entrada e saída de mulheres traficadas pelo estado de Roraima, pois o estado faz fronteira, também, com a República Cooperativista da Guiana, corredor da saída terrestre pela BR-401 (sendo necessário, para atingir a primeira cidade guianense, após o rápido percurso pela BR, somente uma pequena travessia de barco ou ferry pelo rio Tacutu de, aproximadamente, três minutos).

Assim sendo, esperamos que outras pesquisas, iniciativas e ações afirmativas ocorram para aglutinar esforços no combate ao tráfico de mulheres, crianças e adolescentes que sofrem do referido abuso, contribuindo assim na discussão e compreensão acerca desse preocupante fenômeno mundial e sua ocorrência no estado de Roraima.

Notas

1 - Leal; Leal. 2007.

2 - Entre as principais publicações destacamos: Pimentel; Oliveira. 2007. Siems; Pimentel. 2006. Oliveira. 2006.

3 - Tyldum; Bruovskis. 2005.

4 - Silva et al. 2005, p.155.

5 - Geddes. 2005. Aeronowitz. 2001. McCreight. 2006.

6 - Santos et al. 2007, p.06.

7 - IBGE. 2008.

8 - Oliveira. 2007.

9 - Oliveira. 2006, p.39.

10 - IBGE. 2008.

11 - Silva. 2007.

12 - IBGE. 2008.

13 - Barros. 1995, p.153.

14 - Leal; Leal. 2007, p.70.

 

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Referencia bibliográfica

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