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X Coloquio Internacional de Geocrítica

DIEZ AÑOS DE CAMBIOS EN EL MUNDO, EN LA GEOGRAFÍA Y EN LAS CIENCIAS SOCIALES, 1999-2008

Barcelona, 26 - 30 de mayo de 2008
Universidad de Barcelona

AÇÃO ANTRÓPICA COMO AGENTE TRANSFORMADOR DA ORGANIZAÇÃO ESPACIAL EM BACIAS HIDROGRÁFICAS 

Archimedes Perez Filho
archi@ige.unicamp.br

Cristiano Capellani Quaresma
cristiano.quaresma@ige.unicamp.br

Tânia R. I. Rodrigues
taniar@agr.unicamp.br

Universidade Estadual de Campinas


Ação antrópica como agente transformador da organização espacial em bacias hidrográficas  (Resumo)

Modelos representativos das organizações espaciais devem ser reavaliados frente às ações do sistema antrópico sobre geossistemas, que permitem que processos naturais, inerentes à escala de tempo da natureza, se manifestem nas escalas dos tempos histórico do homem e presente. Tais organizações, tendo a ação antrópica como input e sendo constituídas de alta complexidade, necessitam, para seu entendimento, de arcabouço metodológico embasado na abordagem sistêmica, que as considere enquanto totalidade, e seja capaz de identificar os subsistemas que a constituem, bem como suas inter-relações, os mecanismos de realimentação presentes, e a influência exercida pelo sistema antrópico, enquanto agente transformador da estrutura e funcionamento das mesmas. O presente trabalho avaliou e confirmou a hipótese de que construções de reservatórios de usinas hidrelétricas no Noroeste Paulista/SP-Brasil causam a reativação e aceleração de processos erosivos intensos.

Palavras-chave: bacia hidrográfica, sistemas, usina hidrelétrica, ação antrópica


Anthropic action as transforming agent of hydrographic basins spatial organization (Abstract)

Representative models of spatial organizations must be reevaluated front to the actions of anthropic system under geossystems, which allows that natural processes, inherent to the nature time scale, if it is revealed on scale of human historical time and present time. Such organizations, which it has an anthropic action as input and being constituted for high complexity, and it requires to its comprehension, of an methodological framework based on systemical approach, that consider it while totality, and it can be capable to identify subsystem which constituted it, as weel as their inter-relationships, the present feeding mechanism and influence exerted by anthropic system, while transformer agents of structure and operation of them. This research work has evaluated and confirmed hypothesis which hydroelectric plant reservoirs construction in Noroeste Paulista/SP-Brazil cause reactivation and acceleration of intense erosive processes.

Key words: Hydrographical basin, systems, hydroelectric plant, anthropic action


 Abordagem Sistêmica

O mundo passa atualmente por uma exacerbada, porém válida, preocupação com a escassez futura dos recursos naturais e com a qualidade de vida de sua população.

Práticas exercidas pelo sistema antrópico, calcadas em valores principalmente economicistas, somadas a grande parte dos trabalhos teóricos existentes, que se propuseram a entender geograficamente as organizações espaciais, porém, desprezando componentes chaves das mesmas, permitiram um processo de coisificação da natureza, resultando em amplas e drásticas modificações do meio físico/natural e no estabelecimento de novas organizações espaciais.

 A crescente pressão antrópica sobre o planeta torna necessária a ampliação dos estudos ambientais, os quais possam indicar soluções para inúmeros problemas que atingem o meio ambiente em diversas escalas do tempo e do espaço. 

Segundo Christofoletti (1999), a abordagem sistêmica serve de embasamento para uma das formas mais eficientes de investigação da dinâmica do meio ambiente.  

Hall e Fagen (1956) definem sistema como “o conjunto dos elementos e das relações entre eles e entre os seus atributos”.  

De maneira mais completa, Thornes e Brunsden (1977) definem sistema como sendo “conjunto de objetos ou atributos e das suas relações, que se encontram organizados para executar uma função particular”. Assim, para que algo se constitua como sistema, não lhe basta possuir funcionamento e relacionamento, mas é necessária a existência de um objetivo. Desta forma, pode se definir um sistema como um conjunto de elementos inter-relacionados e organizados para execução de processos com vias a uma dada finalidade, que, no sentido amplo, pode ser considerada como a transformação do input em output (Christofoletti, 1979).   

A definição de sistema proposta por Miller (1965) revela outra característica fundamental dos elementos que o constituem - a sua interdependência. Tal autor define sistema como sendo “conjunto de unidades com relações entre si. A palavra conjunto implica que as unidades possuem propriedades comuns. O estado de cada unidade é controlado, condicionado ou dependente do estado das outras unidades”. 

A visão sistêmica recebeu atenção na Geografia moderna já com os precursores alemães Alexander Von Humbolt (1769/1859) e Carl Ritter (1779/1859), quando a Geografia começou a ser produzida e pensada como ciência nas universidades. Tais autores procuravam técnicas e metodologias que buscassem compreender as conexões entre os fenômenos, explicando-os de maneira integrada (Zacharias, 2006). 

Na medida em que a Geografia acadêmica proliferava-se pelo mundo europeu, novas visões surgiram, algumas, porém, distanciavam-se da visão sistêmica integradora.  

Sob um novo enfoque integrador, a Geografia francesa ficou conhecida como o método das regionalizações, dos “gêneros de vida”, cujo principal expoente foi Vidal de La Blache. 

As mudanças ocorridas no século XX, tais como as duas Grandes Guerras Mundiais, o confronto entre países socialistas e capitalistas e a revolução tecnológica levaram a Geografia às novas correntes de pensamento, procurando-se melhor definir tal ciência de acordo com as transformações ocorridas no mundo.  

Com a fixação da abordagem sistêmica na geografia, Sotchava, em 1960, introduziu o conceito de geossistema na literatura soviética, com a preocupação de estabelecer uma tipologia, aplicável aos fenômenos geográficos e que buscasse substituir o termo Ecossistema, adotado pelos biólogos. Na visão desse autor, os Geossistemas são definidos como classe de sistemas dinâmicos, flexíveis, abertos e hierarquicamente organizados, com estágios de evolução temporal, numa mobilidade cada vez maior sob a influência do homem.  

Neste contexto, cabe ressaltar o papel crucial da Geografia como a ciência que tem como objeto de estudo a organização espacial (Christofoletti, 1999), o que possibilita a relação entre fenômenos de diferentes áreas do conhecimento humano que se materializam no espaço. Tal ciência abrange a estruturação, funcionamento e dinâmica dos elementos físicos, biogeográficos e sociais. 

No entanto, podem ser apontados pelo menos três obstáculos encontrados por geógrafos que se aventuram ao estudo da realidade por meio da abordagem sistêmica. O primeiro encontra-se no processo de identificação dos seus elementos, atributos e relações, o que recai sobre o delineamento da extensão do mesmo. Tal obstáculo deve-se ao fato de que a maioria dos sistemas de interesse do geógrafo não se apresenta de forma isolada, mas, sim, como constituintes de um sistema maior - o seu universo.  

No interior do seu universo, o sistema passa a ser um elemento e, portanto, a conviver e a depender de outros sistemas-elementos, ou subsistemas que constituem seu conjunto maior. Neste ponto, pode se fazer a distinção entre dois grupos de sistemas os controladores ou antecedentes e os controlados ou subseqüentes.  

A relação entre sistemas controlados e controladores não deve ser considerada de maneira linear, haja vista a existência de mecanismos de retroalimentação, também conhecidos como feedback, pelos quais os sistemas subseqüentes podem “voltar a exercer influências sobre os antecedentes, numa perfeita interação entre todo o universo” (Christofoletti, 1979). Assim, as variáveis pertencentes aos sistemas físico/naturais dependem de fatores externos, também chamados de parâmetros, os quais regulam o funcionamento do sistema por meio do fornecimento de matéria e energia. A ajustagem das variáveis componentes de um sistema é resposta não linear à intensidade de tais parâmetros.  

Um segundo obstáculo encontra-se no próprio pesquisador, uma vez que delimitar um dado sistema da superfície terrestre, constituinte de uma realidade complexa e que apresenta uma multiplicidade de fenômenos, exige uma capacidade de abstração profunda, dependente da formação intelectual do pesquisador, bem como de sua própria visão de mundo e consequentemente de sua percepção ambiental. 

Apoiando-se em Campbell (1958), Christofoletti (1979), com o objetivo de minimizar a subjetividade do pesquisador, define quatro critérios para a delimitação de um sistema: a) a contigüidade, ou a proximidade física de seus elementos; b) a mesma natureza ou similaridade entre seus elementos; c) a finalidade comum de seus elementos; d) a padronagem distinta ou reconhecível de seus elementos. Deve-se, contudo, lembrar que “individualmente, qualquer uma dessas regras pode ser desobedecida sem acarretar prejuízos para o discernimento do sistema” (Christofoletti, 1979). Este autor exemplifica sua afirmação por meio do sistema industrial, cujos elementos constituintes (matéria-prima, fábricas e postos de venda) não se apresentam de forma contígua no espaço. Embora não haja tal contigüidade, tais elementos estão organizados, inter-relacionados e, de forma inter-dependente, atuam para uma dada finalidade, constituindo um sistema. 

Apesar de nos geossistemas a contigüidade ser observada com maior freqüência, tal norma nem sempre pode lhe ser aplicada. Tal fato pode ser observado nas mudanças de temperatura atmosférica em uma dada área de estudo, em função de ativação vulcânica ocorrida a centenas ou milhares de quilômetros de distância[1].  

Outro obstáculo ao estudo dos sistemas está no que Christofoletti (1999) chama de “disponibilidade de instrumentação tecnológica” aplicada às pesquisas. Graças às possibilidades garantidas pelo desenvolvimento tecnológico, a produção de novos equipamentos favorece a obtenção de dados, a compreensão, o diagnóstico e o manejo dos sistemas de organização complexa. 

Um dos exemplos de instrumental tecnológico de enorme aplicabilidade às análises espaciais, por meio de uma abordagem sistêmica, surgiu graças ao desenvolvimento da área computacional após a década de 80, culminando no desenvolvimento do SIG, que se trata de um sistema de computador para manusear dados espaciais (Bonham-Carter, 1994).            

Organizações espaciais como objeto de estudo da Geografia 

O conceito de ambiente, fundamental à Geografia, tem sido utilizado de maneira ampla, tanto em trabalhos acadêmicos, dos mais variados campos do conhecimento científico, como também nas diferentes formas de veículos de informação. 

Este substantivo acaba incorporando visões de mundo e valores diversos que lhe imputam significados distintos, o que afeta a sua valorização, bem como as estratégias de ação e de planejamento. 

De acordo com Lima e Queiroz Neto (1997), o ambiente é o resultado de uma relação imbricada de fatores físicos, químicos, biológicos e sociais, interferindo uns sobre os outros e variando no espaço e tempo.  

Organização espacial (sistema ambiental) deve ser caracterizada como entidade organizada na superfície terrestre formada pelos subsistemas físico/natural e antrópico, bem como por suas interações. O subsistema físico/natural é composto por elementos e processos relacionados ao clima, solo, relevo, águas e seres vivos, enquanto os componentes e processos do subsistema antrópico são aqueles ligados à população, urbanização, industrialização, agricultura e mineração, entre outras atividades e manifestações humanas, a exemplo da cultura e da política.  

Assim, no contexto da Geografia, sistema ambiental trata-se da organização espacial, fruto das relações entre os geossistemas, ou sistemas físico/naturais e os sistemas antrópicos (Perez Filho, 2007). 

Diante disso, com base na abordagem sistêmica, pode-se falar na existência da Geografia Física, como parte componente da Geografia, a qual tem por objeto de estudo os sistemas físico/naturais, cujos elementos e processos manifestam-se temporalmente e espacialmente em organizações espaciais próprias. 

Sistemas antrópicos, por meio do uso e ocupação das terras, usufruem dos potenciais dos geossistemas, modificando os fluxos de matéria e energia existentes nos mesmos. Tais ações permitem o rompimento do equilíbrio dinâmico existente no sistema, alterando assim a sua expressão espacial e temporal, com conseqüente criação de novas organizações espaciais, as quais, sendo dinâmicas, constituem-se em um híbrido de forma e processo. 

Essas organizações, expressões temporais e espaciais da existência e interação dos geossistemas e sistemas antrópicos, podem ser consideradas como  objeto de estudo da Geografia. 

Modelos e manifestações temporais dos fenômenos da natureza e do sistema antrópico 

Modelo tem sido uma das ferramentas mais utilizadas para a compreensão do funcionamento das organizações espaciais. Chorley et al. (1974) define modelo como uma estruturação simplificada da realidade, que por ser complexa, necessita de instrumentos que permitam apresentar de forma generalizada suas características e relações. 

O processo de elaboração de um modelo representativo da realidade recai sobre a subjetividade uma vez que se torna necessário abstrair do real parte dos elementos e processos observáveis. 

Assim, o referido autor aponta para a seletividade existente nos modelos, a qual implica na concepção de que os mesmos diferem da realidade, uma vez que tratam-se de aproximações simplificadas da mesma. Tal simplificação se justifica pela incapacidade humana em apreender e compreender a totalidade absoluta. 

Diante disso, pelo menos dois fatores devem ser considerados no processo de elaboração e/ou adoção de modelos. 

O primeiro deles trata-se da conscientização do pesquisador de que modelos necessitam ser constantemente revistos diante de novas descobertas e de novas possibilidades técnicas. 

O segundo fator diz respeito aos cuidados referentes às generalizações. Os processos existentes no interior de uma dada organização espacial são complexos e lhes são próprios. Desta forma, modelos aplicados em determinados níveis escalares de tempo e de espaço devem ser tomados com muito cuidado ao se realizarem extrapolações para outros níveis. Isso se deve ao fato de que a presença de elementos, atributos e relações distintos daqueles abarcados pelo modelo podem invalidá-lo ou produzir uma visão distorcida da realidade estudada. 

A escolha da escala a ser adotada na análise depende do fenômeno a ser estudado. Cada fenômeno possui representação em um determinado tipo de escala espacial e temporal. Elementos que se manifestam em determinada escala, podem apresentar pouca ou nenhuma representatividade em escalas maiores de tempo e de espaço (Quaresma, 2008).

Com relação às manifestações temporais dos fenômenos da natureza e do homem definem-se pelo menos quatro escalas de importância nos estudos das organizações espaciais, as quais seguem: 

A primeira trata-se da escala do tempo futuro, referente aos eventos que poderão se tornar realidade. Nas análises e estudos em Geografia, tratam-se das previsões científicas de eventos, fenômenos, processos, formas e organizações espaciais que poderão existir, por meio de geração de modelos normativos, cenários, dentre outros. 

A segunda trata-se da escala do tempo da Natureza. Os elementos naturais estão inter-relacionados, sendo que seus processos e formas existentes na organização físico/natural se manifestam em uma escala de tempo que lhe é própria[2]. Como exemplo, pode ser citada a formação de solos a partir do intemperismo de rochas e da influência de condições morfoclimáticas atuais. Uma vez que o processo de uso e ocupação das terras degrade propriedades do mesmo, para que se constitua um novo processo pedogenético é necessário um período de tempo de milhares ou milhões de anos, escala temporal não compatível com a escala temporal dos eventos humanos. 

A terceira trata-se da escala do tempo histórico do homem. Tal escala se inicia com a presença humana, não do pré-histórico nômade e coletor, mas a partir do surgimento das grandes civilizações, quando, por meio do uso das técnicas, o homem torna-se capaz de alterar de forma significativa, elementos e fenômenos pertencentes ao sistema físico/natural em uma tentativa de reduzir seus obstáculos e de controlá-lo. 

A escala do tempo histórico do homem surge num momento avançado da escala de tempo da natureza e constitui período de tempo mínimo em relação à extensão desta. 

Tais escalas não devem ser concebidas de maneira estanque e linear, ou seja, não se deve pensar que no momento em que uma termina, a outra começa. Há uma coexistência de tais escalas no tempo, a partir do surgimento da escala do tempo histórico do homem. 

A quarta trata-se da escala do tempo presente, que se caracteriza pelo fato do sistema antrópico, nas últimas décadas (em especial no pós Segunda Guerra e mais precisamente no pós década de 70 do século XX) ter atingido grande desenvolvimento técnico.  

Este período equivale ao que Richta (1968) e posteriormente Santos (2002) apontaram como aquele que se distingue de seus antecessores pela profunda inter-relação da ciência, da técnica e da informação, que permitiu ao mercado tornar-se global.  

Entretanto, não se deve achar que o ambiente deva ser considerado como uma produção artificial do homem. Por mais que o processo de uso e ocupação das terras se processe sob uma lógica cada vez mais ligada ao mercado, e haja adensamento de objetos técnicos tanto no campo quanto nas cidades, não se deve pensar que a natureza deixou de existir, ou que não seja também responsável por processos de formação de organizações espaciais, ou ainda que não seja capaz de influenciar a estruturação, dinâmica e funcionamento dos sistemas antrópicos. 

A afirmação de que “a natureza deixou de ser uma parte significativa do nosso meio ambiente” (Gellner, 1989) Apud: Santos (2002) demonstra o descaso com que o homem tem tratado a mesma, desconsiderando seus processos e funcionamento, o que reflete a lógica com que tem se processado o uso e ocupação das terras a partir da segunda metade do século passado.

A escala do tempo presente trata-se do período em que o sistema antrópico passa a possuir condições de interferir e de transformar os processos físico/naturais com grande intensidade. Também é neste período que emerge a necessidade cada vez maior de se conhecer os elementos, atributos, inter-relações e funcionamentos dos sistemas físico/naturais, para que o processo de uso e ocupação das terras não seja guiado exclusivamente por lógicas economicistas e de mercado, mas sim a partir do conhecimento dos geossistemas, a fim de que maior equilíbrio na relação homem/natureza seja atingido.

Apesar do desenvolvimento tecnológico alcançado pelo homem, tornando-lhe capaz de alterar e controlar parte dos elementos e fenômenos pertencentes à natureza, esta, uma vez que constitui um sistema complexo, está longe de ser plenamente conhecida, quanto menos controlada. Assim, apesar da existência do tempo da ação humana (escalas de tempo histórico do homem e presente), há o tempo natural (escala de tempo da natureza), que coexistem no processo de formação das organizações espaciais.

O sistema antrópico é capaz de influenciar parte dos sistemas físico/naturais impondo-lhes ritmos diferentes e acelerando processos com conseqüente alteração de suas escalas de tempo de ocorrência (Perez Filho, 2006).

Assim processos e formas que se manifestariam na escala do tempo da natureza, passam a ocorrer nas escalas do tempo histórico e presente. E é por isso que alguns pesquisadores, ao observarem as formas com que o homem tem interferido na dinâmica natural da Terra, defendem a idéia de, no tempo presente, ocorrerem processos geomorfológicos com gênese antrópica.

Ação antrópica e mudança na escala temporal dos eventos naturais: o caso do Baixo Curso do Rio São José dos Dourados-SP-Brasil

O baixo curso do Rio São José dos Dourados, pertencente a uma sub-bacia da bacia hidrográfica do Rio Paraná, localiza-se no Noroeste do estado de São Paulo – Brasil e possui uma área de 1.052km², abrangendo sete municípios paulistas (figura 1).

Figura 1
Porção da Bacia Hidrográfica do Baixo Curso do Rio São José dos Dourados (área de estudo)

A cobertura vegetal primitiva predominante na bacia trata-se da Floresta Latifoliada Tropical, associada a solos férteis, de estrutura média a argilosa. Além disso, ocorre, em menor escala, vegetação de Cerrado e Cerradão.

O sistema antrópico, pelo uso e ocupação das terras, principalmente com a cafeicultura e a pecuária extensiva, transformou o sistema físico/natural pré-existente em uma organização espacial expressa pela paisagem de pastagens.

Por meio de imagens orbitais e trabalhos de campo, realizados na área de estudo, foram verificados intensos processos erosivos, surgimento de canais fluviais de primeira ordem, formação de sulcos, ravinas e voçorocas, recuo de cabeceiras, abatimentos e capturas fluviais (figura 2).

Figura 2
Voçoroca. Município de Suzanápolis/SP - Brasil

Tais ocorrências têm ocasionado pesado ônus à sociedade local, não só pela perda de recursos naturais e degradação das terras, que afetam o pequeno produtor local, mas também pelos grandes investimentos destinados ao controle desses fenômenos, muitas vezes sem sucesso pela falta de um melhor entendimento de seu comportamento atual.

Os processos verificados comprovam o rompimento do estado de equilíbrio do geossistema. Necessitaria, assim, verificar quais os agentes responsáveis por tal rompimento e pela aceleração temporal dos processos identificados.

Por meio de imagens orbitais e de foto-interpretação, realizada em fotografias aéreas pancromáticas em escala aproximada de 1:25:000, provenientes do levantamento aerofotográfico do estado de São Paulo, realizado na década de 1960, verificou-se que os processos acima citados tratar-se-iam de eventos recentes, de ocorrência nas últimas quatro décadas.

A permanência das condições geomorfoclimáticas dos últimos quarenta anos, permitem afirmar que o rompimento do equilíbrio dinâmico do geossistema da área considerada não poderia ser explicado puramente com base nos elementos naturais.

Com base na classificação das terras, realizada segundo critérios adotados pelo Sistema de Capacidade de Uso, verificou-se que o uso e ocupação agropastoril, empregados pelo sistema antrópico, se apresentam coerentes com os atributos dos elementos naturais, não sendo assim responsáveis diretos pela aceleração dos processos verificados.

No pós década de 1970, os cursos de água pertencentes à área de estudo sofreram alterações por parte do sistema antrópica com a construção das usinas hidrelétricas de Três Irmãos e Ilha Solteira.

Tal informação permitiu a elaboração da hipótese de que os reservatórios de tais usinas, ao provocarem alterações significativas no nível de base local e modificações no nível do lençol freático, poderiam ser os responsáveis pelos processos erosivos identificados, uma vez que possuiriam capacidade de romper os limiares de resiliência do geossistema considerado.

As relações entre a reativação de processos erosivos a remontante e alterações no nível de base dos canais fluviais é conhecida e discutida desde, pelo menos, o final do século XIX, tal como no trabalho de Davis (1899), que trata da retomada de processos erosivos pela mudança no nível de base geral, dando início ao ciclo geomorfológico.

 O modelo de pedimentação e pediplanação pressupõe a permanência e generalização do nível de base. Segundo Christofoletti (1974), qualquer ponto de um rio é considerado como nível de base para todos os demais pontos a montante, possibilitando afirmar que alterações no nível de base local também sejam capazes de reativar tais processos geomorfológicos.

Com base em técnicas estatísticas e utilizando-se de 44 amostras circulares de 10km² de diâmetro cada, foram realizadas análises temporais em mosaicos de fotografias aéreas dos anos de 1962 e imagens orbitais de 2005.

Figura 3
Análise com amostras circulares da rede de drenagem de 1962.
Período anterior à construção dos reservatórios das usinas hidrelétricas em estudo


Figura 4
Análise com amostras circulares da rede de drenagem de 2005.
Período atual e após a construção dos reservatórios das usinas hidrelétricas em estudo
.

 

Comparando-se as figuras 3 e 4 verificam-se, como resultado, aumentos significativos do número e comprimento de canais de primeira ordem nos anos posteriores à construção dos reservatórios das usinas hidrelétricas mencionadas, confirmando assim a hipótese formulada para o presente trabalho.

Assim, a ação do sistema antrópico como agente modificador dos processos e dos fluxos de matéria e energia nos geossistemas, pode ser observada pelo uso e ocupação das terras nas mais variadas formas existentes. Tal ação, quando desconhece o funcionamento dos sistemas físico/naturais, ou quando calcada em valores puramente econômicos, acabam por ocasionar degradação ambiental, em muitos casos irreversíveis, haja vista que o rompimento dos limiares de resiliência força o sistema a buscar novo estado de equilíbrio, porém sempre diferente de seu estado original.

Embora tal sistema possua mecanismos que o capacitam a manter sua estrutura, organização e funcionamento iniciais, um evento de alta magnitude, tal como o input exercido pelo sistema antrópico por meio da construção de usinas hidrelétricas, rompe os limiares de resiliência do sistema, forçando-o a se reorganizar em busca de um novo estado de equilíbrio dinâmico.

Os processos naturais permitiram a constituição de uma organização espacial físico/natural em período de tempo, pertencente à escala da natureza. A ação antrópica, ao alterar os fluxos de matéria e energia no geossistema da bacia hidrográfica analisada, permitiu a aceleração temporal dos processos naturais, resultando na modificação da organização espacial pré-existente e na criação de nova organização, resultante da interação entre o sistema antrópico e o geossistema.

Assim, a complexidade inerente aos sistemas físico/naturais e as novas formas de uso e ocupação empregadas pelo sistema antrópico tornam-se elementos fundamentais à criação de modelos bem sucedidos da representação das organizações espaciais.

Conclusões

A construção de usinas hidrelétricas no pós década de 1970, no Planalto Ocidental Paulista, tem alterado o nível de base local dos cursos de água, provocando a desestabilidade do sistema e conduzindo a um novo reajuste, ocasionando retomada acentuada de processos erosivos (sulcos, ravinas e voçorocas), abatimentos, capturas, reativação e recuo de cabeceiras de canais fluviais de primeira ordem.

O Sistema de Capacidade de Uso, embora seja útil para agentes envolvidos em práticas de conservação de solo e de combate à erosão, demonstra carências em relação à capacidade de previsão dos processos erosivos identificados na área de estudo, haja vista que tal sistema não inclui outras formas de uso empregadas pelo homem.

Os processos verificados, com base na dinâmica dos elementos do geossistema se manifestariam na escala do tempo da natureza. As ações do sistema antrópico sobre os sistemas físico/naturais ampliam a velocidade dos processos, permitindo sua ocorrência nas escalas de tempo histórico do homem e presente. 

Desta forma, modelos de representação das organizações espaciais necessitam ser reavaliados, sob arcabouço metodológico, baseado na abordagem sistêmica, capaz de entendê-las como resultado não linear das relações entre os geossistemas e o sistema antrópico.

Os resultados apresentados fornecem subsídios fundamentais à formulação de políticas públicas que, ao considerarem a existência de elementos, atributos e relações, anteriormente desconsiderada, sejam capazes de entender as organizações espaciais e de promover práticas efetivas, que visem minimizar a degradação das terras.

Notas

[1] Pode ser citado o exemplo da erupção vulcânica ocorrida no Monte Pinatubo nas Filipinas no ano de 1991, que, ao eliminar suas cinzas na atmosfera, afetou o equilíbrio radiante da atmosfera e causou mudanças de temperatura do globo terrestre por meses.

[2] Não é a toa que o trabalho do referenciado geólogo americano William Morris Davis, ao procurar sistematizar as fases de evolução do relevo em termos de juventude, maturidade e senilidade, formula a sua Teoria do Ciclo Geográfico, também conhecida como Ciclo de Erosão ou ainda Ciclo Geomorfológico, para período de tempo aproximado entre 20 e 200 milhões de anos.

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Referencia bibliográfica:

FILHO, Archimedes Perez; CUARESMA, Cristiano Capellani y RODRIGUES, Tânia R. I. (Universidade Estadual de Campinas). Ação antrópica como agente transformador da organização espacial em bacias hidrográficas. Diez años de cambios en el Mundo, en la Geografía y en las Ciencias Sociales, 1999-2008. Actas del X Coloquio Internacional de Geocrítica, Universidad de Barcelona, 26-30 de mayo de 2008.<http://www.ub.es/geocrit/-xcol/277.htm>


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