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X Coloquio Internacional de Geocrítica

DIEZ AÑOS DE CAMBIOS EN EL MUNDO, EN LA GEOGRAFÍA Y EN LAS CIENCIAS SOCIALES, 1999-2008

Barcelona, 26 - 30 de mayo de 2008
Universidad de Barcelona

GEOGRAFIA, GÊNERO E ESPAÇO NO CONTEXTO DO CINEMA BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO
Maria Helena Braga e Vaz da Costa
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
mhcosta@ufrnet.br

Geografia, gênero e espaço no contexto do cinema brasileiro contemporâneo (Resumo)

O objetivo do trabalho é discutir o papel da mulher no contexto das representações do espaço e da cultura tomando por base a representação cinematográfica brasileira contemporânea. Com enfoque na representação imagética da percepção do espaço vivenciado, que, entende-se, é produzido através da experiência perceptiva dos movimentos no espaço e da construção de um imaginário coletivo a respeito do lugar, busca-se a compreensão do como as representações da mulher emprestam sentido não apenas ao espaço narrativo, mas também, ao espaço real, concreto – ambos entendidos como espaços da experiência.

Palavras chaves: Geografia cultural, espaço, gênero, cinema brasileiro.

Geography, gender and space in contemporary Brazilian cinema (Abstract)

This paper deals with the representation of women within the context of the representation of space and culture in contemporary Brazilian film. Highlighting film representations of the perception of lived space which is produced by the perceptive experience of moving in space and the production of collective imagination of place, this paper looks for the understanding of how film representation of women gives meaning not only to narrative space, but also to real space – both understood as spaces of experience.

Key Words: Cultural geography, space, gender, Brazilian cinema.

As representações culturais do espaço urbano e o cotidiano dos indivíduos e dos grupos sociais que construíram a modernidade, e fazem agora parte da tão proclamada e discutida pós-modernidade, tornaram-se cruciais para o entendimento dos modos pelos quais nossas vivências, comportamentos, identidades, subjetividades e práticas culturais vêm sendo constituídas, elaboradas e re-elaboradas espacialmente. Nesse sentido, estudiosos e pesquisadores das mais diversas áreas do conhecimento – artes, comunicação, geografia, educação, literatura, ciências sociais, etc. –, têm pensado e discutido sobre os problemas das culturas urbanas moderna e pós-moderna – que se apresentam inflacionadas por imagens –, a partir do ponto de vista da análise das práticas e representações culturais e das artes.

Na medida em que a Geografia Cultural redireciona o estudo e as abordagens de conceitos-chave da geografia – paisagem, região, território, lugar, espaço –, considerando-os sob a perspectiva do seu caráter simbólico e subjetivo, e passando, portanto, a lidar com códigos simbólicos (Cosgrove, 1998, p.110), meios de representação e comunicação como o cinema, e formas de representação artísticas como o filme, se configuram em um rico objeto de análise sob a perspectiva interpretativa (hermenêutica) e válida para a leitura analítica do discurso sobre os conceitos geográficos assinalados.

Assim, geógrafos como Barbosa e Corrêa (2001), considerando o cinema como um dispositivo técnico-artístico de representação do mundo (p.81) que sempre se valeu do uso do espaço/paisagem para a ambiência de suas tramas, entendem que o espaço/paisagem para o cinema serve como elemento que estabelece um lugar de senso-percepção que o liga à vida real, e por isso mesmo esse meio de representação é válido para a investigação científica de uma outra dimensão da paisagem.

Considerando que a Geografia Cultural tem priorizado o estudo a respeito das diferentes perspectivas e entendimentos sobre como os espaços real e o imaginário são constituídos, construídos, organizados e entendidos e, também, como estes se relacionam entre si, este trabalho constitui um esforço no sentido de aliar o conceito de espaço em sua representação fílmica à representação da imagem da mulher no contexto do cinema brasileiro contemporâneo.

Ao longo da história, a imagem da mulher, construída e representada através dos diversos meios de produção de imagem, tem se destacado mais especificamente, como destacam alguns autores, pelo desequilíbrio entre a sua imagem mais comumente divulgada como frágil e dependente do apoio masculino, e outra, que consideram mais real, mais condizente com sua importância.

Sabe-se que uma visão dicotômica do masculino e do feminino tem sido por muito tempo reforçada nos meios intelectuais com o apoio principalmente das pesquisas médicas e biológicas do século XIX pelo discurso naturalista que insistia na existência de duas naturezas com qualidades e aptidões específicas: aos homens, o cérebro, a inteligência, a razão; às mulheres, o coração, a intuição e a sensibilidade (Ribeiro, 2006, p.34).

Considerando a inegável importância da mulher na organização do espaço doméstico, por exemplo, o que ao longo de anos proporcionou ao homem condições de se firmar como chefe responsável pelo sustento da família através do exercício do trabalho remunerado, esses autores reconhecem a injustiça de não se associar, mais comumente a imagem da mulher a uma imagem mais condizente com sua condição: de inteligente, racional, firme e decidida. Mesmo sendo apenas em relação à condução de suas obrigações sociais e familiares, e não sendo estas passíveis propriamente do reconhecimento dentro do contexto cultural, político e, muito menos econômico. O problema é que, o espaço feminino resumindo-se ao universo doméstico e familiar, e, por conseguinte desprestigiado socialmente e economicamente, foi sendo incorporado, ao longo dos anos, como a imagem correta a ser propagada pelos meios de representação cultural.

Apresentada como uma figura frágil e sensível, através de um discurso construído no contexto de uma sociedade patriarcal, a mulher teve por muito tempo um papel muito claro a desempenhar na sociedade até o século XIX – o de dona-de-casa, mãe e esposa. Pensando nas representações da mulher na atualidade (principalmente a partir dos anos 1980 do século XX) devemos considerar que a sua imagem continua, na grande maioria das representações, construída sobre as bases e reflexos desses estigmas. Os estudos de Ann Kaplann (1995), Cristina Costa (2002) e Marta Robles (2006) discutem a construção de estereótipos do feminino e o papel social da mulher no mundo contemporâneo, levando em consideração sua posição numa sociedade entendida como patriarcal e machista. Essa visão é de certa maneira compactuada por John Berger (1977). Para ele,

“Nascer mulher é vir ao mundo dentro de um espaço definido e confinado, à guarda do homem... Os homens agem, as mulheres aparecem. Os homens olham para as mulheres. As mulheres vêem-se a serem vistas. Isto determina não só a maioria das relações entre homens e mulheres como também as relações das mulheres consigo próprias” (Berger, 1977, p.50 e 57).

O movimento feminista deflagrado na década de 1960 já questionava a função da mulher na sociedade e principalmente as visões propagadas a respeito dessa função. Procurando equiparar os direitos e deveres das mulheres aos dos homens nos âmbitos sociais, econômicos e políticos, o movimento feminista lutou para fazer com que as mulheres tivessem vez e voz, passando, portanto, a fazer parte de forma própria e legítima da sociedade.

No contexto dos anos 1960, de acordo com Pedroso (2005), vários fatores contribuíram para as transformações que se sucederam. Entre eles, se destacam o aparecimento do movimento de contracultura desencadeado pela geração pós-guerra (décadas de 1950 e 1960), que proclamou o nascimento do movimento hippie que repudiava qualquer tipo de repressão e preconizava qualquer forma de expressão de liberdade, mais especificamente, a da sexualidade; e o advento da pílula anticoncepcional para a mulher, possibilitando maior autonomia e liberdade sexual.

A luta por direitos iguais produziu ao longo dos anos algumas mudanças significativas na história dos meios de representação e suas construções da imagem da mulher. Mesmo tradicionalmente construída no contexto de discursos estereotipados, a mulher vem sendo representada na contemporaneidade de forma a proclamar e enaltecer a sua luta contra as forças patriarcais e machistas, na tentativa de modificar os resquícios de pensamentos coloniais e romanescos. Em um certo sentido, essa mudança é o resultado de muitas elaborações críticas e teoricas por parte da comunidade acadêmica que, interessada nos estudos culturais, começou a pensar criticamente sobre as questões de gênero, e mais especificamente sobre a posição e representação da mulher no contexto sócio-cultural.

Heartney (2002) chama a atenção para o fato de que estudiosas como Rozsika Parker e Griselda Pollock consideram a mulher como um conjunto internalizado de representações (p.52). Heartney argumenta:

“Isso se conformava, de maneira geral, à visão pós-moderna da realidade. Como formulou a teórica Kate Linker, ‘na medida em que a realidade só pode ser conhecida através das formas que a articulam, não existe nenhuma realidade fora da representação’” (Heartney, 2002, p.52).

Para compreender como são internalizadas essas representações, podemos citar algumas teóricas feministas, influenciadas pelo pós-estruturalismo, como Laura Mulvey e Ann Kaplann.

Em seu seminal artigo Visual Pleasure and Narrative Cinema[1] (1975), Laura Mulvey entendia a mulher como inserida em uma ordem falocêntrica. Em conseqüência, o inconsciente da sociedade patriarcal teria estruturado formalmente e substancialmente as representações da mulher, mais especificamente as fílmicas do cinema clássico hollywoodiano, baseado em uma premissa importante: a sua capacidade em manipular e articular de maneira satisfatória o prazer visual.

Sem precedentes, os filmes de Hollywood (principalmente os produzidos entre 1930 e 1950) uniram e codificaram o prazer visual e o erótico dentro da linguagem da ordem patriarcal dominante. Mulvey ressalta que o cinema, satisfazendo o prazer primordial que é o de olhar, desenvolve eficazmente o prazer da escopofilia em seu aspecto narcisista. Ela explica que as convenções fílmicas, o enfoque nos dramas humanos, no corpo humano e sua forma, incitam a curiosidade e o desejo de olhar com fascínio para a imagem na tela e reconhecê-la como uma representação formal da realidade.

É aqui onde o fascínio pelo ato de olhar colide com as primeiras manifestações de reconhecimento. Aqui começa a ser construída a forte relação entre a imagem real e o seu reflexo que termina por encontrar uma forma de expressão e representação intensamente realista através do cinema (e do processo de identificação da audiência com as personagens fílmicas).

Tomando a imagem da mulher como um objeto (passivo) para o olhar (ativo) do homem, Mulvey direciona o seu argumento para uma estrutura de representação da realidade – a narrativa fílmica – que, segundo ela, está nitidamente inserida na ideologia de uma ordem patriarcal. Mulvey ressalta que o olhar, intrinsicamente prazeroso em seu formato, pode se tornar ameaçador em conteúdo, e é a mulher, dentro do contexto da representação e imagem fílmica, que cristaliza esse paradoxo. É o lugar do olhar, e a possibilidade de variar e expor esse olhar, que define o cinema; e esse olhar tem se dividido nos filmes entre o polo ativo (masculino) e o passivo (feminino). O determinante olhar masculino projeta sua fantasia na figura feminina que por sua vez é construída com bases nesse olhar.

A mulher é, portanto, tradicionalmente codificada cinematicamente dentro do sistema visual e erótico como a imagem que significa o objeto a ser admirado. Disposta como objeto sexual, ela é a chave para o espetáculo erótico, já que representa o objeto de desejo masculino. Indo além de apenas ressaltar a essencial qualidade feminina que é a de ser admirada, o cinema vai além construindo a maneira pela qual a mulher deve ser olhada dentro do espetáculo.

Em resumo, a imagem da mulher constitui tradicionalmente um elemento indispensável para a narrativa fílmica clássica, apesar de sua presença tender a paralizar o desenvolvimento narrativo à medida que dá lugar a momentos de contemplação erótica. De qualquer forma, a mulher no cinema tem funcionando basicamente de duas maneiras: (1) como objeto erótico no filme e (2) como objeto de contemplação fora dele (para o espectador). Na prática, o que acontece é, por exemplo, como a primeira aparição de Marilyn Monroe em The River of no Return. A imagem erótica de Monroe funciona como elemento de conexão entre o olhar da personagem masculina (que olha dentro do filme para Monroe) e do espectador colocando-os dentro do mesmo sistema de espetáculo erótico.

Dessa maneira, Mulvey argumenta que a imagem da mulher nos filmes, principalmente naqueles do cinema clássico Hollywoodiano, é o objeto indutor do voyeurismo e também um fetiche. Mulvey procura desmembrar a função da mulher na formação do inconsciente patriarcal. Ela diz:

“A mulher é inserida na cultura patriarcal como o ‘outro’ e é posicionada numa ordem simbólica na qual o homem pode viver suas fantasias e obsessões através do comando linguístico impondo-o à imagem silenciosa da mulher que permanece fixa em seu lugar de sustentáculo mas não de produtor de significado” (Mulvey, 1985, p.305) (Tradução minha).

De acordo com os princípios da ideologia dominante, o homem não consegue se ver ou se colocar na posição de objeto sexual. Consequentemente, nos filmes, a personagem masculina reluta em olhar o seu semelhante como objeto sexual. Ele controla a fantasia fílmica e também se coloca como representante do poder, portanto, se posicionando no lugar da imagem com a qual o espectador se identifica. Identificando-se com o protagonista masculino, o espectador projeta o seu olhar sobre o seu semelhante (seu ego ideal na tela) de maneira que o poder do protagonista masculino exercido dentro da narrativa fílmica passa a coincidir com o poder ativo do olhar erótico de ambos produzindo um senso de onipotência satisfatório a ambos.

John Berger (1972) postula que a presença social de um homem está sempre relacionada à promessa de poder que ele encarna, seja econômico, sexual, moral, físico ou temperamental. Esse poder é exterior ao próprio homem, podendo, inclusive, ser fabricado. O importante é que ele possa aparentar um poder que exerce sobre outros (Ribeiro, 2006, p.35).

As grandes estrelas de cinema masculinas – e.g. James Dean, Marlon Brando, Hamphrey Bogard, e tantos outros – não são as que se tornam objetos do olhar (ao contrário das femininas), mas as que representam o mais perfeito ego ideal concebido no momento original da identificação com a imagem na tela aos moldes do reconhecimento em frente ao espelho (a personagem masculina no filme age e faz com que as coisas aconteçam, por isso ela controla os eventos de maneira mais direta do que o espectador).

A mulher, por outro lado, funciona como regulador das tensões entre os olhares masculinos dentro e fora da tela. Em regra, a maioria das vezes os filmes iniciam com a imagem feminina sendo apresentada a serviço do olhar tanto dos protagonistas masculinos quanto do espectador. A imagem exibida é destacada e isolada, glamorosa e sensual/sexual. Contudo, à medida que a narrativa se desenrola, a personagem feminina se apaixona pelo protagonista, torna-se propriedade sua, e consequentemente perde suas principais qualidades: a elegância e o glamour. Sua sexualidade e o seu erotismo, presentes inicialmente, são posteriormente subjugados (para não dizer suprimidos) ao seu companheiro. De certa maneira, na sua identificação com o protagonista masculino (aquele que detém o controle), o espectador acaba compartilhando com este o seu poder e, de certa forma, possuindo também o seu objeto de desejo (como por tabela).

Ann Kaplann (1995), por sua vez e mais especificamente em relação aos estudos da representação feminina no cinema hollywoodiano contemporâneo (a exemplo de Mulvey), destaca algumas mudanças nos padrões de comportamento feminino, e, portanto na representação fílmica desses padrões comportamentais que acabam por afetar também o próprio formato da representação, e nos lembra como a imagem da mulher hoje se apresenta de maneira bem diversificada. Se, tínhamos anteriormente uma sociedade patriarcal e industrial (podemos relacionar o pensamento tradicional e pré-modernista a que se refere Stuart Hall, 2001) e agora vivemos numa sociedade consumista e ambígua (Hall, 2001), Kaplann se pergunta até que ponto isso passou a contribuir para os estudos sobre a mulher e assim estabelecer significativas contribuições no cenário midiático e contemporâneo de nossa sociedade.

Pensando na representação da mulher no cinema, Kaplann (1995), a exemplo de Mulvey, também discute dois conceitos freudianos básicos: o voyeurismo e o fetichismo. Estes conceitos são usados para explicar o que a mulher representa no contexto da sua imagem fílmica e quais os mecanismos que entram em funcionamento em relação ao posicionamento do espectador enquanto observador da imagem feminina na tela. O mecanismo de representação fílmica atua percebendo o espectador como voyeur – levado pelo prazer de ver e observar sem ser visto ou observado, e sua satisfação através do olhar como propulsor para a construção da beleza física feminina enquanto fetiche ligado o desejo sexual. Nesse sentido, Kaplan caracteriza três tipos de mulher construídos pelo parâmetro Hollywoodiano desde os anos 1930 até a atualidade:

(1) A mulher cúmplice, que renuncia aos seus sentimentos pessoais e a sua realização individual assumindo uma postura frágil; (2) a mulher resistente, que surge no século XX, com sua integração ao mercado de trabalho, sua emancipação financeira, graças ao movimento feminista, e que luta por sua realização pessoal até mesmo, se necessário, em detrimento da família; (3) e a mulher pós-moderna que, tendo encontrado seu espaço nas esferas social, econômica e política, conquista a liberdade desejada e está preparada para enfrentar as questões que por ventura se originem a partir de sua nova situação – os novos elementos que regem a formação cultural na contemporaneidade como a AIDS, homossexualismo, formas não convencionais de reprodução como a gravidez in vitro, etc.

É da representação da mulher pós-moderna no cinema brasileiro contemporâneo que trataremos adiante ao discutir a abordagem representativa e visual dos dilemas vividos por essa mulher na contemporaneidade e no espaço urbano (pós)moderno em filmes como A Dona da História (Daniel Filho, 2004) e Avassaladoras (Mara Mourão, 2002). Mas antes de partir para comentar os filmes, faz-se necessário uma breve discussão sobre a representação do espaço urbano no cinema.

O espaço urbano cinemático

Pensando sobre o conceito de espaço narrativo, Stephen Heath (1993) desenvolve a idéia de que a construção do espaço pelo cinema advém de um discurso (espacial) projetado pela e através da visão e que esse discurso está impregnado de formas simbólicas. A noção do espaço narrativo, ou espaço fílmico, corresponde ao espaço imaginado. Se a experiência (do espaço como uma prática social e material) é percebida e representada visual e culturalmente, por uma forma de representação como é o cinema, o espaço fílmico enquanto resultado da representação, constituirá um espaço de representação que por sua vez produzirá novas formas de percepção do espaço. Isto é, a interação entre a prática espacial, a representação do espaço (que acontece com a percepção da realidade) e o espaço de representação[2], que é essencialmente o espaço construído pela imaginação, é responsável pela produção de novas formas de perceber, construir, entender e modificar o espaço.

Stephen Heath (1993) explica que o cinema constrói e manipula o espaço ao longo do desenvolvimento da narrativa transformando-o em lugar, através de três movimentos diferentes: (1) o movimento dos personagens; (2) o movimento da câmera; e (3) o movimento de uma tomada para outra. O primeiro destaca o espaço através do deslocamento dos personagens dentro do espaço fílmico. O segundo freqüentemente comparado à mobilidade do olho porque parece executar os movimentos da cabeça, regula a visão do espaço dando uma versão diferenciada deste. O terceiro dimensiona o espaço estruturando-o e construindo-o através da edição e montagem das imagens que representam a passagem de um espaço para outro. Estes movimentos, portanto, efetivamente estabelecem a natureza do espaço fílmico e tornam o cinema um construtor de visões e espaços em movimento.

"Se a vida entra no cinema como movimento, [...] o que entra no cinema é uma lógica do movimento e é essa lógica que organiza o enquadramento. O espaço fílmico, em outras palavras, é construído como um espaço narrativo. É o significado da narrativa que em qualquer movimento, constrói o espaço fílmico de uma maneira a ser seguido e ‘lido’..." (Heath, 1993, p.75-76) (Tradução minha).

Capaz também de fragmentar o espaço, como, por exemplo, através do isolamento de uma face ou objeto por meio de um close-up, o cinema passa a manipular e utilizar fragmentos imagéticos para, quebrando ou não com as estruturas narrativas convencionais, estabelecer novos formatos para o espaço fílmico. Segundo Degli-Espositi (1998),

“Um uso fragmentado de câmera-lenta nos filmes enfatiza uma percepção expandida, segmentada e reconstruída do tempo real, agora dada uma visibilidade hiperbólica através da desconstrução. A prática do detalhamento, do tempo nesse caso, pretende alcançar um objetivo: sua própria fragmentação icônica. Esse uso da câmera é comumente associado ao processo da hypertextualidade que interrompe a narrativa para tomar outra direção, e outra, e outra, e possivelmente voltar à primeira opção ou alternativamente uma outra completamente distinta” (p.7) (Tradução minha).

É significativa essa conexão entre a imagem do real, e seus diferentes fragmentos captados e modificados espacialmente e temporalmente pela câmera que expandindo, segmentando e reconstruindo o tempo e o espaço, participa efetivamente do processo hypertextual que aparece em meio ao processo desconstrutivo. A interrupção narrativa referida na citação acima assume agora outra dimensão produzindo novas e diferentes formas de percepção, construção, re-construção e imaginação do tempo e do espaço. Na medida em que o retorno ao mesmo banco de referências parece ser culturalmente imposto e, portanto, inevitável, mesmo assim o processo permite que se construam novas percepções (e representações) ao longo da sua prática. A diversidade nos modos de manipulação dos fragmentos reais ou fílmicos e dos seus mais diferentes movimentos abre uma infinidade de questões sobre o espaço real e as diferentes formas como este é representado pelo cinema, e principalmente como este é lido e interpretado pelo espectador.

Nessa perspectiva podemos considerar a forte relação entre a construção fílmica narrativa – enfatizando os fragmentos espaciais, o enquadramento, a mise-en-scène, os diferentes movimentos, e a inserção dos personagens em locações geográficas específicas – e o mundo real das relações sociais (Crang, 1998; Lury e Massey, 1999) e entender as construções fílmicas não apenas como objeto de criticismo, mas como re-ordenamento das imaginações geográficas que adquirimos do mundo. Pensemos, por exemplo, na questão da representação fílmica de um espaço urbano específico. Quais seriam as qualidades e especificidades do espaço fílmico em questão dentro da tradição de representar a cidade moderna e sua evolução, quando sabemos do comprometimento do cinema com a questão da construção do imaginário coletivo a respeito da modernidade? Quais técnicas cinematográficas têm se configurado e vêm se configurando, como mais apropriadas, se é que se pode chamar assim, para representar o espaço urbano? Quais são as implicações advindas da transferência da imagem do espaço real para a tela?

O cinema tem assumido um papel central na construção das imaginações geográficas dos indivíduos, ajudando a inventar cidades e lugares. Denis Cosgrove e Stephen Daniels (1988) compartilham dessa opinião e propagam a idéia de paisagem como uma imagem cultural, uma maneira pictórica de representar, estruturar ou simbolizar os lugares (p.1) (Tradução minha).

A mulher e o cinema brasileiro

Esteriótipos do imaginário da representação da mulher socialmente estigmatizada são constantemente apresentados (e contrastados) em sua representação fílmica. Os filmes brasileiros de uma maneira geral tendem a representar as classes sociais e a retratar os conflitos entre as mesmas sem problematizar tais conflitos no contexto do gênero. Normalmente, a tendência é de apenas reproduzir situações que se apresentam no cotidiano. Como ressalta Rauen (2005) considerando sobre a participação da imagem da mulher no contexto das encenações e performances contemporâneas,

“...vemos fadas e bruxas, princesas e borralheiras, moças ricas e pobres, pessoas com tudo ou sem nada. Estas últimas aparecem nas estigmatizadas funções dramáticas de excluídas e discriminadas, principalmente na pele mais atual de ladras, prostitutas, traficantes e mendigas, que acabam sendo as antagonistas más de protagonistas vítimas. Com isso, as peças fixam estereótipos de violência já existentes na sociedade, ao invés de promoverem reflexões sobre a superação dos mesmos” (Rauen, 2005, p.233-234).

Analisando as personagens Carolina e Laura, protagonistas respectivamente dos filmes A Dona da História (Daniel Filho, 2004) e Avassaladoras (Mara Mourão, 2002) podemos verificar mais claramente como o discurso feminino é posto na atualidade.

Primeiramente, no filme brasileiro A Dona da História (Daniel Filho, 2004), diferentes pontos de vista sobre as especificidades relacionadas ao universo feminino são colocados. O primeiro ponto de vista é aquele que coloca a mulher na camisa-de-força de ter uma única escolha: a de ter de optar entre ser uma dona-de-casa, se dedicando à família, ou se realizar profissionalmente. O imaginário feminino nesse caso é representado de forma a questionar a escolha como dicotônica e excludente na medida em que a realização profissional e a afetiva passam a ser o pivô para as mais diversas trangressões da personagem.

A partir de modelos estereotipados e contextualizações sobre os paradigmas que regem as relações de gênero, que acabam modificando contextos sociais, políticos, ideológicos, identificar-se em A Dona da História a tentativa de ressaltar uma determinada postura feminina mais adequada às formas e questões entendidas, por alguns autores, como pós-modernas.

A crise de identidade, por exemplo, discutida por Stuart Hall (2001), que segundo ele advem de uma sociedade fragmentada que tem transformado as sociedades modernas desde o final do século XX, e ocasionado mudanças inclusive no que se refere ao discurso sobre gênero, pode ser associada à construção da personagem Carolina (Marieta Severo) que durante o filme assume diversas identidades temporárias.

O filme tem início mostrando uma Carolina ainda jovem, cheia de esperanças profissionais que acaba sendo comparada à Carolina do presente, madura, casada, com filhos, e vivendo uma crise existencial deflagrada por um processo de repensar a própria vida e relembrar a juventude e tudo o que poderia ter sido feito de forma diferente se ela não tivesse casado, tido filhos e se dedicada inteiramente ao marido e à cração dos filhos.

Carolina experiencia, segundo ela mesma, a perda do sentido de si. Uma experiência que a coloca em estado de deslocamento ou descentramento (do sujeito/ indivíduo) tanto do seu lugar no mundo social e cultural quanto de si mesma provocando a crise de identidade sobre a qual estudiosos como Hall (2001) se debrução. Em crise, Carolina, não satisfeita com sua vida, repensa conceitos como o de felicidade procurando entendê-lo e identificá-lo em seu próprio contexto de vida.

A Dona da História, ao abordar temas como a crise existencial advinda com a modernidade (ou pós-modernidade) através do questionamento consciente da perda de identidade e da satisfação feminina, coloca a personagem Carolina em uma posição de questionamento e controle (mesmo que ilusório) da própria vida demonstrando uma mudança de atitude temática e narrativa da representação no que toca o tratamento das questões contemporâneas em relação à representação da mulher.

Observando os conflitos de Carolina conclui-se que houve uma quebra das construções fixas de representação da mulher que sempre a colocaram como assumindo posturas claramente definidas, como explica Pedroso (2005): a de mãe, companheira (na maioria dos casos, do marido) ou prostituta. Como uma mulher pós-moderna, vivendo a realidade de um mundo variável, provisório e híbrido, Carolina passa a avaliar e questionar os parâmetros sociais, ideológicos, culturais e políticos da sociedade moderna da qual faz parte, colocando sua própria identidade em cheque.

A crise de Carolina a leva a construir uma cômoda história de si mesma, na qual a felicidade é uma certeza (materializada na sua vida de casada e com filhos). Contudo essa história é desestruturada no momento em que Carolina vê sua amiga de juventude, agora uma atriza famosa, participando de um programa de televisão em que descreve sua vida profissional, suas viagens pelo mundo, e sua vida glamourosa. A partir daí Carolina começa a perceber, ou imaginar, tudo o que poderia ter potencialmente realizado se não tivesse se casado, se dedicado ao marido e à criação dos filhos - novamente o mesmo dilema da mulher (contemporânea)?

É nesse momento que a narrativa fílmica coloca Carolina em posição de dona da sua própria história permitindo à personagem construir e adentrar a passagem ilusória entre o espaço-tempo, presente e passado, através da qual ela reencontra a si mesma quando jovem. Juntas, a velha e a jovem Carolinas se colocam em posições de qustionamentos sobre o prórpi passado, presente e futuro e tentam encarar as incertezas que aparecem como consequência desse questionamento. A barreira entre o real e o imaginário é agora transposta para que os sentimentos e as emoções levem as duas Carolinas a um caminho diverso (traçado anteriormente e representado pela vida presente de Carolina quando madura) ou à confirmação do seu presente como a opção acertada.

Na verdade o filme ideologicamente propõe que o cinema continua a servir como meio de representação que tem por finalidade a construção visões diferenciadas, de opções de mundo diversos nos quais se colocam tanto os personagens quanto os espectadores. Nesse caso específico, o cinema permite à personagem Carolina experimentar cada mulher que ela passa a ser, dando a ela e ao espectador, através das suas identificações temporárias, diferentes possibilidades de construção do eu e também possíveis abordagens sobre a representação da mulher que acaba se apresentando a cada Carolina (e suas mais diversas vidas) que é proposta.

Ao longo do filme Carolina assume três identidades e realidades diferentes: na primeira, Carolina trabalha numa locadora e se sente frustrada e amargurada passando a sonhar constantemente com os amores vividos e não vividos. Na segunda, ela é uma sociality rica, mas que não é feliz no casamento – a narrativa deixa claro que o casamento foi por interesse – e por isso está sempre à procura de um amante. E por fim, na terceira, Carolina é uma atriz de prestígio, famosa e realizada na profissão, mas que não constituiu família e vive sozinha. Essa Carolina apesar de ter o lado profissional realizado, se sente amargurada.

Após defrontar-se com todas as suas três histórias, vivêndo-as sempre com um posicionamento questionador, Carolina termina por assumir a sua vida presente, que adveio com o casamento, como a opção mais acertada e se conforma assim (levada pelas circusntâncias) com a sua escolha inicial. Esse final romanesco e novelístico não deixa de ser moralista e com certeza conformador enquanto rótulo e esteriótipo no contexto do discutido anteriormente.

Em contrapartida, Avassaladoras (Mara Mourão, 2002) destaca um contexto diferente da imagem feminina na cinematografia brasileira. Pode-se nesse caso identificar algumas mudanças no que diz respeito à representação dos elementos sociais, sexuais e identitários, nos quais a personagem Laura (Giovanna Antonelli) se insere ao longo do filme. A grande diferença aqui é que se até então tínhamos personagens femininas submissas ao imaginário masculino, sem independência, em Avassaladoras essa tendência começa a ser questionada.

A mulher é nesse caso representada como tendo reagido às mudanças sociais, políticas e econômicas sofridas pelo país e como tendo se tornado agente do seu próprio destino se destacando em suas mudanças comportamentais diante desse novo mundo modificado pela revolução cultural (Hall, 1991). O questionamento da identidade do sujeito na sociedade pós-moderna, é também em Avassaladoras um elemento temátio/narrativo importante. A personagem Laura ao longo do filme constrói sua identidade e seus posicionamentos diante da sociedade da qual faz parte com base no contexto da representação (constituição) de uma mulher avassaladora que constitui não apenas um novo tipo de mulher (independente, consciente de si, e dona do seu próprio destino já que tem liberdade de escolha), mas também parece fazer jus a um novo olhar, a um novo formato de representação e construção mais condizente com a imagem que se espera da mulher que vive no mundo (pós)moderno.

A mulher avassaladora, no caso Laura, é representada como aquela que se identificando com três possíveis posturas representadas no filme pelas personagens de suas amigas – Betty (Paula Cohen) que não tem um relacionamento fixo e é muito insegura; Paula (Ingrid Guimarães) que está grávida do namorado que não ama, e Tereza (Chris Nicklas) que trabalha tanto que não tem tempo para o amor – passa a construir sua própria identidade e a tomar posicionamentos mais realistas e coerentes com o seus desejos a partir de comparações com as vidas das suas amigas e o que elas podem trazer de lição para o que deve seguir ou não.

Se em um primeiro momento Laura se mostra como uma mulher insegura, que se desespera ao constatar que chegou aos trinta sem constituir uma família, ao longo do filme ela começa a dar indícios que quer ser uma mulher avassaladora, independente, moderna, aquela que sabe o que quer, a profissional competente, que por ter domínio sobre suas escolhas, fica bem consigo mesma. Enfim, uma mulher com auto-estima elevada que acredita que para conseguir o que quer basta querer realmente e se esforçar para tal, já que se autoencara como capaz.

Se antes a regra no contexto cinematográfico brasileiro era colocar a mulher como desempenhando o papel de frágil e submissa pode-se vislumbrar atualmente pelo menos uma tentativa de posicionar e pensar a mulher contemporânea de outra forma, representando-a também como agente (ao lado do homem) das novas dinâmicas socio-culturais e suas representações.

 

Notas

[1] Esse artigo foi publicado originalmente em 1975 na revista britânica Screen, vol. 16, n. 3, pg. 6-18.

[2] Essas três dimensões espaciais de produção do espaço: a prática espacial, a representação do espaço, e o espaço de representação, são propostas exaustivamente discutidas por Henri Lefebvre (1991). Essas dimensões espaciais são ainda caracterizadas pelo autor como espaço vivido, espaço percebido, e espaço imaginado (ver também HARVEY, 1989; MCCANN, 1999; SOJA, 1996).

 

Bibliografia

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Filmografia

A dona da história. Produção e Direção: Daniel Filho. Rio de Janeiro: Globo Filmes, Buena Vista, 2004.

Avassaladoras. Produção e Direção. Ricky Ferreira e Mara Mourão. Fox Filmes, 2002.

 

Referencia bibliográfica:

COSTA, Maria Helena Braga e Vaz da. Geografia, gênero e espaço no contexto do cinema brasileiro contemporâneo. Diez años de cambios en el Mundo, en la Geografía y en las Ciencias Sociales, 1999-2008. Actas del X Coloquio Internacional de Geocrítica, Universidad de Barcelona, 26-30 de mayo de 2008. <http://www.ub.es/geocrit/-xcol/34.htm>

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