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X Coloquio Internacional de Geocrítica

DIEZ AÑOS DE CAMBIOS EN EL MUNDO, EN LA GEOGRAFÍA Y EN LAS CIENCIAS SOCIALES, 1999-2008

Barcelona, 26 - 30 de mayo de 2008
Universidad de Barcelona

GLOBALIZAÇÃO E GOVERNO URBANO NOS MEGAEVENTOS OLÍMPICOS: OS JOGOS PANAMERICANOS DE SANTO DOMINGO-2003

Gilmar Mascarenhas
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
gil.mascarenhas@terra.com.br


Globalização e governo urbano nos megaeventos olímpicos: os Jogos Panamericanos de Santo Domingo-2003 (Resumo)

A realização dos Jogos Pan-americanos em Santo Domingo (2003) mobilizou significativos recursos públicos e privados, gerou polêmicas e alterou a paisagem urbana local. Enquanto grande evento gerido pelo governo urbano, manifesta a tensão entre interesses locais e globais, e se enquadra na grande via do “empresariamento urbano”, que garante centralidade na cena política urbana aos grandes agentes econômicos, e apresenta o novo ideário de intervenção urbanística pontual, limitada no tempo e no espaço. Nosso propósito é analisar a natureza deste projeto e sua possível inserção num modelo de “planejamento estratégico” e de gestão neoliberal da cidade, bem como identificar as tensões sociais correspondentes.

Palavras-chave: Governo urbano, olimpismo, megaeventos esportivos, Santo Domingo, gestão urbana


Globalization and urban government in sports mega-events: the Pan American Games of Santo Domingo (2003) (Abstract)

The Pan American Games of Santo Domingo (2003) mobilised substantial public and private resources, generated controversies and changed the local urban landscape. As a mega-event managed by urban government, it manifests the tension between local and global interests and can be viewed as belonging to the “urban entrepreneurialism” mainstream. It guarantees centrality in the urban political scene to great economic agents, and shows the new ideology of urbanism, which comprises punctual actions, limited in space and time. Our aim is to analyze the nature of this project and its possible insertion in a “strategic planning” model with neoliberal urban management, and to identify the social tensions.

Key words: Urban government, Olympics, sports mega-events, Santo Domingo city, urban management


O modelo de planejamento urbano tradicional (o master plan) vem sendo mundialmente substituído por um novo paradigma de planejamento e gestão das cidades, no contexto internacional de afirmação do neoliberalismo e enfraquecimento do poder público.  Este novo paradigma, também conhecido por planejamento estratégico, se estrutura em aberta parceria com o capital privado, pela via do “empresariamento urbano”[1], conferindo centralidade na cena política urbana a determinados agentes econômicos. O novo ideário sugere a intervenção urbanística pontual, limitada no tempo e no espaço, privilegiando, por exemplo, os grandes eventos esportivos, aqui estudados.

Na América Latina, as gestões e intervenções urbanísticas relacionadas aos Jogos Pan-americanos parecem corresponder a este novo paradigma de planejamento urbano. Recusa-se uma abordagem integradora, que busque enfrentar a problemática socioespacial da cidade, como por exemplo, ocorreu, ainda que parcialmente, nos Jogos Olímpicos de Barcelona (1992).

Os XIV Jogos Pan-americanos foram realizados na cidade de Santo Domingo, entre 1 e 17 de agosto de 2003.  Enquanto grande evento esportivo, sua organização mobilizou amplos recursos públicos e privados, gerou polêmicas, alterou a geografia urbana local e deixou um significativo legado para a cidade e para a sociedade dominicana em geral.

Por ocasião de um evento acadêmico internacional[2], tivemos a oportunidade de permanecer nesta cidade entre 18 e 26 de novembro de 2007. Visitamos todas as instalações esportivas e a vila pan-americana, além de consultar a documentação do COD (Comitê Olímpico Dominicano) e entrevistar alguns de seus diretores e técnicos. Também acessamos publicações e a imprensa local, no sentido de colher o maior e mais diverso volume possível de informações e impressões acerca do Pan-2003.   

Acreditamos que os Jogos de Santo Domingo revelam as tendências gerais do atual “urbanismo olímpico” de corte neoliberal..  Não obstante a reiterada retórica do “desenvolvimento sustentável”, foram desrespeitadas a legislação ambiental local e a de uso do solo urbano, em favor dos incontestáveis “interesses olímpicos”. E todo o planejamento do grande evento ignorou as reivindicações da sociedade local, que não foi convidada a participar dos debates a despeito da atuação constante dos movimentos sociais, já que registramos a ocorrência de repressão militar e graves confrontos entre a sociedade civil organizada e as autoridades locais, por ocasião dos jogos.

Em suma, pretendemos analisar todo este acentuado processo de redirecionamento no governo urbano como expressão da tensão entre interesses locais e globais. Nas palavras de Milton Santos (1996), o conflito entre horizontalidades e verticalidades, que inserem a cidade contemporânea no cerne da globalização.

O texto se divide em dois segmentos. No primeiro, apresentamos um panorama evolutivo dos eventos olímpicos, no intuito de apontar sua crescente e mutante influência urbanística e refletir sobre a tendência contemporânea, caracterizada pela acirrada disputa entre cidades pela realização destes eventos, com sensível efeito sobre o governo urbano. No segundo segmento nos dedicamos ao caso específico do Pan-2003 em Santo Domingo. Nosso propósito é analisar a natureza do projeto e sua possível inserção num modelo de “planejamento estratégico” e de gestão neoliberal da cidade, bem como identificar as tensões sociais no lugar, decorrentes da realização deste evento.

Os grandes eventos olímpicos e sua influência crescente no governo urbano

Cidades de todo o planeta lutam pela obtenção do direito de sediar as olimpíadas, tomadas como incontestável alavanca para a dinamização da economia local e sobretudo para redefinir a imagem da cidade no competitivo cenário mundial. Desfrutando de bilhões de espectadores, tais cidades se transformam, momentaneamente, no admirado centro das atenções em escala planetária. Também podemos dimensionar o imenso impacto destes eventos na dinamização e reestruturação das cidades. Em síntese, este esboço de estudo dos J.O. como poderoso agente de planejamento e mudanças no espaço urbano se insere num esforço mais amplo, o de avaliar o papel dos grandes eventos internacionais na reestruturação das cidades.

Seguindo a proposta de Muñoz (1996), entendemos por urbanismo olímpico o conjunto de pressupostos e intervenções sobre as cidades que acolhem os eventos olímpicos. No plano empírico trata-se, pela natureza intrínseca do fato esportivo, de dotar as cidades de instalações específicas, que atendam às distintas modalidades, dentro de padrões normativos internacionais estabelecidos pelo Comitê Olímpico Internacional. Trata-se também de criar condições de alojamento para os milhares de atletas, pessoal de apoio e membros dos comitês olímpicos, bem como para a imprensa. Além disso, quase sempre a cidade-sede requer expansão ou melhorias em sua infra-estrutura geral (transportes, telecomunicações, malha viária etc.). Trata-se, enfim, de um amplo conjunto de intervenções urbanísticas; um momento-chave na evolução e no planejamento de determinadas cidades. No plano mais geral, corresponde a uma forma específica de pensar a cidade e seu sentido.

As primeiras décadas (1896 a 1932) de J.O. deixaram poucos vestígios na paisagem urbana, devido ao estado incipiente do movimento olímpico. O amadorismo reinante, a falta de apoio oficial, o reduzido número de participantes[3], uma série de fatores enfim resultou num grau ainda incipiente e amador de organização e porte dos J.O., caracterizados pelo improviso e precariedade das instalações físicas. Segundo Muñoz (1996), somente em 1932 pode-se iniciar, embora timidamente, a falar em “urbanismo olímpico”, quando a cidade de Los Angeles utilizou os jogos como oportunidade de reerguimento da economia local (muito abalada pela crise de 1929), e edificou a primeira vila olímpica da história dos jogos com características de habitação permanente.

Após a Segunda Grande Guerra Mundial, no contexto da Guerra Fria, o olimpismo adquiriu força inédita, atraindo maior interesse e apoio governamental e verificando crescente adesão de atletas de diversos países[4]. Devemos todavia considerar o novo contexto sócio-econômico, para entender a afirmação de um “urbanismo olímpico” multiplicador de equipamentos públicos de lazer e esporte: a consolidação do Estado de Bem-estar Social na Europa Ocidental não apenas garantiu maior capacidade de consumo como também oportunizou a difusão da prática esportiva, dentro da política social “esporte para todos”. Desde então, cada olimpíada vem deixando (ou propiciando) marcas indeléveis na paisagem das cidades, tornando-se uma efetiva possibilidade de executar projetos de desenvolvimento urbano.

Nos anos 70, nota-se um aprimoramento desta conjugação entre J.O. e planejamento urbano. Entre urbanistas, crescia naquele momento a preocupação para com a obsolescência das áreas centrais. Nos J.O. de Munique (1972) e Montreal (1976) nota-se, segundo Muñoz (1996), uma clara política de instalação ou aproveitamento de equipamentos esportivos junto à área central, no sentido de valorizá-la. Podemos afirmar que neste momento os J.O. propiciaram a oportunidade de concretização de novas idéias urbanísticas, que ainda hoje posicionam-se no centro do debate sobre a renovação das cidades.

Moscou (1980) retoma e demarca o ápice da política de construção de habitações populares a partir de uma vila olímpica: nada menos que dezoito blocos de apartamentos pré-fabricados com 16 andares cada um. O imenso investimento soviético se explica não apenas pela conformidade de tal iniciativa com o modelo funcional e homogêneo de urbanismo socialista, mas sobretudo por ser aquela ocasião para a já decadente URSS uma das últimas chances de exibir ao mundo seu poderio (atlético, financeiro e organizativo).

Saramanch assumiu a presidência do COI naquele mesmo ano de 1980, imprimindo à entidade toda uma nova “filosofia”, contendo uma estratégia de clara mercantilização do olimpismo. Não por acaso, os J.O. seguintes (Los Angeles 1984) foram um marco no processo histórico de transformação dos jogos, no sentido do crescente poder empresarial em sua organização. O último evento no bloco capitalista (Montreal 1976) vinha sendo criticado pela ausência de um gerenciamento eficaz, do ponto de vista econômico. E assim, pela primeira vez, o Comitê Olímpico Internacional não firmou contrato com o poder público local, e sim com um comitê organizador composto basicamente por empresários.

No evento seguinte, Seul (1988) adotou plenamente a parceria público-privado: o governo local arcou com metade dos gastos (US$3.5 bilhões). A cidade investiu vultosas quantias e implementou um projeto urbanístico de elevada envergadura. Ademais, segundo McKay e Plumb (2001), conseguiu projetar mundialmente a imagem urbana, proporcionando efeitos multiplicadores a curto e médio prazo, consubstanciados no vertiginoso aumento do afluxo de turistas. Outra inovação em Seul foi a vila olímpica: trata-se de uso residencial para classes médias, e não mais destinadas ao uso popular, marca tradicional das vilas olímpicas até então. Mais uma vez, podemos observar a incidência de novas forças macro-estruturais, desta vez típicas do período neoliberal que se consolida sobretudo com a derrocada do bloco soviético em 1990: o declínio das políticas sociais, em favor dos princípios do mercado.

É neste contexto de radicais transformações no universo olímpico que Barcelona realiza os jogos de 1992, os primeiros no período “pós-queda do muro”, conforme intensamente anunciados. O caso Barcelona, por sua repercussão internacional como paradigma de “urbanismo olímpico”, merece  aqui maior apreciação.

Quando a cidade conquistou, em 1986, o direito de sediar os J.O., já funcionava há pelo menos quatro anos no setor de gestão urbanística da municipalidade uma equipe organizada para pensar os espaços olímpicos[5]. Portanto, desde o início dos anos oitenta o poder local percebia a possibilidade de realizar este grande evento como estratégia para empreender as intervenções urbanísticas previstas no “Plan General de Ordenación Urbana del Area Metropolitana de Barcelona”, formulado em 1976, e seguramente conduzido  pelo urbanista Oriol Bohigas.

Até meados dos anos oitenta, a gestão urbana seguiu o referido plano em detalhes, realizando intervenções locais diversas, com ênfase na recuperação do centro histórico. A partir de 1986, com a conquista do direito de sediar os J.O., surge a “segunda modernidade de Barcelona” (a primeira seria a famosa reforma urbana do Plano Cerdá). A perspectiva de realização da olimpíada mudou completamente a tônica e o alcance da gestão urbana: mudanças estruturais e espetaculares, além da formação de novas centralidades no âmbito metropolitano. Segundo Jauhiainen (1994: 47-48) a imagem passou a ser mais importante que a realidade, e o governo regional catalão (a Generalitat), “direitista”, se impôs gradativamente ao projeto “esquerdista” do governo metropolitano[6].

O fato é que os jogos propiciaram uma grande concentração de recursos públicos e privados, e sem dúvida estes foram investidos em infra-estrutura urbana, seguindo os princípios e objetivos gerais do plano metropolitano de 1976, com sua visão holística, seu conteúdo relativamente democrático e seu propósito de projeção internacional e re-inserção de Barcelona na rede de grandes cidades européias, especializando-a como centro de gestão e de serviços avançados.

De fato, em vez de realizar a clássica construção de um grande parque olímpico, Barcelona optou pela desconcentração, criando quatro parques menores, espalhados pela cidade. Dessa forma, evitou instalações superdimensionadas, condenadas à condição de “elefantes brancos” após o final dos jogos[7]. Instalações específicas, como o ginásio de basquetebol, o de hóquei e o estádio de beisebol, foram edificados em pequenas cidades vizinhas (respectivamente Badalona, Terrassa e Viladecans), carentes deste tipo de equipamento[8].

Em síntese, o urbanismo olímpico dos jogos de 1992 reflete de um modo geral a nova era: articulação de interesses privados, monumentalidade e projeção urbana. Mas Barcelona contava com um plano diretor, de âmbito metropolitano, gerado no contexto da redemocratização espanhola, e realizou a façanha de conjugar a natureza e exigências dos jogos com os objetivos fundamentais da gestão urbana.

Conhecida como Jogos Coca Cola (cidade-sede da empresa que é uma das maiores patrocinadoras do COI), e experiência de Atlanta (1996) consolida o modelo de organização dos jogos baseada na parceria público-privado, concentrada no esforço de retomada de desenvolvimento e na estratégia de profunda revitalização urbana.  Um expressivo impacto dos J.O. de 1996 foi a instalação de 450 mil milhas de cabos de fibra ótica, tornando Atlanta a segunda mais conectada cidade norte-americana, e atraindo empresas de alta tecnologia[9].

Em Sydney (2000), os gastos públicos voltaram a consistir no principal aporte financeiro à realização do evento, e sua vila olímpica expressa o maior grau de sofisticação já alcançado na história do olimpismo.  Pressionada pelos militantes do Greenpeace (a maior organização ambientalista do planeta), e seguindo os novos parâmetros delineados pelo COI, a organização do evento primou pela preocupação ecológica. Neste sentido, a vila olímpica constitui um sofisticado bairro litorâneo com energia solar e outras modernas tecnologias relacionadas ao meio ambiente, numa área antes abandonada, utilizada como pasto de animais e depósito de armamentos.  Um grande empreendimento imobiliário, com dois mil imóveis de elevado padrão, muitos vendidos antes mesmo da realização do evento.

Dispersando as instalações esportivas, Atenas (2004) pôs ênfase no sistema viário e de transporte, enfrentando um grande problema local. Sua imensa vila olímpica, contendo 366 edifícios de dois, três e quatro andares (2.292 apartamentos no total), e unidades habitacionais de três a cinco quartos, não deixa dúvida quanto ao elevado perfil sócio-econômico de seus futuros usuários, e já atraindo novos centros comerciais[10].

Certamente, os Jogos Pan-americanos não mobilizam as atenções (e os recursos) nesta mesma escala, embora se trate do maior evento multi-esportivo do mundo, depois das olimpíadas. Todavia, considerando as condições sócio-econômicas das cidades-sede, a maioria pertencente a países periféricos, o impacto de cada evento adquire relativamente considerável envergadura. Num cenário urbano de escassez de infra-estrutura básica, um evento desta dimensão pode contribuir para sanar determinados problemas. Mas pode também comprometer as igualmente escassas finanças públicas, e inclusive acirrar o nível de desigualdade social, conforme a distribuição espacial dos investimentos realizados. 

Santo Domingo 2003: o governo urbano entre os ditames globais e as tensões locais

Capital da República Dominicana, Santo Domingo é uma aglomeração urbana cujo ritmo de crescimento é elevado mesmo para os alarmantes parâmetros latino-americanos. Se em 1930 a cidade abrigava apenas 35 mil habitantes, vinte anos mais tarde já eram 150 mil moradores; 350 mil habitantes em 1960 e quase o dobro deste contingente dez anos depois; 1,3 milhão em 1980, 2 milhões em 1990 e 3 milhões de indivíduos na entrada do século atual. Em apenas sete décadas a cidade aumentou em quase cem vezes seu efetivo demográfico.

 Os drásticos efeitos deste processo avassalador são acirrados pela péssima distribuição nacional de renda e pela omissão do Estado em relação às questões sociais. Mais de dois terços da população residem em habitações subnormais ou bairros marginalizados, desprovidos de infra-estrutura básica, conforme aponta a geógrafa dominicana Amparo Chantada (2006).

Após três séculos de ostracismo, as primeiras décadas do século XX trouxeram à cidade de Santo Domingo o início de um processo de industrialização, impulsionado pela ocupação norte-americana na ilha. Uma nova burguesia vai então ocupando a zona costeira marítima, no sentido oeste, definindo um padrão de ocupação que perdura ainda hoje, concentrando as principais instituições culturais (Biblioteca Nacional, Universidade), parques, shopping centers e os serviços turísticos (cassinos e grandes hotéis).

Por outro lado, no sentido norte e margeando o rio Osama, distanciando-se progressivamente da valorizada zona da praia, foram se formando os bairros fabris e os núcleos de urbanização informal do proletariado, ainda hoje abandonados pelo poder público. Este “cinturão industrial norte” se adensou a partir de 1950, no bojo do processo de substituição de importações, mas esbarrou fisicamente sua expansão no rio Isabela, limite natural ao norte que induz o espraiamento urbano longitudinal de Santo Domingo na direção leste-oeste, já que ao sul da cidade está a orla marítima. Como solução, foi criada uma nova zona industrial na periferia oeste. Esta decisão urbanística definiu o setor leste (as terras situadas para além do rio Osama) como a nova frente de expansão urbana enobrecida, a partir da década de 1970. Veremos mais adiante como o Pan-2003 se insere plenamente nesta nova estrutura interna da cidade, consolidando o atual eixo de crescimento urbano leste.

Em Santo Domingo (2003), foram gastos 240 milhões de dólares, oito vezes mais do que o inicialmente previsto, gerando alto endividamento do país junto ao FMI. Neste quadro de injustiça social, uma liderança nacional, o padre salesiano Rogelio Cruz, da teologia popular, mobilizou a sociedade contra os desperdícios e acintes dos jogos na República Dominicana. O pároco denunciou os elevados custos do evento, num país repleto de graves problemas materiais; o luxo das instalações e da vila olímpica, num país que jamais investira no esporte (seus atletas treinam de pés descalços)[11].

Neste sentido, no dia da abertura dos jogos, Rogelio Cruz liderou, a partir de Cristo Rey, bairro pobre da capital, uma passeata de 500 manifestantes, portando uma tocha da fome (paródia à tocha olímpica). O protesto, que se propunha a denunciar a situação nacional (e não impedir ou boicotar o evento) foi violentamente reprimido pela força policial militar, a tiros de escopeta e gás lacrimogêneo[12]. O bairro manteve-se militarmente ocupado durante todo o evento[13]. Outras manifestações ocorreram, em todo o país, mas apenas na capital houve repressão, para manter a imagem “positiva” dos jogos.

Para quem se propõe a analisar este processo em sua amplitude, o primeiro questionamento suscitado se direciona ao retorno social dos investimentos públicos. Questionamento particularmente importante numa cidade cuja estruturação interna é historicamente marcada pela exclusão socioespacial, e que ainda em nossos dias apresenta uma gama lamentável de problemas crônicos de habitação, saneamento, transportes, infra-estrutura médico-hospitalar, dentre outros.

Um segundo questionamento situa-se no âmbito da cidadania, particularmente dos canais de participação da sociedade civil na gestão da cidade. Desde a candidatura para realização dos jogos, passando pela formação do COPAN (comitê gestor do evento) e pela administração dos recursos e implementação das operações, o executivo municipal manteve alijados de todo o processo decisório, amplos segmentos da sociedade, a despeito de suas reivindicações constantes de participação.

Vimos que o atual vetor de expansão urbana em Santo Domingo a atender os interesses do capital imobiliário é a zona leste da cidade. O novo aeroporto, o monumento “Faro a Colon”, a principal autopista (a litorânea “Autopista de Las Américas”) da cidade, o autódromo e o novo hipódromo, são algumas das intervenções governamentais no sentido de valorizar esta zona. Fora também ali criado nos anos 80 uma grande área verde, o Parque Mirador Leste. O Copan optou por implantar neste parque a quase totalidade das instalações olímpicas: onze novos espaços.

A sociedade civil, em especial os segmentos mais bem informados, não aprovou a medida, produzindo inúmeros abaixo-assinados e manifestações durante a derrubada de árvores e obras de terraplanagem, em defesa do “pulmão” da zona leste e alegando que a cidade não deveria reduzir sua área verde em favor de novas instalações esportivas. Todavia, ratificou-se a natureza autoritária do governo dominicano.

Segundo Scheker (2003, p. 114-115), o governo tentou acalmar as pressões anunciando que apenas 4% da superfície do parque seria desmatada. Entretanto, ao final do evento, incluindo os estacionamentos criados, os novos acessos e outras intervenções, pode-se avaliar em quase 60% a área do parque sofreu alteração.

A Vila Olímpica também gerou grande polêmica, desde os primeiros debates a seu respeito. Por ocasião da candidatura de Santo Domingo junto à ODEPA, o projeto inicial se revestia de caráter megalomânico: oito espigões, cada um com 23 andares, totalizando 704 “residências de luxo”, situados em área nobre da cidade, em frente ao Parque Olímpico. O presidente da república, intransigente defensor do projeto, lhe denominava “Pequena Nova Iorque”, mais uma vez expressando a aqui já citada influência cultural norte-americana.

Considerado caro e pouco funcional, este projeto não encontrou o apoio necessário. A experiência recente de Winnipeg, no Canadá (Pan-1999) acenava para opções de baixo custo, através do aproveitamento temporário de instalações pré-existentes, como pavilhões escolares. Mesmo os Jogos Centro-americanos de 1986, em Santiago, deixaram no país o legado de edifícios modestos e funcionais, bem como a experiência dos Jogos Nacionais realizados em São Pedro de Marcoris, que três anos antes chegou a oferecer sua vila olímpica à Universidad del Este, para um projeto destinado a abrigar instalações do curso de Educação Física[14]. Outro grave empecilho foram as denúncias de licitação ilegal e favorecimento de “colaboradores próximos” do COPAN[15].

Após a sondagem de três outros destinos, a vila acabou sendo construída em La Caleta, bairro situado no município vizinho (a cidade balneária de Boca Chica), distante 30 km do centro de Santo Domingo, 35 km do Parque Olímpico Pablo Duarte, e mais de vinte quilômetros da maior parte das instalações do Pan-2003 (Parque Mirador Leste). Tal localização evidentemente gerou críticas, mas o COPAN sustenta as vantagens locacionais da proximidade do Aeroporto Internacional Las Américas. Sabe-se porém que o principal motivo foi o potencial de comercialização dos imóveis após o evento: a proximidade da famosa praia de Boca Chica e a inserção no vetor leste de expansão nobre da área metropolitana de Santo Domingo.

Considerações finais

As competições olímpicas são mega-eventos multi-esportivos que resultam em clara oportunidade para o novo modelo de planejamento e gestão das cidades, calcado na lógica do mercado. Ao resgatar a experiência mundialmente acumulada de realização de grandes eventos olímpicos, no que tange especificamente ao urbanismo, percebemos como o olimpismo, após um tímido início em 1896, foi adquirindo grande envergadura, poder e impacto local; e como foi incorporando paulatinamente o interesse social em suas realizações, particularmente no pós-segunda guerra mundial. Todavia, mais tarde, com o advento de um novo contexto histórico, no qual as forças neoliberais se impõem com maior intensidade, o olimpismo se revestiu de um caráter altamente empresarial.

Em nossa avaliação, nos últimos 25 anos se observa nitidamente no urbanismo olímpico a tendência à subordinação dos governos locais aos ditames do olimpismo. Neste sentido, a candidatura de uma cidade significa acolher uma série de exigências (equipamentos esportivos sofisticados, condições privilegiadas de acessibilidade, alojamento e segurança para as comitivas etc.), que implicam em grande investimento. Estamos falando de recursos materiais já escassos, sobretudo em cidades latino-americanas, que acumulam dívidas sociais históricas.

A cidade abriga, no funcionamento econômico e em sua gestão, a “ordem distante”, isto é, os nexos globais[16]. No caso aqui estudado, esta ordem distante está representada pelo desejo de cada cidade se projetar mundialmente através da realização de grandes eventos esportivos. Este desejo se fundamenta no contexto da “guerra dos lugares”, na disputa pela atração de investimentos privados. Mas para realizar tais eventos o governo urbano necessita mobilizar vastos recursos, articular uma ampla coalizão de interesses empresariais e políticos. No âmbito do “planejamento estratégico”, são eleitos pontos e zonas privilegiadas no espaço urbano. Acentua-se portanto a escassez de investimentos na periferia, e de um modo geral nos serviços públicos essenciais.

Em linhas gerais, o Pan-2003 consolidou as tendências pré-existentes de estruturação interna de Santo Domingo, favorecendo amplamente o setor leste da cidade, em expansão. A zona norte se mantém abandonada e estigmatizada. A zona leste apenas recebeu melhorias nas instalações esportivas do Parque Olímpico. Neste sentido, muito pouco contribuiu na perspectiva do “equilíbrio urbano”.

Em suma, a cidade que emergiu do evento Pan-2003 consolidou um modelo excludente e segregador. Do ponto de vista urbanístico, o principal aspecto desta política urbana é a concentração espacial dos investimentos em áreas socialmente privilegiadas. A zona leste efetivamente se beneficiou com a realização deste evento que muito onerou o poder público. Um projeto que gerou tensões entre governo local e a sociedade civil, tensões que tentamos enquadrar enquanto conflito entre interesses da ordem capitalista global e princípios de cidadania, de gestão democrática das formas de apropriação do espaço público.

Notas

[1]  Harvey, 1992.

[2] II Foro Internacional Transformaciones Sociourbanas y regionales frente a la globalización. Santo Domingo, 19 a 23 de novembro de 2007.

[3]  Na primeira olimpíada da era moderna, em Atenas (1896), compareceram apenas 285 atletas, de treze países. Atualmente os jogos atraem mais de dez mil atletas. Nas duas edições seguintes (Paris 1900 e St Louis, 1904), utilizou-se uma estratégia para garantir público expectador mínimo: realizar os jogos no mesmo lugar e momento de eventos bem mais importantes, as exposições universais. Ainda assim, em 1904, na cidade norte-americana de Saint Louis, apenas nove países compareceram aos jogos.

[4] Augustin, 1995.

[5] Tello, 1993, p.107

[6] Visão menos critica apresentam Tello (1993) e Carreras e Tello (1998). Mas Jauhiainen lamenta justamente a falta de análises profundas e críticas acerca do urbanismo catalão, festejado mundialmente como paradigma, e gerador de inúmeros artigos e livros que não passariam de “a post-modern narrative fiction” (op.cit. p.49).

[7] Vale frisar que, das vinte instalações construídas para os Jogos Olímpicos de Atenas (2004), apenas duas vêm recebendo uso efetivo (O Globo, 15/03/2005).

[8]  Truñó, 1996, p.55. 

[9]  Mckay & Plumb, 2001.

[10]  Burgel, 2004, p.81.

[11] Le Monde, 10/08/2003.

[12] Ver, dentre outras fontes, www.listin.com.do (jornal local).

[13] O então presidente nacional, Hipólito Mejía, declarou à imprensa que o referido padre, a quem designava de “o novo Mao Tse Tung dominicano”, padecia de problemas psíquicos. 

[14] Schecker, 2003, p. 122-123.   

[15]  Schecker, 2003, p.130).

[16]   Lefebvre, 1991.

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Referencia bibliográfica:

MASCARENHAS, Gilmar. Globalização e governo urbano nos megaeventos olímpicos: os Jogos Panamericanos de Santo Domingo-2003. Diez años de cambios en el Mundo, en la Geografía y en las Ciencias Sociales, 1999-2008. Actas del X Coloquio Internacional de Geocrítica, Universidad de Barcelona, 26-30 de mayo de 2008.<http://www.ub.es/geocrit/-xcol/344.htm>

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