IX Coloquio Internacional de Geocrítica

LOS PROBLEMAS DEL MUNDO ACTUAL.
SOLUCIONES Y ALTERNATIVAS DESDE LA GEOGRAFÍA
Y LAS CIENCIAS SOCIALES

Porto Alegre, 28 de mayo  - 1 de junio de 2007.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

FRONTEIRAS ENTRE CIÊNCIA E SABERES LOCAIS:
ARQUITETURAS DO PENSAMENTO UTÓPICO

Cássio Eduardo Viana Hissa
Programa de Pós-Graduação em Geografia
Universidade Federal de Minas Gerais
cassioevhissa@terra.com.br


Fronteiras entre ciência e saberes locais: arquiteturas do pensamento utópico (resumo):

Os lugares, sobretudo nas sociedades modernas, são universos socioespaciais feitos de limites: alteridades, exclusões, cerceamentos de diversas origens. Entretanto, os lugares são, ainda, espaços de encontro e diálogo: universos de contato e abertura. As interpretações científicas que se referem aos lugares, em muitas circunstâncias, trabalhadas pela ciência moderna especialmente à luz de paradigmas conservadores, podem resultar na reprodução de limites, na obstrução às liberdades democráticas. Assim, muitas vezes, excluem-se ricas experiências processadas nos lugares. Entretanto, estas experiências — uma manifestação dos saberes e das tradições culturais locais —, quando postas em diálogo com o conhecimento científico referenciado por uma nova ética transdisciplinar, ao expressar possibilidades de abertura política e de expansão das fronteiras do saber, podem construir esperanças, fortalecer utopias e redesenhar lugares de transformação social.

Palavras-chave: cidades e lugares, saberes locais, ciência e transdisciplinaridade, fronteiras do saber, cidades de utopia.


The boundaries between science and local knowledge: architectures of utopian thought (abstract):

Places, especially in modern societies, are sociospacial universes made of limits: alterities, exclusions, restraints of various origins. However, places are also room for meeting and dialogue: universes of contact and opening. The scientific interpretation referring to places, which in many cases are seen, by modern science, in the light of conservative paradigms, can result into the reproduction of limits, obstruction to democratic liberties. So, rich experiences processed in the places are frequently excluded. Nevertheless, these experiences – a manifestation of local cultural knowledge and traditions –, when take part in a dialogue with scientific knowledge which works with a new transdisciplinar ethics, and when express possibilities of political opening and expansion of the boundaries of knowledge, may build hope, strengthen utopias and redraw places of social transformation.

Keywords: cities and places, local knowledge, science and transdisciplinarity, boundaries of knowledge, utopian cities.



Territórios da ciência

A crise pela qual passa a ciência, representada pelos diversos territórios do conhecimento disciplinar, estimula rediscussões acerca dos seus significados. Sobre a referida crise, pode-se dizer que: a) está inserida no contexto de crise global, para que se faça especial referência à crise dos paradigmas ocidentais de todas as naturezas; b) está incorporada à própria crise da modernidade ocidental, posto que a ciência é compreendida como um dos seus pilares; c) está integrada à própria imagem espiral, tecida pelas promessas da modernidade, cuja linha mestra é constituída pela razão — assim como pela sua crise — e pela idéia de progresso cultivado pela racionalidade moderna que reproduz exclusões. No entanto, a ciência interrogada, rediscutida — que aqui se focaliza —, apresenta definições bastante rígidas, já convencionais, que, também a partir das características que reúne, são tomadas como consensuais no ambiente em que são desenvolvidas as suas práticas, especialmente na universidade moderna. Contudo, as discussões acerca dos significados da ciência, com o propósito de reinventar as suas trajetórias — tornando-a mais comprometida com a transformação, com a justiça e com a liberdade —, são relativamente obstruídas pelo seu conservadorismo constitutivo. A ciência se afirmou como a palavra que pretende se elevar sobre todas as demais; como o conhecimento hegemônico que, para existir como ciência e como hegemonia, exclui ou deslegitima todas as outras formas de saber. Sublinha-se, portanto, a ciência moderna. O adjetivo já encaminha qualificações para o referido exercício.

O nascimento da ciência moderna na Europa é caracterizado, de forma expressiva, por Paolo Rossi (2001). Os movimentos do nascedouro estão mais fortemente concentrados no século XVII. Entretanto, há traços, menos ou mais fortes, marcantes e densos, que permitem, por diversos caminhos históricos e filosóficos, a reconstituição desse exercício que se deseja feito exclusivamente de razão[1]. Não há, por sua vez, conforme o historiador, um lugar de origem do que se chama, na contemporaneidade, de ciência moderna. Ela emerge em cantos distintos da Europa: Polônia, Inglaterra, França, Dinamarca, Alemanha, Itália. Tampouco, a ciência teria nascido nos laboratórios de pesquisa, nos lugares da universidade que, mais adiante, incorporaria o adjetivo: moderna, a universidade. Sobre a ausência das universidades nas origens do exercício científico, escreve o autor:

A ciência moderna não nasceu na tranqüilidade dos campus ou no clima um tanto artificial dos laboratórios de pesquisa ao redor dos quais, mas não dentro deles (como acontecia desde séculos e ainda acontece nos conventos) parece escorrer o rio ensangüentado e lamacento da história. E por isso uma simples razão: porque aquelas instituições (no que concerne àquele saber que denominamos ‘científico’) não tinham nascido e porque aquelas torres de marfim, utilizadas com tanto proveito e tão injustamente insultadas no decorrer do nosso século, não tinham sido ainda construídas pelo trabalho dos ‘filósofos naturalistas’ (ROSSI, 2001, p. 9).[2]

A trajetória dos relatos trabalhados pelo historiador italiano, entrecortados por reflexões de natureza filosófica, resultando na produção de um texto que assume, em determinadas circunstâncias, o mais forte brilho de caráter literário, conduz a leitura para os clássicos da filosofia da ciência e, seguramente, para os próprios pensadores, cientistas, fundantes da ciência moderna: Copérnico (1473-1543), através da proposição da teoria heliocêntrica, subverte a ordem contida no universo aristotélico; Galileu (1564-1642), que lecionou nas universidades italianas de Pisa e de Pádua, marca, ainda, para muitos estudiosos da filosofia, o início da época moderna, com a revolução científica — para alguns, marca o próprio advento da concepção moderna de ciência; Francis Bacon (1561-1626) concede seqüência à tradição do empirismo inglês, encaminhando uma leitura do raciocínio da indução que a aproxima da efetiva idéia do método da criação; John Locke (1632-1704), considerado o propositor inicial de uma teoria do conhecimento moderno, desenvolvido, conforme o inglês, a partir da experiência sensível — empirismo — de modo a atingir, mais adiante, as idéias, o pensamento, a razão; René Descartes (1596-1650), quase sempre considerado o primeiro filósofo moderno, tomado como o fundador do racionalismo: a razão que opera por si só, independentemente das sensações; Newton (1642-1727), que desenvolve a teoria da gravitação universal.[3]

Auguste Comte (1798-1857), por sua vez, é organizador das referências positivistas que norteariam a produção do conhecimento durante importante momento da história das ciências sociais da passagem do século XIX para o XX. Auguste Comte (1983) atribui, curiosamente, a Galileu Galilei, ao racionalismo francês, representado por René Descartes, e ao empirismo inglês, de Francis Bacon e John Locke, a paternidade positivista e o desenvolvimento dos alicerces da filosofia positiva, objetiva, científica. De todos os paradigmas da modernidade, contudo, talvez seja mesmo o positivismo o mais conservador e o que mais bem expressa os movimentos da ciência moderna.

Feita de desejos de objetividade, a ciência moderna produz, com os seus exercícios de razão, uma trajetória de movimentos que auxiliam a sua própria compreensão. Isso significa que: com a razão emerge a crise da razão; com a ciência moderna, emerge a crise da ciência. Em outros termos, observa-se que a crise da ciência é, também, uma manifestação da própria razão tateante, da sua crise e dos paradigmas que a referenciam.

Os referidos desejos de objetividade, por seu turno, encaminham o problema para o próprio sujeito — contraditoriamente, de modo a encaminhar leituras objetivas do mundo, apartado do objeto que procura estudar. Ele deverá, assim, conforme as orientações do método científico (como se o método pudesse ser reduzido à unidade), se posicionar com objetividade diante do mundo sob leitura: isso pressupõe um desejo complementar de separação: entre o sujeito que lê o mundo e o objeto de sua leitura. No entanto, quem é o sujeito que lê o mundo senão o próprio sujeito do mundo tornado intérprete, cientista, através da formação que empreendeu e das trajetórias que construiu? Para que faça referência à ampla questão do conhecimento, assim rediscutido, Edgar Morin retoma a reflexão acerca da presença/ausência do sujeito na produção científica:

Nesse fenômeno de concentração em que os indivíduos são despossuídos do direito de pensar, cria-se um sobrepensamento que é um subpensamento, porque lhe faltam algumas propriedades de reflexão e de consciência próprias do espírito, do cérebro humano. Como ressituar então o problema do saber? Percebe-se que o paradigma que sustém o nosso conhecimento científico é incapaz de responder, visto que a ciência se baseou na exclusão do sujeito. É certo que o sujeito existe pelo modo que tem de filtrar as mensagens do mundo exterior, enquanto ser que tem o cérebro inscrito numa cultura, numa sociedade dada. Em nossas observações mais objetivas entra sempre um componente subjetivo. (MORIN, 1999, p. 136-137).

Ora, como conceber observações objetivas ao se considerar a inevitabilidade de inserções subjetivas? Não há leitura objetiva que não seja, sempre, uma leitura subjetiva. Toda inserção subjetiva anula qualquer desejo de objetividade. A ciência procurou permanentemente negar tal condição: a presença do sujeito na própria leitura que desenvolve. Uma leitura, uma interpretação, uma análise asséptica, livre do sujeito, como se fosse possível, a ele, livrar-se da sua própria condição de leitor, de intérprete, de analista dos problemas dos quais se ocupa: o objeto interpretado é, também, a expressão do sujeito que interpreta, que lê. Além disso, como imaginar que a leitura não seja, também, sempre, leitura sobre leitura? Portanto, a leitura do mundo, empreendida pelo sujeito, é sempre transtextual. Não há como desconsiderar, nessas circunstâncias, também, o caráter coletivo da qual se reveste a leitura do sujeito do conhecimento, que deverá ser sempre um sujeito do mundo para que possa produzir saber. Caso não seja assim — o sujeito —, o que pensar do conhecimento produzido, apartado que está do mundo? Um conhecimento esvaziado de mundo, de saber? Um conhecimento de objetos, esvaziado pelo próprio esvaziamento dos sujeitos? O objeto é uma construção teórica do sujeito e, mais adiante, uma interpretação empreendida por ele. Dois exercícios de apartheid, de dicotomias alheias à própria natureza do saber, constituíram a ciência moderna. O primeiro deles: a distinção entre sujeito e objeto. O segundo: a delimitação dos territórios disciplinares.

O positivismo, talvez, tenha mesmo sido a referência por meio da qual a ciência se expressa, progressivamente, através dos seus territórios disciplinares. Ao definir, para sua própria utilização, os critérios que fazem a sua existência, o exercício científico, especialmente sob as orientações positivistas, se expressou através das disciplinas, das especializações, do conhecimento particularizado. Além de legitimado pelo próprio contexto histórico e social que se refere à modernidade, o conhecimento disciplinar desenvolve a expectativa de que o exercício científico vertical encaminharia análises progressivamente menos superficiais acerca dos objetos sob investigação. A cada território disciplinar, por sua vez, corresponderia: um objeto ou um conjunto de objetos, particulares à disciplina; um método ou um conjunto de métodos de pesquisa, próprios da disciplina.

A definição dos campos disciplinares, portanto, não é apenas de natureza técnica, mas, também, de caráter político, ideológico. Os campos disciplinares são, de fato, territórios do saber limitados, cerceados em sua sabedoria, pelos próprios limites impostos pelo processo que os define. Os campos disciplinares são territórios do conhecimento, feitos de limites e a partir deles, que encerram a sabedoria ao ponto dela se tornar irreconhecível sob a referência do próprio saber.

Os limites, assim, linhas imaginárias de defesa dos territórios disciplinares, voltados para dentro dos diversos campos, desenvolvem a expectativa de autonomia do conhecimento. Nessas circunstâncias, as disciplinas, em seus exercícios epistemológicos, teóricos, metodológicos, procuram delimitar os seus objetos de estudo e seus métodos de pesquisa. Com isso, também, constroem o discurso da autonomia disciplinar: cada disciplina, portanto, supostamente, teria o seu discurso próprio, a sua particular linguagem, os seus códigos particularizados de caráter técnico e metodológico. Entretanto, os limites que separam os territórios disciplinares carregam consigo as fronteiras, que significam espaços de abertura para o mundo exterior que diz respeito a cada campo especializado. Fronteiras interrogam limites. Aberturas borram limites que se transformam em territórios de contato.

Para que seja científico, o saber — expressão do exercício crítico e reflexivo da ciência — deverá, sempre, ser transdisciplinar. Desde as suas origens, o saber científico é transdisciplinar: por natureza, ele é feito de fronteiras, zonas de contato, ambiências de transição, que ainda se expandem diante da possibilidade de diálogo externo. Isso significa que o movimento de delimitação dos territórios disciplinares é, por diversas razões, algo que se aproxima da própria negação da ciência que, de saber, progressivamente se transforma em conhecimento técnico[4]. As anotações devem, em parte, ser compreendidas como derivações de exercícios reflexivos desenvolvidos por Edgar Morin:

O desenvolvimento da ciência ocidental desde o século 17 não foi apenas disciplinar, mas também um desenvolvimento transdisciplinar. Há que dizer não só as ciências, mas também ‘a’ ciência, porque há uma unidade de método, um certo número de postulados implícitos em todas as disciplinas, como o postulado da objetividade, a eliminação da questão do sujeito, a utilização das matemáticas como uma linguagem e um modo de explicação comum, a procura da formalização etc. A ciência nunca teria sido ciência se não tivesse sido transdisciplinar. (MORIN, 1999, p. 135-136).

As origens transdisciplinares do conhecimento científico estimulam a reflexão acerca de processos que se referem às negações e contradições da ciência. Através dos referidos processos, a ciência se estabelece e progressivamente se moderniza através da técnica e, sobretudo, se expressa por meio de domínios disciplinares. Contradição essencial: negar a sua própria origem de modo a se estabelecer como ciência. No entanto, os percursos contemporâneos da modernidade explicitam contradições ainda mais densas; desejos estranhos às próprias referências norteadoras da ciência: negar a negação. Ainda que através de movimentos tomados como alternativos, contra-hegemônicos, já não são incomuns as demandas pelas incursões transdisciplinares. Pelo contrário, as imagens teóricas que se referem à transdisciplinaridade já se desgastam, pelo uso equivocado e inadvertido do conceito, pela insistência recorrente marcada pela ausência de uma formação transdisciplinar dos próprios sujeitos do conhecimento. De algum modo, também, pelo já incorporado poder que os legitima, prevalecem os discursos em prol das disciplinas, voltados para o fortalecimento dos limites dos territórios da ciência — domínios político-disciplinares —, que estimulam, ainda, os papéis de fortalecimento das corporações que assumem, definitivamente, o caráter mercantil. Ainda assim, a manifestação em prol das incursões transdisciplinares significa, desde já, a expressão de uma ciência interrogada e da explicitação do desgaste do paradigma disciplinar.

As anotações já foram encaminhadas: o saber científico é transdisciplinar, feito de limites, mas, especialmente, de fronteiras que procuram a sua expansão. Fronteiras moventes. A mobilidade das fronteiras entre os saberes científicos, por sua vez, faz o movimento dos territórios disciplinares: mobilidades transgressoras, que subvertem o conhecimento para, permanentemente, fazê-lo buscar o saber. Assim, os territórios disciplinares, a despeito do discurso conservador que fortalece limites, tendem ao movimento, à plasticidade e, no que interessa à reflexão, à constituição e extensão das zonas de contato entre os saberes. Tais espaços fronteiriços, portanto, são constantemente povoados por conflitos e por diálogos que fazem saberes moventes.

Saberes moventes, produzidos por diálogos — processos de tradução —, que povoam fronteiras. Por sua vez, a própria natureza da mobilidade dos saberes, que habitam fronteiras, faz com que o saber, transgressor, tenda, ainda, à experiência que ultrapassa os limites da ciência. Não se está mais, nessas circunstâncias, no âmbito da reflexão acerca dos movimentos internos à ciência. Não se está mais, tampouco, no âmbito das experiências estritamente universitárias.

Para além das possibilidades de atravessamento envolvendo territórios disciplinares — e, portanto, no âmbito exclusivo da ciência —, saberes moventes, que expressam a arte da ciência que se reinventa na sua permanente transformação (através de diálogos de fronteira), tendem a se aproximar dos demais saberes externos à própria ciência. Aproximam-se, assim, dos universos de existência, dos saberes comuns, da experiência, da vida cotidiana dos lugares. Volta-se o pensamento, ainda, para o conceito de transdisciplinaridade, como o definiu Félix Guattari (1992), ou para a tessitura teórica, epistemológica, trabalhada por Boaventura de Sousa Santos (2006a): a ecologia de saberes: focalizando possibilidades de diálogo entre saberes hegemônicos (científicos) e não-hegemônicos (saberes comuns, locais). Já se está noutro domínio: no das utopias que referenciam a reinvenção da ciência — reinvenção do homem e das humanidades — e a valorização dos lugares da existência.


Saber comum

Comum: o que é habitual, corriqueiro e que está presente nas rotinas, nos cotidianos dos indivíduos, dos grupos sociais. O comum é abundante, ao contrário do que é raro e excepcional. Banal, vulgar, conhecido, o comum é o exercício da freqüência. Costumeiro, o comum é o chão das coisas, rasteiro, simples, ordinário, geral. O comum é o corriqueiro, diário, trivial. De usado, no dia-a-dia, o surrado, comum, soa como o óbvio. No entanto, ao que é comum atribui-se, pelo uso, a sua condição prática adquirida pela experiência, pelo experienciar: existir, experimentar o mundo, viver o mundo nos lugares feitos de cotidiano.

O saber comum, assim adjetivado, tem os seus territórios demarcados pela própria ciência. A ciência: uma bússola — progressivamente mais moderna, radical-conservadora, que intensifica a sua modernização pela via do desenvolvimento das técnicas das quais se serve — que aponta, excludente, para os territórios do saber compreendidos como não científicos. Assim, a própria ciência define o que poderá ser tomado como saber comum. Ao se definir, ela própria, como ciência, a partir de critérios que estabelece para interpretar a si mesma, exclui dos seus territórios o que não se enquadra nesses mesmos critérios que desenvolve para que possa ser delineada. Fora dos seus domínios, portanto, está o saber comum, vulgar, senso comum, que é apenas fazer porque sabe através da própria rotina do fazer.

Boaventura de Sousa Santos, contudo, ao refletir sobre distinções entre ciência e senso comum, oferece caminhos interpretativos oportunos para a compreensão crítica de ambos. Se não define o que é ciência, o senso comum — saber comum — legitima a distinção que o separa, oprimido, do conhecimento científico. A imposição do preconceito, convencionalmente atribuída ao senso comum como uma de suas características, emerge, originária da ciência, como um reflexo inevitável da distinção:

A distinção entre ciência e senso comum pode ser feita tanto a partir da ciência como do senso comum, mas o sentido é diferente em cada um dos casos. Quando é feita pelo senso comum, significa distinguir entre conhecimento objectivo e mera opinião ou preconceito. Quando é feita pelo senso comum, significa distinguir entre um conhecimento incompreensível e prodigioso e um conhecimento óbvio e obviamente útil. Por conseguinte, a distinção está longe de ser simétrica. Além disso, quando é feita na perspectiva da ciência, essa distinção tem um poder que é excessivo face ao conhecimento que a torna possível. Como qualquer conhecimento especializado e institucionalizado, a ciência tem o poder de definir situações que ultrapassam o conhecimento que delas detém. É por isso que a ciência pode impor, como ausência de preconceito, o preconceito de pretender não ter preconceitos. (SANTOS, 2000, p. 107).

As anotações parecem sugerir que a ciência, ao se definir, desenvolve espaços de apartheid, edifica limites para além dos quais são encaminhados os saberes comuns. No entanto, esses estão em todos os lugares porque lhes concede identidade. Se a ciência se expressa através dos seus territórios disciplinares, ainda que moventes, os saberes comuns se espraiam por todos os lugares: planícies feitas de rotina, do banal, do cotidiano dos lugares. Encontram-se, pois, em todas as comunidades, locais, estendem-se através dos guetos e das tribos, resistem à invisibilidade que lhe deseja conferir a própria ciência. A observação de Clifford Geertz parece se aproximar da curiosidade e da crítica acerca da descoberta da inteligência e da sabedoria na vida comum:

Assim, Durkheim descobriu formas elementares de vida religiosa entre os aborígenes australianos; Boas, um talento espontâneo para o desenho na costa do noroeste; Lévi-Strauss, uma ciência ‘concreta’ no Amazonas; Griaule, uma ontologia simbólica em uma tribo da África Ocidental; e Gluckman, um jus commune implícito em outra tribo da África Oridental. Não havia nada nos subúrbios que não existisse antes na cidade antiga. [...] No entanto, embora todas essas descobertas tenham tido um certo sucesso, pois, hoje em dia, ninguém acha que ‘primitivos’ — se é que existe alguém que ainda use este termo — são pragmatistas simplórios que andam tateando em busca de conforto em meio a uma névoa de superstições, elas não conseguiram fazer calar a pergunta essencial: onde exatamente está a diferença — porque mesmo os defensores mais acirrados da proposição que qualquer povo tem seu próprio tipo de profundidade (e eu sou um deles) admitem que existe uma diferença — entre as formas já trabalhadas da cultura acadêmica, e aquelas ainda toscas, da cultura coloquial? (GEERTZ, 2002, p. 113).

Assim, os saberes comuns são definidos e deslegitimados pela ciência, sob a referência do próprio conhecimento científico. O saber comum é reduzido à banal opinião. Não é explicativo. Não é metódico. Não é crítico. É transmitido e absorvido através das gerações e, de um modo geral, através da própria tradição oral. Assim, os saberes comuns são, em princípio, típicos das nações ágrafas. Os saberes construídos pelas comunidades, sociedades e nações ágrafas, muitas vezes milenares, atravessam gerações e marcam a história dos povos. No mundo moderno, ocidental, contudo, em que a escrita é uma das marcas da tradição, os saberes comuns também circulam através de canais semelhantes, através da oralidade e do fazer comum.

Algumas características do saber comum marcam a própria caracterização do denominado senso comum, assim como dos saberes ditos locais, cotidianos. Sob a referência da ciência — definidora do que é e do que não é científico —, os saberes comuns são caracterizados pela sua subjetividade, representativos que são dos indivíduos (sujeitos), dos grupos, das comunidades. É certo que esses saberes, portanto, deverão variar conforme o sujeito e de acordo com o contexto social, cultural, no qual se insere. Diante disso, encaminham-se as questões: qual saber, originário do sujeito, não incorporará a subjetividade? Se o próprio conhecimento científico incorpora subjetividades — originárias do sujeito do conhecimento —, como deslegitimar os saberes comuns em função da sua natureza subjetiva?

Saber comum, senso comum: não poderá mesmo ser a ciência compreendida como a sua extensão, como o resultado do seu progressivo aperfeiçoamento. O conhecimento científico é edificado — conforme o discurso que procura desenvolver acerca do seu próprio esforço — contra a trivial opinião, contra o chão da vida cotidiana. À reflexão, interessam as anotações originárias da antropologia que também fornecem, através da leitura de Clifford Geertz, as possibilidades de compreensão das perdas da ciência que se dão a partir do processo de deslegitimação do senso comum:

A antropologia nos pode ser útil aqui da mesma forma que é útil em outras situações: ao fornecer exemplos extraordinários, ajuda a situar exemplos mais próximos em um contexto diferente. Se observarmos a opinião de pessoas que chegam a conclusões diferentes das nossas devido à vivência específica que tiveram, ou porque aprenderam lições diferentes com as surras que levaram na escola da vida, logo nos daremos conta de que o senso comum é algo muito mais problemático e profundo do que parece quando o ponto de observação é um café parisiense ou uma sala de professores em Oxford. Como um dos subúrbios mais antigos da cultura humana — não muito regular, não muito uniforme, mas ainda assim ultrapassando o labirinto de ruelas e pequenas praças em busca de uma forma menos casual de habitar — o senso comum mostra muito claramente o impulso que serve de base para a construção dos subúrbios: um desejo de tornar o mundo diferente. (GEERTZ, 2002, p. 117-118).

O desejo de transformar o mundo e de torná-lo diferente: seguramente, aos olhos do saber crítico, a referida diferença assume significados valorativos especiais: o que poderá haver de diferente no futuro, em um mundo a ser transformado — no presente feito de rotina, de experiências, de fazeres e existências — de modo a atender as expectativas da vida local? De que consistirão tais desejos de transformação que não atravessem os sonhos de cidadania? Os saberes comuns são marcadamente locais, feitos de rotina, do conhecimento comum que circula pela vida cotidiana dos denominados homens comuns, cidadãos do mundo nos lugares. Isso significa que os saberes comuns têm assento na ordem do cotidiano, na escala dos lugares, da existência. Saberes comuns, saberes locais, contra-hegemônicos pela sua natureza escalar, local, que se contrapõe ao caráter global, hegemônico, do qual se reveste a ciência moderna. Milton Santos contribui para a organização de argumentos, ao sublinhar o conceito de construção, nos lugares, de territórios de solidariedade:

A ordem global busca impor, a todos os lugares, uma única racionalidade. E os lugares respondem ao mundo segundo os diversos modos de sua própria racionalidade [...]. A ordem global funda as escalas superiores ou externas à escala do cotidiano. Seus parâmetros são razão técnica e operacional, o cálculo de função, a linguagem matemática. A ordem local funda a escala do cotidiano, e seus parâmetros são a co-presença, a vizinhança, a intimidade, a emoção, a cooperação e a socialização com base na contigüidade [...]. O cotidiano imediato, localmente vivido, traço de união de todos esses dados, é a garantia da comunicação. (SANTOS, M., 2005, p. 170).

O que, aqui, se denomina de territórios de solidariedade seria, também, uma expressão e um reflexo da extensão progressiva de diálogos entre ciência e saberes comuns, locais. Esses territórios de solidariedade seriam uma resposta ao mundo e às lógicas globais, às éticas hegemônicas que estimulariam os desejos de transformação do mundo através, também, do diálogo entre a ciência e os saberes comuns.

 

Limites e fronteiras entre ciência e saberes locais: diálogos transformadores

Limites e fronteiras são conceitos que, aparentemente sinônimos, são aqui trabalhados de modo a fornecer interpretações acerca das zonas de contato, espaços de transição entre saberes, que tanto podem estimular conflitos como podem, através de processos de tradução, encaminhar diálogos:

Fronteiras e limites, em princípio, fornecem imagens conceituais equivalentes. Entretanto, aproximações e distanciamentos podem ser percebidos entre fronteiras e limites. Focaliza-se o limite: ele parece consistir de uma linha abstrata, fina o suficiente para ser incorporada pela fronteira. A fronteira, por sua vez, parece ser feita de um espaço abstrato, areal, por onde passa o limite. O marco de fronteira, reivindicando o caráter de símbolo visual do limite, define por onde passa a linha imaginária que divide territórios. Fronteiras e limites ainda parecem dar-se as costas. A fronteira coloca-se à frente (front), como se ousasse representar o começo de tudo onde exatamente parece terminar; o limite, de outra parte, parece significar o fim do que estabelece a coesão do território. O limite, visto do território, está voltado para dentro, enquanto a fronteira, imaginada do mesmo lugar, está voltada para fora como se pretendesse a expansão daquilo que lhe deu origem. O limite estimula a idéia sobre a distância e a separação, enquanto a fronteira movimenta a reflexão sobre o contato e a integração. Entretanto, a linha que separa os conceitos é espaço vago e abstrato. (HISSA, 2006b, p. 34).

A natureza movente das fronteiras, sempre transicionais, que decorre também do próprio caráter movente dos territórios disciplinares, exigiria, por sua vez, no diálogo entre saberes, uma formação pedagógica do cientista e uma capacidade tradutora dos sujeitos do mundo. Somente assim o povoamento das fronteiras pelos saberes poderia minimizar conflitos e potencializar encontros feitos de diálogos.

[...] a transformação dos saberes locais ocorre com a transformação do saber científico e com esta ocorre a transformação do sujeito epistémico, do ser cientista. Porque a aplicação contextualizada tanto pelos meios como pelos fins e porque lhe preside o know-how ético, o cientista edificante tem de saber falar como cientista e como não cientista no mesmo discurso científico e, complementarmente, tem que saber falar como cientista nos vários discursos locais, próprios dos vários contextos de aplicação. (SANTOS, 2002, p. 184).

Se o cientista, moderno, com uma formação originária das instituições universitárias modernas, não é estimulado a cultivar o diálogo, e tampouco é estimulado a aproveitar as experiências do mundo — de modo a fazer, da sua palavra, uma extensão da leitura do mundo em que está inserido (FREIRE, 2000) —, os cidadãos, por outro lado, ao cultivar a sua existência nos lugares, são tradutores por natureza[5]. O exercício da cidadania pressupõe autonomia de modo a bem decidir, julgar, participar ativamente da vida que envolve os indivíduos: cultural, política, econômica e social. A cidadania não poderá ser plena se não é tradutora do mundo moderno codificado. A cidadania, portanto, pressupõe a existência no mundo, enquanto o fortalecimento da cidadania, por sua vez, exige mais saber circulante, mais capacidade de comunicação (diálogo) também originária da ciência que, apenas reinventada pela sua própria subversão, poderá viabilizar troca de linguagens e de discursos que a tornem próxima do mundo, prática, humanizada. O referido diálogo se desenvolve através de exercícios de tradução. Sobre tal trabalho, da forma como Boaventura de Sousa Santos aborda o processo:

O trabalho de tradução tanto pode ocorrer entre saberes hegemónicos e saberes não-hegemónicos como pode ocorrer entre saberes não-hegemónicos. A importância deste último trabalho de tradução reside em que só através da inteligibilidade recíproca e conseqüente possibilidade de agregação entre saberes não-hegemónicos é possível construir a contra-hegemonia. (SANTOS, 2006, p. 126).

Boaventura de Sousa Santos não aborda, intensivamente, as possibilidades de tradução entre saberes hegemônicos. Em primeiro lugar, pelo fato de que, quando se trata de avaliar processos interdisciplinares, não há como fazê-lo sem focalizar os limites entre os próprios territórios do conhecimento. Isso significa que os processos interdisciplinares carregam, para o seu exercício, os limites que lhes dão a motivação de existência (HISSA, 2006b). Em outros termos, tal como observa Boaventura de Sousa Santos (2006a, p. 147), a interdisciplinaridade seria “[...] uma forma de colaboração que pressupõe um respeito pelas fronteiras entre disciplinas tais como elas existem.” Em segundo lugar, talvez mesmo pelo fato da inviabilidade de desenvolvimento de uma epistemologia geral da ciência, tal como acrescenta Boaventura de Sousa Santos, dada a sua própria pluralidade interna:

[...] é hoje inviável uma epistemologia geral. Tal como tenho defendido no domínio teórico, no domínio epistemológico é quando muito possível uma epistemologia geral sobre a impossibilidade da epistemologia geral. Daí a importância de passar da pluralidade interna à pluralidade externa, da diferenciação interna das práticas científicas à diferenciação entre saberes científicos e não científicos. (SANTOS, 2006a, p. 152).

Diálogos entre ciência e saberes locais: comunicação que se desenvolve no âmbito externo à própria ciência e à universidade. Os diálogos pressupõem a troca de linguagens, discursos, teorias, métodos, fazeres, experiências, desde que sejam motivados por processos de tradução entre os universos que se põem em contato. Entre a ciência, representada pela sua pluralidade de disciplinas, e os saberes locais (pluralidade externa), em suas diversas manifestações, os diálogos favoreceriam um saber científico fundamentado na experiência, na própria existência da vida nos lugares, mas, também, um saber comum que se desenvolveria, se transformaria, com base no saber científico. A transdisciplinaridade, tal como compreendida nos circuitos acadêmicos, na universidade moderna, já estaria distante das solicitações de transformação: do mundo, do homem, da ciência. Boaventura de Sousa Santos desenvolve um rico tecido teórico, por ele denominado de ecologia de saberes, que bem poderia incorporar o conceito de transdisciplinaridade, desde que esse contemple as possibilidades de tradução entre ciência e saberes locais, assim como as necessidades de abertura da universidade em que se pratica a ciência. Sobre a ecologia de saberes:

Esta ecología de saberes permite no solo superar la monocultura del saber científico, sino la idea de que los saberes no científicos son alternativos al saber científico. La idea de alternativa presupone la idea de normalidad, y ésta la idea de norma; por lo que, sin más especificaciones, la designación de algo como alternativo tiene una connotación latente de subalternidad. Si tomamos como ejemplo la biomedicina y la medicina tradicional en África, no tiene sentido considerar esta última, prevaleciente desde hace mucho tiempo, como alternativa a la primera. Lo importante es identificar los contextos y las prácticas en los que cada una opera y el modo como conciben salud y enfermedad y de qué modo superan la ignorancia (bajo la forma de enfermedad no diagnosticada) en saber aplicado (bajo la forma de curación). (SANTOS, 2006, p. 79).

A formação dos sujeitos do conhecimento que cultiva a sua transformação em sujeitos do saber — mais plenos de sabedoria tradutora — exigiria não apenas uma nova universidade, mas uma idéia referencial de universidade em cujo centro estaria o seu próprio desaprender. Desaprender para aprender. Apenas assim pode-se conceber que se ensina. A partir do desaprender permanente é construído o rotineiro aprendizado. Somente assim é possível conceber uma formação capaz de produzir sujeitos do conhecimento, cientistas, capazes de dialogar com o mundo e de fazer com que a experiência seja incorporada ao saber que produzem. A universidade moderna[6], contudo, está voltada para o atendimento de demandas do mercado. Ela mesma se transformou, progressivamente, em um suposto qualificado mercado. Um negócio movido pela idéia de competência da qual emerge, com vitalidade, a supressão do saber pela via da competição:

A disponibilidade global de mão-de-obra qualificada fez com que o investimento na universidade pública dos países centrais baixasse de prioridade e se tornasse mais selectivo em função das necessidades do mercado. Acontece que, neste domínio, emergiu uma outra contradição entre a rigidez da formação universitária e volatilidade das qualificações exigidas pelo mercado. Essa contradição foi contornada, por um lado, pela criação de sistemas não-universitários de formação por módulos e, por outro lado, pela pressão para encurtar os períodos de formação universitária e tornar a formação mais flexível e transversal e, finalmente, pela educação permanente. Apesar das soluções ad hoc, estas contradições continuaram a agudizar-se enormemente na década de 1990 com o impacto desconcertante na educação superior: a universidade, de criadora de condições para a concorrência e para o sucesso no mercado, transforma-se, ela própria, gradualmente, num objecto de concorrência, ou seja, num mercado. Para além de certo limite, esta pressão produtivista desvirtua a universidade até porque certos objectivos que lhe poderiam estar mais próximos têm sido esvaziados de qualquer preocupação humanista ou cultural. É o caso da educação permanente, que tem sido reduzida à educação para o mercado permanente. Do mesmo modo, a maior autonomia que foi concedida às universidades não teve por objectivo preservar a liberdade académica, mas criar condições para as universidades se adaptarem às exigências da economia.” (SANTOS, 2004, p. 23-24).

Alguns apelos à idéia de universidade livre ou à idéia de liberdade na universidade são comuns: eles já incorporam o senso comum, crítico, da própria universidade, em seus espaços de resistência. Outras leituras acerca do mundo moderno universitário são indispensáveis para a compreensão da ausência de autonomia intelectual que, de forma insistente, invade amplos espaços do lugar do saber (tal como deveria sempre ser). É o que pode ser sublinhado no exercício reflexivo desenvolvido por Renato Janine Ribeiro (2003). Ainda que espaços de resistência possam ser cultivados nos interiores da universidade, a imagem de autonomia intelectual ausente revela uma ausência de cidadania intelectual que impossibilita o diálogo nos interiores da universidade e obstrui, de modo decisivo, uma formação potencialmente voltada para o diálogo transformador com o mundo. Diante disso, como imaginar a transformação a partir de novas arquiteturas conceituais, utópicas, plenas de esperança, se o desastre já se consuma como um objeto banal da vida cotidiana universitária, da vida formadora do sujeito da ciência moderna? Talvez seja mesmo o desastre — não mais a ameaça do desastre, mas o exercício rotineiro do desastre — o componente estruturador das utopias feitas de exercícios de existência, de desejos de transformação do mundo.


Novos desenhos do pensamento utópico: reinventando lugares

Algumas anotações e reflexões elaboradas por Paolo Rossi podem auxiliar o exercício de pensar as utopias e as esperanças que, incorporadas ao saber científico, constroem possibilidades de reinvenção da própria ciência e de valorização da existência nos lugares. A primeira delas: “O discurso sobre as razões de esperar, a ostensio spei, é uma parte não secundária da preparação das mentes e da Instauratio Magna. Os leitores apressados esqueceram isso com freqüência” (ROSSI, 2000, p. 31-32). A segunda delas:

Os homens sempre temem que o tempo se tenha tornado velho e inadequado à geração. Antes que uma coisa seja realizada pensam que jamais poderá ser realizada. Tão logo seja realizada, admiram-se que não tivesse sido realizada antes. Aconteceu com Colombo o mesmo que com Alexandre, que primeiro foi criticado por querer tentar coisas impossíveis e depois elogiado por Lívio só por ter desprezado as vãs apreensões. Nas coisas intelectuais isso acontece com maior freqüência ainda: as proposições de Euclides parecem estranhas e distantes do senso comum antes de demonstradas como verdadeiras; uma vez demonstradas, a mente as acolhe por uma espécie de ‘retroação’ (como a chamam os juristas), como se já tivessem sido conhecidas e esclarecidas desde antes.

As esperanças não poderão ser confundidas com a ação passiva da espera. Elas são fabricadas pelo desejo de transformação. Esperar, portanto, não implicaria, necessariamente, no exercício intelectual ou cidadão que se refere às esperanças. Em determinadas circunstâncias, por sua vez, as esperanças são confundidas com as utopias. Ao definir um desejo como fantasioso, como de impossível alcance, é comum que a ele se refira como uma utopia e que dele se retire qualquer razão de esperança.

As utopias são compreendidas, comumente, através da representação imaginária de sociedades idealizadas que, fundamentadas na justiça, caminhariam sempre na direção da conquista do bem-estar coletivo. Nesse sentido, as utopias são ilhas desgarradas da cartografia do mundo dito real. Conforme os seus significados convencionais, as utopias constituem projetos de natureza irrealizável e, por tais razões, se aproximam da fantasia distante da exeqüibilidade. No marxismo, para que se faça referência ao socialismo utópico, as utopias constituem um modelo imaginário de sociedade ideal que emerge como leitura crítica encaminhada às organizações sociais existentes, em especial àquelas desenvolvidas sob o paradigma do modo de produção capitalista. Contudo, por natureza, conforme os próprios significados convencionais encaminhados ao conceito, as utopias deverão sempre se submeter à sua condição de inexeqüível em função do seu próprio vínculo com as estruturas político-econômicas vigentes na história.

Portanto, o conceito de utopia fornece imagens que são estrangeiras ao mundo da racionalidade, ao próprio universo da ciência. As utopias estão articuladas àquilo que é produto da imaginação — recusada pelos critérios fundantes da ciência —, da fantasia, do idealismo que, por definição, se afasta do mundo da realidade e se aproxima de sonhos quiméricos. No entanto, as utopias estão próximas dos saberes comuns — desejosos de transformação —, da existência, na ordem local e na escala do cotidiano.

As arquiteturas do pensamento utópico, para que se concebam as possibilidades de expansão das fronteiras do pensamento ilhado, deverão estar fundamentadas muito mais na existência do que na sua falta — concretizada pela ciência que produz invisibilidades (SANTOS, 2006a) —, muito mais no saber do que na tecnociência e, sobretudo, especialmente, no povoamento dialógico das fronteiras. As arquiteturas do pensamento utópico estão referenciadas por uma crítica e movente epistemologia da fronteira, cuja referência transcende a epistemologia da ciência e a sua pluralidade disciplinar. O pensamento que apreende é feito do contínuo desaprender: nele, a pedagogia é a pedagogia da existência — dos saberes comuns, locais — que, através do diálogo, é transformada pelos saberes científicos também reinventados de modo a cultivar sonhos de liberdade.

Portanto, o redesenho das utopias não é apenas um redesenho conceitual: não se trata apenas, pois, de reinventar arquiteturas conceituais que permaneceriam submetidas ao universo do desejo, dos sonhos e das referências distantes da vida cotidiana. A reestruturação conceitual que se refere às utopias faz, das mesmas, um conjunto de referências que encontram no próprio mundo histórico as possibilidades de existência.

As arquiteturas do pensamento reinventado, por sua vez, permitem a imaginação e a concepção de desenhos de lugares, de cidades, a partir de novas éticas e lógicas. As referências de justiça social, ao serem atravessadas por processos dialógicos de natureza cognitiva, permitem a concepção de territórios socioespaciais de cidadania que reproduzem ambientes de utopia e lugares de esperança, valorizando a experiência e a existência.

Redesenhar a esperança sob o norte das utopias: arquitetura do pensamento utópico, tal como concebida, atravessa o pensamento moderno, feito de uma excludente razão, e se estrutura a partir das possibilidades de hibridização, de transformação e articulada às humanidades. As arquiteturas do pensamento utópico são várias, múltiplas, diversificadas como o pensamento que não se quer único, monolítico: para que pense não apenas a multiplicidade, mas a diversidade epistemológica da fronteira — entre saberes de todas as naturezas e do seu povoamento por saberes feitos de ciência e de experiência de mundo —, assim como a própria transformação engendrada, em meio a conflitos, por processos de diálogos eminentemente tradutores.

Diante da expectativa do naufrágio, derrota inevitável que consola os apologistas da desesperança inarredável, após a superposição de promessas não cumpridas ao longo da modernidade, o que brilha como indicação de referência utópica no processo de valorização dos lugares? O referido processo subtrai o valor mercantil da concepção globalizada de valor: em seu lugar se insere o valor da existência dos lugares, nos lugares.

O referido processo, alicerçado e fortalecido através dos diálogos entre ciência e saberes locais, encaminham valores libertários e democráticos à concepção política e moderna de cidadão. Concede-se um novo conceito à cidadania, a partir do encaminhamento de novos significados aos saberes locais. A valorização dos lugares implica, muito mais na contemporaneidade, a valorização das cidades nas cidades (HISSA, 2006a). A despeito de que possa ser assim interpretada, a cidade não é uma tessitura socioespacial monolítica, feita de linhas mestras e de bordados macroestruturais que anulam a vida de esquinas, de ruelas e becos, de quintais que assombram modernidades, de vilas, bairros e subterrâneos.

A cidade é feita de cidades, metáfora de lugar, de um lado, e, de outro, extensão coerente de bordados periféricos que atravessam espaços nodais, ao se servir de linhas mestras.

Cidades invisíveis, fora do écran, lugares feitos da vida cotidiana e da cidadania que encontram significados, fortalecendo sua vocação para a transformação do mundo. Portanto, o processo de revalorização dos lugares, pela via da mobilidade das fronteiras entre ciência e saberes locais, ao redesenhar as arquiteturas do pensamento utópico, concede voz e visibilidade — emergência — às cidades feitas de ruelas e de becos, de vilas e de quintais que, no interior das cidades de avenidas iluminadas, edificam espaços de esperança.



Notas

[1] Não haveria uma razão pura, ensimesmada, a partir da qual seria feita a ciência moderna tal como ela deseja se perceber. Obras contemporâneas fornecem consistentes e críticos argumentos de caráter filosófico, teórico, metodológico e experimental que interrogam a razão e a desloca para a fronteira constituída pelos universos da emoção e da existência. A razão, a partir das interpretações contidas nessas obras, seria um produto de relações estabelecidas com a emoção, com o mundo da experiência, da existência, das sensibilidades. Sugere-se, em particular, a leitura de Humberto Maturana (2002), António Damásio (1996), Oliver Sacks (1998).

[2] As anotações do historiador da ciência, Paolo Rossi, em determinadas circunstâncias, provocam dúvidas e sugerem a ampliação de leituras. As clássicas universidades européias — espanholas, italianas, francesas, portuguesas, inglesas — são anteriores, quase todas, ao século XVII. Por sua vez, as universidades modernas, na contemporaneidade, lugar essencial da fabricação e da reprodução da ciência moderna, assim como da disseminação das imagens, de todos os tipos, que lhes dizem respeito, passam, por intensos processos de modernização radical de caráter conservador. Atingidas amplamente pelo processo de mercantilização, as universidades já não podem ser compreendidas, de forma irrestrita, como o lugar do saber, da sapiência. O saber científico já se confunde com a ciência-técnica, como uma mercadoria cujos modelos de produção interferem na própria qualidade do saber. Nos países do sul, nos países periféricos e semiperiféricos, contudo, a situação das universidades é certamente mais grave.

[3] Alguns outros filósofos e cientistas, precursores do exercício intelectual que, mais adiante, viria a ser denominado de ciência moderna. Para uma leitura introdutória ainda mais aprofundada, sistemática, acerca da história e da filosofia da ciência moderna, recomenda-se não apenas a obra de Paolo Rossi (2001), mas o esforço sistemático, de consulta, organizado por Giovani Reale e Dario Antiseri (1990), o exercício de organização de verbetes filosóficos desenvolvido por Niccola Abbagnano (1982), assim como o realizado por André Lalande (1999).

[4] Procura-se, aqui, ainda, encaminhar distinções entre saber e conhecimento. Enquanto, na modernidade, o conhecimento caminha na direção do expert, do conhecedor, a sabedoria, própria do saber, afasta-se do monólogo disciplinar e se movimenta na direção do diálogo que atravessa fronteiras do conhecimento. O saber é processo que aproxima a ciência da ética, da arte, da filosofia, das múltiplas possibilidades de multiplicação de encontros, de diálogos que resultam na sua própria e permanente transformação. O conhecimento, sempre particularizado, aproxima a ciência da técnica, pouco reflexiva, menos crítica e nada comprometida com a transformação.

[5] Distinguem-se, aqui, os conceitos relativos ao indivíduo, ao consumidor, ao cidadão. Ao último é conferido, pelas características de sua inserção na sociedade, o poder ampliado de decidir, de fazer escolhas acerca de sua própria vida. A construção da cidadania é atravessada pela idéia de justiça social que, por sua vez, é tributária da própria democracia dos saberes.

[6] “[...] a universidade moderna deveria existir sem condição. Entende-se por ‘universidade moderna’ aquela cujo modelo europeu, após uma história medieval rica e complexa, se tornou prevalente, ou seja ‘clássico’, nos estados de tipo democrático. Mais além da chamada liberdade acadêmica, esta universidade exige, e deveria ser-lhe em princípio reconhecida, uma liberdade incondicional de questionamento e proposição, e mesmo, o que é mais, o direito de dizer publicamente quanto exigem uma pesquisa, um saber, um pensamento da verdade”. (DERRIDA, 2003, p. 9). Jaques Derrida fortalece os seus argumentos e a sua reflexão: “Esta universidade sem condição não existe de facto, e por demais o sabemos. Mas em princípio e conformemente à sua vocação declarada, em virtude da sua essência professada, ela deveria permanecer um lugar último de resistência crítica — e mais que crítica — a todos os poderes de apropriação dogmáticos e injustos [...]. Quando digo ‘mais que crítica’ subentendo ‘desconstrutiva’ [...]. Apelo ao direito de desconstrução como direito incondicional de colocar questões críticas não apenas à história do conceito de homem mas também à própria noção de crítica de crítica, à forma e à autoridade da questão, à forma interrogativa do pensamento”. (DERRIDA, 2003, p. 12).

 

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