IX Coloquio Internacional de Geocrítica

LOS PROBLEMAS DEL MUNDO ACTUAL.
SOLUCIONES Y ALTERNATIVAS DESDE LA GEOGRAFÍA
Y LAS CIENCIAS SOCIALES

Porto Alegre, 28 de mayo  - 1 de junio de 2007.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

DO PLANEJAMENTO COLABORATIVO AO PLANEJAMENTO “SUBVERSIVO”:
REFLEXÓES SOBRE LIMITAÇÕES E POTENCIALIDADES DE PLANOS DIRETORES NO BRASIL

Rainer Randolph
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
rainer.randolph@gmail.com

Do planejamento colaborativo ao planejamento “subversivo”: reflexõs sobre limitações e potencialidades de planos diretores no Brasil (Resumo):

Tomando como referência os “Planos Diretores Participativos” no Brasil, o objetivo de nosso trabalho é o de ampliar e aprofundar investigações e debates em torno de modelos comunicativos ou colaboradores do planejamento. Levando a discussão a um novo nível de reflexão política, nós queremos reformular a proposta colaborativa para que se torne mais "radical" e, assim, de alguma maneira "subversiva" por meio da incorporação de novas lógicas e racionalidades, perspectivas, tarefas e formas do processo de planejamento.

Palavras-chave: plano diretor participativo - planejamento colaborativo - planejamento Subversivo - Racionalidade Cosmopolita - espaço-tempo.


From collaborative planning to “subversive” planning: some reflections about limits and potencialities of master plans in Brazil (Abstract):

With reference to Brazil´s “Participatory Master Plans” the aim of our work is to broaden and deepen investigations and debates about communicative or collaborative models of planning. By taking yhe discussion to a new level of political reflection, we want to turn the colaborative proposal "more radical” and somehow “subversive” by means of the incorporation of new logics, perspectives, tasks and forms in the planning process.

Key-words: participatory master plans – collaborative planning – subversive planning – cosmopolitan racionality – space-time.


 

“Questão urbana” e vertentes de planejamento no Brasil e no mundo

A trajetória do planejamento urbano no Brasil não pode ser entendida fora do contexto das diferentes perspectivas em relação à responsabilidade do Estado para lidar com os “problemas urbanos” que podem ser identificados no decorrer da história brasileira mais recente. Numa breve síntese dessa história das últimas décadas do século passado, Costa (2004) aponta que, nos anos 1980, o período de transição política no Brasil após 20 anos de regime militar trouxe consigo certas incertezas a respeito do papel do Estado. Apesar de sua oposição ao então Estado e Governo, são os próprios movimentos sociais urbanos, influenciados por teorias críticas – marxistas ainda dos anos 70 a respeito da Reforma Urbana, que reconhecem a centralidade da agência do Estado. Mas não se elabora, neste período, uma teoria atual sobre o Estado que pudesse ultrapassar uma caracterização pobre do Estado como inimigo autoritário.

Contudo, com ou sem teoria, a Constituição de 1988 aponta para uma nova maneira de “governança urbana” (Costa 2004: 7). A consolidação de uma democracia política e social avança a partir daí e se manifesta mais visivelmente na escala local..

Local autonomy was restored in political and financial terms, and new forms of social movements related to both social sectors and places not favored during the conservative modernization period emerged and were consolidated. The constitutional text emphasized municipal responsibility over a new ‘urban development policy’. The central point of that policy was the need for cities or towns and for urban land in general to accomplish a social function, meaning that all legal and administrative policy initiatives would pursue such objective.   

However, in spite of some democratic advances in terms of decentralization, where local governments elected by progressive parties are trying to construct new and more democratic forms of administration, in general we can observe in Brazil the same constraints that have taken place in several other countries. These constraints are related to the process of globalization and the neo-liberal ideology, which are leading the municipalities to adopt a certain type of strategic planning aiming primarily at the insertion of localities into a globalized economy, and consequently may jeopardize the nascent democratic character of urban planning (Costa, 2004: 7).


Em termos teóricos, os anos 1990 podem ser caracterizados, conforme esse autor, por uma pluralidade de perspectivas em relação à esfera urbana. Definida essa esfera mais em termos culturais ou sociais do que econômicos e políticos, as respectivas visões abrangem um amplo espectro político e divergências a respeito da própria intervenção do Estado na cidade e do seu planejamento (urbano).

Essa pluralidade manifesta-se neste mesmo período nos países industrializados pela coexistência de diferentes “modelos” do planejamento (urbano). Por um lado, Healey (1997), Iinnes/Booher (1999a, 1999b) e outros levaram adiante reflexões da década de 1980 (Forester 1993) acerca da proposta de um planejamento chamado comunicativo que tinha sido elaborada na base de uma teoria da ação comunicativa de Habermas. Esses autores introduziram um novo termo para caracterizar sua abordagem: o do planejamento “colaborativo” (vide a reflexão da própria autora a respeito dessa trajetória em Healey 2003). Uma das características principais dessa proposta de “colaboração” é que ela se encontra limitada, basicamente, ao nível simbólico; sem introduzir explicita e praticamente as próprias circunstâncias e condições no processo a autora continua, em certa medida, restrita ao questionamento de códigos, a representações da realidade, como bem observou antes Melucci (1985) e depois reafirma Fainstein (2000).

Conforme discute essa autora, já na década de 1990 surgiu, enquanto “New Urbanism”, uma outra vertente do planejamento (urbano) que dá toda a ênfase aos processos materiais de intervenção no meio urbano. Esse Novo Urbanismo propõe elaborar projetos urbanos de diferentes portes para criar fisicamente uma cidade desejada. Neste sentido, essa vertente pode ser vista em certa oposição à abordagem comunicativa ou colaborativa (Fainstein 2000) na medida que valoriza o ambiente construído e busca formas de transformação material-espacial (urbanística) da cidade. Além dessas duas formas, a autora identifica como terceira vertente uma ligada à economia política e comprometida com a “cidade justa”.

 

A experiência recente da elaboração de “Planos Diretores Participativos” no Brasil

No atual ensaio não se pretendo dar conta dessa complexa rede de oposições a articulações entre as diferentes formas do planejamento urbano. A própria experiência brasileira apresenta essa complexidade através da existência paralela, em alguns grandes municípios do país, de um planejamento orientado por resultados e estratégias (planejamento estratégico) e um outro que, tendencialmente, procura articular os diferentes interesses dos segmentos sociais urbanos em um arcabouço jurídico que seria o Plano Diretor o que, em princípio, exigiria de certas formas de participação na sua formulação. Desde a criação dessa figura na Constituição brasileira de 1988, seu destino foi errático na década de 1990; não foi elaborado em todos os municípios para os quais a Constituição determina isto; muitas vezes, não passou de uma peça sem função e importância ao lado de outros planos elaborados como aqueles que foram resultados do Planejamento Estratégico.

Não cabe aprofundar essa análise aqui; de fato, essa história começou a tomar um outro rumo com a aprovação do assim chamado “Estatuto da Cidade” (Lei Nº 10.257, de 10.7.2001) e o novo Governo que assumiu em 1o. de janeiro de 2003.

O Estatuto da Cidade que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal e estabelece diretrizes gerais da política urbana propõe, como dizem Limonad e Barbosa (2003), “uma articulação entre os três níveis de poder, ao mesmo tempo em que deixa definições e especificações a cargo do poder local, e abre uma perspectiva de participação para a população e grupos organizados”.

A avaliação desses autores (Limonad, Barbosa 2003: 96) foi realizada ainda antes do novo Governo Federal assumir em janeiro de 2003; naqueles momentos iniciais do processo encadeado pelo Estatuto da Cidade os autores já levantaram questões pertinentes acerca da questão da participação:

Por um lado, o ‘Estatuto da Cidade’ abre um amplo espaço para injunções políticas de ordem local e conjuntural voltadas para atender interesses específicos ao delegar ao poder local a responsabilidade de definir a ‘função social da propriedade’ – essencial para a implementação de diversos instrumentos jurídicos do ‘Estatuto da Cidade’, bem como a atribuição de estabelecer as alíquotas devidas aos cofres públicos através da implementação da outorga onerosa do direito de construir e das operações urbanas consorciadas entre outras.

Por outra parte, a participação da população [Art. 2, inciso II sobre gestão democrática] serve mais para a validação e legitimação sob o selo democrático de práticas definidas como desejáveis por setores hegemônicos. Pois, como soe acontecer, esta participação é passível de ocorrer ao nível das decisões táticas – referentes à consulta relativa a implementação de ações localizadas – como é o caso dos Estudos de Impacto de Vizinhança e Operações Consorciadas.  Porém, esta participação não se faz ao nível das decisões políticas e estratégicas – nível em que é tomada a decisão de implementação destas operações” (acréscimos nossos).

Quando os autores tocam aqui no assunto da participação e de suas formas e limitações, estão contribuindo para a discussão em pauto no presente ensaio. Sem posicionar-se a respeito de sua opinião, cabe aprofundar a análise a respeito da participação (ou não) através da investigação de uma figura velha reafirmada (Estatuto da Cidade, Art. 4o., Inciso III a e Capítulo III), mas que re-surge sob novo nome com a criação do Ministério das Cidades em janeiro de 2003, após a realização da I. Conferência Nacional das Cidades e baseado em Resoluções do Conselho Nacional das Cidades : o Plano Diretor Participativo.

Essa forma do Plano Diretor que incorpora explicitamente – no seu nome – a intenção de servir como fórum, meio, instrumento e expressão da participação da sociedade na sua formulação, pretende, conforme anunciado pelo titular do Ministério das Cidades por ocasião da campanha de seu lançamento, “conscientizar os administradores públicos municipais, as lideranças políticas, as entidades profissionais e comunitárias, além – e principalmente – toda a população brasileira para a necessidade de se elaborar planos diretores, com efetiva participação popular, conforme determina o Estatuto da Cidade, em todos os municípios de nosso país” (vide http://www.cidades.gov.br/planodiretorparticipativo/index.php?option e Brasil, Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Programas Urbanos 2005).

Em análise posterior, Alessandri Carlos (2005) reafirma a opinião cética de Limonad e Barbosa a respeito do potencial da participação em alterar significativamente o caminho do planejamento e da política urbanos. Nessas condições como as políticas urbanas – e os Planos Diretores - são elaboradas, mesmo quando surgem de foruns de debate com participação popular, sua formulação não se libera da racionalidade do Estado capitalista nas suas alianças representadas na democracia representativa. “Un ejemplo claro de esta racionalidad es que en el Estatuto de la Ciudad y en los textos de la Conferencia de la Ciudad, el derecho a la ciudad aparece a través de la realización de la ‘función social de la propiedad’ y no de su negación como fundamento de la ciudad segregada” (Alessandri Carlos, 2005).

Com isso alcançamos a questão que orienta a argumentação e raciocínio do presente ensaio: há de se questionar, ao nosso ver, as racionalidades que estão envolvidas com os diferentes processos de planejamento e formas de participação para poder avaliar a potencialidade e as limitações da participação nesses processos. Não nos interessa aqui outras questões debatidas no contexto do planejamento que são da maior importância como, por exemplo, aquela que diz respeito ao descompasso entre o discurso do planejamento e a sua implementação, sua prática.

 

Da ilusão da participação popular a alternativas à globalização neo-liberal e ao capitalismos global

Uma análise mais aprofundada da historia do planejamento (capitalista) iria revelar que uma das suas características principais, desde suas origens, foi sua racionalidade instrumental e abstrata. Pelo que vimos no breve debate do caso brasileiro mais recente, mesmo as novas propostas que procuram, de uma forma mais ou menos explícita e efetiva, assegurar alguma “participação” daqueles que serão afetados pelas medidas planejadas não rompem com essa tradição em sua grande maioria.

E mesmo com a "guinada argumentativa" ou "comunicativa” do planejamento, esse caráter formal e abstrato não pude ser superado. Na verdade, essa guinada está inscrita numa tendência do planejamento de separação entre uma visão “processualista” e uma “intervencionista” (voltada para resultados) que é apontada por Fainstein (2000, 453) como característica principal do debate atual. Nenhuma dessas tendências, como diz a autora, tornou-se dominante, em tempos recentes, porque afetaram diferentes aspectos da prática.

Em nome do discurso, da argumentação, da comunicação e da busca por consensos, a modalidade do planejamento participativo supera apenas em casos excepcionais a lógica instrumental e, ao se aproximar à “práxis” (vivência) daqueles que são seu objeto-sujeito ou por ele afetados, se constitui como verdadeiro exercício de uma racionalidade diferente a da instrumental; poderia ser compreendida como racionalidade comunicativa no sentido de Habermas como discutiremos em detalhe ainda mais tarde.

Não acontece uma ruptura “real” ou “verdadeira” porque essas modalidades participativas do planejamento se baseiam numa lógica de representação da sociedade e, particularmente, do espaço social que concebe, tendencialmente, qualquer “participação” tão formal e abstrata que torna seu exercício concreto um mero acidente.

Em relação à elaboração dos Planos Diretores Participativos, Villaça (2005) chega as mesmas conclusões: estes planos não rompam com a lógica instrumental tradicional e criam apenas uma ilusão de participação que precisa ser desmistificada. Falando em geral do Plano Diretor, o autor alerta que a experiência revela que as “outras formas de pressão - como as matérias pagas na imprensa, as pressões diretas sobre os vereadores e sobre o próprio chefe do Executivo - são na verdade muito mais poderosas que as pressões, reivindicações ou ‘contribuições’ manifestadas nos debates públicos formais”. A participação popular serve, em última instância, apenas para legitimar um resultado (plano) de um processo onde tive influência muito reduzida; confere um toque de democracia, igualdade e justiça às decisões; contra a arbitrariedade, a prepotência e a injustiça.

É essa ilusão que a recente ênfase em Plano Diretor Participativo ­querendo ou não - procura inculcar na opinião pública. O que raramente aparece é que os grupos e classes sociais têm não só poderes político e econômico muito diferentes, mas também diferentes métodos de atuação, diferentes canais de acesso ao poder e, principalmente - algo que se procura sempre esconder - diferentes interesses. Evidentemente num país desigual como o Brasil, com uma abismal diferença de poder político entre as classes sociais, conseguir uma participação popular democrática - que pressuporia um mínimo de igualdade - é difícil Essa a principal razão da ‘Ilusão da Participação Popular’. Assim, os debates públicos seriam apenas a ponta de um iceberg, ou seja, aquilo que não aparece é muito maior do que a parte que aparece (Villaça, 2005).

Novamente, não cabe aqui, neste momento, aprofundar e discutir o raciocínio apresentado por Villaça. Suas observações nos servem para reforçar nossa própria concepção que uma crítica à proposta da participação no planejamento não deve ficar limitada à consideração a certas “técnicas” ou “procedimentos”; nem a determinados assuntos e conteúdos; e muito menos ainda à falta de capacitação daqueles que são envolvidos no processo sem possuir um conhecimento específico e sofisticado para poder lidar com a “complexidade” da tarefa de planejar.

Como acima apontado, o verdadeiro problema é que a maioria das concepções e realizações do planejamento participativo continua presa à tradicional lógica instrumental, técnica e, às vezes, burocrática do planejamento estatal (público). Não redefine significativa e mais radicalmente a própria relação entre Estado e sociedade (e contribui, assim, para a perpetuação do status quo).

Não obstante, como já dizíamos antes, nem todas as concepções e experiências podem ser caracterizadas como meramente legitimadoras, ideológicas, mistificadoras. Existem aquelas propostas e mesmo práticas que procuram promover uma “verdadeira” participação através de um questionamento bastante profundo das relações entre sociedade e Estado e do papel do planejamento público em sociedades capitalistas (Forrester 1993, Healey 1993 e outros). Entretanto, mesmo nas propostas desses autores ainda transparece uma tendência de compreender a participação como exercício de meras “ações de fala” ou atuação simbólica como teremos oportunidade de discutir mais tarde em relação às modalidades comunicativas ou colaborativas do planejamento. Pois, no decorrer do processo de planejamento, denota-se uma desigualdade profunda entre a perícia discursiva dos planejadores com suas concepções, lógicas e modelos abstratos e as ricas vivências dos “participantes” que procuram fazer valer suas experiências concretas no processo do planejamento que se esquivam de uma fácil verbalização e representação dominantes.

Neste sentido, as formulações dessas “propostas comunicativas” já apresentam primeiras pistas a respeito da direção que uma verdadeira ruptura do paradigma autocrático do planejamento e de sua racionalidade instrumental poderia tomar. Nessa proposta, o planejamento assume explicitamente um papel de “mediador” ou “tradutor” entre diferentes esferas de sociedades contemporâneas pluralistas – entre o Estado e a comunidade; o sistema e o mundo da vida; uma perspectiva “pro-ativa” de especialistas (não apenas só do Estado) e a vivência cotidiana de determinados grupos sociais.

Essa crítica à lógica predominante no planejamento pode ser formulada de uma maneira mais radical quando não se questiona apenas a racionalidade instrumental, mas a contribuição do planejamento na difusão e consolidação da “lógica indolente” da globalização e do neoliberalismo contemporâneos como o faz Santos (2003, 2004). Sua crítica aponta para a valorização da experiência social que, por sua vez, pressupõe a “expansão do presente” e a “contração do futuro”. “Only thus will it be possible to create the time-space needed to know and valorize the inexaustible social experience under way in our world today. In other words, only thus will it be possible to avoid the massive waste of experiences we suffer today” (Santos, 2004: 4). 

Reconhecendo a valiosa contribuição das propostas comunicativas, discutir-se-á, a seguir,  num primeiro momento, formas de sua superação para que as mediações inerentes à proposta  ultrapassem o nível das “traduções” entre um “mundo sistêmico” e um “mundo da vida”. Essa “superação” torna-se possível, ao nosso ver, na mediada em que se contempla, explicitamente, os condicionantes de um “espaço-tempo” envolvidos no processo. É  preciso reconhecer as divergências e possíveis conflitos entre as representações lógicas e abstratas do espaço-tempo concebidas pelos planejadores, por um lado, e a vivência difusa, pouco explícita e nem sempre discursivamente acessível daqueles que “participam” desse processo, por outro. Portanto, o pensamento que guia essa análise é o de Henri Lefebvre (1967, 1979, 1991)

Num segundo momento interpreta-se o caráter subversivo dessa nova relação do espaço-tempo a partir das sociologias das ausências e sociologias das emergências do Boaventura de Souza Santos (2003, 2004). A reformulação do paradigma colaboratico resulta (e pressupõe) profundas transformações das relações entre Estado e sociedade que vão muito além das propostas republicanas do planejamento comunicativo (Randolph 1999). Como queremos mostrar, o planejamento que merece o nome de subversivo significa nada menos do que colocar em prática as concepções que Boaventura Santos (2003, 2004)  elabora a partir de sua crítica à “razão indulgente”. E, enfim, é assim como razão instrumental e mesmo razão comunicativa vão ser superadas (dialeticamente) por “razão cosmopolita” em contraposição à razão indulgente como conceitua Boaventura Santos.

Não será possível, é óbvio, elaborar a proposta do planejamento subversivo propriamente dita num ensaio tão breve como o atual. Mas, para termos uma idéia mais específica a respeito do caráter daquela “ruptura” com os paradigmas anteriores, será discutida, na última parte do trabalho, brevemente, uma possibilidade como determinadas práticas espaciais poderiam assumir um papel de mediação no conflito entre, por um lado, as representações do espaço dos profissionais do planejamento e, por outro, os espaços de representação (Lefebvre) ou as experiências (Santos) daqueles que vivenciam cotidianamente esse tempo-espaço.

 

O papel mediador do planejamento comunicativo e democrático

Inicialmente e como base para futuras discussões, será realizada uma leitura crítica da proposta do planejamento que se costuma chamar de “comunicativa” ou “colaborativa” (Healey 1993, 1997, 2003; Randolph 1999). Não cabe no contexto do atual trabalho, dedicar um maior esforço à apresentação de outras abordagens. Já marcando a diferença em relação a vertentes mais instrumentais, entendemos aqui o planejamento comunicativo não só como profundamente "político" – localizando-o, portanto, dentro da própria sociedade política -, mas como um projeto de reformulação das relações entre sociedade (civil) e Estado. Em outras palavras, dentro dessa perspectiva é necessário investigar o processo de planejamento em sua interface com a democracia ou procedimentos democráticos (ou democratização plena) nas sociedades contemporâneas.

Ao discutir a vertente comunicativa, justifica-se que sua "vocação de intervenção" seja temporariamente negligenciada da mesma forma como sua contribuição instrumental específica para o desenvolvimento (econômico e/ou social). Também, não precisamos aqui retomar a trajetória do próprio planejamento (capitalista) na qual surgiu a agenda da participação um pouco antes do aparecimento do Neo-Liberalismo na década de 1980. É curioso que neste contexto da perda de importância do planejamento alguns profissionais e cientistas da área de planejamento começaram a propor sua "guinada argumentativa" e “comunicativa”.

Neste empreitada John Forester, merece destaque especial porque incorpora à sua reflexão sobre planejamento, desde o começo da década de 80, elementos da Teoria de Ação Comunicativa de Habermas (Forester 1993, reunindo artigos da década de 80; Habermas 1981). A apropriação dessa teoria permite ao autor tanto uma crítica rigorosa com relação a todas as abordagens instrumentalistas do planejamento cujo objetivo, muitas vezes velado, é a mera reprodução (até “ampliada”) do status quo; como, também, a proposição de formatos alternativos que redefinem as relações entre os agentes envolvidos nestes processos.

Mas é Patsy Healey (1993) que, na base das formulações de Forester, vai explicitar uma série de elementos como constituintes de um processo de planejamento comunicativo ou, como o chama mais tarde, colaborativo (Healey 1997, 2003) oposto às vertentes instrumentalistas e estratégicas. Ela defende que um planejamento transformador deve ter como elemento básico o debate; ou seja, precisa realizar aquilo que ela chama de “virada comunicativa”. Judith E. Innes da Universidade da Califórnia em Berkeley e David E. Booher, já na década de 1990, observaram que a construção de consensos como uma das formas desse planejamento está sendo usada crescentemente para lidar com a fragmentação social e política, o poder compartilhado e com valores conflitantes (Innes, Booher 1999a). Os processos de geração de consenso não dizem respeito apenas à concordância dos envolvidos no planejamento – inclusive dos assim chamados stakeholders -, mas exigem experimentação, aprendizado, mudança e a produção de significados compartilhados. Esses processos de planejamento não seguem a lógica tradicional que se orienta por objetivos e pela avaliação de possíveis alternativas para alcançar esses objetivos. Buscam estimular e encorajar os participantes a produzir novos cenários através de uma bricolagem colaborativa. Isto quer dizer, que os envolvidos procuram contribuir ao diálogo com suas próprias experiências, idéias e métodos que serão reunidos como quebra-cabeça para dar origem a uma estratégia inovadora apoiada por todos (Innes, Booher 1999b). Voltaremos especialmente a esses aspectos da proposta colaborativa mais tarde nesse ensaio. De uma forma resumida, as principais características dessa forma de planejamento podem ser encontradas em Randolph (1999, 2007).

Aquela virada comunicativa expressa-se em diferentes dimensões:

(i)                  rompe, em determinada medida, tanto com a atribuição de responsabilidade exclusiva pelo planejamento a uma instância política específica – ao Estado – apesar de não negar a presença de planejadores e sua responsabilidade para a realização do processo;

(ii)                abandona, igualmente, o tradicional esquema da decisão sobre meios com fins determinados, por um lado, e a subjacente racionalidade da eficiência, por outro. Aqui, não só a formulação dos objetivos faz parte do próprio processo de debates, mas também a construção das próprias arenas nas quais os conflitos aparecem, se explicitam e podem ser mediados.

(iii)               O planejamento colaborativo está voltado à mediação de conflitos e interesses e exige, por isto, a troca e circulação de informação irrestrita o que, por sua vez, deve ser assegurado através de uma ética do discurso onde todos merecem respeito, tem a mesma voz e mesmo direito de se expressar.

Essa modalidade do planejamento significa um avanço em relação aos modelos anteriores na medida em que se posiciona contra vertentes instrumentalistas, burocráticas e tecnocratas. Procura oferecer, como evidenciam suas características, uma mediação entre duas esferas da sociedade que, na concepção dos autores aqui citados, estão submetidas a duas racionalidades diferentes: por um lado, têm-se os sistemas econômicos e burocráticos com suas racionalidades estratégicas e instrumentais que se tornaram, ao longo da história da consolidação e expansão do capitalismo, dominantes em relação a outras manifestações da vida social. E, por outro lado existe aquilo que Habermas (1981) chama o mundo da vida com sua racionalidade comunicativa, onde a “reprodução social” não está submetida, exclusivamente, aos ditames do capitalismo (mas a mecanismos oriundos de tradição, socialização, formação da personalidade).

A deficiência das primeiras propostas participativas dos anos 1970 foi a de que o planejamento, a cargo de sistemas burocráticos, permitia apenas marginalmente manifestações por aqueles que não faziam parte destes sistemas (vide Randolph 1999). Percebe-se que, na caracterização das duas esferas por Healey, a autora dá proeminência ao mundo de vida que aparece em certa oposição ao sistema. Está aqui, no mundo de vida, que o planejamento comunicativo deveria contar com a colaboração de indivíduos ocupando-se da interação com outros, formando certas "comunidades de fala" que procuram estabelecer uma compreensão mútua de problemas.

Portanto, apesar de todas às dúvidas que se possa ter em relação à proposta comunicativa, seu grande mérito é o de procurar abrir caminhos de mediação; formas para que algum “poder comunicativo”, “acumulado” por comunidades ou grupos sociais no seu cotidiano (mundo da vida) (“capital social”), possa influenciar na tomada de decisões nas esferas “especializadas em alocação e autoridade”, como diz Healey (vide especialmente para essa processo a discussão em Habermas 1997, 57-121). E mesmo a superação (dialética), por nos propagada, dessa proposta não vai querer anular essa sua conquista.

Acreditamos ser útil, antes de buscar explicitar a radicalização dessas propostas, observar, brevemente, alguns casos e depoimentos de planejamento ao nível local no Brasil, onde a intenção de realizar um esforço participativo estive explicitamente presente. Certamente, esses exemplos poderiam ser multiplicados e aprofundados facilmente; mas isto fugiria dos propósitos do presente trabalho.

 

Da comunicação à prática espacial: contra o desperdício da vivência e da experiência

Essa breve apresentação das dificuldades empíricas ou práticas na implantação de um planejamento que pretende possuir uma “verdadeira” dimensão participativa apenas ilustra brevemente como a realização da proposta comunicativa depende da realização de uma série de condições cujo cumprimento parece difícil ou, talvez, impossível em sociedades onde há tanto um potencial mais elevado de contradições e conflitos entre diferentes camadas sociais envolvidos neste processo, como limitações estruturais de recursos e tempos para a plena realização da participação.

Já apontamos, em outro lugar (Randolph 1999), a filiação ideológica dessa proposta a uma visão republicana da política que implica em restrições para sua “aplicabilidade” fora de comunidades relativamente homogêneas (vide também Habermas 1995, 1997). No entanto, os problemas com a execução prática da proposta comunicativa remetem a uma razão que vai muito além de uma mera contemplação das condições empíricas e práticas do planejamento no momento de sua formulação. Ao nosso ver, há uma insuficiência na própria conceituação que exige a incorporação de conceitos até então desconsiderados e uma perspectiva que permite compreender os mencionados condicionantes empírico-práticos dentro desse novo arcabouço conceitual.

Procuramos realizar a superação (dialética) da proposta comunicativa em dois passos:

(i)                  voltamos, brevemente, ao debate anterior a respeito do planejamento comunicativo ou colaborativo que pretendia prover um modelo ou uma forma nova para "inventar democracia". Aqui já se observava a intenção de apropriar o potencial construtivo e crítico presente nas ações comunicativas cotidianas de diálogos para a construção de consensos e consentimentos. Há de se radicalizar essa proposta na medida em que ela se torna “práxis”: superar a lógica comunicativa por uma lógica da produção social do espaço;

(ii)                esse processo de discussão será aprofundado, num segundo momento, quando abandonamos, temporariamente, a discussão do planejamento e dedicamo-nos à reflexão sobre as determinações espaço-temporais da apropriação das experiência (vivências) em geral. Para que se possa elaborar uma proposta do planejamento que o torna realmente subversivo, será necessário avançar da crítica à lógica instrumental e comunicativa para a crítica de uma “lógica indulgente” ou preguiçosa que, segundo Boaventura Santos (2003, 2005), domina o ocidente há mais do que 200 anos; a partir da propagação de uma lógica cosmopolita seria possível alterar as relações tempo-espaciais do processo de planejamento, uma das principais condições para ele se tornar subversivo.

 

Da comunicação ao espaço

A aqui procurada superação (dialética) da vertente comunicativa e colaborativa do planejamento não se restringe a um mero “revival” da alguma dimensão intervencionista qualqur. Não a entendemos como um recuo a formas do planejamento onde a transformação de “objetos” (“matéria”) seria tomada como centro da atuação. Pois, não há “objetos” sem respectivas representações – e essa retomada não seria nenhuma “virada”, mas uma “volta” ao ponto de partida.

E, por outro lado, a radicalização da abordagem comunicativa também não poderia ser um movimento meta-linguístico. Propomos que a superação (dialética) do discurso e do patamar das representações no planejamento se dará de uma maneira análoga àquela que Lefebvre propõe para a superação da filosofia na sua “meta-filosofia” (1967). Diz ele que além da filosofia e do conhecimento não vem nenhuma “meta-física” ou transcendência da realidade, mas a práxis. É nela – e na sua poiesis – que há uma força criativa; e não na formalidade dos modelos e das representações que meramente reproduzem velhos esquemas – como mimesis. Ou seja, em analogia à meta-filosofia estriamos procurando por um meta-planejamento que nem significaria o “planeja­mento do planejamento” num nível simbólico; nem a trivial volta ao “intervencionismo prático e imediato” das propostas recentes dos projetos urbanos.

Para alcançar, então, o verdadeiro patamar da “práxis” é preciso superar, dialeticamente, as limitações de anteriormente mencionados processos fundamentados quase exclusivamente em representações e discussões simbólicas (discursos). As “práticas do planejamento” não podem ser chamadas de “práxis” porque permanecem presas a duas formas limitadas da consideração quase exclusiva ou da dimensão simbólica ou da dimensão física-material do processo. Portanto, em princípio, a superação – o meta-planejamento - não pode resultar meramente em nenhum novo discurso ou nova concepção do planejamento ou, mesmo, planejamento com um discurso novo.

Uma prática do planejamento, nesse sentido,  que quisesse se constituir como “práxis” precisa contemplar e incorporar aquele espaço social em sua totalidade que está relacionado ao processo (prática, trabalho) de planejamento (não se confunde com o “planejamento compreensivo”)  de uma forma que, até certo ponto, permita sua incorporação para além de meras representações e do simbólico (do espaço).

E é aqui onde nos encontramos a potencialidade de uma nova “dimensão de mediação” do planejamento que se baseia na compreensão (da produção) do espaço social desenvolvida por Lefebvre (1991).  Como seria possível essa superação e porque ela levaria à transformação do processo de planejamento em alguma “práxis”?

Uma primeira, talvez provisória, mas já elucidativa resposta obtem-se numa análise mais cuidadosa tanto das práticas do planejamento realizadas dentro de certos espaços sociais – como nossa referência empírica no item anterior quis, ao menos, ilustrar -, como das suas intenções de transformação desses espaços. Na sua concepção do espaço social, Lefebvre (1991) confronta determinadas representações discursivas sobre o espaço dos especialistas (arquitetos, urbanistas, planejadores) com os espaços de representações das pessoas e grupos que estão presentes e se formam permanentemente nas suas experiências e vivências diárias que nem sempre são discursivamente acessíveis. As representações do espaço expressam uma perspectiva ideológica (dominante) daquela sociedade a respeito de seu espaço social sempre relacionadas às relações de produção e às ordens que nelas tem sua origem. Essas representações procuram-se impor a outras vivências sociais que formam aqueles espaços de representação muitas vezes em desacordo das formas oficiais da representação do espaço.

Pois, os espaços de representação podem estar vinculados a um lado mais clandestino e subterrâneo (“underground”) da vida social que não obedecem às regras de consistência e coesão; não envolve tanto o pensamento, mas mais os sentimentos. Como diz Lefebvre, esses espaços têm um núcleo afetivo e abrangem os lugares de paixão, da ação e da situação vivida e, portanto, implica o tempo (Merryfield, 2002, p. 90).

Há, portanto, um conflito intrínseco aos espaços sociais nas sociedades modernos que surge ao longo da história - e se expressa diferentemente em determinados períodos - com a separação entre percepção, vivência e concepção do espaço, introduzida na renascença (vide Lefebvre 1991), e vem a caracterizar a produção do espaço (social) moderno desde então. Arriscando-nos a encurtar nossa argumentação, talvez seja possível ver uma analogia entre, por um lado, os possíveis conflitos “lefebvrianos” entre essas representações do espaço com os espaços vividos de representação com, por outro lado, os conflitos “habermasianos” entre os sistemas econômicos e sociais  e o mundo da vida. No caso da mediação entre sistemas e mundo da vida os planejadores recorreram à comunicação.  Para mediar os conflitos entre representações do espaço e os espaços de representação encontramos no próprio Lefebvre um “terceiro termo” que são as práticas espaciais.

Representations of space and representional spaces are ´secreted´ by spatial practices which ensure that conceived and lived space coexist in dialectical unity. The secrete stability as well as contradiction. Spatial practices invariably relate to perception, to people´s perceived take on the world, on their world – particularly their everyday world. Spatial practices make sense (and nonsense) of everyday reality, and include routes and networks, patterns and movements that link together spaces of work, play, and leisure. … They maintain societal continuity and ´spatial competence´, and somehow mediate between the conceived and the lived, keeping representations of space and representational spaces together, yet apart … (Merryfield, 2002, p. 90, destaques do autor).

O planejamento “espacial” como mediação entre as representações e concepções abstratas dos arquitetos, urbanistas e planejadores e os espaços vivenciados (espaços de representação) por aqueles que são objeto-sujeito do processo de transformação envolveria, portanto, os mesmos atores como o planejamento comunicativo. Na sua forma, as mediações dialógicas do planejamento comunicativo poderiam e deveriam ser mantidos. Elas parecem necessárias, mas não suficientes.

Na nossa linha de argumentação de Habermas a Lefebvre, o planejamento deve ser direcionado para assumir uma segunda forma de mediação que ultrapassa a transformação das meras formas de relacionamentos entre as duas mencionadas esferas da vida social (Habermas). Essa mediação precisa estar baseada nos próprios conteúdos dos dois mencionados momentos da tríade (Lefebvre) da produção social do espaço social. Sem referência a nenhum conteúdo ou situação em particular, é possível afirmar que uma nova perspectiva exigiria a inclusão de um assunto que atravessa, na nossa opinião, todas as sociedades capitalistas: a crescente “colonização” do cotidiano (mundo da vida) por representações do espaço que expropriam a população de seus espaços de representação – e, de alguma forma, ameaçam com isto também as suas práticas espaciais. Sem defender aqui que esses espaços construídos no cotidiano devam ser intocados ou absolutamente preservados, eles não apenas merecem ser considerados nos processos de planejamento – como admite, ao menos no discurso, o planejamento participativo -, mas são constituintes para um planejamento que seja subversivo; ou seja, inverter ou subverter as relações tanto entre Estado e sociedade em geral, como entre planejadores e a população envolvida e afetada pelas possíveis medidas, em particular, esses espaços tornam-se condição e resultado dessa proposta de planejamento.

 

Da prática no espaço-tempo à subversão (vide também Randolph 2007b)

Como, então, poderia ser possível, num mundo globalizado, dominado pelos processos ágeis do planejamento estratégico, pensar em condições (antes mesmo de cria-las) que possibilitassem a realização de práticas subversivas do planejamento? Práticas que questionam mesmo aquelas formas progressistas e colaborativas do planejamento? Quais poderiam ser as forças sociais que levariam um projeto contra-hegemônico de subversão adiante?

Encontramos primeiras respostas a essas perguntas na recente reflexão do sociólogo português, Boaventura de Souza Santos, acerca de uma “reinvenção da emancipação social” (Santos 2003, 2004). Pois, pode se ver essa reinvenção enquanto uma das principais metas tanto do planejamento colaborativo como do próprio planejamento subversivo. Compreende-se ainda melhor, a partir da incorporação da argumentação desse autor, o caráter “revolucionário” – na medida em que exige reverter posições e relações estabelecidas nas sociedades contemporâneas ocidentais – e “utópico” – no bom sentido de haver alguma perspectiva para sua realização – da acima esboçada proposta.

Recapitulando, a crítica de Habermas à razão instrumental dá origem à formulação do modelo comunicativo; e a relativização da razão comunicativa que ganhamos de Lefebvre leva ao reconhecimento da interferência de dois momentos contraditórios na produção social do espaço (as representações do espaço e os espaços de representação na elaboração de planos) que colocam em risco qualquer elaboração de consensos. Mas, com isto, não se está propondo, aqui, que a intermediação ou tradução entre as duas esferas sociais ou dois momentos espaciais deve ser eliminada. Ao contrário, sua contínua existência é da fundamental importância para que o planejamento possa cumprir essa sua “função subversiva”.

Para explicitar e justificar essa perspectiva é preciso recorrer a conceitos elaborados por Boaventura Santos:

Como uma das conclusões do já mencionado projeto sobre a “reinvenção da emancipação social”,  Santos (2003, 2004) apontou certas limitações da ciência ocidental que contribui para um enorme desperdício da experiência social na medida em que esconde e desacredita alternativas à globalização neoliberal e capitalismo global produzidas por movimentos sociais e organizações não governamentais. Sem entrar nessa discussão, é interessante a colocação do autor a respeito das possibilidades da reversão dessa situação; ele defende que não seria a partir de algum outro tipo de ciência social; mas que seria necessário propor “um modelo diferente de racionalidade. Sem uma crítica do modelo de racionalidade ocidental dominante durante pelo menos nos últimos 200 anos, todas as propostas apresentadas pela nova análise social, por mais alternativas que se julguem, tenderão a reproduzir o mesmo efeito de ocultação e descrédito” (Santos 2003: 2s).

Diferentemente da versão habermasiana de racionalidade, Santos vê a característica fundamental da concepção ocidental da racionalidade no fato de,

por um lado, contrair o presente e, por outro, expandir o futuro. A contração do presente, ocasionada por uma peculiar concepção de totalidade, transformou o presente num instante fugido, entrincheirado entre o passado e o futuro. Do mesmo modo a concepção linear do tempo e a planificação da história permitiram expandir o futuro indefinidamente. Quanto mais amplo o futuro, mais radiosas são as expectativas confrontadas com as experiências do presente (Santos 2003:03).

Torna-se, portanto, necessário realizar uma crítica à razão subjacente à modernidade ocidental que o autor chama, seguindo Leibniz, de “indolente” (Santos 2003:03) à qual opõe os prolegómenos de uma razão que designa como “cosmopolita”. 

Mesmo a breve ilustração das experiências de participação na elaboração de Planos Diretores no item anterior mostra como as restrições de um espaço-tempo subjacentes à sua formulação determinam – e limitam – os resultados. O que se percebe nessas experiências são a explícita ou implícita presença de uma visão da totalidade “instantânea” – do momento – e uma forma de tratar o futuro dentro de uma perspectiva linear do tempo.   

Portanto, o argumento central para nossa discussão é a proposição do autor que a racionalidade cosmopolita, “nesta fase de transição, terá a seguir a trajetória inversa: expandir o presente e contrair o futuro. Só assim será possível criar um espaço-tempo necessário para conhecer e valorizar a inesgotável experiência social que está em curso no mundo de hoje”. Para “expandir o presente”, Santos (2003:04) propõe uma sociologia das ausências; para “contrair o futuro”, uma sociologia das emergências. Não será possível, aqui, seguir mais detalhada e aprofundamente o raciocínio e a argumentação de Santos; a crítica que o autor desenvolve a respeito da razão indolente e, particularmente, das suas formas da Razão Metonímica (Santos 2003: 6ss.) e da Razão Proléptica (Santos 2003: 20ss.) podem dar indicações valiosas a respeito da força subversiva do planejamento aqui desenhado em primeiros traços.

O próprio processo do planejamento subversivo precisa ser compreendido como uma das maneiras de realizar, na prática, a expansão do domínio tanto das experiências sociais já disponíveis (pela sociologia das ausências; aumentando o presente), quanto das experiências sociais possíveis (pela sociologia das emergências, retração do futuro).

A multiplicação e diversificação das experiências disponíveis levantam dois problemas complexos: O problema de extrema fragmentação ou atomização do real e o problema, derivado do primeiro, da impossibilidade de conferir sentido à transformação social. Estes problemas foram resolvidos, como vimos, pela razão metonímica e pela razão proléptica através do conceito de totalidade e da concepção de que a história tem um sentido e uma direção (Santos 2003: 29).

Dentro de uma concepção cosmopolitana da razão, essas soluções perdem sua validade; Santos introduz como nova forma de resolver esses problemas a “tradução” (Santos 2003: 30) que é um procedimento

que permite criar  inteligibilidade recíproca entre as experiências do mundo, tanto as disponíveis como as possíveis, reveladas pela sociologia das ausências e a sociologia das emergências. Trata-se de um procedimento que não atribui a nenhum dos conjuntos de experiências nem o estatuto de totalidade exclusiva nem o estauto de parte homogênea.

No nosso caso, esse trabalho da “tradução” entre planejadores e a população envolvida no planejamento incide sobre saberes que assume a forma de uma hermenêutica diatópica (Santos 2003: 31ss) com tem lugar também entre práticas e seus agentes (Santos 2003: 34 ss). Assim, numa primeira tentativa de aproximação que precisa ser aprofundada futuramente, podemos nos arriscar de entender a tradução de Santos como uma forma de mediação ampliada. Essa nova forma de mediação – que incorpora aquela do planejamento colaborativo -, no que diz respeito às atividades de um planejamento subversivo, inverte definitivamente as relações entre planejadores e população envolvida nas práticas do planejamento.

Para sintetizar provisoriamente esse debate pode-se afirmar que a distinção entre esse planejamento subversivo em relação às formas anteriores será o fato dele se opor:

- tanto aos processos crescentes da real formalização e abstração da interação social, a conseqüente alienação;

- quanto à aceleração dos processos (contração do presente) e mera extrapolação linear do futuro (expansão do futuro) nos termos de uma constante e ampliada submissão aos ditames do espaço abstrato das sociedades de consumo dos países industrializados.

A maioria das práticas da formulação dos Planos Diretores Participativos no Brasil ainda está, obviamente, muito distante dessa perspectiva – o que limita profundamente sua “capacidade subversiva”. Não obstante, pela argumentação acima apresentada, acredita-se na possibilidade da realização dessa proposta do planejamento subversivo e na sua potencialidade a partir das manifestações e do reconhecimento crescentes da riqueza social (Santos); da formação e do exercício do poder comunicativo (Habermas) que se opõe à real submissão a lógicas abstratas da sociedade de consumo; e da busca, por parte dos habitantes das grandes cidades, pelo valor de uso dos seus espaços vivenciados e de sua defesa contra os efeitos de abstração que o capitalismo (financeiro) tenta impor progressivamente na medida em que avança na produção do espaço social (Lefebvre).

   


Bibliografia

 
ALESSANDRI CARLOS, A. La utopía de la gestión democrática de la ciudad. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (01). http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-01.htm.

BRASIL, Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Programas Urbanos, Plano Diretor Participativo. Coordenação Geral de Raquel Rolnik, Benny Schwarsberg e Otilie Macedo Pinheiro. Brasília: Ministério das Cidades, dezembro de 2005.

COSTA, G. M. "Urban analysis and práxis in Brazil: theoretical approaches". Paper presented at the ACSP 2004 - 45th Annual Conference, Portland, Oregon, USA, 21-24 October 2004
.

FAINSTEIN, S. F. “New directions in planning theory”. Urban Affairs Review, Vol. 35, No. 4, March: 451-478, 2000.

FORESTER, J. Critical theory, public policy and planning practice. Albany: State University of New York Press, 1993.

HABERMAS, J. Theorie des kommunikativen Handelns. Vol. I e II, Frankfurt/M.: Surkamp 1981.

HABERMAS, J. “Três modelos normativos de democracia”. Lua Nova, Revista de Cultura e Política, n° 36, pp. 39-48 (com um adendo editorial nas pp. 48-53), 1995.

HABERMAS, J. Direito e democracia. Entre facticidade e validade, Tomo I e II, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997 (original em alemão em 1991).

HEALEY, P. “Planning through debate: the comunicative turn in planning theory”. In: FISCHER, F., FORESTER, J. (Eds.) The argumentative turn in policy analysis and planning. Durham and London: Duje University Press, 1993.

HEALEY, P. Collaborative Planning: Shaping Places in Fragmented Societies. London: Macmillan, 1997.

HEALEY, P. “Collaborative planning in perspective”. Planning Theory, vol 2 (2): 101-123, 2003

INNES, J., BOOHER, D. E. “Consensus building and complex adaptiv systems. A framework for evalating collaborative planning”. Journal of the American Planning Association; Vol. 65, no. 4, autumn, pp. 412 –423, 1999a.

INNES, J., BOOHER, D. E. “Consensus builing as role playing and bricolage. Toward a theory os collaborative planning”. Journal of the American Planning Association; Vol. 65, no. 1, winter, pp. 9-26, 1999b.

LEFEBVRE, H. Metafilosofia, Prolegómenos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

LEFEBVRE, H. Lógica Formal/Lógica dialética, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979  – original de 1947 .

LEFEBVRE, H. The production of space. Oxford (UK), Cambridge, Mass.: Blackwell Publishers, 1991.

LIMONAD, E. BARBOSA, J. L. Entre o ideal e o real rumo à sociedade urbana - algumas considerações sobre o ‘Estatuto da Cidade’”. GEOUSP, no. 13, 2003, pp. 87-106; em http://www.geografia.fflch.usp.br/publicacoes/Geousp/Geousp13/Geousp13_Limonad_Barbosa.htm

MELUCCI, A. “The symbolic challenge of contemporary movements”. Social Research, vol 52, nº 4, winter 1985, pp. 788-816, 1985.

MERRIFIELD, A Metromarxism. A marxist tale of the city. New York, London: Routledge, 2002.

RANDOLPH, R. “O planejamento comunicativo entre as perspectivas comunitarista e liberal: há uma ´terceira via´ de integração social?” Cadernos IPPUR, vol. XIII, no. 1, pp. 83-108, jan-jul. 1999.

RANDOLPH, R. Potencial e limitação do planejamento participativo: reflexões sobre a superação da “colaboração” pela “subversão”. In: Anais do XII Encontro Nacional da ANPUR, ANPUR: Belém/ Pará, maio de 2007a.

RANDOLPH, R.  From collaborative to “subversive” planning: Remarks to overome conflicts between planners´expertise and the daily life experiences of envolved population. Trabalho a ser apresentado na Conferência Internacional “New concepts and approaches for urban and regional policy and planning?”, SP2SP project ESDP-network, Universidade Católica, Leuven, Bélgica, 2-3 de abril de 2007b

SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das emergências. In: SANTOS, B. S. (Org.) Conhecimento prudente para uma vida decente: "Um discurso sobre as ciências" revisitado. Porto: Afrontamento, 2003; disponível em: http://www.ces.uc.pt/bss/documentos/sociologia_das_ausencias.pdf

SANTOS, B. S. A critique of lazy reason: Against the waste of experience. In WALLERSTEIN, I. (Ed.), The Modern World-System in the Longue Durée. Londres: Paradigm Publishers, 157-197, 2004; disponível em http://www.ces.uc.pt/bss/documentos/A critique of lazy reason.pdf

VILLAÇA, F. As ilusões do Plano Diretor. São Paulo, agosto de 2005; disponível em http://www.planosdiretores.com.br/downloads/ilusaopd.pdf.


Retorna a Programa de las Sesiones