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Ar@cne
REVISTA ELECTRÓNICA DE RECURSOS EN INTERNET
SOBRE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona
Nº 152, 1 de octubre de 2011
ISSN 1578-0007
Depósito Legal: B. 21.743-98

 


A NOVA FORMA DE MEDIAÇÃO DA CARTOGRAFIA NO CIBERESPAÇO

NOTAS SOBRE O PROJETO POST URBANO

 

 

Tânia Seneme do Canto

Mestre e Doutoranda em Geografia

Universidade Estadual Paulista (UNESP), Rio Claro - SP, Brasil

<taniacanto@gmail.com>

 

 



A nova forma de mediação da cartografia no ciberespaço: notas sobre o projeto Post Urbano (Resumo).

 

O surgimento da Web 2.0 e o desenvolvimento de programas de mapeamento associados a ela, como o Google Maps, permitiu que pessoas comuns, isto é, não-cartógrafos, se apropriassem das novas tecnologias para criarem seus próprios mapas. A partir disso, uma infinidade de aplicações construídas através da combinação de produtos cartográficos profissionais e conteúdos produzidos pelos próprios usuários passaram a circular na web, oferecendo-nos outras visões de espaço e fazendo emergir novas relações com ele. Denominado Post Urbano, o projeto que apresentamos aqui é um exemplo de mapeamento virtual que utiliza tais recursos e nos mostra as novas possibilidades adquiridas pela cartografia no ciberespaço.

 

Palavras-chave: novas tecnologias de mapeamento, ciberespaço, cartografia, Google Maps, Post Urbano.




La nueva forma de mediación de la cartografía en el ciberespacio: notas sobre el proyecto Post Urbano. (Resumen).

 

La aparición de la Web 2.0 y el desarrollo de programas de mapeo asociados a ella, como Google Maps, permitió a la gente ordinaria, es decir, no-cartógrafos, apropiarse de nuevas tecnologías para crear sus propios mapas. Desde entonces, una multitud de aplicaciones creadas mediante la combinación de productos cartográficos profesionales y el contenido producido por los propios usuarios comenzaron a circular en la web, ofreciéndonos visiones alternativas de espacio y dando lugar a nuevas relaciones con él. Nombrado Post Urbano, el proyecto que aquí se presenta es un ejemplo de mapeo virtual que utiliza esos recursos y nos muestra las nuevas posibilidades adquirida por la cartografía en el ciberespacio

 

Palabras clave: nuevas tecnologías de mapeo, ciberespacio, cartografía, Google Maps, Post Urbano.

 



The new form of cartography mediation in cyberspace: notes on the Post Urbano project (Abstract).

 

The emergence of Web 2.0 and the development of mapping programs associated with it, such as Google Maps, allowed ordinary people, i.e. non-cartographers, to appropriate new technologies, and thereby, to create their own maps. Since that, a multitude of applications built by combining professional cartographic products and content produced by users themselves began to circulate on the web, offering us alternative views of space and giving rise to new relations with it. Named Post Urbano, the project presented here is an example of virtual mapping that uses such resources and shows us the new possibilities gained by cartography in cyberspace.

 

Key words: new mapping technologies, cyberspace, cartography, Google Maps, Post Urbano.

 


 


A história da cartografia com o ciberespaço começou quando a Internet surgiu principalmente como um meio inovador de distribuição e acesso a conteúdos digitais em escala global. Assim, rompendo com as barreiras espaços-temporais até então não superadas por outros meios de comunicação e transporte, a rede permitiu que, em questão de segundos, mapas construídos num ponto do globo alcançassem o mundo. No entanto, apesar de utilizarem as redes digitais para sua divulgação e muitas vezes serem produzidos por meio de computadores, estes mapas não aproveitavam a flexibilidade da linguagem digital, sendo pouco interativos, já que não era possível transformá-los ou atualizá-los facilmente.

 

Algum tempo depois, a Internet evoluiu com novas condições de circulação da informação digital, possibilitando assim que programas multimídia fossem incorporados a web. Isso fez com que mapas mais interativos, antes encontrados apenas em suportes CD-ROM, agora também fizessem parte da paisagem de dados do ciberespaço. Nesse novo contexto tecnológico, os mapas encontrados na Internet se tornaram mais dinâmicos, com animações e possibilidades de escolhas.

 

Ao permitir que os usuários conectados a rede selecionassem as informações georreferenciadas que gostariam de visualizar na tela do computador, esses produtos cartográficos agregaram a si as propriedades de navegação das arquiteturas hipertextuais e ofereceram um maior grau de autonomia no processo de leitura e criação de sentido. Contudo, mesmo avançando consideravelmente na questão da interatividade, os denominados hipermapas que passaram a circular na web continuaram a preservar o aspecto autoral das representações cartográficas. Quem criava os conteúdos e pré-definia os caminhos e opções que os usuários poderiam seguir ainda eram os profissionais da cartografia e da linguagem de programação.

 

Os hipermapas, no entanto, não demoraram muito para serem superados. Com o aumento crescente do acesso à Internet e a evolução constante das tecnologias digitais, uma cartografia que definitivamente transformaria a relação dos usuários com os mapas surgiu. Segundo Cartwright[1] “users would construct their own mapping product from both cartographer-provided components and their own information”, provocando assim uma mudança radical no campo da autoria dos mapas.

 

Esta mudança de que fala o autor está ligada ao desenvolvimento da chamada Web 2.0, uma nova geração de aplicativos da World Wide Web que tem como principais características o compartilhamento de dados e a produção colaborativa[2]. Nomeada em 2004 pela equipe da O’Reilly Media[3] para designar as  primeiras aplicações que ofereciam aos seus usuários um espaço aberto e gratuito para a troca e produção de conteúdo, a Web 2.0 está revolucionando hoje toda a experiência dos internautas com o ambiente do ciberespaço. Nos dizeres de Capel[4]:

 

“Frente a la Web 1, que sería “estática”, con páginas que experimentaban pocas actualizaciones, y que no tenían interacción con los usuarios, los cuales se limitaba a consultarlas, las caracterizaciones que se hacen de la Web 2 destacan la proliferación de dominios que generan colaboración, y páginas en actualización y cambio constante por la participación activa de los usuarios; también aluden a una nueva actitud de éstos, a las redes sociales que se constituyen, al software amplia y libremente disponible, a la información que puede utilizarse sin derechos”.

           

Desse modo, atualmente, os produtos cartográficos que se destacam no ciberespaço são aqueles através dos quais pessoas comuns podem criar seus próprios mapas. A partir da apropriação e recombinação de mapas profissionais com outras informações, linguagens e tecnologias produzidas pelo próprio usuário ou disponíveis na rede, tais produtos são na verdade programas de mapeamento online que nos oferecem a possibilidade de construir novas formas de representação espacial e, principalmente, de mediação do homem com o espaço.

 

O projeto que apresentamos aqui vai nesta direção, pois ao utilizar o programa de mapeamento online Google Maps <http://maps.google.com.br/> para compartilhar sua visão de espaço, um coletivo de artistas de Rosario (Argentina) criou um mapa virtual, no qual histórias e experiências com a cidade podem ser contadas por seus habitantes e visitantes. Diante disso, a partir de anotações feitas por seus usuários sobre os mapas e imagens de satélite disponíveis no site, o projeto Post Urbano <http://post.wokitoki.org/> permitiu que um grande mapa subjetivo de Rosario fosse construído colaborativamente na web, bem como fez emergir outras formas de identificação com a cidade.[5].

 

           

Post Urbano – o projeto

 

Ao acessar o site Post Urbano <http://post.wokitoki.org/>, o internauta é imediatamente convidado a deixar sua marca na cidade de Rosário (Argentina). Com um clique no botão esquerdo do mouse, é possível assinalar um lugar na imagem de satélite provida pelo Google Maps e relatar “aquellas vivencias, historias y acontecimientos particulares (pasados o presentes) que lo vinculan con el lugar” e que “luego serán colocados en la calle, mediante afiches en los sítios que usted índico (acción concluida)”[6].

 

Em entrevista[7] a autora deste artigo, Daniel Perosio, um dos criadores do site, conta que o Post Urbano foi desenvolvido em 2006 como um projeto de intervenção urbana que buscava oferecer aos habitantes de Rosario a oportunidade de conhecer os bairros de sua cidade e descobrir coisas novas sobre os lugares em que viviam. Desse modo, o grupo de artistas utilizou a web e o sistema de mapas do Google para coletar informações vinculadas a um território específico e depois devolvê-las ao seu lugar de origem, tornando tais informações públicas através de cartazes fixados nas ruas.

 

Na visão de Perosio, a Internet é como um tabuleiro, uma plataforma por meio da qual é possível ativar a cidade e transformar o meio, gerando vínculos e situações urbanas. Por isso, para ele, o projeto Post Urbano, na verdade, “tenia que ver con bajarlo al barrio e ponerlo en contexto esa información que andaba por ahí ponerla en su lugar e ver que pasaba”[8]. E realmente muita coisa se passou, tanto no espaço social da cidade como no ciberespaço.

 

As pessoas que se envolveram com o projeto de mapeamento por meio da rede registraram diversas formas de relação construídas com a cidade, cartografando assim os espaços simbólicos de Rosario. A escrita produzida com as imagens de satélite através das mensagens dos usuários trouxe a existência acontecimentos, movimentos, episódios do cotidiano, pensamentos, práticas espaciais, que ocupam a subjetividade dos habitantes da cidade argentina. As figuras apresentadas a seguir mostram algumas das intervenções mapeadas no site.

 

 

Figura 1. Intervenção Descampado.

 


Fonte: Post Urbano 2010.

 

 

Figura 2. Intervenção Antena!!

 

        

 

Fonte: Post Urbano 2010.

 

 

Nas figuras logo abaixo, podemos ver duas intervenções que tomaram grande dimensão na vida dos habitantes do bairro. Segundo Perosio, quando estas mensagens foram fixadas nos respectivos lugares a que correspondiam, a população se envolveu profundamente com as histórias que elas contavam. O cartaz Justicia popular (figura 3) pregado na Avenida Córdoba, por exemplo, levantou várias discussões sobre a verdade dos fatos relatados. “[...] era un cartel que uno decía que fue una explosión que se había dado vuelta y el vecino decía que no, que fue una vaca lechera que había golpeado ahí un carro…”, diz o artista[9].

 

 

Figura 3. Intervenção Justicia popular.

 

 

Fonte: Post Urbano 2010.

 

 

Já a intervenção El club del barrio (figura 4) foi diferente, pois não causou divergências entre a população, mas ficou por muito tempo na paisagem do bairro. O cartaz que citava o Club Atletico Liberdad como o berço de grandes esportistas argentinos foi acolhido pelos habitantes do entorno como um “monumento”, um “gesto urbano”, para Perosio[10].

 

“Había un cartel que duró como dos años y era un club, un pequeño club chiquitito y yo después fui a los dos años a sacarle fotos de vuelta, porque a veces duraban poco, pero ese había durado como dos años, y pasaba un grupito de chicos y hablaban del club y cuando pasaban por el cartel lo palmeaban, estaba sentido por el barrio, porque contaba una historia de ellos.  Era como esas cosas que no se saben, no se cuentan, que generan orgullo en el lugar, que construyen la identidad del lugar.  Era como un pequeño monumento era un gesto urbano”.

 

 

Figura 4. Intervenção El club del barrio.

 

 

Fonte: Post Urbano 2010.

 

 

Quando visitamos Rosario em novembro de 2009 para entrevistar Daniel Perosio, ainda pudemos encontrar alguns rastros deste cartaz, testemunhando as marcas que o Club deixou no bairro e na vida de seus moradores.

 

 

Figura 5. Fotos da intervenção El Club del barrio e da fachada do Club Atletico Liberdad em 2009.

 

         

 

Fonte: fotos tiradas pela a autora do artigo.

 

 

Tais eventos, no entanto, não ocorreram apenas no espaço propriamente ocupado por Rosario. Imerso num meio de comunicação global como a Internet, o projeto Post Urbano teve também desdobramentos imprevisíveis no espaço virtual, demonstrando as potencialidades de mediação que esta nova forma de mapeamento é capaz de produzir. A intervenção Nunca estuve aqui é bastante expressiva neste sentido. Veja a figura 6.

 

 

Figura 6. Intervenção Nunca estuve aqui.

 

 

Fonte: Post Urbano 2010.

 

 

Como nos mostra a imagem, Eugenia nunca esteve em Rosario e muito menos na esquina da avenida Fraga Bis com a rua Juan J. Paso, no entanto, através do ciberespaço e desta nova cartografia ela pôde conhecer virtualmente a cidade e imprimir nela a relação que havia acabado de construir. Para a internauta de La Plata o cartaz originado desta sua interação espacial mediada pela nova tecnologia de mapeamento online, era a maneira de se fazer estar em Rosario.

 

Conversando com Daniel Perosio, descobrimos que pessoas de outros lugares do mundo também se encantaram com o projeto, estabelecendo novas formas de identificação com a cidade. O criador do site conta que “hay gente que decía que era del barrio y que estaba viviendo hace muchos años en España y se reencontró con el barrio y se reencontró así, a través de eso”[11]. Habitantes de províncias vizinhas a Rosario também lhe escreviam pedindo para estender o projeto as suas cidades. Para Perosio, este é o modo de ser da Internet e por isso muitas vezes é tão difícil falar de seu bairro num meio tão global[12].

 

Internet lo que tiene es que se va para todos lados, es difícil hablar de tu barrio cuando los que lo visitan son de todos lados, de hecho había gente que querían hacerlo, en España, en Bilbao,  pegar carteles, bueno gente en Córdoba, en otras provincias de la Argentina, que querían que fuéramos a pegar carteles, entonces, Internet es un medio global, que es, es todo un juego ser tan local en algo tan global.

 

Como nos disse Perosio[13] o objetivo do Post Urbano era transformar a realidade concreta da cidade, “la intención es […] que toda esa información aterrice en un contexto, en un contexto, una historia en personas concretas”. Contudo, para nós, a dimensão que o projeto tomou na Internet nos despertou para o potencial que a cartografia é capaz de adquirir quando se conecta ao espaço-tempo da rede: um espaço global de interação e um tempo que funciona, segundo o próprio artista, como um destiempo, um tempo que é sempre presente.

 

 

Post Urbano – a tecnologia

 

Como Cartwright nos alertou, a cartografia que se desenvolve hoje no ciberespaço é aquela criada pela combinação de dados fornecidos por cartógrafos e por usuários. Portanto, por traz desses novos mapas existem aplicativos e sistemas que possibilitam a apropriação de produtos cartográficos profissionais pelos usuários comuns. O projeto Post Urbano foi criado a partir de um dos mais populares programas de mapeamento online existentes hoje na web, o Google Maps.

 

Lançado em 2005, este programa foi uma das tecnologias precursoras na web a oferecer gratuitamente serviços baseados em mapas. Desse modo, por meio de sistemas de busca e mapas interativos o Google Maps se consolidou principalmente como uma ferramenta de pesquisas de endereços e rotas. Ao longo do tempo, no entanto, a empresa ampliou os seus serviços nesse segmento e sofisticou a cobertura espacial do programa.

 

Atualmente, o Google Maps tem um grande acervo de mapas e imagens de satélite que são atualizadas periodicamente, pode ser utilizado em dispositivos móveis como celulares e, também oferece novos recursos de localização[14] e visualização da superfície terrestre[15]. Contudo, foi apenas com a incorporação da tecnologia API ao seu sistema que o Google Maps possibilitou a emergência de novas formas de representação e relação socioespacial.

 

A tecnologia API (Application Programming Interface) refere-se a uma interface de programação que tem a função de facilitar a apropriação e manipulação de determinados sistemas da web, permitindo a adição de novos conteúdos, ferramentas e códigos a eles. Desse modo, com o desenvolvimento do Maps API, todos os recursos do Google Maps, isto é, mapas, imagens, ferramentas de busca, puderam ser recombinados pelos seus usuários, dando origem a novos aplicativos e mapeamentos[16]. Apesar de ser necessário conhecer um pouco de informática para aplicar esta inovadora interface, os internautas não se intimidaram e passaram a inventar suas próprias formas de mapeamento.

 

Os aplicativos desenvolvidos a partir do Google Maps API <http://code.google.com/intl/pt-BR/apis/maps/> por usuários iniciados em linguagem de programação se tornaram tão populares e freqüentes no ciberespaço que ganharam uma denominação própria na cultura digital: Google Maps Mashups. O termo mashup[17] refere-se exatamente as novas aplicações construídas com o uso do código e da função de dois ou mais programas já existentes, ou ainda, através da incorporação de novos dados e códigos a esses programas. Desse modo, são chamadas de Google Maps Mashups as aplicações da web que combinam o Google Maps com outros programas, ferramentas, recursos e fontes de informação para diferentes fins[18].

 

Predominantemente a maioria dos mashups cartográficos que encontramos no ciberespaço utiliza a linguagem API dos programas de mapeamento online para representar espacialmente dados e informações que circulam na web em outras formas de representação. O projeto GeoImpress <http://www.geoimpress.com/> por exemplo é uma combinação do Google Maps com as imagens hospedadas na rede social Flickr <http://www.flickr.com/>. Desse modo, ao acessar o GeoImpress e escolher no mapa um ponto do globo para visualizar, são exibidas no site as fotografias identificadas no Flickr com esta localização. Veja o quadro (figura 7) a seguir:

 

 

Figura 7. Combinação do projeto de mapeamento GeoImpress. Google Maps + Flickr = GeoImpress.

 

 

Fonte: Quadro elaborado pela autora a partir do Google Maps 2010; Flickr 2010; GeoImpress 2010.

 

 

Existem, entretanto, outras formas de mapeamento construídas com a tecnologia API que têm se destacado na web. Os mashups que adicionam novas ferramentas e funções aos recursos dos programas de mapeamento online, ao invés de combiná-los com sistemas e conteúdos pré-existentes na rede, são um exemplo. Geralmente estas aplicações são projetos que visam à inclusão direta de conteúdos e informações pelos usuários. Com isso, as novas ferramentas desenvolvidas permitem que pessoas comuns se envolvam no processo de mapeamento com muita facilidade, promovendo assim uma nova forma de mediação entre o homem e o espaço.

 

O site Post Urbano em específico se encaixa nesta forma de mapeamento, pois foi elaborado para a intervenção direta dos usuários nos mapas e imagens de satélite pré-disponíveis. Criado por meio da API do Google Maps, seus desenvolvedores combinaram os recursos deste programa com novos dispositivos que permitem uma interação intensa entre os internautas e os produtos cartográficos profissionais. Nesta perspectiva, todas as informações veiculadas pelo Post Urbano advêm de pessoas, lugares e tempos distintos, podendo, então, ser concebido como uma obra aberta e em contínuo processo de construção.

 

 

Reconstruindo o mapa nas redes digitais

 

Num dos mais celebres textos da história da cartografia, Deconstructing the map[19], J. B. Harley desconstrói a lógica dos mapas para mostrar de que modo eles funcionam como uma forma de poder-conhecimento em nossa sociedade. Para ele, o poder que permeia os mapas não se resume apenas ao seu uso como um instrumento de controle social e territorial, mas também atravessa a própria prática cartográfica. O processo de mapeamento é considerado pelo autor uma forma de moldar o conhecimento difundido por meio dos mapas. No exercício deste poder, o cartógrafo aplica o conjunto de técnicas, métodos e modelos que sustenta cientificamente o seu trabalho e, sem que perceba, passa a controlar a imagem do mundo.

 

Para Harley, esta forma de poder interno à cartografia preocupa devido aos efeitos que ela produz no modo como pensamos e agimos sobre o espaço. Segundo o autor, as normas cartográficas reduzem a realidade a uma paisagem geométrica de feitos frios, eliminando do mapa toda a experiência humana que diferencia os lugares. Com isso, o espaço se torna um produto socialmente vazio sobre o qual é muito mais fácil atuar: “in our own society, it is still easy for bureaucrats, developers and 'planners' to operate on the bodies of unique places without measuring the social dislocations of 'progress’” [20].

 

Mas, o que pensaria Harley ao ver o mapa criado por não-cartógrafos no site Post Urbano? O que diria ele sobre os seus efeitos simbólicos e suas conseqüências para a produção do espaço?

 

Infelizmente, não podemos mais contar com o olhar de Harley para pensarmos esta nova cartografia, mas outros autores têm se arriscado a compreender a importância e as transformações que estes programas de mapeamento representam para a sociedade ocidental. Para Lemos[21], por exemplo, tais tecnologias tornaram possível colocar no mapa sentidos e histórias originadas do próprio espaço vivido pelas pessoas, superando, desse modo, aquele espaço objetivo e calculável que até então as regras cartográficas permitiam mapear.

 

“[...] esses sistemas de mapas digitais tornou disponível, para todos com acesso à rede, uma possibilidade de produzir conteúdos e mapas sem precedentes na história da humanidade. Com finalidades as mais diversas, esses mapas hoje permitem a pessoas e comunidades criarem histórias e significações autóctones sobre suas realidades, sobre seus “lugares”. Ou seja, é possível produzir histórias sobre os lugares que não são as oficiais, criar sentido além da reprodução oficial”.

 

Para outros autores, esses sistemas representam uma grande mudança no campo da cartografia e da ciência da informação geográfica, pois as tornam mais democrática e participativa, ampliando, assim, os usos que os mapas têm em nossa sociedade. Segundo Miller[22], o Google Maps e as aplicações criadas a partir dele são: “a geospatial information platform upon which non-GIScientists, but nonetheless interested parties, can read, write, alter, store, test, represent, and present information in ways that they desire and in formats and environments they understand”.

 

Realmente, o atual desenvolvimento da cartografia no ciberespaço transformou o mapa numa linguagem pela qual comunidades e pessoas em geral podem expressar suas opiniões, interpretar o mundo e tornar diferentes perspectivas visíveis. Nos países iberoamericanos, por exemplo, já são vários os projetos que, assim como o Post Urbano, utilizam do poder das redes digitais e das novas tecnologias de mapeamento para fazer ver geografias que por muito tempo foram ignoradas pelos cartógrafos profissionais.

 

O site Meipi <http://meipi.org/> é uma das principais plataformas espanholas na qual os usuários podem criar mapas colaborativos. Por meio de suas ferramentas interativas é possível agregar coletivamente conteúdos textuais, visuais e sonoros a localizações de um mapa. Todo sobre mi barrio <http://meipi.org/tsmb.map.php> é um dos projetos criados nesta plataforma que visa mapear a cidade de Madri. Tendo como referência os arredores do Matadero Municipal do bairro Legazpi, distrito de Arganzuela, o mapeamento é aberto para qualquer pessoa inserir informações sobre esta região. Assim, navegando pelo mapa, é possível encontrar mensagens, vídeos e imagens relacionadas à memória da população, manifestações artísticas, eventos, reflexões sobre o bairro e seus problemas e, até mesmo, desenhos do cotidiano e trajetos de seus habitantes.

 

 

Figura 8. Projeto de mapeamento Todo sobre mi barrio.

 

   

 

Fonte: Meipi 2011.

           

 

Projetos de outras partes do mundo e de diferentes temas também podem ser encontrados neste portal de mapas colaborativos. O da figura abaixo, por exemplo, é chileno e pretende mapear com fotos Fragmentos espaciales memorables da cidade de Valparaíso <http://meipi.org/fragmentos.map.php>.

 

 

Figura 9. Projeto de mapeamento Fragmentos espaciales memorables.

 

    

 

Fonte: Meipi 2011.

 

 

No Brasil, foi lançado em 2009 um projeto bastante interessante chamado Wikimapa <http://wikimapa.org.br/>. Seu objetivo é mapear ruas, vielas, ações e locais de interesse público em comunidades de baixa renda do Rio de Janeiro. Os “cartógrafos” deste projeto são jovens moradores das próprias comunidades, que equipados com telefones celulares conectados à Internet alimentam o mapeamento com informações, fotos e vídeos. Veja as figuras.

 

 

Figura 10. Projeto de mapeamento Wikimapa – em destaque ruas e locais do Complexo do Alemão-RJ.

 

 

       

 

Fonte: Wikimapa 2011.

 

 

Desenvolvido pelo Programa Rede Jovem[23], o Wikimapa busca estimular a produção de conteúdo histórico e cultural de lugares reconhecidos por serem violentos, a fim de ampliar o “olhar” dos jovens sobre o local onde vivem. Segundo Patrícia de Azevedo[24], coordenadora do projeto, “com isso, a gente quer mostrar que existe vida e sociedade dentro desses lugares também”.

 

Diante disso, parece que as tecnologias de mapeamento que encontramos hoje no ciberespaço estão sendo utilizadas contra aquela própria cartografia que Harley tanto criticou. Desvencilhada da episteme cientifica moderna que fundamenta a prática cartográfica, os novos cartógrafos estão incorporando aos mapas outros conhecimentos do mundo. Definir o poder que tais mapas têm para transformar efetivamente a realidade em que vivemos ainda é cedo, porém, com certeza, eles estão abrindo caminho para novas imaginações espaciais. Imaginações que, quem sabe, serão capazes de mudar o modo que “bureaucrats, developers and 'planners'” atuam sobre os lugares e inaugurar uma fase Post Urbana para os espaços de reprodução da vida.

 

 

Recursos eletrônicos

 

BEIGUELMAN, G. Mapas além-Google. Trópico. [Online]. São Paulo: UOL, 19 de abril de 2008. <http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/2970,1.shl>. [25 de abril de 2008].

 

BLOG DIÁRIO WIKIMAPA. [Online]. <http://blog.wikimapa.org.br/>. [25 de agosto de 2011].

 

CAPEL, H. Geografía en red a comienzos del Tercer Milenio. Por una ciencia solidaria y en colaboración. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [Online]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de febrero de 2010, Vol. XIV, nº 313 <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-313.htm>. [25 de julho de 2011].

 

CLARK, J. The new cartographers. In These Times. [Online]. Chicago: Institute for Public Affairs, 29 de fevereiro de 2008. <http://www.inthesetimes.com/article/3524/the_new_cartopgraphers/>. [10 de março de 2008].

 

CLARKE, K. Google Maps Mania. [Online]. <http://googlemapsmania.blogspot.com/>. [29 de outubro de 2010].

 

GOOGLE. Google Maps. [Online]. <http://maps.google.com.br/>. [29 de outubro de 2010].

 

HARLEY, J. B. Deconstructing the map. Cartographica. [Online]. Toronto: University of Toronto Press, v. 26, n. 2, 1989, p. 01-20. <http://utpjournals.metapress.com/content/e635782717579t53/fulltext.pdf>. [10 de agosto de 2011].

 

HOELLE DEVELOPMENT. GeoImpress. [Online].  <http://www.geoimpress.com/>. [29 de outubro de 2010].

 

KUKLINSK, H. P. Nociones básicas alrededor de la Web 2.0. In: ROMANÍ, C. C. et al. Planeta Web 2.0: inteligencia colectiva o medios fast food. [Online]. Barcelona/México DF: Grup de Recerca d’Interacciones Digitals, 2007, p. 27-42. <http://www.planetaWeb2.net>. [01 de outubro de 2009].

 

LEMOS, A. Cibercultura remix. In: Seminário Sentidos e Processos. [Online]. São Paulo: Itaú Cultural, agosto de 2005. <www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/andrelemos/remix.pdf >. [20 de setembro de 2009].

 

MEIPI. [Online]. <http://meipi.org/>. [01 de agosto de 2011].

 

MILLER, C. C. A beast in the field: the google maps mashup as GIS/2. Cartographica. [Online]. Toronto: University of Toronto Press, v. 41, n. 3, 2006, p. 187-199. <http://utpjournals.metapress.com/content/j0l053012262n779/>. [11 de março de 2008].

 

POSTER, M. Postmodern virtualities. In: The second media age. [Online]. Cambridge: Polity Press, 1995. <http://www.humanities.uci.edu/mposter/writings/Internet.html>. [10 de julho de 2009].

 

RAILEF; WOKITOKI. Post Urbano. [Online]. <http://post.wokitoki.org/>. [29 de outubro de 2010].

 

WIKIMAPA. [Online]. <http://wikimapa.org.br/>. [01 de agosto de 2011].

 

 

Recursos bibliográficos

 

CANTO, T. S. A cartografia na era da cibercultura: mapeando outras geografias no ciberespaço. Rio Claro: UNESP, 2010. 120 p. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, 2010.

 

CARTWRIGHT, W. Delivering geospatial information with Web 2.0. In: PETERSON, M. P. (Ed.) International Perspectives on Maps and the Internet. New York: Springer, 2008, p. 11-30.

 

DOMINGUES, D. A humanização das tecnologias pela arte. In: Arte e vida no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: Ed. UNESP, 2003, p. 15-30.

 

DYENS, O. A arte da rede. In: DOMINGUES, D. (Org.) Arte e vida no século XXI: tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: Ed. UNESP, 2003, p. 265-271.

 

LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999.

 

LÉVY, P. A revolução contemporânea em matéria de comunicação. Revista FAMECOS. Porto Alegre: PUCRS, v. 1, n. 9, 1998, p. 37-49.

 

 

Notas



[1] Cartwright 2008, p. 11.

 

[2] Kuklinsk 2007.

 

[3] A O’Reilly Media é uma companhia estadunidense especializada em comunicação e informática que utilizou pela primeira vez o termo Web 2.0 para designar aplicações como Napster, Blogs e Wikipédia.

 

[4] Capel 2010.


[5] O projeto de mapeamento virtual Post Urbano foi estudado pela autora do presente artigo em pesquisa de mestrado orientada pela Profa. Dra. Rosângela Doin de Almeida no Programa de Pós-Graduação em Geografia da UNESP e financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Defendida em abril de 2010 com o título “A cartografia na era da cibercultura: mapeando outras geografias no ciberespaço”, a dissertação trata da reconfiguração da cartografia no espaço-tempo das redes digitais, apresentando diversas aplicações construídas a partir das tecnologias de mapeamento online.

 

[6]  Página inicial do site Post Urbano.

 

[7] A entrevista completa de Daniel Perosio, bem como as citações presentes neste artigo, pode ser encontrada em Canto 2010.

 

[8] Apud Canto 2010, p. 115.


[9] Apud Canto 2010, p. 115.

 

[10] Apud Canto 2010, p. 116.

 

[11] Apud Canto 2010, p. 117.


[12] Apud Canto 2010, p. 115.

 

[13] Apud Canto 2010, p. 117.


[14] Um dos mais novos serviços de localização vinculados ao Google Maps é o Google Latitude, o qual permite aos usuários compartilhar sua localização física com outras pessoas. Ele utiliza a base de dados do Google Maps e funciona, principalmente, através de dispositivos móveis, como celulares. Assim, por meio dessa aplicação, os usuários podem descobrir a localização um do outro em qualquer momento e lugar do mundo. Para mais detalhes acesse <http://www.google.com/intl/pt-BR_br/latitude/intro.html>.

 

[15] A mais recente ferramenta de visualização da superfície terrestre oferecida pelo Google Maps é o Street View. Essa tecnologia permite que os usuários do programa tenham uma visão de 360º das ruas das maiores cidades do planeta. Para saber mais acesse <http://www.google.com/intl/pt_br/help/maps/streetview/>.

 

[16] A tecnologia API não é utilizada apenas pelo Google Maps. Diversos sistemas fazem uso dessa interface de programação para facilitar a apropriação de seus serviços por usuários e desenvolvedores de aplicativos. Desse modo, outros programas de mapeamento online como o Bing, da Microsoft, <http://msdn.microsoft.com/pt-br/library/dd877180.aspx> e o Yahoo! Maps <http://developer.yahoo.com/maps/> também possuem uma API. Para saber mais sobre essa tecnologia acesse <http://pt.wikipedia.org/wiki/API>.

 

[17] Para saber mais sobre mashups acesse <http://pt.wikipedia.org/wiki/Mashup>.

 

[18] Para conhecer a variedade de mashups criadas a partir do Google Maps acesse <http://googlemapsmania.blogspot.com/>.


[19] Harley 1989.


[20] Harley 1989, p. 14


[21] apud Beiguelman 2008.


[22] Miller 2006, p. 188.


[23] O Programa Rede Jovem é uma organização não-governamental que visa promover a participação social e cidadã dos jovens por meio do acesso às novas tecnologias digitais. Criado no âmbito do programa Comunidade Solidária, presidido na época pela Dra. Ruth Cardoso, o Rede Jovem atua hoje principalmente no compartilhamento de metodologia e animação de telecentros comunitários e na criação de projetos e ferramentas virtuais voltadas para o desenvolvimento comunitário. Para saber mais acesse <http://www.redejovem.org.br/>. 


[24] Blog Diário Wikimapa - Vídeo institucional <http://blog.wikimapa.org.br/?p=1322>.

 


[Edición electrónica del texto realizada por Jeffer Chaparro Mendivelso y Daniel Santana Rivas].


© Copyright Tânia Seneme Do Canto
, 2011.
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Ar@cne, 2011.


Ficha bibliográfica: 

SENEME DO CANTO, Tânia. A nova forma da mediação da cartografia no ciberespaço.Notas sobre o projecto Post Urbano. Ar@cne. Revista electrónica de recursos en Internet sobre Geografía y Ciencias Sociales. [En línea. Acceso libre]. Barcelona: Universidad de Barcelona, nº 152, 1 de octubre de 2011. <http://www.ub.es/geocrit/aracne/aracne-152.htm>.

 



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