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Ar@cne
REVISTA ELECTRÓNICA DE RECURSOS EN INTERNET
SOBRE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona
Nº 180, 1 de Marzo de 2014
ISSN 1578-0007
Depósito Legal: B. 21.743-98

SCRIPTA VOLANT: O LATIN AMERICAN MICROFORM PROJECT A SERVIÇO DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA

Yuri Simonini
Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil

 


Scripta Volant: o Latin American Microform Project a serviço da historiografia brasileira (Resumo)

Dentre os desafios do fazer historiográfico, a busca e o acesso às fontes primárias consistem num fator decisivo para análise dos pesquisadores. Nem sempre disponíveis, os acervos possuem outros problemas como falta de profissionais, material danificado e ilegível. A disponibilização online permite ultrapassar algumas dessas dificuldades, facilitando a pesquisa, ao mesmo tempo em que outros desafios se mostram presentes, principalmente sua divulgação. Apresentar um destes acervos digitais, o Latin American Microform Project, suas vantagens e limitações é objetivo deste artigo. Para tanto, sob o olhar da História Digital, analisou-seesta iniciativa com destaque aos usos para o historiador. Além do Banco de Dados per se, utilizaram-se os relatórios da instituição responsável pelo projeto. O esforço pela disponibilização e indexação de material primário provoca, para além das limitações existentes, uma alteração na própria relação entre o pesquisador, as fontes, o texto e, principalmente o leitor.

Palavras-chave: Acervo online, História Digital, Latin American Microform Project, Brasil


Scripta Volant: The Latin American Microform Project serving the brazilian historiography (Abstract)

Among the challenges to historiography, the search and access to primary sources are a decisive factor in the researchers' analysis. Not always available, the archives have other problems such as lack of professionals, damaged equipment and unreadable documents. The online availability of these collections allow us to overcome some of these difficulties, facilitating research, while others challenges appear,especiallythe disclosure of these material. This article aims to present one of these digital collections, the Latin American Microform Project, its advantages and limitations. Therefore, based on the premises of Digital History, we analyzed this initiative highlighting the uses for the historians. In addition to the Database itself, we used the reports of the institution responsible for the project. The effort of providing primary material and their indexing,beyond limitations, provoke changes in the relation between the researcher, fonts, texts, and especially the reader.

Keywords:Online collection, Digital History, Latin American Microform Project, Brazil


 

A dificuldade para o acesso a fontes documentais, grosso modo, consistiu num dos principais empecilhos à pesquisa histórica. Apesar dos esforços dos bibliotecários e dos arquivistas em manter os acervos, em muitos casos, os investigadores se deparam com estruturas físicas deficitárias, falta de pessoal qualificado e, notadamente, más condições dos documentos. Uma das formas encontradas para contornar tais problemas é disponibilização em formato digital dessas fontes, poisprácticamente toda biblioteca nacional tiene hoy un programa a largo plazo de digitalización parcial de sus fondos, a partir casi siempre por las colecciones históricas y con alcances que van más allá de la organización de recursos bibliográficos[1].

Uma das formas de contornar tal problema foi a inserção da World Wide Web – ou comumente denominada “Internet” – como parte significante do cotidiano do século XXI que cada vez mais se insere no universo digital por meio de e-mails, blogs, redes sociais, feeds de notícias, entre outros. Essa revolução digital, de compartilhamento e de rápida difusão de informações, proporcionou não somente novas formas de percepção da realidade presente, mas também trouxe consigo reflexões para o estudo da História. Nesse sentido, para Stefania Gallini e Serge Noiret, a rápida expansão da Internet, nesta última década, adentrou de tal forma o universo acadêmico o qual não é mais possível evitá-lo, até mesmo aos historiadores mais tradicionais[2].

De fato, tal revolução permitiu aos pesquisadores o acesso remoto a três tipos de organização de documentação: as bibliotecas digitais, as bases bibliográficas eletrônicas e os arquivos de fontes digitais. Esse conjunto de informações de diferentes bibliotecas e/ou centros de pesquisas, ao redor do mundo, garante maior agilidade nos trabalhos investigativos a custos reduzidos, pois diminui a necessidade de viagens – poupando recursos e, principalmente, tempo. Ademais, caso não seja viável ter este acesso direto, muitos centros possuem catálogos online, os quais permitem determinar as potencialidades do acervo, ao mesmo tempo em que se torna possível montar uma listagem primária do material a ser consultado. Igualmente, outras vantagens podem ser apontadas: mantém-se a integridade do documento original, o seu manuseio por mais de um pesquisador ao mesmo tempo e, notadamente, o uso de cruzamento de dados, por meio dos instrumentos de busca, cujos resultados são mais detalhados e “(...) livres da materialidade do texto”[3].

De acordo com Daniel J. Cohen e Roy Rosenzwieg, a acessibilidade consiste numa das sete vantagens quantitativas as quais potencializam as atividades no meio digital. Em suas palavras,

“Esta qualidade deriva tanto da capacidade de condensar os bits e bytes codificados em mídia digital em pequenos espaços, mas ainda mais com o surgimento de redes de computadores onipresentes que podem, quase que instantaneamente, enviá-los para todo o mundo. Os historiadores têm vários públicos; com as redes digitais podemos alcançar esses públicos – alunos, outros professores, estudiosos e ao público em geral, de forma mais fácil e barato do que nunca”.[4]

Na esteira dessas facilidades, diversas instituições brasileiras e estrangeiras iniciaram uma série de projetos para a criação de acervos online – muitos deles gratuitos. Pode-se tomar como exemplo a Biblioteca Nacional Digital Brasil <http://bndigital.bn.br/>[5], mantida pela Fundação Biblioteca Nacional que, dentre as coleções, encontra-se a “D. Thereza Christina Maria” <http://bndigital.bn.br/terezacristina/index.htm>, um conjunto de mais de 23 mil fotografias pertencentes ao último imperador brasileiro, D. Pedro II. Outros exemplos internacionais consistem, dentre vários, no acervo de jornais históricos da Biblioteca do Congresso Estadunidense<http://chroniclingamerica.loc.gov/>, a Revista de Obras Públicas, periódico originado no seio da Escuela de Ingenieros de Camiños de Madrid, com artigos datados de 1853 até os dias atuais <http://ropdigital.ciccp.es/> e os Arquivos da Torre do Tombo, em Portugal <http://antt.dgarq.gov.pt/>.[6] Convém apontar, igualmente, o recente trabalho publicado na Ar@cne, pelos pesquisadores espanhóis Ruth Ayllón-Martin e Jordi Pérez González acerca da base de dados do Centro para el Estudio de la Interdependencia Provincial en la Antigüedad Clásica – CEIPAC –, da Universidad de Barcelona, com um acervo de 33.000 registros de epigrafia anfórica do Império Romano[7].

A Internet e os meios digitais, de acordo com Gallini e Noiret, incidem na História ao evidenciar sua natureza intrinsecamente comunicativa, além de influenciar os modos e os tempos da pesquisa[8]. A necessidade de divulgação da produção de conhecimento consiste num ponto fulcral do Historiador – e de qualquer acadêmico – com o perigo do ostracismo, caso não o faça. Se as facilidades já apontadas acerca do fator tempo demonstram as vantagens da migração digital dos acervos, a preocupação se volta, então, para as questões ligadas ao uso e àanálise dos mesmos.

Este novo espaço de trabalho e de inteligibilidade demanda a existência de profissionais com formação que envolva preceitos ligados à História e ao mundo digital. Porém, “El atraso de una respuesta formativa en tal sentido en los centros de formación de los historiadores latinoamericanos y en general, es notorio[9]. Isso revela uma válida preocupação, se somarmos ao pouco preparo técnico, o aparente desconhecimento por uma parte dos pesquisadores e dos alunos, de graduação e pós, desses acervos que poderiam corroborar, substanciar e enriquecer seus respectivos trabalhos[10]. Acerca desta questão, Jacques Le Goff enfatiza essa questão acerca da lide do documento digitalizado: “Ele exige uma nova erudição que balbucia ainda e que deve responder simultaneamente às exigências computador e à crítica da sua sempre constante influência sobre a memória coletiva”[11].

Nesse sentido, objetiva-se aqui apresentar uma dessas bases, resultado do esforço conjunto entre o Latin American Microform Project (LAMP) e o Center for Research Libraries (CRL). Embora o projeto possua, em seu banco de dados, cerca de cinco milhões de jornais, dissertações, monografias, artigos, relatórios governamentais de diversos países – sobretudo americanos – priorizaram-se os relacionados ao Brasil que, conforme será visto posteriormente, conta com um considerável acervo de 600 mil documentos.

Para dar conta desta apresentação, pautou-se na História Digital como viés de análise. Por definição, essa área do conhecimento consiste, de acordo com Gallini e Noiret, num “campo de confluencia de quienes usan los médios digitales y las redes digitales para desarrollar los tradicionales quehaceres del historiador: investigar, comunicar conocimiento, conservar fuentes históricas, analizarlas y enseñar a pensar crítica e históricamente”. [12]

Para além das mudanças do fazer historiográfico, alterou-se também o papel da fonte documental. Isso significa a transformação do leitor em “navegador”, uma vez que a possibilidade de busca de determinadas palavras ou expressões dentro das fontes se dá numa ordem mais livre, numa “leitura anarquista”. Isso só é possível dado certa especificidade da forma de escrita no meio digital que separa o conteúdo do seu formato, denominado de hipertextualidade, o qual fragmenta as narrativas tradicionais. Por isso, para George Landow, essa dissociação determinou profunda alteração paradigmática, uma “revolução na forma de pensar”, uma vez que passou de uma estrutura “fundada sobre a ideia de centro, periferia, hierarquia e linearidade” para uma reconfiguração narrativa a qual prima pela “(...) multilinearidade, nodos, links, eredes”[13]. Assim, “el lector-navegador escoge y construye su propia manera de dialogar con el autor y manejar el documento, siguiendo personales caminos epistemológicos[14].

Com base no relatório apresentado ao Center for Research Libraries e do banco de dados per se, o artigo se estrutura em duas partes. Inicialmente, aborda-se a constituição do CRL, suas propostas e objetivos, além da organização do projeto de digitalização das fontes documentais do governo brasileiro. Em seguida, expõe-se analiticamente o banco de dados e o seu uso para o exercício do historiador e dos demais pesquisadores das ciências sociais.

Preservação, digitalização e disponibilização: o projeto LAMP

O Center forResearchLibraries<www.crl.edu> se localiza, fisicamente, dentro das dependências da Universidade de Chicago.A instituição foi concebida num esforço conjunto entre diversas bibliotecas de universidades e centros de pesquisa que, desde 1949, mantem atividades voltadas para a difusão do conhecimento com a aquisição de jornais, documentos, acervos ao redor do mundo. De acordo com os objetivos constantes no seu estatuto, o CRL prioriza:

“Estabelecer e manter um centro educacional, literário, científico, beneficente e de pesquisa interbibliotecário; prover e promover cooperação, auxílios para uma ou mais instituições sem fins lucrativos educacionais, beneficentes e científicas; estabelecer e manter lugar(es) para o depósito, guarda, cuidado, envio e troca de livros...e outros artigos que contenham informações manuscritas, impressas ou gravadas”.[15]

Inicialmente, a instituição foi composta por dez universidades estadunidenses e de caráter restrito, denominando-se MidwestInter-Library Corporation – MILC. Porém, com a expansão realizada a partir de 1971, conta atualmente com mais de 250 instituições participantes. Além disso, na década de 1970, deu-se início ao projeto de microfilmagem de jornais internacionais [16]. Dentre os mais de cinco milhões de documentos, de maneira geral, pode-se ter o acesso ao arquivo nacional dos EUA e do Reino Unido, dissertações e monografias de diversos países, relatórios governamentais, jornais e periódicos diversos, além de outros tipos de publicação. Para a História Digital, a produção do CRL pode ser inscrita, segundo terminologia adotada por Serge Noiret, em dois domínios, o da “Informação e Comunicação” e “Fontes”[17].

As mudanças tecnológicas, sobretudo a partir da década de 1990, possibilitaram a centros como o CRL dar início a projetos de digitalização de seu acervo. Dentre estes, tem-se o já citado LAMP, criado dentro da instituição na década de 1970 – principalmente ao barateamento das técnicas de armazenamento de informação, que visava “(...) adquirir, preservar e emprestar raros, escassos ou ameaçados microfilmes do extenso material de pesquisa referente a América Latina”[18]. Merecem destaque os demais grupos análogos que compõem as “Area Microform Projects” (AMPs): Cooperative Africana Materials Project (CAMP); Middle East Microform Project (MEMP); South Asia Microform Project (SAMP); Southeast Asia Microform Project (SEAM); e Slavic and East European Microform Project (SEEMP).[19]

Em 1994, a Fundação Andrew W. Mellon financiou um desses projetos para a disponibilização online da documentação produzida pelo governo brasileiro, concluída em 2000[20]. Segundo o coordenador deste empreendimento, Scott Van Jacob, a iniciativa não somente disponibilizou documentação a diversos pesquisadores, como igualmente permitiu ao CRL ganhar experiência para a execução de outros projetos, notadamente, na identificação e no emprego de “melhores práticas” para este processo[21].

É interessante destacar esse ponto, pois um dos empecilhos consiste justamente nos erros oriundos da má digitalização ou do uso incorreto de tais técnicas, seja por falta de profissionais qualificados ou pelo emprego de equipamentos inadequados[22]. Para evitar esse problema, Van Jacob afirma que “(...) muitas lições aprendidas aqui [neste projeto] podem ser aplicadas, de maneira geral, aos projetos que objetivam o acesso via Internet de materiais históricos”.[23]

A justificativa para esse esforço se refere ao suporte físico em que se encontrava o material constante no LAMP. O microfilme possui certa fragilidade física – principalmente a sua preservação[24] – além da necessidade de equipamentos específicos para a sua leitura. Tais restrições vão de encontro aos propósitos do CRL, e a possibilidade de perda de dados sempre foi uma de suas preocupações.

Aliás, trata-se de preocupação válida não somente para este tipo de suporte, mas também uma das desvantagens apontadas pelos historiadores digitais. Estima-se que parte considerável do que armazenamos digitalmente venha a se perder por diversos motivos – de falhas humanas a mecânicas. Tem-se, atualmente, a guarda via “nuvem”, ou seja, utilizamos a própria Internet como depósito de arquivos que independe de hardware. Se, por um lado, há as questões como a instabilidade da Internet, por outro, as possibilidades de sobrevida destes dados é maior em decorrência da rápida replicação no meio digital. Por isso, é importante ressaltar os dizeres de Gallini e Noiret[25], “La historia digital 2.0 es, por tanto, un intento de crear una nueva etapa de la relación entre el historiador y su audiencia, haciendo uso de la tecnología digital en una sociedad donde dominan los medios de comunicación de Internet”.

O projeto conjunto possuía sete objetivos específicos, assim definidos:

“1. Facilitar o acesso acadêmico a um organismo central e coerente de recursos de pesquisa acerca de estudos sobre o Brasil; 2. Expandir o corpus emergente de imagens de páginas digitais destinado a um público acadêmico; 3. Implementar mecanismos para garantir o acesso bibliográfico tradicional para cada publicação digitalizada; 4. Proporcionar o acesso estruturado aos volumes individuais dentro de cada conjunto de série; 5. Proporcionar, conforme necessário, a indexação electrónica às secções dentro destes documentos – assuntos específicos podem conter centenas de páginas; 6. Explorar níveis relativos de demanda e de padrões de uso de materiais digitalizados através da emissão de ambos, como CD-ROMs e como arquivos disponíveis na Internet; 7. Aperfeiçoar o processo de criação de arquivos de imagens digitais a partir de microfilme de preservação”[26].

Destes objetivos, convém apontar dois em particular que tratam da indexação e da estruturação interna dos documentos digitalizados – itens quatro e cinco. A simples transposição do material para o meio online, sem uma preocupação em classificar ou sumarizar os itens, acarreta num sério entrave ao seu acesso. Ao evocar Umberto Eco, Anaclet Pons chama a atenção para iniciativas a quaisfocam mais na difusão da informação do que na sua preservação[27]. E pode-se ir mais além: a quantidade de material disponibilizado na Internet está aumentando em proporções geométricas, e caso não haja uma organização, corre-se o riso de se perder ante a enorme quantidade gerada no meio digital. Logo, a catalogação dos arquivos eletrônicos, com a entrada por diversos níveis – como se verá adiante – torna-se ponto central no preparo de um banco de dados.

Ao retomar aqui as ideias de George Landow[28], a reconfiguração do texto em hipertexto diminui a linearidade e a hierarquia da leitura e facilita a análise do documento e – ao mesmo tempo capacita ao pesquisador criar uma rede de links de raciocínio entre diversas fontes – possibilita uma rápida busca dos objetos de estudo. Numa perspectiva de análise de um livro que contém cerca de 400 páginas, por exemplo, a facilidade desta indexação eletrônica se configura como uma vantagem. Contudo, convém lembrar que tais indexações podem conter equívocos e falhas nos hiperlinks – aliás, problema não restrito apenas ao meio digital; não raro os casos de falhas nos catálogos físicos das bibliotecas.

No que diz respeito à documentação, o material arrolado, curiosamente, não partiu de interesses brasileiros, mas de uma pesquisa iniciada pela então pesquisadora-chefe da Coleção Latino-americana da Universidade de Austin, Texas, Ann Hartness Graham. Em 1977, esta pesquisa culminou com a publicação do Subject Guide to Statistics in the Presidential Reports of the Brazilian Provinces, 1830-1889[29]. Ao demonstrar a importância dessa documentação e as possibilidades investigativas, Graham corroborou com uma iniciativa conjunta entre o CRL e a Biblioteca Nacional (do Brasil). Graças ao envio de material filmográfico, ainda inexistente em território brasileiro, e ao esforço no rastreamento dos relatórios, segundo o informe, a criação de uma “(...) coleção de microfilmes unificada proveniente de publicações originais frágeis e dispersas, foi um primeiro passo essencial no fornecimento de matéria-prima o qual permitiu tomar forma este projeto de digitalização”[30].

O banco de dados, de maneira geral, conta com quatro tipos de documentação que abarcam cerca de 170 anos do período imperial e republicano no Brasil (Tabela 01). As mensagens presidenciais provinciais [Provincial PresidentialReports] –, e após 1889, se tornariam os relatórios governamentais dos estados – consistem em mensagens e relatos administrativos, judiciários e financeiros do período de atuação dos governantes. Contém informes de 1823 a 1930 e não possuem um padrão de organização interna; os representantes de cada um das 20 províncias/estados[31] elaboravam seus relatórios como julgavam adequados.Todavia, é possível – graças aos estudos preliminares de Graham – enveredar pela indexação por grandes áreas, tais como administração, polícia, obras públicas, educação, saneamento, entre outros[32].  Ademais, “não é de todo incomum encontrar quatro a dez suplementos, muitos com informação estatística detalhada, anexada a esses relatórios”[33].

 

Tabela 01 – Dados quantitativos do acervo digitalizado

Título

Abrangência

Período

Quantidade

Imagens

Relatórios provinciais

Provincial/estadual

1823-1930

2.572

216.187

Relatórios ministeriais

Nacional

1821-1960

93

329.159

Relatórios presidenciais

Nacional

1890-1993

872

18.103

Almanak E.H. Laemmert

Provincial*

1844-1889

56

110.000

   

Total

3.593

673.449

* Trata-se de um almanaque administrativo, mercantil e industrial do Rio de Janeiro. No relatório, a abrangência foi apontada como nacional, porém se convencionou a adotar uma limitação de sua área de atuação dado sua própria característica, discutida a seguir.

Fonte: Van Jacob, 2001.
Nota: Reelaborado pelo autor

 

As mensagens presidenciais [Federal Presidential Reports] consistem em relatos anuais elaborados pelo chefe do Estado Maior brasileiro no período republicano – de 1889 a 1993 – contendo projeções do governo, ações empreendidas e metas alcançadas. O Almanak Laemmert, publicado entre 1844 a 1889, visava uma apresentação da vida administrativa, industrial e mercantil da corte imperial sediada no Rio de Janeiro. Segundo seus editores, Eduardo e Henrique Laemmert, a utilidade da existência de um almanaque se mostrava imprescindível, como demonstra a “advertência” publicada no primeiro volume, em 1844:

“Não falemos já do que em razão de sua profissão têm que frequentar amiudadas vezes os Estabelecimentos públicos ou particulares, as Repartições Civis, Militares, Eclesiásticas, etc.; tratar com Procuradores, Advogados, Escrivães, com Empregados Públicos, etc., etc.; ainda aqueles, que menos sujeitos estão a tais dependências, quanto não estimarão ter um Repertório, que nas ocasiões lhes dispensasse o andarem fazendo indagações, que lhes roubam tempo e multiplicação passadas; quando não que retardam e embaraçam o expediente de seus negócios, e até as vezes os transtornam? E para os Provincianos que vem à Capital por qualquer respeito que seja; para esses e um Almanak tão indispensável, como na vastidão dos mares é a Bússola ao marítimo”[34]

Os relatórios ministeriais [National Ministerial Reports] são informes de treze ministérios, realizados entre 1821 a 1960 (Tabela 02). Tal qual as mensagens de governo, cada órgão governamental possuía certa liberdade na confecção de seus textos. A organização desta seção levou em consideração o período de atuação de cada ministério e os dados disponíveis que se estendem por 139 anos. As informações contidas – como será mostrado adiante – tratam das políticas e ações de cada uma destas instituições, além do detalhamento dos dados estatísticos/financeiros. Contudo, o relatório informa que determinados rolos de microfilmes não possuíam condições para digitalização[35].

 

Tabela 02 – Ministérios brasileiros e período de abrangência dos relatórios digitalizados

Ministério

Período

Agricultura

1860-1960

Educação e Saúde Pública

1932

Fazenda

1821-1949

Guerra

1827-1939

Império

1832-1888

Indústrias, Viação e Obras Públicas

1893-1909

Instrucção Pública, Correios e Telegraphos

1891

Interior

1891-1892

Justiça

1825-1928

Marinha

1827-1959

Relações Exteriores

1830-1960

Trabalho, Indústria e Comercio

1935-1947

Viação e Obras Públicas

1909-1952

Fonte: <http://www.crl.edu/brazil/ministerial>
Nota: Reelaborado pelo autor


O processo técnico de digitalização contou com diversas etapas que podem ser classificadas em pré-produção e produto final. Para a primeira, se fez necessário alguns testes preliminares para estimativa dos custos, além da averiguação das condições dos microfilmes. De acordo com o relatório, aproximadamente um por cento da amostragem encontrava-se parcial ou totalmente ilegível. Outros problemas se mostraram presentes:

“(...) tanto a densidade do filme e como o contraste nem sempre eram adequados para a digitalização. Além disso, algumas das imagens originais foram distorcidas durante a microfilmagem, criando inesperadas demandas de pós-processamento. Alguns dos originais em papel também tinha se deteriorado significativamente antes que eles fossem filmados, por exemplo, com manchas. Em alguns casos, a impressão era quase ilegível”[36].

Após tais procedimentos, deu-se prosseguimento às demais etapas de digitalização como o tipo de formato da imagem, seu tratamento e qualidade para visualização online e, sem seguida, o processo de indexação que abarcou cerca de dois terços do cronograma do projeto. Não convém aqui detalhar todos os procedimentos realizados e as soluções adotadas, já plenamente expostas no mencionado relatório. Os desafios para este projeto, conforme aponta o relato, foram inúmeros, principalmente no que se refere às revisões pós-processamento e estruturação. Inclusive, a empresa encarregada desta operação, a PFA Inc., admitiu se tratar de um dos mais complicados projetos já executados, mesmo com uma experiência de processamento semanal de 500 mil digitalizações[37].

Entretanto, os diversos problemas não refletiram diretamente nos custos operacionais (Tabelas 03 e 04). O projeto possuía uma verba de U$ 225.000 da Fundação Andrew W. Mellon para o empreendimento e os participantes optaram por dividir em duas fases. A primeira contou, inicialmente, com quarenta por cento dos recursos obtidos e se detiveram na digitalização dos relatórios governamentais, ministeriais e das mensagens presidenciais. Concorreram para o barateamento a não necessidade de uso de um segundo nível de digitalização[38] e o cancelamento do uso de CD-ROMs para arquivamento –era um processo ainda muito caro em 1996. Além disso, esperava-se o escaneamento de, aproximadamente, um milhão de imagens/páginas, mas produziu-se apenas metade deste montante. A explicação se deve à expectativa de duas páginas por frame de microfilme, enquanto que, na realidade, a proporção era de 1.16 para 1[39].

 

Tabela 03 – Detalhamento orçamentário e de execução da Fase I (em dólares)

Dispêndio

Estimativa

Custo real

CD-ROMs

10.000

-

Escaneamento

107.000

66.110

Indexação

55.000

36.961

Custos laborais

20.000

20.000

Custos diversos

10.000

10.186

Juros ganhos

-

13.576

Total

202.000

133.257

Fonte: Van Jacob, 2001.
Nota: Reelaborado pelo autor


Tabela 04 - Detalhamento orçamentário e de execução da Fase II (em dólares)

Dispêndio

Estimativa

Custo real

Inspeção dos microfilmes

575,00

575,00

Escaneamento

4,195

6.992

Re-escaneamento

-

38,00

Indexação

3.625

6.014

Preparação do index

4.252

-

Mapeamento

21.625

7.792

Total

34.262

21.411

Fonte: Van Jacob, 2001.
Nota: Reelaborado pelo autor


Após a bem-sucedida execução da Fase I – principalmente no que diz respeito aos custos –, a seguinte contou com outros desafios para além do processo de digitalização dado as características de indexação diferenciadas. Nesta etapa, a estruturação hipertextual do Almanak Laermmet teve que ser construída a partir de um mapeamento imagético. Isso permitiu a ligação entre as citações constantes no sumário e as respectivas páginas; isso exigiu esforços extras para este procedimento, apesar do valor empregado igualmente ter se mantido abaixo do estimado. Se os valores permaneceram num patamar inferior, o mesmo não pode ser dito acerca do prazo, que, dos dois ou três anos de duração previstos, se concluiu em cinco. As causas, segundo o informe, foram a indexação manual, disponibilidade dos coordenadores do projeto, falhas no armazenamento dos dados, demora no escaneamento das imagens e na divisão do projeto em duas fases[40].

Ao concluir o relatório, Van Jacob enfatiza os benefícios desta scripa volant[41], de um acervo planejado, construído e pensado para um leitor-navegador que procura por documentos, muitas vezes indisponíveis fisicamente ou cuja excessiva quantidade se revela mais um obstáculo à análise historiográfica:

“Os usuários podem, com rapidez e eficiência, encontrar o que procuram. O ambiente digital permitiu abordagens criativas para a indexação, que incluem ferramentas tradicionais de busca para tirar proveito da tecnologia de hipertexto (paginação, sumários, bibliografias e índices de assunto) e também bancos de dados relacionais projetados para ligar termos a determinadas páginas do relatório. O que aprendemos deve acrescentar ao corpo de literatura sobre a criação e a indexação de imagens textuais”[42].

A seguir, será exposta a interface para o uso do banco de dados, suas facilidades e limitações. O procedimento adotado consiste em uma pesquisa simulada para demonstrar a ferramenta e o emprego do material para os estudos historiográficos brasileiros.

O Projeto de Imagens de Publicações Oficiais Brasileiras

Convém assinalar, incialmente, que sua interface sofreu sensíveis alterações desde o seu lançamento em 2001. De uma arquitetura pouco funcional ao manuseio, a estruturação atual do site <http://www.crl.edu/brazil> possui rápido acesso às informaçõesem português e inglês, mas apenas na página inicial (Figura 01). Entretanto, percebe-se falhas na tradução e alguns dos hiperlinks não funcionam[43]. Os demais níveis se encontram em inglês, sem prejuízo no seu entendimento.

 

Figura 01– Página inicial do projeto

Fonte: http://www.crl.edu/pt-br/brazil

 

O primeiro exemplo de investigação/manuseio consiste numa busca por dados acerca dos informes provinciais sobre a adequação estrutural, em 1870, do porto da cidade de Recife – capital de Pernambuco e situada na parte setentrional do Brasil (Figura 02). Há duas possibilidades de entrada de pesquisa: uma que abrange o acesso por relatório e outra que se utiliza dos termos arrolados por Ann Hartness Graham.

 

Figura 02– As formas de entrada aos Relatórios Provinciais.Em vermelho, por unidade administrativa e, em verde, por assunto.

Fonte: http://www.crl.edu/pt-br/brazil

Nota: Reeditado pelo autor

 

Embora o acesso por termos seja o caminho mais rápido e direto, verifica-se uma séria limitação. Ao se buscar o termo “Porto”, o vocábulo similar existente “Portos e docas” direciona a um segundo nível com apenas cinco hyperlinks; destes há apenas um relativo a Pernambuco datado de 1886. Um pesquisador iniciante pode ser levado ao equívoco, ao se debruçar sobre tema einferir que somente em 1886 houve atenção por parte do Governo de Pernambuco acerca da adequação do porto da cidade. Trata-se, portanto, de um problema de falha humana neste processo, como advertido por Anaclet Pons[44], na indexação do banco de dados e que deve ser reportado imediatamente. Preocupação válida e a qual pode ser estendida para os mais diversos objetos de estudo encontrados em diversas fontes – digitais ou não.

A pesquisa, então, deve ser feita pelo “outro” caminho, via província/estado e pelo recorte cronológico adotado. Para tanto, faz-se necessário desprender mais tempo de busca, apesar da existência de “atalhos”, tal como exposto a seguir e mantendo em mente o dito exemplo de 1870. Ao adentrar no segundo nível, que agrupa os informes por unidade administrativa e acessar o correspondente à Pernambuco, o pesquisador se depara com uma listagem serial das mensagens e indicação da respectiva referência bibliográfica (Figura 03):

 

Figura 03– Detalhe dos Relatórios Provinciais de Pernambuco (1838 – 1930)

Fonte: http://www.crl.edu/brazil/provincial/pernambuco

Nota: Reeditado pelo autor

 

Na lateral direita de cada referência, há um ícone que direciona ao documento solicitado; na realidade, o nível seguinte consiste no sumário organizado pelos indexadores do projeto (Figura 04). Na opinião deste autor, trata-se do caminho mais adequado, pois pode haver uma discrepância entre o entendimento daqueles que montaram a estrutura e as interpretações do pesquisador, além de possibilitar inferências nos índices expostos que podem contribuir, direta ou indiretamente, ao estudo em execução. Ademais, não há prejuízo à rapidez do acesso às informações almejadas. No caso em particular, verifica-se não somente a existência do termo “portos e estaleiros”, como também há indícios de temas transversais os quais podem auxiliar na construção de uma análise mais ampla do assunto, e.g. “obras públicas”, “estradas de ferro” e “navegação”.

Outra observação importante é não se restringir apenas à página assinalada, mas abarcar igualmente as demais imediatamente anteriores e posteriores a fim de proporcionar uma pesquisa mais completa. Convém lembrar os dizeres de Pons[45] que não se deve ler apenas o desejável ou procurado; em outras palavras, a leitura fragmentada não pode substituir o documento como um todo, mesmo que esta leitura seja feita de forma diagonal.

 

Figura 04 – Sumário do Relatório da Província de Pernambuco, 1870. Em destaque, os termos assinalados – diretos, em amarelo, e indiretos, em vermelho – ao estudo de caso em questão.

Fonte: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/685/

Nota: Reeditado pelo autor

 

A título de informação, o sumário repete o referencial bibliográfico da fonte e há duas convenções além da indicação da página. As notações T1 e T2 se referem, respectivamente, à informação sucinta do que trata – parcialmente ou não – o rolo de microfilme e a “capa” original do documento, enquanto que S(número) diz respeito aos anexos e/ou suplementos. Ao acessar a página de interesse imediato, o pesquisador se depara com a digitalização do trecho em questão (Figura 05). Na parte superior e inferior, o leitor pode navegar pelas demais páginas ou, se preferir, salvar em seu computador no formato TIFF na satisfatória resolução de 300 dpi – o qual pode ser lida na tela do computador sem perda de legibilidade[46].

 

Figura 05– Trecho relativo ao processo de melhoramento do porto de Pernambuco, 1870.

Fonte: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/685/000010.html

 

Para concluir o estudo de caso, chega-se a um documento que informa a existência de algumas opções de projetos para a adequação do porto de Recife a serem enviados à apreciação do Governo. Ademais, dá elementos para a procura de novos documentos o quais poderão compor um quadro mais abrangente deste estudo, como a existência do relatório elaborado pelo engenheiro encarregado, Raphael Archanjo Galvão Filho que, dentre outros aspectos, conclui: “(...) sem o emprego de profundas alterações no regime dos rios Capiberibe e Beberibe, pode-se conseguir dar a este porto as melhores condições de um bom porto de comércio”. [47]

Da mesma forma que as mensagens provinciais, os relatórios ministeriais possuem estrutura de busca similar. Apesar de não contar com a indexação com base em Graham, esses informes contam com índice próprio, acessado via página inicial, ou diretamente pelo documento (Figura 06). Ao se manter a perspectiva do exemplo anterior, demonstra-se o papel do órgão governamental responsável pelas obras portuárias brasileiras.

 

Figura 06– Índice geral dos relatórios do Ministério de Indústria, Viação e Obras Públicas, entre 1895 a 1909.

Fonte: http://www.crl.edu/brazil/ministerial/industrias_via%C3%A7%C3%A3o_e_obras_p%C3%BAblicas

 

No nível seguinte, encontra-se o sumário do qual é possível acessar diretamente o assunto em pauta e dar prosseguimento à pesquisa (Figura 07). A padronização da estrutura do site é fator positivo, pois, familiarizado, o leitor/navegador consegue avançar nas leituras sem maiores dificuldades. Principalmente, ao se ter em consideração um informe que pode conter, no caso, mais de 700 páginas, embora essa facilidade seja encontrada no documento original.

 

Figura 07 – Trecho do sumário do Relatório de 1906, com destaque a parte referente aos portos brasileiros.

Fonte: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/u2273/contents.html

Nota: Reeditado pelo autor

 

As mensagens pelos presidentes da república <http://www.crl.edu/brazil/presidential> abarcam os anos de 1890 a 1993 e consistem numa estrutura comum aos tipos anteriores. Entretanto, há uma irregularidade entre a possibilidade de acesso via documento e a existência de um sumário. De fato, dos 91 registros, aproximadamente metade – 45 mensagens – foi contemplado com esta ferramenta. Faz-se necessário, portanto, verificar a razões ao se analisar tais documentos. Infere-se que seja em decorrência dos mais variados assuntos comentados pelos ditos presidentes o qual impossibilitou, nestes casos, a sua indexação.

O Almanak Laemmert, conforme dito anteriormente, caracterizou-se por ter uma abordagem diferente na sua estruturação, contando, inclusive, com uma etapa própria. A alternativa encontrada foi o uso do processo denominado Character Mapping ao mesclar o índice já existente ao emprego do hyperlink, sem que o mesmo esteja “destacado” – em azul e sublinhado, geralmente. De acordo com o relatório, a conformação original do Almanak, com um detalhado e extenso sumário, deu margem à manutenção desta indexação sem interferência externa[48]. A princípio, e o relatório mesmo reconhece, isso pode parecer confuso ao leitor, uma vez que “(...) o ‘ícone no formato de mão’ do navegador, o qual indica um link ativo, somente aparece quando o cursor passa sobre o número da página do índice” (Figura 08)[49]. Entretanto, o principal problema é a indicação pouco clara desse procedimento, além do fato que não há informação sobre a ferramenta de busca a qual se encontra somente na últimaedição disponibilizada:a de 1889.

 

Figura 08– Trecho do Índice Geral Alfabético do Almanak Laemmert, 1889.

Fonte: http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/almanak/al1889/00000012.html

 

Pontes em construção: considerações finais

No já referido artigo, Gallini e Noiret enfatizaram a principal vantagem dos acervos digitais: “La digitalización de um volumen extenso de documentos (primarios y secundarios, textuales, visuales o de audio), y por lo tanto, La efectiva e inmediata posibilidad de consultar las referencias encontradas desde la propia pantalla[50]. O rápido acesso às fontes permite não somente uma análise mais completa como, igualmente, transforma a relação do pesquisador com os documentos e com o leitor. Isso significa uma observância ainda mais rigorosa por parte do autor na metodologia para uso destas fontes, ao atentar para as falhas técnicas e humanas deste procedimento – o que, aliás, é preocupação constante para todos os tipos de suporte, físicos e/ou digitais. O leitor/navegador pode, a partir dos hiperlinks, visualizar o material empregado e construir suas próprias interpretações e atestar – ou contestar – as expostas pelo autor.

Os acervos digitais se revestem, portanto, de uma importância maior do que sua simples disponibilização além de suscitar novos questionamentos e reflexões. Há profundas modificações nas formas de leitura que devem ser levadas em consideração no ofício do historiador ao se incorporar no seio da História Digital. Novos desafios, mas também existem grandes possibilidades de enriquecer e aprofundar seus objetos de estudo. Um destes desafios consiste na própria materialidade do documento, pois o pesquisador não terá mais a oportunidade do acesso físico à fonte a qual pode ser, para determinada análise, o objeto de estudo em si. Em muitos casos, omite-se a digitalização de partes deste documento que podem trazer outros indícios à pesquisa – como a lombada, ex-libris, anotações nas margens, entre outros. Um bom exemplo de uso procedimental é o empregado pelo Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, o qual adota as seguintes regras para a captura de imagens do seu acervo:

“a) A captura das imagens deve apresentar o documento na sua globalidade, encadernação e pormenores; b) A captura deve ser efetuada página a página e respeitar a ordem de paginação/foliação; c) A informação das páginas deve ser isolada quando, devido à diversidade de formato ou mau estado de conservação (perfurações, perdas de suporte ououtras, diversidade de formatos dos cadernos), essa  interfere na informação do fólio anterior ou posterior; d) Os fólios em branco devem ser capturados se  estiverem numerados e se não representarem mais do que cinco imagens. Mas, no caso de este número ser ultrapassado, devem ser capturados apenas o primeiro e o último, aplicando-se o mesmo procedimento de captura para conjuntos de fólios que se encontrem em branco e sem numeração. Essa situação deve ser reportada em campo próprio na descrição do documento, designada pela norma ISAD(G) ‘Dimensão’ ;e) Aplicação da escala de cor, em cada objeto digital, para se poder ajustar à cor do original”[51].

Deve-se, igualmente, atentar para outras questões sobre qual tipo de instituição encontra-se realizando essa digitalização e disponibilização. As principais iniciativas, e maior vulto, são de empresas privadas, como a Google e o CRL. Por enquanto, o acesso é irrestrito e gratuito, mas Anaclet Pons retoma as afirmações do diretor da biblioteca de Harvard, Robert Darton, sobre a transformação de um bem público em um negócio privado:

“(…) las bibliotecas cumplen con una función evidente de fomento del aprendizaje, dispuesto al servicio de todos, mientras que una empresa se debe a sus accionistas y su finalidad es obtener beneficios y repartir dividendos, de modo que es lógico pensar que acabe comercializando los contenidos digitalizados”[52].

O banco de dados digital criado e indexado pelo CRL possui um relevante acervo histórico que vai além do exposto nesse artigo. Sua maior contribuição, apesar das limitações encontradas, consiste na disponibilização franqueada e de fácil manuseio de vasta documentação. Todavia, o aparente desconhecimento deste material se revela na pouca divulgação encontrada. Uma rápida pesquisa no Google mostra que os resultados das primeiras páginas assinalam apenas citações ou do próprio CRL ou de instituições estrangeiras. Ademais, no último relatório da instituição, havia a participação de somente uma universidade brasileira, a Federal do Rio Grande do Sul[53]. Realidade a qual precisa mudar.

No Relatório Anual do Centro de 2001, o então presidente Bernard F. Reilly, comparou o papel da instituição à uma ponte cujo símbolo evoca movimento e transformação, ao providenciar uma segura ligação entre dois pontos[54]. Nesse sentido, sua divulgação merece atenção por parte dos historiadores e demais pesquisadores com o intuito de proporcionar aos leitores/navegadores a oportunidade de compreender melhor os trabalhos por eles desenvolvidos. Pontes que ainda se encontram em construção, ligando conhecimentos e, principalmente, pessoas.

Agradecimentos

Gostaria de agradecer a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior – CAPES – pela concessão da bolsa de doutorado e aos colegas partícipes da disciplina, ministrada pela Profa. Dra. Regina Horta, “Produção e Circulação do Conhecimento Histórico nos Periódicos Científicos”, do Programa de Pós-Graduação em História, da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil.

Referências

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Notas


[1]Gallini eNoiret, 2011, p.21.

[2]Gallini eNoiret, 2011.

[3]Fonseca e Martins, 2010, p.78.

[4] Cohen eRosenzwieg, 2005, s.p. Adaptado do original: “This quality derives both from the ability to condense the bits and bytes encoded in digital media into small spaces but even more from the emergence of ubiquitous computer networks that can almost instantly send those bits around the world. Historians have multiple audiences; digital networks mean that we can reach those audiences—students, other scholars and teachers, the general public—much more easily and cheaply than ever before”. As outras qualidades seriam: capacidade, flexibilidade, diversidade, manuseio, interatividade e hipertextualidade – que será discutido mais adiante. Contudo, os autores demonstram que existem cinco perigos, ou desvantagens: qualidade, durabilidade, leitura, passividade e inacessibilidade. Para maioresdetalhes, <http://chnm.gmu.edu/digitalhistory/>.

[5] Para maiores detalhes do esforço empreendido pela Biblioteca Nacional, cf. Fonseca e Martins, 2010.

[6]Cf. Borges e Ribeiro, 2010.

[7]Ayllón-Martin e Pérez González, 2013.

[8]Gallini eNoiret, 2011.

[9]Gallini eNoiret, 2011, p.18.

[10] No caso brasileiro, a digitalização dos acervos pode propiciar uma mudança do tipo de formação dos estudantes do período noturno. Em muitos casos, estes alunos trabalham na parte vespertina o que impede a atividade de pesquisa nos acervos, limitando-os apenas à Licenciatura. Com o acesso remoto, este estudante poderá realizar suas pesquisas para além dos horários de funcionamento das bibliotecas.

[11] Le Goff, 2003, p.542.

[12]Gallini eNoiret, 2011, p.16-17.

[13]Landow, 1997, s.p. adaptado do original, respectivamente: “founded upon ideas of center, margin, hierarchy, and linearity” e “(...) multilinearity, nodes, links, and networks”

[14]Gallini eNoiret, 2011, p.23.

[15] Center…, 2013, s.p. Adaptado do original: “To establish and maintain an educational, literary, scientific, charitable and research interlibrary center; to provide and promote cooperative, auxiliary services for one or more non-profit educational, charitable and scientific institutions; to establish, conduct and maintain a place or places for the deposit, storage, care, delivery and exchange of books ... and other articles containing written, printed, or recorded matter.”

[16] Center…, 2013.

[17]Noiret, 2011. As demais seriam “Escrita” e “Ensino”. Seu conjunto permitiria ao leitor-historiador-navegador “(...) puisesesinstruments, etconstruitsesnouvelles pratiques historiennes” (Noiret, 2011, p.31)

[18]Van Jacob, 2011, p.5. Adaptado do original: “acquiring, preserving, and loaning microfilms of scarce, endangered, rare, or voluminous research materials pertaining to Latin America”

[19] Para maiores detalhes acerca dos trabalhos desenvolvidos pelas AMPs, atualmente cf. relatório anual do CRL, de 2012 < http://www.crl.edu/sites/default/files/attachments/events/CRL_AR2012.pdf>.

[20]Van Jacob, 2001.

[21]Van Jacob, 2001.

[22] Pons, 2011.

[23]Van Jacob, 2001, p.3. Adaptado do original: “Many of the lessons learned here may be more generally applicable to projects focused on Internet access to historical materials”.

[24] Pode-se citar, como exemplo, um episódio no qual o autor deste artigo, ao solicitar um rolo de microfilme na Biblioteca Nacional, descobriu-se que o mesmo havia se deteriorado devido a falha de preservação.

[25]Gallini e Noiret, 2011, p.31.

[26]Van Jacob, 2001, p.7-9. Adaptado do original: “1. Facilitate scholarly access to a central and coherent body of high profile research resources for Brazilian Studies; 2. Expand the emerging corpus of digital page images aimed at a scholarly audience; 3. Implement mechanisms to ensure traditional bibliographic access to each digitized publication; 4. Provide structured access to the individual volumes within each serial set; 5. Provide, as necessary, electronic indexing to the sections within these documents, single issues of which can be hundreds of pages long; 6. Explore relative levels of demand and patterns of use for digitized materials by issuing them both as CD-ROMs and as files available over the Internet; 7. Refine the process of creating digital images files from preservation microfilm”.

[27]Pons, 2011.

[28]Landow, 1997.

[29]Johnson, 1979.

[30]Van Jacob, 2001, p. 11. Adaptado do original: “unified microfilm collections from fragile and widely dispersed original publications was an essential first step in providing the source materials that allowed this digitization Project to take shape”.

[31] Alagoas, Amazonas, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Goiás, Maranhão, Mato Grosso, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe. A única exceção foi os relatórios da província/estado do Piauí que não foram escaneados; o CRL não informa quais foram os motivos.

[32] Tem-se o total de 95 grandes áreas, de acordo com o sistema adotado pelo CRL. Para maiores detalhes, ver <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/hartness/index.html>.

[33] Van Jacob, 2011, p.10. Adaptado do original: “It’s not at all unusual to find four to ten supplements, many with detailed statistical information, appended to one of these reports”.

[34]Almanak, 1843, p.3. <http://brazil.crl.edu/bsd/bsd/almanak/al1844/00000003.html>. A ortografia e a pontuação das citações deste trabalho foram atualizadas de acordo com os documentos originais, inclusive os eventuais erros tipográficos e de redação, desde que esses não comprometam o entendimento do texto.

[35] A saber: Ministério da Agricultura, os rolos do período 1946-1950 se encontravam muito escuros e com os textos a margem quase ilegíveis; Ministério da Guerra, o suporte que abarcava os anos de 1846-1854 era fino demais para a digitalização e os dos anos 1865-1869, embora com densidade aceitável, a parte de cima das páginas estava desfocada (Jacob, 2001).

[36]Van Jacob, 2001, p.12. Adaptado do original: “(…) as both film density and contrast were not always suitable for scanning. Further, some of the original images had been skewed during microfilming, creating unexpected post-processing requirements. Some of the paper originals had also deteriorated significantly before they were filmed, for instance with speckling. In some cases the printing was barely legible.

[37]Van Jacob, 2001.

[38] De acordo com o Projeto, havia dois níveis de digitalização cujos custos dependiam de questões técnico-operacionais, como a detecção das bordas das páginas microfilmadas. O primeiro nível, ao custo de U$ 0,195 por frame, consistia num processo totalmente automatizado e, portanto, sem intervenção humana, ao contrário do segundo nível – U$ 0.225. Van Jacob, 2001.

[39]Van Jacob, 2001.

[40]Van Jacob, 2001.

[41] Termo recuperado por Gallini e Noiret (2011) para designar uma “página” da Internet que pode ser acessada e modificada em, quase, qualquer lugar e momento, ao contrário da scriptamanent, como o caso do livro, em seu aspecto material e, portanto, não modificável.

[42]Van Jacob, 2001, p.63. Adaptado do original: “Users can quickly and efficiently find what they seek. The digital environment has allowed creative approaches to indexing that include traditional finding aides constructed to take advantage of hypertext technology (page numeration, tables of contents, bibliographies, and subject indices) and also relational databases designed to link subjects terms to particular report pages. What we have learned should add to the body of literature on creating and indexing text-rich images”.

[43] Por esta razão, optou-se pela demonstração com a versão em inglês.

[44]Pons, 2011.

[45]Pons, 2011.

[46] O relatório destaca os motivos do uso do formato e as justificativas do uso da resolução, questões técnicas sobremaneira e que, a priori, não interessam ao objetivo deste antigo.

[47] Albuquerque, 1870, p.10.

[48]Van Jacob, 2001.

[49]Van Jacob, 2001, p.41. Adaptado do original: “the browser’s ‘hand icon’, indicating an active link, only appears when the cursor rolls over a page number from the index”.

[50]Gallini eNoiret, 2011, p.20.

[51] Ribeiro, 2010, p.89.

[52]Pons, 2011. O autor se baseia numa série de artigos escritos por Robert Darton no The New York ReviewofBoos, como, por exemplo: DARTON, Robert. Google & the Future of Books [En línea].The New York Review of Books, 12 de febrero de 2009. <http://www.nybooks.com/ articles/archives/2009/feb/12/google-the-future-of-books/>.

[53]Michalak e Reilly, 2012.

[54]Chodorow eReilly, 2001.

 

[Edición electrónica del texto realizada por Alexandre Cumplido].


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 Ar@cne, 2014.

Ficha bibliográfica: 

SIMONINI, Yuri. SCRIPTA VOLANT: O LATIN AMERICAN MICROFORM PROJECT A SERVIÇO DA HISTORIOGRAFIA BRASILEIRA. Ar@cne. Revista electrónica de recursos en Internet sobre Geografía y Ciencias Sociales. [En línea. Acceso libre]. Barcelona: Universidad de Barcelona, nº 180 , 1 de Marzo de 2014. <http://www.ub.es/geocrit/aracne/aracne-180.htm>.