Menú principal

Índice de Biblio 3W

Biblio 3W
REVISTA BIBLIOGRÁFICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona 
ISSN: 1138-9796. Depósito Legal: B. 21.742-98 
Vol. XVIII, nº 1018, 25 de marzo de
2013
[Serie  documental de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

NOTAS SOBRE MAPAS, MAPEAMENTOS E O PLANEJAMENTO URBANO PARTICIPATIVO
NO BRASIL NA PERSPECTIVA DE UMA CARTOGRAFIA CRÍTICA

Leo Name
Professor do Departamento de Geografia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

Cristina Lontra Nacif
Professora do Departamento de Urbanismo da Universidade Federal Fluminense.

Recibido: 25 de julio de 2011; Devuelto para revisión: 26 de junio de 2012; Nueva versión: 26 de noviembre de 2012; Aceptado: 15 de enero de 2013


Notas sobre mapas, mapeamentos e o planejamento urbano participativo no Brasil na perspectiva de uma cartografia crítica (Resumo)

Tendo como base revisão do conjunto de teorias críticas sobre a geo-histórica produção cartográfica e sobre novas práticas de mapeamento, realizaremos breve análise do planejamento urbano e do mapeamento participativos na experiência brasileira mais recente, de modo a se abrir a discussão sobre possíveis formas e procedimentos metodológicos alternativos que instaurem outros processos de planejamento participativo e práticas de mapeamento, outros tipos de mapas, outros sujeitos mapeadores, outras relações de poder.

Palavras-chave: planejamento urbano participativo, Brasil, cartografia crítica


Notes on maps, mapping and participatory urban planning in Brazil from the perspective of a critical cartography (Abstract)

Based on review of the set of critical theories about the geo-historical cartographic production and the new ways of mapping, we try to make a brief analysis of the most recent participatory urban mapping and planning in Brazil, in order to open the discussion on possible alternative ways and methodological procedures that may embody other processes and practices of mapping, other types of maps, other mapper subjects, other power relations.

Key-words: participatory urban planning, Brazil, critical cartography.



Sempre foram abundantes nos trabalhos de geografia, sociologia, urbanismo e no planejamento urbano que une, ou ao menos tenta unir, tais disciplinas, variados e minuciosos levantamentos de dados a respeito de regiões, cidades e bairros, incluindo expressiva produção de mapas. Nesses estudos são acionadas, porém, práticas e técnicas que muitas vezes se dão em detrimento da apropriação de categorias analíticas que auxiliem a compreensão dos processos e formas espaciais: apesar de no momento atual, quando as tecnologias SIG (Sistema de Informações Geográficas) se popularizam velozmente e vêm construindo, utilizando e representando cartograficamente conjunto variadíssimo de dados (agora espacializados de forma georreferenciada, em princípio precisa e exata), pode-se dizer que não é raro que a realização de mapas em variados processos de produção de conhecimento, intervenção na realidade ou formulação de normas, mantenha-os de difícil compreensão por não técnicos, não trate de dados de fato relevantes para o que se quer conduzir, transformar ou combater e que, por vezes, sejam até mesmo descartados nos produtos finais.

Tal perspectiva é particularmente relevante para se analisar o planejamento urbano no Brasil, onde hoje se tem contexto de valorização de processos participativos e das aproximações entre saber técnico e leigo, além de legítimo desejo de promoção de autonomias nas escalas municipal e local. Um momento que tem suas bases teóricas no Movimento Nacional da Reforma Urbana (MNRU), originado na década de 1960, e primeiras validações institucionais postas na Constituição Federal de 1988, que deu maior autonomia aos municípios do país e exigiu deles a realização de planos diretores – situação só regulamentada no Estatuto da Cidade,[1] em 2001, e legitimada a partir da criação, em 2003, do Ministério das Cidades. No bojo deste longo processo, construiu-se pano de fundo teórico e ideológico a respeito de certa “cidade democrática”, que em certa medida traduz no âmbito do planejamento urbano o debate contemporâneo a respeito das consequências negativas das elevadas estratificação e especialização dos conhecimentos científicos e seu isolamento em relação a outras formas de saber[2].

Planos diretores exigem mapas. Ambos são objetos técnicos intimamente ligados ao poder do Estado e sua soberania sobre o território. Assim, o modo de se produzir mapas no cerne destes ditos processos e planos participativos deveria estar na pauta urbana brasileira. Mas tem sido ainda rarefeita a reflexão crítica sobre o papel comunicativo, ideológico e autoritário dos mapas na formação do conhecimento e na estruturação da experiência urbana cotidiana. Além disso, primordialmente são o plano cartesiano e os softwares georreferenciados os amplamente utilizados nos mapas dos novos planos diretores municipais que, dentre outras questões, mantêm o espaço representado de forma estática, subsumindo o tempo; e tais mapas continuam não sendo compreendidos por qualquer usuário/a, ignorando outras lógicas espaciais e comprometendo a busca do direito à cidade em seu sentido mais amplo.

Tendo mapas como ponto de partida, pretendemos nesse artigo refletir sobre o planejamento urbano recente no Brasil, compreendendo-o no contexto de uma cartografia crítica, aqui entendida como um conjunto tanto de teorias críticas sobre a geo-histórica produção cartográfica quanto de novas práticas de mapeamento que gerem formas outras de mapas[3]. Indiretamente estaremos indagando a respeito do papel de geógrafos, urbanistas e demais técnicos e cientistas sociais nestes processos; de como seus saberes e práticas podem colaborar na inclusão de grupos excluídos da cidade em suas tomadas de decisão; e da capacidade ou não dos mapas potencializarem, representarem e atenderem as demandas destes grupos, construindo com eles projetos e estratégias de resistência.

Ainda que não pretendamos ser conclusivos, buscaremos apontar caminhos para uma discussão mais aprofundada sobre estes pontos. Na primeira parte do trabalho, apresentaremos revisão crítica de autores e autoras que estabelecem a relação entre mapas, mapeamentos e disputas de poder – para nós indissociáveis, mas que infelizmente não mereceram apurado foco do processo de elaboração dos novos planos diretores. Em seguida, desenharemos breve painel do planejamento urbano e do mapeamento participativos na experiência brasileira mais recente, de modo a clarificar os antecedentes deste momento histórico de retorno do planejamento, agora desejado participativo – e, em alguma medida, apontar decepções a respeito de seus resultados práticos. Assim, será possível encerrarmos com comentários finais sobre a inclusão de uma cartografia crítica na agenda de pesquisa urbana, levando em consideração possíveis formas e procedimentos metodológicos alternativos e/ou de resistência que possam contribuir na construção de outros processos e práticas de mapeamento, outros tipos de mapas – outras relações de poder, portanto.

Mapas, mapeamentos e poderes

Em recente trabalho sobre a natureza e os usos da cartografia, Nogueira (2008) alerta sobre o uso cada vez mais comum, tanto na linguagem coloquial quanto nas diversas áreas da ciência, das palavras “mapa” e “mapeamento”: dos noticiários que se referem ao “mapeamento das drogas no país” ou ao tão alardeado “mapa do genoma humano”, passando por publicações que se referem a “mapeamentos em 3-D dos movimentos ou do espaço interno do corpo”, abundariam os exemplos do uso (que aparentemente a autora aponta como indiscriminado) destes termos. Ela preocupa-se em esclarecer que para a geografia e, mais particularmente, para a cartografia, os mapas têm características típicas as quais não se pode perder de vista. São objetos técnicos que “classificam e representam elementos selecionados em um determinado espaço geográfico, de forma reduzida, utilizando simbologia e projeção cartográfica” e, mais especificamente, “representações gráficas de determinado espaço geográfico, concebidas para transmitir a visão subjetiva ou o conhecimento de alguém ou de poucos para muitos”[4]. Por valorizar esta cartografia e mapa “tradicionais”, a autora – que, bastante rigorosa no uso de termos, diferencia o mapa da “carta” e da “planta”[5] –, tem opinião que faz lembrar os comentários incisivos de Chevalier (1989) sobre o que chamou de “parageografias”: certas geografias paralelas, “vulgares” e não oficiais, sendo seus principais alvos os livros e guias turísticos, os quais acusa de imprecisos, por serem feitos por não geógrafos a cometerem “erros grosseiros em matéria de geografia regional”[6].

Em clara contraposição a tal tipo de afirmações, há quem venha exigindo maior polissemia para os termos “mapa”, “mapeamento” e “cartografia”, além de maior abrangência na consideração do que venha a ser objeto da geografia. Name (2008), por exemplo, diz haver geografias e cartografias contidas e emitidas pelos objetos da cultura de massa – além dos livros e guias de viagem, cartões-postais, filmes e toda sorte de obras audiovisuais, por exemplo – que poderiam e deveriam ser investigadas por geógrafos e outros cientistas interessados na dimensão espacial, pelo fato de apresentarem e representarem vários lugares do mundo, diminuindo distâncias e contribuindo para a legitimação e naturalização de visões de mundo muitas vezes pautadas por assimetrias de poder. Em direção próxima, Collignon (2005) reforça a necessidade de não se pôr em relação hierárquica a geografia científica do conhecimento leigo, afirmando acreditar que os “saberes geográficos vernaculares”[7] não estão em uma relação de ruptura com os “saberes geográficos doutos”, mas sim numa relação de complementaridade. A geografia acadêmica, como discurso, não esgotaria o entendimento do mundo que se propõe a estudar e mapear.

Especificamente em relação a mapeamentos e mapas, Wood (1992) nos lembra dos mapas mentais, legítimos instrumentos de investigação tornados notórios há mais de quarenta anos por Lynch (1997), ainda hoje muito utilizados como instrumentos de aproximação entre pesquisadores/as e usuários/as do espaço, sobretudo em trabalhos com crianças[8]. Mas também assinala que a mente humana realiza diariamente mapas e mapeamentos: a própria experiência cotidiana dos espaços induz a sua organização psíquica, o que inclui dar inteligibilidade e mentalmente fazer com que os mapas vistos e manipulados no dia-a-dia interajam uns com os outros (aqueles dos noticiários impressos e da televisão com os de livros, filmes e jogos de RPG ou de tabuleiro, por exemplo). Já Canevacci (2004) aponta que os mapas tradicionais são de difícil uso e compreensão, além de reducionistas por homogeneizarem o espaço, realizando por sua forma de representação uma negação da diferença e da alteridade: referindo-se à complexidade da cidade de São Paulo, no Brasil, o antropólogo defende que mapeamento muito mais interessante poderia ser feito, por exemplo, pelo ato de se fotografar – o que, aliás, é realizado por Ferrara[9], na mesma cidade e a partir de método comparativo das imagens feitas por diversos moradores/as. Esse conjunto de fotografias, além de mapa alternativo da capital paulistana, teria por sua polifonia muito mais a dizer sobre seu espaço urbano do que um mapa tradicional. Além disso, a deriva e a errância situacionistas seriam métodos tão mais lúdicos quanto mais eficazes de se cartografar o urbano.

Tem-se aqui um apanhado sucinto da acirrada discussão sobre mapas, mapeamentos, suas técnicas e métodos. Acreditamos ser possível perceber que há profunda luta simbólica em torno da relação entre os mapas e a questão foucaultiana das conjuntas produção e legitimação de saberes e poderes. Por um lado, por serem objetos-símbolos da geografia acadêmica[10], os mapas já estariam inseridos em campo de disputas sobre o que pode ser chamado de mapa e quem tem legitimidade para se fazê-lo; por outro, desde a década de 1970, quando surgiram o SIG, as Tecnologias de Informação Espacial (TIES) e o Sistema de Posicionamento Global (GPS, Global Positioning System) – que em certa medida representam “a feição cartográfica do retorno ao positivismo tecnocrático nas ciências”,[11] mas ao mesmo tempo tornaram a cartografia mais acessível – tem-se ampliado o número pessoas sem formação técnica capaz de produzir mapas, de forma autônoma e às vezes com conteúdos ou linguagens alternativos (quiçá contra-hegemônicos)[12].

O avanço tecnológico também tem deixado às claras, ainda que não necessariamente por vontade de quem realize as cartografias, conflitos muitas vezes subsumidos das representações cartográficas mais tradicionais. Em muitos mapas urbanos produzidos por tecnologias interativas e extremamente populares como o Google Earth e o Google Maps, a verossimilhança das representeções com fotos aéreas amplia as ambiguidades entre mapa e realidade; e, ao disponibilizarem a visualização pública dos mapas produzidos, podem acentuar conflitos locais expressos por meio de indagações a respeito do que revelar ou esconder de cada território – como no caso da recente polêmica em torno da representação de mapas da cidade do Rio de Janeiro no Google Maps, devido as toponímias das favelas serem neles mais presentes e mais destacadas do que as de bairros formais e “nobres” (figura 1). Em paralelo, vê-se ganhar cada vez mais corpo as chamadas “cartografias sociais”, dentro de um movimento cada vez mais expressivo no Brasil e no restante da América Latina, que se apropria das tecnologias SIG e GPS, mas sem descartar métodos e linguagens alternativos: voltados quase que exclusivamente para a legitimação de territórios de grupos “étnicos” e/ou “tradicionais”, como indígenas, ribeirinhos, quilombolas e quebradeiras de coco[13] (figuras 2 e 3), tais mapas dão visibilidade aos conflitos territoriais que tais comunidades estão inseridas ou denunciam situações de injustiça ambiental e racismo ambiental (figura 4), por exemplo.

Diante de toda esta discussão podemos inserir os mapas no campo das representações, entendidas não como espelhos do real ou somente imagens, mas como textos, i.e., instrumentos discursivos para a comunicação de valores e visões de mundo inseridas em estratégias e disputas de poder[14]. É impossível, então, compreender os mapas isolados das práticas e contextos que os produzem ou a eles se relacionam, sem aquelas que os antecedem ou sucedem[15].

Figura 1. Imagem do Google Maps dando destaque às toponímias de inúmeras favelas do Rio de Janeiro, em 2011
Fonte: capturado do Google Maps (2011)

 

Figura 2. Mapa de comunidade indígena junto à área urbana do Município de Rio Preto da Eva, no estado brasileiro do Amazonas
Fonte: Farias Junior (2009)

 

Figura 3. Mapa do município de São Paulo, capital do estado do sudeste com o mesmo nome, revelando a relação direta entre pobreza e risco ambiental na cidade
Fonte: Alves (2006)

 

Figura 4. Produção de mapa coletivo com técnica mista (plotagem, desenho e colagem) em workshop realizado por Bernardo Amaral e Paulo Moreira na região de Guimarães, na Argentina
Fonte: http://www.devirmenor2012guimaraes.com/2012/05/07/cartografias-colectivas


As práticas de se colher dados para posteriormente serem analisados, descartados ou aproveitados para tecnicamente se traduzirem em mapas nunca estão sujeitas a um campo neutro: um espaço e os habitantes podem estar, num exemplo, sendo analisados, decodificados, classificados e representados por meio de declarado ou camuflado autoritarismo (do Estado, ONGs bem intencionadas ou oportunistas, pesquisadores/as e técnicos/as de boa ou má fé); ou, noutro exemplo, reunidos e interpretados em prol de uma decisiva participação comunitária e sua efetivação por meio do planejamento urbano. Criam-se assim as situações através das quais desejos, expectativas, inteligibilidades e vontades de transformação urbana e social, sempre díspares, se encontram e se chocam, frequentemente em relações assimétricas de dominação e subordinação: do saber leigo em relação ao saber técnico e acadêmico, da vontade comunitária ou individual em relação ao poder institucionalizado, dos grupos marginais em relação aos grupos mais hegemônicos. Apesar disso, quando finalizados, os mapas estão por certo a serviço dos detentores do poder que os produziu, mas diante de sua reprodutibilidade técnica também se tornam objetos utilizados pelos mais diversos grupos sociais e usuários/as, necessariamente sofrendo processos de reapropriação e ressignificação.

Por isso, tendemos a concordar com os argumentos sobre a necessidade de a cartografia crítica dever lançar maiores foco e análise sobre os processos de mapeamentos do que sobre os mapas, sobre o que os usuários/as fazem dos mapas e como por eles efetuam ou têm cerceadas suas demandas, não se restringindo apenas aos modos pelos quais são nos mapas representados[16]. Por outro lado, também concordamos que pode vir a ser leviano esquecer-se do poder das representações na produção do espaço[17]: pois se os mapas jamais são meros grafismos de uma construção imagética neutra, também não se pode ignorar o quanto seu caráter visual é sedutor e o quanto sua função tecnocrática é poderosa na capacidade de legitimá-lo como o “real”. A bem da verdade, não importa se os mapas não possuem conteúdo ontológico, já que na prática são utilizados por estratos dominantes como se o tivessem, sendo na prática necessário que determinados grupos ofereçam resistência a esta imposição.

É claro que tal condição não necessariamente anula os mapeamentos e os mapas da possibilidade de passo a passo poderem focar formas solidárias de se produzir conhecimento, e, mais ainda, resistência. Mas para isso ocorrer, abrem-se questões que vão desde as maneiras de se mapear, ao que entender como participação e cartografia participativa, passando-se por indagações sobre possíveis e desejáveis aperfeiçoamentos da linguagem cartográfica (quem sabe se recuperando certa tradição “decorativa”[18] ou ampliando a interação com as diversas mídias cada vez mais abertas e acessíveis). Uma maior inteligibilidade dos mapas é condição para serem mais participativos e pode ampliar possibilidades de sua apropriação e reapropriação (não necessariamente, aliás, pelos grupos com os quais se escolheu colaborar, o que gera novos dilemas éticos)[19]. Além disso, há dimensões éticas e políticas inexoravelmente a se considerar: para quem mapear, e, diante dessa escolha, o que nos mapas produzidos deve-se revelar?

Mapeamentos, mapas e participação no Brasil: entre problemas e consensos

A despeito do recente e tão divulgado crescimento econômico com alguns avanços sociais, o Brasil permanece com grande parte de suas mazelas socioespaciais. Nas cidades, as desigualdades sociais e ambientais expressam-se por meio de enorme déficit habitacional e de infraestrutura, das práticas e formas de apropriação do solo urbano para mais-valias e vacâncias fundiárias e das ocupações de áreas ambientalmente frágeis por todas as classes sociais. Historicamente, tais situações foram acompanhadas por estratégias do Estado de intervenção nos territórios urbanos com a criação, perpetuação e inovação de instrumentos urbanísticos de planejamento que, no mais das vezes, consagraram a produção imobiliária e a execução de obras e realimentaram a exclusão social.

Na Constituição Federal de 1988, em vigor, um cenário de contornos aparentemente novos foi montado: inspirados pela ação do Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU) e incluídos a partir de uma emenda de iniciativa popular, um de seus capítulos versa sobre política urbana; e o artigo 182 determina que se deve ordenar o desenvolvimento por meio da função social da cidade e da propriedade urbana. O bem-estar das populações urbanas passa a ser condicionado à elaboração de um plano diretor, desde então obrigatório para municípios com mais de 20.000 habitantes. Mas essa política só foi regulamentada treze anos depois pela Lei Federal nº 10.257/2001, o Estatuto da Cidade. Trata-se de um marco da normatização urbanística no Brasil: por reafirmar o plano diretor como instrumento básico, obrigatório e participativo; e por legitimar instrumentos jurídico-políticos, essencialmente voltados ao combate à retenção especulativa dos imóveis e terrenos urbanos, e também à deterioração das áreas urbanizadas e à degradação ambiental, sempre tendo em vista a participação popular e a instauração de mecanismos de controle social.

Assim, o planejamento ganha um novo fôlego em direção a uma “reforma urbana”. O termo é muito antigo, sendo comumente associado a ações como as de Pereira Passos, prefeito da cidade do Rio de Janeiro que na virada do século XIX para o XX realizou intervenções autoritárias e de conteúdo antipopular. Porém não é esse o significado ao qual se associou na luta por uma cidade democrática e se legitimar em desdobramentos jurídico-políticos. Souza[20], por exemplo, apontam seu sentido progressista gestado pela esquerda brasileira, centrado no problema da habitação, entendido como problema urbano (não meramente técnico-construtivo e quantitativo). Mas é preciso dizer que o instrumento do plano diretor não era parte das reivindicações dos movimentos populares, inclusive o MNRU. Sua inclusão na Constituição causou enorme surpresa, pois a década de 1980 fora marcada por forte crítica ao planejamento e aos planos diretores, desgastados pelo modelo da SERFHAU (Serviço Federal de Habitação e Urbanismo) aplicado pelo governo militar em diversos municípios. Questionava-se a eficácia dos planos diretores, que eram acusados ao mesmo tempo de irreais e autoritários[21].

Por conta da inesperada menção na Constituição, a década de 1990 viu as concepções de novos planos diretores ganharem corpo, agora exigidos como “democráticos”, assim não devendo se basear tão somente em critérios e saberes técnicos, mas no resultado de negociações entre diversos atores sociais e interesses, exigindo-se a participação popular na sua elaboração. Reinventa-se o plano diretor: de documento desvalorizado e repudiado por especialistas, por ser tecnocrático e descolado da realidade, a instrumento de luta pela Reforma Urbana[22]. Mas apesar de todo o esforço em direção a essa nova concepção, pode-se dizer que a recente produção de planos diretores, mesmo baseada em intenções legítimas de transformação da sociedade a partir da participação das populações municipais, foi a campo por todo o Brasil colhendo dados, mapeando as cidades e seus arredores e fazendo proposições sem o tempo necessário, a nosso ver, para que os vários atores envolvidos neste processo tenham podido refletir sobre questões teóricas e metodológicas a respeito de como este “novo” planejamento participativo poderia e deveria produzir dados (inclusive mapas) na proposição de soluções e alternativas (inclusive com o auxílio de mapas).

Pois já são quase esquecidas as experiências voltadas para o planejamento participativo nas administrações do MDB em Lages, Santa Catarina, registradas por Alves (1984), e de Prudente de Morais, Minas Gerais, relatadas por Brandão (1986), que datam da segunda metade da década de 1970. Nesse período, desnecessário lembrar, governava o país o general Ernesto Geisel. O governo Geisel foi denominado pelo próprio presidente como o de distensão lenta, gradual e segura, com vistas à reimplantação do sistema democrático no país. Para os profissionais envolvidos nas práticas de planejamento urbano e regional, foi um período marcado por tentativas de adoção de metodologias envolvendo a participação “comunitária” na definição de políticas públicas setoriais e no planejamento físico-territorial. Dentre os cursos oferecidos à época, o extinto CEMUAM – Curso de Metodologia de Planejamento ministrado pelo Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM) – foi um marco, à medida que o exercício da participação envolvia aprendizagem e exercício constantes depois de um longo período de ditadura militar. Não foi por acaso a busca pela elaboração de diagnósticos e mapas alternativos envolvendo a participação de moradores e principalmente dos até então excluídos dos processos, tais como pobres, grupos étnicos, mulheres, crianças e integrantes de movimentos sociais. Os trabalhos de campo envolviam muito suor e poeira das estradas que levavam a setores “abandonados” dos municípios.

Enquanto isso, o MNRU mantinha suas lutas e no plano legal construía as bases do que hoje conhecemos como Estatuto da Cidade. Uma nova esperança se apresentava: a obrigatoriedade de incorporação da participação no processo de construção do instrumento legal. Para apoiar os municípios e sensibilizar a sociedade, o Ministério das Cidades, com o apoio do Conselho das Cidades, lançou em maio de 2005 a Campanha Nacional "Plano Diretor Participativo – Cidade de Todos", desenvolvida com base na estruturação de 27 Núcleos Estaduais – 26 estados e o Distrito Federal. Nas suas mais diferentes composições os núcleos fizeram enorme esforço no processo de divulgação e, de certa forma, asseguraram um mínimo de conhecimento sobre a lógica do processo oficial, na medida em que os participantes tentavam decodificar regras e instrumentos, permitindo uma interlocução com os grupos técnicos, quando da elaboração dos planos, em um bom número de municípios. Na prática, a comunicação com os moradores de cada município para elaboração dos respectivos planos deveria ser acompanhada de um entendimento comum dos limites e possibilidades de tal instrumento legal e tornar compreensível o objetivo de “planejar o futuro da cidade, incorporando todos os setores sociais, econômicos e políticos que a compõem, de forma a construir um compromisso entre cidadãos e governos na direção de um projeto que inclua todos”.[23]

Segundo as cartilhas elaboradas pelo Ministério das Cidades os planos diretores deveriam contar com leituras técnicas e comunitárias. “Ler a cidade” era a primeira etapa da elaboração de um plano diretor. Essa etapa, segundo os manuais, tratava de identificar e entender a situação do município, a área urbana e a área rural, seus problemas, seus conflitos e suas potencialidades. Mas a atividade de “ler a cidade” não deveria ser uma tarefa exclusiva de especialistas e sim de olhares diversos sobre uma mesma realidade, assim como a produção da cartografia de apoio. Nesse contexto participativo, do que diz respeito especificamente à elaboração cartográfica, a indicação dos manuais estava voltada para a dos chamados mapas temáticos envolvendo:

a) mapas temáticos sobre o território, que apresentassem as áreas de risco, preservação cultural e de valor cultural ou simbólico para a comunidade, estrutura fundiária, distribuição e forma de uso da propriedade, inserção regional etc.;

b) mapas de caracterização e distribuição da população e seus movimentos, envolvendo densidades, escolaridade, emprego e renda etc.; mapas de uso do solo, indicando atividades e formas de uso e ocupação do solo já existentes, formais e informais, regulares ou não, vazios urbanos e zona rural; áreas habitacionais, indicando diferentes padrões existentes na cidade; áreas com edificações de maior altura, densidades habitacionais e morfologias;

c) mapas de infraestrutura urbana, indicando serviços, equipamentos, redes e níveis de atendimento; e, por fim, mapas de atividades econômicas predominantes, inclusive as informais e sua importância local e regional e atividades em expansão ou em retração, não só em termos de número de empregos e de empresas, mas de sua participação na composição da receita do município[24].

De posse de tais orientações as equipes iam a campo, incorporadas nas prefeituras ou integrando grupos de consultorias, alguns com esperança e outros com desconfiança, mas dispostos a dar conta da missão. O fato é que, além de em média os trabalhos durarem se muito um ano, o processo participativo também estava em alguma medida regulado, envolvendo um sem-número de reuniões e audiências públicas para validar as propostas. Ainda que a orientação estivesse voltada, na etapa de leitura comunitária, para a adoção das diferentes dinâmicas e materiais, foram poucos os municípios que conseguiram “colocar no mapa” as áreas e práticas “tradicionais”, alternativas, desconhecidas e, portanto, não consideradas pelo planejamento territorial – muito menos, fazer do mapa um instrumento para a espacialização dos conflitos urbanos de cada município. Contraditoriamente, na grande maioria dos casos, apesar dos esforços das equipes, pressionados pelo tempo e pela dificuldade de sistematizar a grande quantidade de material produzido nas reuniões comunitárias, a obrigatoriedade de participação e de produção de mapeamentos inclusivos continuaram com a abordagem tradicional (técnica?) e de certa forma empobrecida em relação às experiências, delineando um processo com caráter de consulta voltado para o simples acolhimento de situações relatadas sem que as mesmas fossem incorporadas.

Na verdade, a supostamente tão valorizada leitura comunitária de saída já estava potencialmente relegada a segundo plano, subordinada à leitura técnica. Como resultado, não raro os planos apresentaram mapas genéricos de “diagnóstico da realidade”, reforçando a ideia de inventário, ou com proposições de macrozonas ou intervenções (caso do novo plano diretor do Rio de Janeiro, ver Figuras 5 a 7), sem que fossem incorporados conflitos e contradições identificados no processo de levantamento de dados e de participação popular. Também foram muitos os mapas de zoneamentos urbanos, tão coloridos quanto de difícil compreensão, dada a extrema fragmentação das áreas propostas, resultado não só da pressão de interesses imobiliários e especulativos que as equipes quase sempre sofriam durante o trabalho, mas também de certa herança do já tão criticado zoneamento monofuncional, um vício profissional que agora se apresenta traduzido como padrões de continuidade não mais de uso, mas de parâmetros e instrumentos urbanísticos (ver figuras 7 e 8). A participação popular nestes processos, inclusive os de mapeamento, era e ainda mantem-se “encarada, na prática, embora não no discurso, como um mero ‘tempero’, sendo os ‘ingredientes principais’ os instrumentos contidos nos planos e leis”[25]. Foi e tem sido, também, convertida a uma utilização gratuita do conhecimento da população sobre o território, economizando recursos que de outra maneira seriam gastos pelo município para conseguir tais informações. O mapa, então, torna-se “uma ferramenta potente de desvendamento, mas cujo domínio exige uma especialização que não é igualmente compartilhada entre os diferentes atores e que é suscetível de criar, por seu uso, efeitos de poder, o que é um problema para o objetivo da participação”[26].

Diante de quadro tão desanimador, emergem algumas questões. Comandados pelas prefeituras os mapeamentos participativos realizados nos planos seriam capazes de aumentar a capacidade de populações empobrecidas interferirem e decidirem sobre os processos políticos que se desenrolam nas cidades? Ou seriam apenas mais uma forma utilizada por governos municipais para legitimar políticas e produzir consensos? O que seriam exatamente os mapas participativos, na medida em que há poucos registros das oficinas que os produziram? Trazem algo realmente novo? No caso específico dos planos diretores, o papel que a inclusão destes mapas e mapeamentos pode vir a ter sobre o desdobramento de processos democráticos em âmbito municipal parece ainda envolver a própria capacidade destes planos em tornarem-se instrumentos relevantes de ação política.

Figura 5. Mapa do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano Sustentável do Município do Rio de Janeiro (2011), do qual chama atenção certa generalização na representação das quatro porções territoriais, naturalizando-se por ele as diretrizes (e, portanto, intervenções) intrínsecas a suas denominações
Fonte: PCRJ

 

Figura 6. Mapa do mesmo plano diretor apresentando o uso do solo dez anos antes, e que nada revela da problemática relação de bairros nobres com favelas, da progressiva devastação de áreas úmidas ou da poluição das baías de Sepetiba e de Guanabara
Fonte: PCRJ

 

Figura 7. Mapa de zoneamento urbano do Plano Diretor Municipal de Vila Velha (2007), no estado do Espírito Santo, na Região Sudeste do Brasil, do qual chama atenção a quantidade significativa de zonas e zonas especiais
Fonte: Prefeitura Municipal de Vila Velha

 

Figura 8. Zoneamento urbano presente no Plano Diretor do Município de Cianorte (2006), cidade do estado do Paraná, Região Sul do Brasil.
Novamente chama a atenção a composição quase abstrata de muitas cores e muitas zonas

 

Algumas considerações finais

Terminados os prazos oficiais para a elaboração de planos diretores participativos, a conferência de alguns dos diagnósticos e mapas temáticos produzidos para estes planos provavelmente revelará, a despeito de toda participação anunciada e desejada, que muito pouco se transformou: os primeiros ainda são muito longos e extenuantes, extremamente técnicos; os segundos, normalmente se apresentam por manchas ainda abstratas para inúmeros/as habitantes das cidades por eles representadas; e numa escala distanciada da totalidade do macrozoneamento ou zoneamento do município, pelas quais representar diferenças e singularidades é tarefa difícil. Mapas que são ainda muito técnicos, herméticos, pouco dialógicos e comunicativos e também extremamente monotemáticos em sua recorrente espacialização de instrumentos da política urbana na luta contra o capital imobiliário (talvez um dos principais motes ideológicos do Estatuto da Cidade).

Focamos neste trabalho a questão dos mapas, por um lado, por seu caráter ligado à linguagem, à representação e à estética acabar se tornando atraente para nós, que somos urbanistas e temos talvez aí ação a contribuir fundamentalmente; mas, por outro, porque nossa experiência profissional, muitas vezes em trabalhos executados em parceria, revelou o quanto mapas permanecem sendo utilizados de maneira tecnocrática, com linguagens herméticas que repetem vícios ou legitimam projetos de ocupação de grupos mais hegemônicos. Além disso, nossa prática viu o quanto experiências paralelas de mapeamento participativo que resultaram em mapas não usuais, de interesse de grupos minoritários ou que apontaram importantes conflitos urbanos (como os das figuras 2 a 4 deste trabalho), não foram nem têm sido incorporadas à cartografia do planejamento urbano oficial e institucionalizado, focado nos planos diretores e nas leis que lhes são desdobramentos. Não foram incorporados a inúmeros dos novos planos e mapas alguns dos temas realmente graves que assolam quase a totalidade das cidades brasileiras, como inundações e deslizamentos urbanos, a vacância fundiária especulativa ou a relação entre pobreza, risco e injustiça ambiental – só para citar situações mais evidentes.

Impõe-se assim uma preocupação na identificação de para quem mapear, o que de fato é interesse coletivo e o que interessa aos grupos participantes revelar, como instrumento de disputa territorial, ou esconder como tática de avanço no direito à cidade. Num sentido mais amplo, qualquer iniciativa de analisar e mapear a diversidade territorial implica em reconhecer o que está em jogo em cada situação. Sem perder a relação particular-geral e singular-universal, a participação comunitária (aí incluída a produção de mapas e o empoderamento de grupos por meio dos mesmos) deve ser construída passo a passo, sem regras e roteiros pré-estabelecidos, o que foi bem difícil no contexto de prazos curtos, baixos recursos e alta normatização conduzidos pelo Ministério das Cidades. Acreditamos que cada caso constrói o método, tem um caminho a seguir, precisa de um tipo de mapeamento e mapas participativos e que só assim ampliam-se de fato as possibilidades de oferecer instrumentos de inclusão e resistência – de usar e criar, portanto, práticas que enfrentem a diacronia das trajetórias e que se afastem da sincronia autoritária imposta ao espaço pela cartografia tradicional. E se representar o território é também construí-lo, à prática participativa deve estar incluída a possibilidade de transformação não só de quem é mobilizado a participar, mas também das técnicas e dos próprios técnicos.

Em termos de linguagem cartográfica, realmente não importa se adotemos de forma isolada ou combinada a cartografia efêmera, método que envolve a definição de mapas no chão, onde os participantes utilizam matérias-primas tais como terra seixos e gravetos, folhas, entre outros elementos para representar a paisagem física e cultural; a cartografia de esboço voltada para um método no qual se produz mapa com base na observação ou memória dos participantes sem envolver medidas exatas e escalas precisas, registrando-se em papel elementos selecionados como característicos da paisagem; a cartografia de escala, método que visa a registrar as informações, selecionadas pelos participantes, através de referências geográficas; a modelagem 3D que integra os conhecimentos geográficos com os dados de elevação, produzindo modelos de relevo tridimensionais, de escala e com referências geográficas; as ortofotos elaboradas através de fotografias aéreas corrigidas geometricamente e dotadas de referências geográficas; os produzidos com o auxílio dos Sistemas de Posicionamento Global, sejam os que agregam informações precisas, sejam os que permitem a interferência do tipo open source, por meio de wikimaps, google maps ou outros mapas virtuais, georreferenciados e interativos; ou, finalmente, as formas de representação cartográfica que utilizam fotografias, filmes e vídeos, cada vez mais popularizados e que por isso, ao menos potencialmente, podem dar início à “revanche da cultura popular contra a cultura de massa”[27].

O importante talvez seja permitir a explicitação dos conflitos urbanos e regionais; e dar oportunidade para que diferentes mapas e sujeitos mapeadores se expressem e participem das disputas socioespaciais. Assim, parafraseando Souza (s.d.), talvez seja verdade que “leis formais e planos diretores e seus mapas estão longe de atacar o essencial” e que qualquer estratégia conduzida pelo Estado necessariamente traz restrições a qualquer tipo de ação minimamente transformadora. Na perspectiva do planejamento talvez seja então melhor continuar a conscientemente se produzir mapas e mapeamentos “próprios”, “alternativos” elaborados pelos grupos que disputam legitimamente espaços ou mesmo aqueles que tentam reverter a ordem dada pelas propostas oficiais e seus urbanistas.


Notas

[1] Recebe este nome a Lei Federal nº 10.257 (Brasil, 2001), que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal do país (que, dentre outras medidas, exige planos diretores para as cidades de mais de 20.000 habitantes), estabelece diretrizes para política urbana brasileira e torna legítimos instrumentos jurídico-políticos de ocupação do solo, tributários e para a regularização fundiária àquele momento entendidos como progressistas e democráticos. Para esclarecimentos iniciais, indica-se: Oliveira, 2001; Souza, 2002, p. 155-168; 215-301.

[2] Não é nossa intenção esmiuçar o referido debate, mas indica-se trabalhos que são essenciais para seu delineamento. São eles: Santos, 1987; Demo, 1989; Moles,1990; Morin, 1990; Hoefle, 1998.

[3] Cf. Crampton e Krygier, 2006.

[4] Ibid., p. 33

[5] Comentando que o mapa desde a Idade Média estaria ligado à representação de toda a superfície do globo e que a carta desde seus primórdios restringia-se às rotas marítimas e suas conquistas territoriais,  a autora afirma que o primeiro seria representação de aspectos físicos, naturais ou artificiais, da superfície terrestre, para fins culturais e ilustrativos, concebida em escalas pequenas, enquanto que a segunda teria fins práticos e em escalas médias e grandes. Já a planta seria concebida em escalas muito grandes, sempre em projeção ortogonal, preservando a medição de distâncias em qualquer ponto ou direção, não havendo a deformação que os sistemas de projeção do mapa e a carta normalmente possuem (Nogueira, 2008, p. 36).

[6] In: Chevalier, 1989, p. 14, tradução nossa.

[7] A expressão é compartilhada por Lézy (2005), ao passo que Sivignon (2005) prefere utilizar “geografia espontânea”. Ambas parecem estar ligadas à clássica tradição geográfica dos gêneros de vida e, mais particularmente, à cultura dos ditos “grupos tradicionais”. Na mesma linha que Name, ver Monnet (1999).

[8] Cf. Vogel et al., 1995; Perdigão, 2007.

[9] Ferrara (2000, p. 11-54). Já há coletâneas editas no Brasil com excelente apanhado dos textos situacionistas (Internacional Situacionista, 2002; Jacques, org., 2003; Felício, 2007) e cada vez mais autores se apropriam desta literatura para a análise crítica da cidade contemporânea. Ver, por exemplo: Jacques, 2004; Britto e Jacques, 2009.

[10] Cf. Godlewska, 1997; Massey, 2008; Girardi, 2009.

[11]Cf. Pickles, 1991.

[12]Cf. Elwood, 2006; Dunn, 2007.

[13] Cf. Offen, 2003; Robert e Laques, 2003; Biaggi, 2006; Acselrad e Coli, 2008.

[14]Foucault (1999) entende as representações num sentido amplo, grosso modo a relacionando a qualquer forma de pensamento ou ideia organizável. Para o autor, elas podem ser tanto pictóricas quanto mentais, podem ser imagens ou esquemas intelectuais, mas ele alerta que a visão, no mundo ocidental, tem preponderância na sua construção: ao mesmo tempo em que tudo que pode ser visto é passível de ser traduzido pelos desmandos de um olhar autoritário que tudo simplifica e classifica em esquemas intelectuais, esses mesmos esquemas necessitam de reprodução contínua de representações visuais para serem inteligíveis e se legitimarem. As representações são, então, sempre partilhadas e tendem a se tornar estáveis. As representações, portanto, constroem a realidade social e legitimam poderes, possibilitando que “o presente pode adquirir sentido, o outro se tornar inteligível e o espaço ser decifrado” (Chartier, 1990, p. 17).

[15]Como nos lembra Anderson (2008, p. 226-255), o mapa, o censo (tão caro quanto o mapa ao planejamento urbano) e o museu são os mais relevantes objetos técnicos resultantes das práticas ocidentais de se produzir um mundo em permanente exibição, que dota um poder soberano – na maioria das vezes o Estado, mas nem sempre ele –  de autoridade e olhar externo, onipresente e panóptico sobre territórios e habitantes constantemente classificados e normatizados.

[16] Cf. Kitchin e Dodge, 2007; Kitchin, 2008; Girardi, op. cit.

[17] Cf. Crampton, 2009.

[18] Cf. Child, 1956.

[19] Cf. Crampton e Krygier, op. cit.; Pucher, 2003; Kingsburry e Jones III, 2009; Boulton, 2010.

[20] Souza, (2002, p. 155-156 e Maricato, 2011. O significado progressista do termo “reforma urbana” foi gestado na década de 1960, a partir de projeto do governo do presidente João Goulart (1961-1964) e, mais particularmente, de um encontro realizado na cidade fluminense de Petrópolis, em 1963, que se tornou um marco ideológico do planejamento brasileiro por reunir políticos, técnicos e intelectuais em torno do tema da habitação. A ditadura militar que logo se seguiu, porém, além de tutelar o planejamento urbano à esfera federal, tornou-se grave entrave ao desenvolvimento de quaisquer reivindicações populares. Somente em meados da década de 1980, no contexto de abertura política iniciada por Ernesto Geisel, surge o Movimento Nacional pela Reforma Urbana (MNRU), unindo forças de vários movimentos sociais.

[21] Cf. Rezende, 1982 e 2002.

[22] Cf. Gondim, 1991; Grazia, org., 1990.

[23] Brasil, 2004, p. 8.

[24] Op. cit.

[25] Souza, 2005, p. 1-2, itálicos no original.

[26] Cf. Joliveau, 2008. Como exceção pode ser apontada a experiência no município de Belterra, no Pará. Segundo Coli (2009), os registros do processo indicam disputas de poder bastante significativas através dos mecanismos da política municipal, enquanto as iniciativas do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia (PNCSA) procuram alavancar suas reivindicações através de uma mobilização política via identidade.

[27]Santos, 2008.

Referências Bibliográficas

ACSELRAD, H. e COLI, L.R. Disputas cartográficas e disputas territoriais. In ACSELRAD, H. (org.) Cartografias sociais e território. Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ, 2008, p. 13-43.

ALVES, H.P.F. Desigualdade Ambiental na Metrópole de São Paulo: uma análise dos diferentes grupos sociais expostos a situações de risco ambiental, através do uso de metodologias de geoprocessamento e SIG. Encontro Nacional da ANPPAS, 3, 2006, Brasília. Anais... Brasília: ANPPAS.

ALVES, M.M. Força do povo. Sao Paulo: Brasiliense, 1984.

ANDERSON, B. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

ANTUNES, L. Google Maps faz do Rio um aglomerado de favelas. O Globo. Rio de Janeiro, 23 abr. 2011a.

ANTUNES, L. Google modificará seus mapas sobre o Rio. O Globo. Rio de Janeiro, 25 abr. 2011b.

BIAGGI, L.E. Du territoire à la carte: l'émergence de la cartographie militante au Brésil. Géocarrefour, v. 81, nº 3, p. 235-243.

BOULTON, A. Just Maps: Google's Democratic Map-Making Community? Cartographica, v. 45, nº 1, 2010, p. 1-4.

BRANDÃO, J. O povo é que sabe. São Paulo: CEDESP, 1986.

BRASIL. Plano diretor participativo: guia para dos municípios e cidadãos. Brasília: Ministério das Cidades, 2004.

BRASIL. Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001. “Regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências”. DF, 11 de jul. 2001. Disponível em http://bit.ly/AFrDnr. Acesso em 12 de jun de 2009.

BRITTO, F.B. Os mapas e a construção de diferenças na cidade. Institucionaliza-se um discurso segregador? ArchDaily, 17 nov, 2012. Disponível em http://www.archdaily.com.br/80872. Arquivo consultado em 18 de novembro de 2012.

BRITTO, F.B. e JACQUES, P.B. Corpocidade: arte enquanto micro-resistência urbana. Fractal: Revista de Psicologia, v. 21, nº. 2, 2009, p. 337-350.

CANEVACCI, M. A cidade polifônica. São Paulo: Studio Nobel, 2004.

CHARTIER, R. A história cultural. Lisboa : Rio de Janeiro: Difel : Bertrand, 1990.

CHEVALIER, M. Géographie et paragéographies. L'Espace Géographique, v. 18, nº 1, 1989, p. 5-17.

CHILD, H. Decorative maps. London: Studio Limited, 1956.

COLI, L.R. Reflexões sobre as experiências de mapeamento participativo e cartografia social em cidades brasileiras. Semana de Planejamento Urbano e Regional, 15, 2009, Rio de Janeiro. Anais... Rio de Janeiro: IPPUR/UFRJ.

COLLIGNON, B. Que sait-on des savoirs géographiques vernaculaires? Bulletin de l'Association de Géographes Français, nº 3, 2005, p. 321-331.

CRAMPTON, J.W. Cartography: performative, participatory, political. Progress in Human Geography, v. 33, nº 6, 2009, p. 840-848.

CRAMPTON, J.W e KRYGIER, J. An introduction to Critical Cartography. ACME, v. 4, nº 1, 2006, p. 11-33.

DEL CASINO JR., V.J. e HANNA, S.P. Representations and identities in tourist map spaces. Progress in Human Geography, v. 24, nº 1, 2000, p. 23-46.

DEMO, P. Metodologia científica em ciências sociais. São Paulo: Atlas, 1989.

DUNN, C.E. Participatory GIS – a people's GIS? Progress in Human Geography, v. 31, nº 5, 2007, p. 616-637.

ELWOOD, S. Critical issues in Participatory GIS: deconstructions, reconstructions, and new research directions. Transactions in GIS, v. 10, nº 5, 2006, p. 693–708.

FARIAS JUNIOR, E.A. Terras indígenas nas cidades. Manaus: UEA Edições, 2009.

FELÍCIO, E. Deriva, psicogeografia e urbanismo unitário. Porto Alegre: Deriva, 2007.

FERRARA, L.D. Os significados urbanos. São Paulo: Fapesp, 2000.

FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GIRARDI, G. Mapas desejantes: uma agenda para a cartografia geográfica. Pro-Posições, v. 20, nº 3, set./dez. 2009, p. 147-157.

GODLEWSKA, A. The idea of the map. In HANSON, S. (ed). Geographical ideas that have changed the world. New Brunswick: Rutgers University Press, 1997, p. 15-39.

GONDIM, L.M. A participação popular no plano diretor: contribuições para a formulação de uma metodologia. Revista de Administração Municipal, n. 201, p. 14-29, 1991.

GRAZIA, G. (org.). Plano diretor: instrumento de Reforma Urbana. Rio de Janeiro: FASE, 1990, p. 33-42.

HARLEY, J.B. Mapas, saber e poder. Confins, v. 5, 2009. Disponível em http://confins.revues.org/index5724.html. Arquivo consultado em 20 de agosto de 2010.

HARVEY, D. Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola, 1994.

HOEFLE, S.W. Cultura na história do pensamento científico, Revista do Programa de Pós-Graduação em Geografia, UFRJ, v. 2, Rio de Janeiro, 1998, p. 6-29.

INTERNACIONAL SITUACIONISTA. Situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2002.

JACQUES, P. B. (org.) Apologia da deriva. Rio de Janeiro: casa da Palavra, 2003.

JACQUES, P. B. Elogio aos errantes. Breve histórico das errâncias urbanas. Arquitextos, vol 5, nº 53, out 2004. Disponível em http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/05.053/536. Arquivo consultado em 28 de agosto de 2010.

JOLIVEAU, T. O lugar do mapa nas abordagens participativas. In ACSELRAD, H (org.). Cartografias sociais e território. Rio de Janeiro : IPPUR/UFRJ, 2008, p. 45-69.

KITCHIN, R. The practices of mapping. Cartographica, v. 43, nº 3, 2008, p. 211-215.

KITCHIN, R. e DODGE, M. Rethinking maps. Progress in Human Geography, v. 31, nº 3, 2007, p. 331-344.

LÉZY, E. Le chemin de Léon Damas, sur les traces de la Tortue. Vers une géographie “vernaculaire” de la Guyane. Bulletin de l'Association de Géographes Français, nº 3, 2005, p. 358-380.

LYNCH, K. A imagem da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

MARICATO, E. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011.

MASSEY, D. Pelo espaço. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2008.

MIGNOLO, W. The darker side of the Renaissance. Literacy, territoriality & colonization. Michigan: The Michigan University Press, 2003.

MOLES, A. Les sciences de l'imprécis. Paris: Seuil, 1990.

MONMONIER, M. How to lie with maps. London/Chicago: The University of Chicago Press, 1996.

MONNET, J. Images de l'espace a Los Angeles: elements de geographie cognitive et vernaculaire. Colloque Espace(s), IUF, mai. 1999. Disponível em http://webast.ast.obs-mip.fr/people/rieutord/IUF_conf/actes.html. Arquivo consultado em 26 de novembro de 2002.

MORIN, E. Introduction à la pensée complexe. Paris: Seuil, 1990.

NAME, L. Por uma geografia pop: personagens geográficos e a contraposição de espaços no cinema. 2008. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

NAME, L. “Rio for partiers”: como ser um estrangeiro na capital carioca. Cadernos de Antropologia e Imagem, V. 25, nº 2, 2007, p. 79-96.

NOGUEIRA, R.E. Cartografia: representação, comunicação e visualização de dados espaciais. Florianópolis: Editora da UFSC, 2008.

OFFEN, K.H. The territorial turn: making black territories in Pacific Colombia. Journal of Latin American Geography, v. 2, nº 1, 2003, p. 43-73.

OLIVEIRA, I.C.E. Estatuto da Cidade: para compreender... Rio de Janeiro: IBAM/DUMA, 2001.

PERDIGÃO, G.S. Explorando a cartografia no universo escolar: uma discussão para o ensino de Geografia. 2007. Tese (Doutorado em Geografia) – Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.

PICKLES, J. Geography, GIS, and the surveillant society. Papers and Proceedings of Applied Geography, v. 14, 1991, p. 80-91.

PREFEITURA DO DISTRITO FEDERAL e AGACHE A. Cidade do Rio de Janeiro: extensão, remodelação, embelezamento. Paris, Foyer Brésilien, 1926-1930.

PUCHER, A. Open source cartography: status quo, recent trends and limitations of free cartographic software. International Cartographic Conference, 21, 2003. Durban, Proceedings... Durban: ICA.

REZENDE, V.F. Planejamento urbano e ideologia. Rio de Janeiro: Civilziação Brasileira, 1982.

REZENDE, V.F. Planos e regulação urbanística: a dimensão das intervenções na cidade do Rio de Janeiro. In: OLIVEIRA, L. L. Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro : Editora FGV,2002, p. 256-281.

ROBERT, P. e LAQUES, A.E. “La carte de notre terre”. Enjeux cartographiques vus par les indians kaiapó (Amazonie Brésilienne). Mappemonde, vol 69, 2003, p. 1-6.

SANTOS, B.S. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Cortez Editora, 1987.

SANTOS, M. Por uma outra globalização. Rio de Janeiro: Editora Record, 2008.

SIVIGNON, M. La géographie spontanée, ou la rose de vents de Diamandis Galanos. Bulletin de l'Association de Géographes Français, nº 3, 2005, p. 332-342.

SOUZA, M.L. Da ilusão também se vive: caminhos e descaminhos da democratização do planejamento e da gestão urbanos no Brasil (1989-2004). Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional, 11, 2005. Salvador, Anais... Salvador : ANPUR.

SOUZA, M.L. Mudar a cidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.

SOUZA, M.L. “É verdade, leis formais e planos diretores estão longe de atacar o essencial, mas...” Uma anedota-manifesto (meio dramática) à guisa de remédio contra a hemiplegia mental. S.l.: s.d. Disponível em http://www.geografia.ufrj.br/nuped/textos/anedota-manifesto.pdf. Arquivo consultado em 29 de agosto de 2010.

VOGEL, A., VOGEL, V.L.O. e LEITÃO, G.E.A. Como as crianças vêem a cidade. Rio de Janeiro: Pallas/Flacso/UNICEF, 1995.

WOOD, D. The power of maps. New York : London : The Guilford Press, 1992.

© Copyright Leo Name y Cristina Lontra Nacif, 2013
© Copyright Biblio3W, 2013

 

Ficha bibliográfica:

NAME, Leo, LONTRA NACIF, Cristina. Notas sobre mapas, mapeamentos e o planejamento urbano participativo no Brasil na perspectiva de uma cartografia crítica. Biblio 3W. Revista Bibliográfica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 25 de marzo de 2013, Vol. XVIII, nº 1018. <http://www.ub.es/geocrit/b3w-1018.htm>. [ISSN 1138-9796].