Scripta Nova  Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. 
Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9788] 
Nº 45 (38), 1 de agosto de 1999
 
IBEROAMÉRICA ANTE LOS RETOS DEL SIGLO  XXI.
Número extraordinario dedicado al I Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)
FRONTEIRAS E BORDAS NA AMAZÔNIA BRASILEIRA:
CONSIDERAÇÕES SOBRE TRÊS CIDADES.
Maria Lucia Pires Menezes
Geógrafa e Professora da Universidade Federal de Juiz de Fora, Brasil
Doutoranda em Geografia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. 

Este trabalho é fruto do esforço da reflexão sobre três eixos importantes para o pensamento e a análise da realidade urbana na fronteira internacional da Amazônia Ocidental.

Primeiro, a urbanização e o controle do território na chamada borda fronteiriça, cuja reflexão aporta dados da história urbana de três cidades: Tabatinga, Tefé (localizadas no alto e médio rio Solimões) e São Gabriel da Cachoeira, no Rio Negro. Esta borda conforma uma dupla fronteira tríplice do limite internacional do Brasil com Venezuela e Colômbia e do Brasil com Colômbia e Peru.

Segundo, apresentar algumas contribuições de pesquisas antropológicas e geográficas sobre o conceito genérico de borderlands. Esta é uma tentativa inicial de esclarecer mais adiante, a polissemia, a sinonímia e as diferenciações contextuais relacionadas aos termos fronteira (frontier, front), limites, boundary, bound, border, borderlands, borderlandscape e bordertown; e suas traduções, mais especificamente, ao idioma português.

Terceiro, aportar dados para demonstração das peculiariedades da urbanização na zona fronteiriça: as cidades e sua inserção na história da formação territorial do Estado brasileiro e sua importância para a manutenção da soberania territorial e no processo da nacionalização da população.
 

Cidades e modalidades de controle do espaço e do território na Amazônia ocidental brasileira
 

No Brasil, a legalidade da ação sobre o espaço sempre esteve respaldada na propriedade privada e na ação pública, sob a esfera dos poderes federal, estadual ou municipal. Assim o controle do espaço, sob a forma jurídica, se apresenta separado entre propriedade privada ou "reservada", isto é, não franqueada, ao menos temporariamente, ao uso coletivo. Dentro desta última categoria poderíamos exemplificar com as unidades de conservação, as áreas de produção controladas por empresas estatais, as terras indígenas e as áreas militares.

Primeiramente sobre o espaço aplica-se o preceito jurídico da propriedade. Historicamente, porém, a dinâmica espacial produz uma complexa forma de controle e uso do espaço, muitas vezes re-organizando novos domínios, que invariavelmente tornam-se alvo e palco de disputas entre poderes constituídos e/ou diversas frações sociais. Esta questão é assim apontada por Paul Virílio(1):

Uma luta significa organizar, dominar, produzir um espaço-tempo. Se ainda há inversões geo-estratégicas é porque ainda há situações antigas, porque ainda há espaço em alguma parte e este espaço ainda impõe algumas limitações (...) O fato do poder naval e das armas orbitais serem poder absoluto, bem mostra que o espaço físico está se desmaterializando e perdendo cada vez mais sua importância.

O trecho acima oferece um gancho para se pensar a Amazônia Ocidental, o controle tecnólogico sobre o território, as fronteiras e o peso da importância do ambiente amazônico,sua história e o espaço físico. Qual o panorama do controle histórico territorial? Como a gestão territorial pressupõe a ação sobre o espaço, inicialmente é necessário que se reporte sob que instância jurídica se assenta o status legal da terra.

Por se constituir a Amazônia Ocidental numa geografia, onde a rede hidrográfica e a cobertura vegetal constroem um meio ambiente que impõe um ritmo próprio à dinâmica de circulação de fluxos na região, tem-se um certo "choque" frente aos avanços da tecnologia, em especial dos sistemas de informação e controle sobre o espaço.

Seguindo o raciocínio de Virilio a questão seria a tendência de subtrair o espaço físico, isto é, desmaterializá-lo tornando, assim, as dificuldades do espaço amazônico fluidas e sem limitações. O que significa menos produção material e mais produção virtual. Por outro lado, o meio ambiente preservado mantém o estoque de biodiversidade e, ao mesmo tempo, reduzem-se as transformações sobre o meio físico (trabalho morto). Ademais, preserva-se o capital-natureza e aumenta-se o controle e a vigilância na área. O projeto do Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM), foi criado em 1990 pela Presidência da República com gerenciamento conjunto dos Ministérios da Aeronáutica, da Justiça e da Secretaria de Assuntos Estratégicos. Este projeto será equipado e gerenciado com a empresa americana Raytheon responsável pelo fornecimento de bens e serviços.

O projeto SIVAM não deixa de ser um investimento territorial com base em tecnologia de ponta: exatamente aquele que pode dar o caráter virtual ao território amazônico; ao mesmo tempo que produz um novo espaço-tempo, mais imediato e global, em contrapartida ao biorrítmo da natureza amazônica. Um sistema de informação e vigilância também cumpre um papel ideológico, qual seja o tipo e a forma com que as informações vão circular, como vão ser apreendidas pela mídia, quais as que entrarão nas redes e, portanto, atuar na construção de consciência e no exercício de cidadania.

A gestão territorial, em suas mais diversas escalas, debe considerar e mensurar o efeito da produção de informação, formação da opinião pública, e novas formas de construção da consciência. Quais seus efeitos sobre as formas legais e tradicionais de legislar sobre os lugares?. A resposta pode ser encontrada em uma análise do geógrafo Marcelo Souza(2):

No Brasil, a onda neoliberal encontra diante da crise fiscal do Estado, uma âncora concreta bastante favorável, com um agravante em relação aos países ditos desenvolvidos: aquí, onde jamais existiu mais que uma caricatura populista de Estado de bem estar, a demolição do Estado e o solapamento de garantias e fatores de qualidade de vida (saúde e educação pública etc.) têm, necessariamente, de acarretar conseqüências sociais perversas ainda mais graves. Com isso, não apenas a ordem sistêmica básica, mas também o colapso de uma determinada forma de arranjo do sistema, provocando um certo tipo de desordem, contribuiu em caráter conjuntural, para o aguçamento de problemas sociais objetivos e, por tabela, de tensões e conflitos sociais.

Uma das características da história amazônica é termos frequentemente que considerar que os efeitos conjunturais da ordem política e econômica resvalam sempre de forma incompleta, isto é, não há a implantação de forma total e hegemônica do modelo ou política econômicos. O que confere um somatório de realidades incompletas que tendem a ser apreendidas como marginais sob o ponto de vista do arranjo espacial funcional na região. E, atualmente, sobre este quadro agregado no tempo, o projeto tecnológico reverte-se, como em nenhuma outra parte do país, de uma forma excludente e exclusiva.

Se, como aponta Virílio(3) a tecnologia impõe velocidade e se velocidade é violência e se o ritmo da Amazônia Ocidental é primordialmente ditado pelo regime hidrográfico de circulação, como mensurar o impacto da velocidade das redes de informação com a morosidade sazonal do ritmo da rede hidrográfica? Quais os efeitos sob a base social na região?.

No momento que o Estado reflui e se re-organiza, o vácuo deixado, principalmente no campo social é grande. A afirmação de Becker(4) sobre o fato de ser a Amazônia uma selva urbanizada remete à importância para a gestão territorial de considerar os seguintes aspectos que evidenciamos a seguir:

- É historicamente produzida e não destruída ou afetada pelo processo de ocupação recente. A rede urbana dendrítica da Amazônia Ocidental estabelece uma vida de relações dependente da rede hidrográfica;

- É, pricipalmente, através da rede hidrográfica que se dá a mobilidade da força de trabalho e da circulação de cargas;

- O consumo, os serviços e a informação como sub-produtos da urbanização intensificam o êxodo rural. Agrega-se a predominância de atividades extrativas o que torna o mercado de trabalho rural muito reduzido, direcionando diretamente o fluxo da migração para os centro surbanos;

- A intensificação do êxodo rural periferizou as cidades que dispõem de baixíssimo investimento em infra-estrutura;

- A falta de investimentos sociais e de fomento à produção por parte da iniciativa estatal vem gerando bolsões de miséria urbana;

- A primazia de Manaus, capital do estado do Amazonas, e a fraca hierarquização dos centros urbanos interiores reforçam a centralização e a concentração da capital, acrescida de sua posição geográfica privilegiada em relação à rede hidrográfica;

- A hegemonia, no sentido gramsciano, da Zona Franca de Manaus, constituindo um bloco econômoco político que comanda a estrutura produtiva regional.

A transição do modelo estatal centralizador dos governos militares para a "nova onda ideológica neoliberal", na verdade, atingiu a Amazônia Ocidental de forma complexa. O entendimento da organização espacial aparentemente é imutável, já que não houve aparecimento de novos núcleos urbanos, nem construção de estradas e muito precariamente as vias navegáveis foram modernizadas (a exceção do rio Madeira, projeto de navegação de alta tecnologia exclusiva para atender os interesses dos produtores de soja do Mato Grosso).

Dentre os novos elementos que tendem a re-organizar a Amazônia Ocidental destacam-se: a) a velocidade do ritmo de urbanização; b) a intensificação da presença militar na região; c) a criação de unidades de conservação; d) as experiências levadas adiante por organizações não governamentais.

A Estação Ecológica de Mamirauá, circunvizinha ao município de Tefé, ilustra a parceria entre os dois últimos casos citados. No plano econômico, os projetos minerais, o garimpo e as reservas minerais, a extração de madeira são as atividades que mobilizam investimentos na região. A geógrafa Berta Becker afirma que:

o binômio mobilidade do trabalho e urbanização crescente e desaparelhada constitui um dos maiores problemas ecológicos da região. Constitui também um processo doloroso de aprendizagem social e elevação de aspirações mediado pelo urbano.

A implantação da rede ilegal do narcotráfico configura uma geografia exclusiva e peculiar que une cidades, fronteiras, bordas , circuito financeiro informal e militarização na região.

Atualmente as cidades dos vales da Amazônia Ocidental vêem crescer muito sua população urbana, o que se dá não só em razão de um forte crescimento vegetativo. O "processo doloroso" atinge pricipalmente o percentual de jovens da população. A carência de educação formal e profissional vem se acentuando. O crescimento da rede escolar ainda é insuficiente e é o mercado de trabalho qualificado o que mais abre possibilidades de incorporação da mão de obra na região. A urbanização gera uma demanda crescente no setor educacional e de saúde. Por isso, quaisquer projetos ligados a estes setores encontrarão acolhida na sociedade local, principalmente pela classe média carente de formação e informação.

A realidade dos vales da Amazônia Ocidental contém, como todo espaço produzido historicamente pelo capitalismo, uma série de contradições. Ao movimento de organização interna deste espaço, somam-se as inovações que vão se sucedendo e abrindo novas oportunidades para os lugares, mesmo que de forma muito pontual. Contribui, também, para aqueles que operam com a necessidade e/ou têm oportunidade de investir na região, a construção de um imaginário que acopla a perspectiva e a concepção da área, enquanto fronteira de recursos e reserva de valor.

O móvel da conquista territorial permanece ativo, exercitando-se sobre lugares, recursos naturais e populações. Em primeiro lugar, o fundo territorial ainda não explorado pela economia (agora) nacional permanece a espera de novas ações, o que recoloca a noção de conquista no centro da estruturação das novas nações; inclusive dando alguns traços comuns à construção dos respectivos aparelhos de Estado, com destaque para um forte caráter cêntrico (...) o ideal da conquista numa mesma argumentação fornece um elemento de coesão das elites (o da construção do país) e uma legitimação para o Estado ­ que terá na ocupação do território uma de suas tarefas básicas(5).

O texto de Moraes re-introduz a questão e a concepcão da conquista territorial e se relaciona a este trabalho quando:

a) valoriza o conhecimento histórico sobre a Amazônia e contextualiza o significado estratégico dos recursos naturais e do território;

b) releva a noção de conquista, através da ação da gestão sobre o fundo territorial, que no caso não só de Brasil, mas dos países limítrofes ainda é um ambiente amazönico.

c) redimensiona o papel do Estado na estruturação e construção do país;

d) complexifica o significado da ação econômica sobre a região para além das fronteiras do território nacional. Ressaltando a influência da globalização econômica, quando reforça a posição da Amazônia como fronteira mundial.

Historicamente a conquista do interior do Amazonas está ligada a base econômica extrativa e a necessidade de manutenção da soberania territorial. A rede hidrográfica desempenhou a função de viabilizar a comunicação do interior amazônico e, também, de permitir o fluxo internacional. Na medida que o controle mercantil, auxiliado pela drenagem dos rios, manteve-se fortemente centralizado pelas aduanas de Manaus e, principalmente, de Belém, o sentido das rotas sempre esteve preferencialmente inserido no espaço interno do país, isto é, em território nacional. Das "drogas do sertão" ao extrativismo do látex, tanto a rede hidrográfica, quanto a rede urbana serviram de base logística ao sistema mercantil.

Sob a égide da vocação econômica extrativa-exportadora se organiza o poder local, baseado nas sedes municipais e tendo no centro urbano seu espaço de realização, através do fato de se constituir a cidade no locus de convergência, comercialização e distribuição da produção extrativa.

De acordo com Lia Osório Machado(6) a presença da Igreja está diretamente ligada ao sistema mercantil e ao controle territorial da Amazônia. Muitos núcleos foram fundados por religiosos, a partir da necessidade de basear e centralizar a estrutura das missões. Muitos destes núcleos se transformaram em sede administrativa territorial, inicialmente da comarca e, posteriormente, do município. Em 1910, algumas sedes municipais passaram a ser sedes de Prefeituras Apostólicas(7).

Assim que Tefé, São Gabriel da Cachoeira e São Paulo de Olivença (localizadas no atual estado do Amazonas) são instituídas como Prefeituras Apostólicas ficando a gestão destes municípios a cargo das missões católicas. Desenvolve a Igreja, além da ação de catequese, assistência social e profissional, fundando seminários e unidades escolares. Através destas atividades dinamiza a vida de relações, atuando como agente propulsor e dinamizador da vida comunitária, regulando a vida social e o modo urbano.

Neste particular, a localização das Prefeituras Apostólicas confere uma dinâmica urbana, implícita nas atividades do setor de educação e saúde, que outorga importância qualitativa e econômica aos núcleos. O "status" de sede minicipal nem sempre incorreu numa estruturação urbana strictu sensu.

A historicidade do fenômeno urbano nos vales da Amazônia Ocidental constitui-se, ainda hoje, numa pesquisa capaz de revelar a hierarquia dos núcleos urbanos e suas articulações internas, a rigor muito pouco conhecidas. Não só no contexto geográfico mas, também, sociológico. A própria historicidade da constituição política do poder local resta a investigação, considerando que há tempos a formação de uma elite urbana representada por comerciantes e setores religiosos reina hegemonicamente sobre a cidade.

São elementos que permitem a constatação que o urbano, em sua materialidade, apresenta características elementares e precárias, mas que são básicas e fundamentais para o funcionamento do circuito político e econômico. Donde se conclui que o poder se territorializa, exclusivamente no urbano, se comparado a estrutura oligárquica de base rural. É no urbano e sobre ele, onde se localizou e localiza, historicamente, a governabilidade local.

O motor recente da história inclui um novo significado à esta região e complexifica o papel de agentes interessados na gestão territorial. Há novos e velhos significados para a conquista territorial. No plano internacional as interferências sobre a região se fazem através dos mecanismos de investimentos e empréstimos que tendem a condicionar a preservação do meio ambiente e comunidades autóctones, às experiências do modelo de desenvolvimento sustentado para definir linhas de crédito; do incentivo ao turismo na região baseado em experiências de "hotéis de selva" que introduz o turista diretamente nestes locais, sem que haja necessidade de utilização de infra-estrutura de serviços urbanos; da permissão de exploração mineral por companhias estrangeiras que operam sobre um modelo produtivo e de exploração de baixo investimento na estrutura local e absorção de mão de obra; da interconexão direta com as redes de informação, o que muda substancialmente o sentido do uso do espaço e do controle sobre o território e da criação de zonas de livre comércio que dinamizem cidades fronteiriças (como Tabatinga) atraindo o turismo de compra e buscando, a pesar das dificuldades conjunturais, inserir um novo padrão de consumo ao mercado local.

Os empreendimentos tornam-se potencialmente, mais fluídos e ubíquos como decorrência da produção de ciência e tecnologia. Redefine-se assim para fora e para dentro um novo papel para a Amazônia , incluindo-se, especialmente, a área que trata este estudo. A produção de ciência, técnica e informação é cada vez mais importante na construção do território.

No caso específico do Brasil, a geração de dados básicos de geografia, cartografia e estatística não está sendo produzida com a mesma velocidade de transformação da região, o que muito prejudica a produção acadêmica. O instrumental cartográfico torna-se na realidade amazônica fundamental para organização e orientação de estratégias sobre o espaço se considerarmos a escala do fenômenos naturais, em especial o desenho e a dimensão da rede hidrográfica. Nenhuma cidade da Amazônia Ocidental confeccionou mapas urbanos e municipais. Todo e qualquer detalhamento sobre o território, em grande escala, não se encontra em base cartográfica cientificamente confiável. As fotografias de satélites fornecem base para softwares de construção cartográfica. Contudo, a escala das fotografias não fornece base para operações e conhecimento detalhado sobre o território.

Friedmann(8) faz interessante crítica dos indicadores econômicos utilizados amplamente pela economia e administração estatal e de empresas, em detrimento dos indicadores sociais. Ressalta, sobretudo, a importância da análise territorial em micro e meso escala. A problemática levantada pelo autor em relação à proposta de um desenvolvimento alternativo visa privilegiar o levantamento de dados e pesquisas que conyemplem as relações culturais e sociais. Estas servirão de base para a comunidade local se reconhecer e se auto-gerir e como um importante suporte a administração pública obter maior domínio sobre sua operação.

A herança missionária, a vida em comunidades ribeirinhas, a composição social com predominância de indígenas e a forte centralização da rede de cidades com as capitais regionais e, a presença do limite internacional; a não articulação da região com outros eixos e/ou áreas do país fazem dos vales fluviais do estado do Amazonas uma região com estrutura sócio-cultural e configuração territorial muito próprias.

Neste trabalho procura-se destacar especialmente a influência do limite internacional e sua região de influência (as bordas) sobre três cidades do noroeste da Amazônia: Tefé, São Gabriel da Cachoeira e Tabatinga.
 

Considerações sobre cidades na borda da fronteira no noroeste amazônico
 

O noroeste do Brasil, a grosso modo, compreende uma vasta extensão de terras drenadas pelo conjunto de rios que formam as bacias do Solimões-Amazonas e pelo Rio Negro. Um fato marcante e primordial neste estudo é que o norte e o ocidente desta área são definidos pela linha de fronteira internacional do Brasil com Venezuela, Colômbia, Peru e Bolívia.

A representação das superfícies drenadas por estas bacias hidrográficas compreende uma extensão muito maior do que o recorte espacial aqui considerado. Portanto, embora compreendendo que a referência à localização das bacias hidrográficas seja importante, na verdade este estudo tem como objetivo a análise da urbanização de 3 cidades do noroeste do estado do Amazonas (cidades ribeirinhas) e a análise da importância da localização na borda de fronteira.

A história territorial destes núcleos não pode ser considerada sem que se leve em consideração o limite internacional de fronteira e a rede hidrográfica. Sobre último, destaca-se a importância da localização ribeirinha das cidades no eixo das principais vias de comunicação da região, tanto do lado brasileiro como do lado estrangeiro. Sobre o domínio e controle da navegação na região desenvolveu-se uma parte importante da história destas cidades e da configuração dos limites internacionais(9).

Portanto, são núcleos que estão intimamente vinculados a história da definição do limite internacional e a influência da borda fronteiriça. Em diferentes momentos históricos o reflexo da situação e posição fronteiriça trouxe uma série de mudanças de valor político, administrativo e geográfico aos núcleos urbanos e demais recortes territoriais-administrativos na região: definindo e re-definindo, localizando e re-localizando os núcleos urbanos que comandam o alto Rio Negro e o alto e médio Solimões. O caso mais recente e emblemático foi a paulatina mudança do núcleo político e econômico local de comando no alto Solimões, dentre eles a sede da Diocese do Alto Solimões, que foi migrando de São Paulo de Olivença, passou por Benjamim Constant até chegar à Tabatinga, localizada exatamente na linha internacional de fronteira com Peru e Colômbia.

Há na história territorial do Brasil uma série de cidades que estão relacionadas a linha fronteiriça e a uma forma determinada de "defesa" da fronteira e manutenção da soberania nacional, isto é, da nacionalização do território e da população. Assim como nos últimos anos muito vem se desenvolvendo o estudo sobre borderlands e bordertowns.

Egresso do campo da Geografia Política muitos destes estudos rumam no sentido de uma autonomização que se extendem e se desenvolvem também na Antropologia. A abordagem antropológica reconhece que a linha de fronteira, isto é, o limite se insere na vida social de tal forma que produz uma construção social característica e, também, representa um simbolismo que pode ser apreendido de diferentes maneiras.

Frequentemente no caso da Amazônia sul-americana estas bordas são habitadas por uma significativa população indígena que por sí só marcam a fronteira e o limite de variados âmbitos, desde do ponto de vista social, econômico e cultural até o nacional e estritamente tecnológico.

Se reconhece que o desenvolvimento do conhecimento científico e da tecnologia nos últimos anos trouxe uma série de mudanças na economia mundial e na forma de interpretação dos fenômenos históricos e geográficos(10). A mundialização do capital e a globalização da economia criaram, portanto, um ambiente de constante questionamento a uma série de fenômenos mais localizados como a situação de grupos étnicos, as questões de gênero, do indivíduo, da sexualidade, das profissões e do trabalho infantil e outros que conformam atualmente um campo de estudo vasto dentro das Ciências Sociais. Dentre outros, a visibilidade deste contexto lançou um mundo de contínua complexidade em que temos que nos habituar cada vez mais em pensar de forma multi-escalar. Sem dúvida nenhuma o que não falta hoje no espaço global são exemplos de peculiariedades das mais diversas em relação as situações fronteiriças. O que significa pesquisas das mais variadas gamas de análise nas ciências humanas. Não sem razão, algumas das mais recentes publicações são coletâneas de textos referenciados em estudos de caso.

Neste contexto é que as novas abordagens que tratam a questão das fronteiras se inserem num arco múltiplo que, frequentemente, podem desvirtuar o encaminhamento da pesquisa e dificultar a escolha da metodologia que melhor demonstra e esclarece seus objetivos. Porém, é inegável que o desenvolvimento de um maior número de pesquisas sobre o tema contribui inclusive no diálogo com outras disciplinas que enriquecem e re-dimensionam o enfoque geográfico.

Os estudos antropológicos frequentemente complexificam a questão dos estudos das áreas fronteiriças, a partir do entendimento do significado simbólico do limite e da situação dos grupos sociais que "sofrem" a ação do limite. As pesquisas buscam sintonizar que do território fronteiriço sobressai uma cultura, que por sua vez sofre de influências diversas sejam elas físicas, materiais ou simbólicas. Ao realçar o fenômeno cultural como como inerente ao contexto fronteiriço, evidencia-se a importância do estudo das comunidades locais em zona de limite internacional e o consequente quadro social que emerge desta posição, seus condicionantes e consequências.

Partindo-se do princípio que são as bordas os lugares que condensam a pretensa homogeneidade imposta pelo Estado-nação, a análise da borda revela, por sua vez, a questão da construção da identidade que foi frequentemente imposta pela administração e pelo controle estatal.(11)

Respaldada numa extensa literatura acadêmica norte-americana a pesquisa sobre fronteiras, bordas e limites têm sua referência maior na linha fronteiriça entre Estados Unidos e México. Conforme análise de R. Alvarez Jr.(12) quando os cientistas sociais se referem as borderlands, na verdade estão evocando a imagem da denominada Spanish Borderland, isto é, a região ao sul dos EUA desde a costa do Pacífico até a Flórida. Esta imagem constrói-se a partir da existência de uma fronteira que foi primeiramente ocupada pelos espanhóis, depois pelos mexicanos e, posteriormente, pelos "intrusos" americanos durante os tempos da guerra de conquista. O autor vai sublinhar a imagem como algo que ficou como referência no mundo acadêmico de como se construiria esta borda, estando os estudos mais tradicionais sobre este tema muito vinculados as etnografias sobre as particulariedades da cada posição geográfica ao longo desta fronteira política. Mais recentemente estes estudos se desenvolvem a partir da borderland em si e de uma nova consciência recém descoberta da existência das "multiplas demarcações conceituais envolvidas, as fronteiras das práticas sociais e das convicções culturais num contexto global contemporaneo"(13).

A despeito da grande influência do conceito de frontier advindo dos estudos de Turner sobre a expansão da fronteira interna norte-americana, a vizinhança com um país (México) de diferente processo histórico e nível econômico, social e, principalmente, de grande diferença cultural, produziu uma borda de intensa fricção ao longo do tempo tornando impossível que os cientistas sociais ficassem alheios ao processo de contato inter-fronteiriço, donde se atribui a emergência do conceito de borda.

Na verdade, busca-se nos últimos tempos superar antigas abordagens dos estudos de fronteira, livrando-se da determinação exclusiva dos limites internacionais sob o desígno do Estado e a partir dele. O que significa uma análise mais pautada na geopolítica do histórico da definição e demarcação dos limites. Os estudos mais antigos sobre fronteira política no âmbito da geografia seguiam claramente este contexto.

Tal fato não significa referendar estes estudos isolando-se o Estado ou tratando-se sua influência apenas como efeito simbólico. Critica-se também àqueles que substimam o poder do Estado, centrando suas pesquisas na desregulamentação e na natureza desterritorializadora da pós-modernidade. Para T. Wilson e H. Donnan(14) não é possível analisar as novas políticas de representação, redefinição e resistência dos grupos sociais e sua territorialidade sem levar em consideração de que o Estado seja o principal componente contextual.

A título de exemplo consideraremos que para muitos países as fronteiras "desabitadas" constituem um problema. Na verdade uma fragilidade. No caso Amazônico há uma população indígena ignorada durante muito tempo (considerado o sentido oficial estatístico). Acrescente-se que sua condição de tutelada do Estado não a incorporou como população nacional de livre cidadania. Então, ela não foi e continua não sendo socialmente reconhecida para grande parte dos grupos. Em relação à administração estatal somente no último recenseamento oficial brasileiro efetuado é que se incluiu a contagem de população indígena.

Neste sentido constroem-se um conceito de borda como o lugar da inscrição monumental do Estado, na qual a população estaria condicionada às suas histórias, sua cultura objetiva e subjetiva, sendo estas influenciadas não apenas pelo próprio Estado a que estão subordinadas, mas a partir principalmente das instituições governamentais.

Dentro de sua já citada pesquisa antropológica, Wilson e Donnan concluem que: a) as bordas não são homogêneas, além de variarem no tempo e no espaço; b) cabe aos antropólogos, ao focalizarem as bordas, teorizar sobre as possíveis mudanças na definição de periferia e suas relações com os centros; c) fronteiras são territorialmente definidas como zonas ligadas as bordas, e tem utilidade heurística além de metafórica; d) bordas são literal estrutura física do Estado e que também estruturam uma variedade de significados e formas de pertencimentos associados a uma variedade de identidades; e) bordas nos auxiliam a compreender o impreciso ajuste entre nações e estados; f) o estudo territorial das bordas contribui para o nosso entendimentodo nacional, étnico, de identidades sexuais e de gênero, entre outros. Isto porque as bordas modulam estas identidades de tal forma como não são encontradas em nenhum outro lugar do Estado.

Existe um claro intento de parte da produção acadêmica e científica de legitimar os estudos de borda. Mais precisamente na geografia a referência bibliográfica de Rumley e Minghi e Newman e Paasi(15) atestam este fato. Retoma-se, entre outras abordagens, a importância histórica dos estudos das fronteira políticas estatais e propõe-se um temário aos estudos de fronteira face às mudanças atuais, às novas concepções de territorialidade, ao pretenso "desaparecimento" das fronteiras e limites e às diferentes construções de identidades sócio-espaciais. Este temário contempla:

a) a reafirmação da dimensão espacial dos estudos de fronteira;

b) a abordagem da fronteira como fenômeno multi-escalar desvendando e descobrindo a importância e o significado do impacto da fronteira nas diversas escalas;

c) tomar em consideração estudos de narrativas de fronteira a partir de sociedades que apresentem diferentes representações do espaço e identidades sociais diferenciadas;

d) apreender a fronteira como fenômeno histórico, isto é, uma construção social com existência e inexistência ao longo do tempo;

e) analisar os significados e a idéia de natureza que são invocados e consagrados para compor uma iconografia nacional que forme uma imagem para dentro e para fora das fronteiras;

f) criticar os estudos de narrativas e do discurso sobre a fronteira veiculados a partir das políticas externas, textos geográficos e literários e, inclusive, mapas. Havendo, todavia, situações mais ou menos propícias como a análise de situações conflitivas que permitam construir estas imagens e identificar por quem e com que objetivos estes textos foram criados e produzidos(16).

Não é possível explorar estas propostas com mais cuidado e precisão no âmbito deste trabalho, mas são um aporte de inegável valor, pois são questões de emergência atual e, o mais importante, oriundas de pesquisadores com investimento nos estudos de fronteira e da geografia política.

Seguindo a tendência, redimensiona-se a importâncias das cidades como local claro e inequívoco da localização dos aparelhos e sistemas de controle da fronteira-limite. No efeito de atração e na tradução do significado deste limite sobre a população dita nacional, incluindo a população indígena, numericamente mais significativa, principalmente nas cidades de Tabatinga e São Gabriel da Cachoeira. Esta população (termo aplicado conscientemente num sentido genérico) pode ser compreendida com sua estreita vinculação ao papel dado pelo Estado-nação a estas cidades.

Daí que pode-se considerar a existência de uma conformação singular, isto é, da borda da Amazônia, cuja característica seria de compor dialeticamente a formação de uma nacionalidade compulsória e capaz de manter a soberania brasileira numa região de difícil acesso, "desabitada", com fraco circuito comercial e uma cada vez mais sofisticada rede informal e financeira apoiada no narcotráfico.
 

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Notas
 

1. P. Virílio, Guerra Pura, 1984, p.152.

2. M. Souza, O Narcotráfico no Rio de janeiro, sua territorialidade e a dialética entre ordem e desordem. 1995, p. 04

3. Op. Cit.

4. B. Becker, Amazônia Brasileira: Uma área crítica no contexto geopolítico mundial, 1992.

5. A. C. R. Moraes, A Dimensão Territorial nas Formações Sociais Latinoamericanas, p.84-85.

6. L. O. Machado, Mitos e Realidades da Amazônia Brasileira no Contexto Geopolítico Internacional (1540-1912), 1989.

7. "En los territorios de misión en que todavía no está establecida la jerarquía, circunscripción eclesiástica puesta bajo la autoridad de un prefecto apostólico." (DICIONÄRIO del CRISTIANISMO:1986:601)

8. Friedmann , Empowerment: The Politcs of Alternative Development, 1994.

9. Conferir o trabalho de L. O. Machado Mitos e realidade da Amazônia Brasileira no contexto geopolítico internacional (1540-1912), 1989.

10. Conferir os trabalhos de Rumley e Minghi (1991), D. Pillow (1996), T. Wilson e H. Donnan (1998) e D. Newman e A. Paasi (1998).

11. Ver R. Alvarez Jr. (1995); T. Wilson e H. Donnan (1998) e D. Newman e A. Paasi (1998).

12. Alvarez Jr., Op. Cit.

13. "(...) of the multiple conceptual boundaries envolved, the borderlands of social practices and cultural beliefs in a contemporary global context" (ALVAREZ JR: 1995,448).

14. T. Wilson e H. Donnah, 1997, op. cit.

15. Op. Cit.

16. D. Newman e A. Paasi Border Identities: Nation and State at International Frontiers, 1997.
 

© Copyrigth: Maria Lucia Pires Menezes, 1999

© Copyright: I Coloquio Internacional de Geocrítica, 1999



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