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Scripta Nova.
 Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.
Universidad de Barcelona [ISSN 1138-9788] 
Nº 69 (22), 1 de agosto de 2000

INNOVACIÓN, DESARROLLO Y MEDIO LOCAL.
DIMENSIONES SOCIALES Y ESPACIALES DE LA INNOVACIÓN

Número extraordinario dedicado al II Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)

O LUGAR DO CAIPIRA NO PROCESSO DE MODERNIZAÇÃO

Neusa de Fátima Mariano1
Pós-graduanda em Geografia
Universidade de São Paulo



O lugar do caipira no processo de modernização (Resumo)

O texto que ora apresentamos é parte de uma pesquisa em nível de mestrado ainda em andamento. O que se objetiva, neste contexto, é o entendimento da cultura caipira num momento da nossa sociedade em que a economia de mercado mostra-se cada vez mais agressiva no que diz respeito à competitividade. O caipira, durante muito tempo, manteve-se isolado do mundo do trabalho, não por vadiagem ou falta de oportunidade, porém pela sua desnecessidade. Em seu modo de vida não havia sentido a acumulação de capital, daí a rusticidade ser uma das suas características. Com a necessidade cada vez maior de acumulação de capital pela sociedade moderna, o caipira torna-se também um trabalhador assalariado e o seu modo de vida totalmente inserido no mundo da mercadoria. É este o processo que vem ocorrendo com o caipira de Jaú, município do estado de São Paulo.

Palavras-chave: caipira/ cultura/ mercado/ acumulação de capital/ trabalho/ Jaú



The "caipira" (countryside man)´s place inside the modernization process (Abstract)

The text we present now is part of a research of mastership level that is still in development. The aim, in this context, is the understanding of the "caipira" culture in a moment of our society in which the market economy shows itself increasingly aggressive regarding the competitiveness. The " caipira", during much time, kept isolated from the work world, not because of the lack of opportunities, but because of the lack of necessity. In "caipira"´s way of life, the capital accumulation didn’t make sense, that’s why rusticity is one of "caipira"’s characteristics. Because the increasingly necessity of capital accumulation by the modern society, the "caipira" becomes also an employ and his way of life becomes totally inside of the market world. This is the process that is occurring to the " caipira" from Jáú, a little city of São Paulo state.

Key Words: caipira/ culture/ market/ capital accumulation/ work/ Jáú


Sobre o caipira...

Era outra fazenda. No Curuzu então, não morava ninguém na casa do patrão, ninguém, mais eu fui uma vez lá no... quando eu era solteiro, então fui eu com três colegas, comigo eram quatro. Só que tinha que passar na frente da casa do patrão, lá no Curuzu. Nós vimos uma moça sentada no, na aba do passeio, numa caixona grande e vimos um cachorrão assim, grande também. E nós vimos que era noite, tudo... Passamos, quando nós passamos, nós olhamos lá, não tem nada, não tinha mais. Aquela moça não tinha, não estava mais lá, aquela no passeio, e a casa estava toda fechada. Não tinha mais ninguém, nem cachorro. E esse cachorro nós víamos ele, mas ele não latia! E ele vinha grandão atrás de nós, e depois sumiu. Mas por quê eu não sei explicar. Era essa a história de lá. Era assombração, não percebemos que jeito que era aquele negócio lá. Agora, a moça nós vimos, vimos sentada no passeio, vimos a moça, vimos o cachorro, mas a rapaziada nova não tinha medo! Nós estávamos em quatro, passamos aquilo por, por brincadeira, sabe. Mas depois que nós fomos conversar, o negócio mesmo, nós perguntamos, os outros mais velhos falaram: ‘Lá não mora ninguém não! Aquela casa é assombrada mesmo!’ .(Luiz Rogatto – Jaú, outubro de 1999)2 Este é apenas um dos muitos causos contados por Luiz Rogatto. Assim como ele, muitos outros caipiras lembram de sua mocidade, seja nas rodas de viola, seja na lida da roça, dos cafezais. Ao contarem os seus causos, revivem um passado que não volta mais. E é pela simplicidade dessa gente que viveu do trabalho na lavoura tirando da terra o próprio sustento, que a curiosidade do pesquisador abateu sobre o seu mundo, sobre o seu modo de vida. Afinal, quem é este personagem, muitas vezes tido pela sociedade moderna como o preguiçoso3, o sujo, o atrasado e que é parte formadora da nossa história, a história do Brasil?

Proveniente da miscigenação do índio nativo com o português colonizador durante três séculos (XVI, XVII, XVIII), o caipira paulista surge na nossa história como o portador de uma cultura singular, carregando consigo muito da européia e mantendo também e principalmente, muitos dos costumes de seus antepassados nativos. Desta forma, as aventuras portuguesas mata adentro objetivavam encontrar ouro e prata, além de aldeias indígenas, cujas mãos escravizadas eram aproveitadas nos trabalhos de homens brancos. Tornaram-se, esses aventureiros, em agricultores precários quando da necessidade de produção de alimentos para subsistência, fixando-se nas terras dos sertões paulistas e iniciando a formação de pequenas vilas e aldeias que mais tarde se tornariam grandes cidades.

O caipira possui, portanto, aspectos no seu modo de vida herdados do português antigo, o colonizador, que, longe de Portugal, permaneceram devido à lentidão no processo de transformação com a chegada cada vez mais veloz do mundo moderno.

É na etimologia da palavra caipira que damos o primeiro passo para a discussão acerca do entendimento sobre o seu modo de vida. Desta forma, para Batista Caetano4 a palavra caipira vem do tupi: cai = queimada / pir = pele: pele tostada. Para Câmara Cascudo (1988)5 em seu Dicionário do Folclore Brasileiro, a origem de caipira pode estar em caapora, ou seja: caá = mato / pora = habitante, morador. Portanto, caipira é o habitante do mato; ou ainda:

Homem ou mulher que não mora na povoação, que não tem instrução ou trato social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público (...) Habitante do interior, canhestro e tímido, desajeitado mas sonso... (Cascudo, apud Brandão, 1983, p. 10) No Dicionário Histórico das Palavras Portuguesas de Origem Tupi de Antonio Geraldo da Cunha (1989), encontramos: caipira: origem controvertida. Admitindo-se que proceda do tupi, caipira poderia ser uma corruptela de caipora, com intercorrência de curupira, que justificaria a evolução – pora > pira. Semanticamente a hispótese é viável; faltam, todavia, os elos da cadeia evolutiva, pois, a documentação histórica é tardia. (p. 83). Curupira, por sua vez, significa, conforme o mesmo Dicionário: Diabo, entre os indígenas; ente fantástico que, segundo a crendice popular, vive nas matas e tem os dedos dos pés voltados para trás e o calcanhar para frente. (p. 124) Saint-Hilaire em Viagem à Província de São Paulo, vem concordar com a analogia do caipira com o curupira ao dizer que: Pelos mesmos têm os habitantes da cidade pouquíssima consideração, designando-os pela alcunha injuriosa de caipiras, palavra derivada possivelmente do termo curupira, pelo qual os antigos habitantes do país designavam, demônios malfazejos existentes nas florestas... (Saint-Hilaire, apud Brandão, 1983, p. 11). Cornélio Pires, um dos grandes divulgadores da cultura caipira, apresenta-nos um ser sem estereótipos, sem associações que lhe tragam uma imagem errônea do seu modo de vida, alicerçada na produção familiar essencialmente de subsistência e nas relações de compadrio; são diversas as manifestações culturais com as modas de viola, as danças, os causos, as adivinhas e mentiras; são singulares na culinária, na vida religiosa e nas crendices, enfim, na magia que se encontra na sinceridade, simplicidade e ingenuidade do caipira ao explicar e entender o mundo. Desta forma, este autor fala do caipira como o homem da terra, que conversa com a terra, que trabalha e vive da terra. Por mais que rebusque o ‘étimo’ de ‘caipira’, nada tenho deduzido com firmeza. Caipira seria o aldeão; neste caso encontramos o tupi-guarani ‘capiâbiguâra’. Caipirismo é acanhamento, gesto de ocultar o rosto: neste caso temos a raiz ‘cai’ que quer dizer: ‘gesto de macaco ocultando o rosto’. ‘Capipiara’, que quer dizer o que é do mato. Capiã, de dentro do mato: faz lembrar o ‘capiau’ mineiro. ‘Caapi’ – trabalhar na terra, lavrar a terra – ‘caapiára’, lavrador. E o caipira é sempre lavrador. Creio ser este último caso o mais aceitável, pois ‘caipira’ quer dizer ‘roceiro’, isto é, lavrador... (Pires, apud Brandão, 1983, p. 11) Brandão (1983) reforça os dizeres de Pires, pois para ele os caipiras nunca são percebidos pelos viajantes estrangeiros como trabalhadores da terra e sim como vadios, sujos e preguiçosos, e os defende dizendo que estes trabalham tanto que não lhes sobra tempo para cultivarem a si próprios, aparentando estarem sempre desarrumados, longe de qualquer trato com a sociedade, afinal Cativos da terra, sem serem escravos dos senhores de terra, então, por isso mesmo, mais afastados de sua cultura civilizadora do que os próprios índios ‘catequizados’, ou do que os próprios escravos ‘civilizados’. (Brandão, 1983, p. 20 e 22) Antonio Cândido (1987) em Os Parceiros do Rio Bonito, investiga o modo de vida de um agrupamento caipira, buscando a sua compreensão a partir de uma cultura tradicional, ou seja, costumes que permaneceram daquele caipira anterior à chegada dos colonos do fim do século XIX.

Ele busca na figura do parceiro6 da década de 1950 elementos que caracterizem uma cultura rústica, isto é, tradições que se ajustaram ao ritmo da urbanização e modernidade.

Para ele, a base está na necessidade; elas movem a sociedade promovendo elementos que a satisfaçam. Desta mesma forma acontece com os bairros caipiras. Estes mantinham-se com o que Antonio Cândido chamou de mínimo vital e mínimo social. Por isso, a coleta, a caça e a desnecessidade do trabalho na lavoura, não havendo a produção de excedentes para o mercado. O mínimo vital está relacionado à alimentação, enquanto que o mínimo social diz respeito à sociabilidade entre as famílias e os bairros.

Os bairros eram os agrupamentos de famílias afastadas da povoação, do centro populacional e comercial, porém territorialmente subordinados a ela. As famílias formavam uma unidade devido à convivência, à solidariedade e às atividades lúdico-religiosas.

A necessidade de sal e querosene fazia com que o caipira fosse até o centro comercial mais próximo para a aquisição desses produtos, permitindo um contato com outras pessoas e outros grupos sociais ou bairros. A igreja também aparece como ponto de sociabilidade, por conta das missas, rezas, terços e festas, que demandam uma certa organização (logo, relações sociais).

A sociedade caipira tradicional elaborou técnicas que permitiram estabilizar as relações do grupo com o meio (embora em nível que reputaríamos hoje precários), mediante o conhecimento satisfatório dos recursos naturais, a sua exploração sistemática e o estabelecimento de uma dieta compatível com o mínimo vital – tudo relacionado a uma vida social de tipo fechado, com base na economia de subsistência. (Cândido, 1987, p. 36) Determinados costumes da cultura caipira foram se ajustando a uma nova conjuntura, a uma nova sociedade e à urbanização crescente. Uma das modificações ocorridas é o mutirão.

O mutirão consiste em uma espécie de ajuda mútua entre os moradores de um determinado bairro. São as atividades da lavoura, roçados, plantações e indústria doméstica que proporcionam o mutirão, o qual sempre termina com uma festa. O favor nunca é esquecido e é retribuído assim que solicitado. Antonio Cândido (1987) cita um velho caipira que lhe contou que no mutirão a obrigação não é com ninguém, é com Deus, por isso ninguém recusa o auxílio pedido.

Cândido (1987) nos fala sobre três comportamentos diferentes do caipira frente à civilização urbana, a saber a aceitação dos traços impostos e propostos, a aceitação só de traços impostos e a rejeição de ambos os traços.

Na aceitação dos traços impostos e propostos o caipira revela o desaparecimento da sua cultura individual e familiarmente, seja pela desintegração (mobilidade, dispersão) seja pela aceitação de novos padrões, comportamentos, crenças etc... A aceitação só de traços impostos diz respeito aos

... pequenos lavradores, sitiantes ou parceiros, que, embora arrastados cada vez mais para o âmbito da economia capitalista, e para a esfera de influência das cidades, procuram ajustar-se ao que se poderia chamar de mínimo inevitável de civilização, procurando doutro lado preservar o máximo possível das formas tradicionais de equilíbrio. Daí qualificá-los como grupos que aceitam, da cultura urbana, os padrões impostos – aquilo que não poderiam recusar sem comprometer a sua sobrevivência -, mas rejeitam os propostos, os que se apresentam com força incoercível, deixando margem mais larga à opção. (Cândido, 1987, p. 218-219) O terceiro comportamento, a rejeição de ambos os traços, leva o caipira a um certo isolamento para dar continuidade à reprodução do seu modo de vida; porém, isolado da sociedade como um todo, sua tendência é desaparecer devido à ausência de infra-estrutura que mantenha a sua reprodução cultural.

Antonio Cândido revela um certo receio com relação ao desaparecimento por completo da cultura caipira:

A cultura do caipira, como a do primitivo, não foi feita para o progresso; a sua mudança é o seu fim, porque está baseada em tipos tão precários de ajustamento ecológico e social que a alteração destes provoca derrocada das formas de cultura por eles condicionada. Daí o fato de encontrarmos nela uma continuidade, uma sobrevivência das formas essenciais, sob transformações de superfície que não atingem o cerne senão quando a árvore já foi derrubada – e o caipira deixou de o ser. (Cândido, 1987, pp. 82/83) O caipira de Jaú7

Em Jaú, por conta da febre do ouro por volta de 1772, estabeleceram-se alguns aventureiros portugueses bandeirantes propiciando a miscigenação étnica e cultural naquele local.

A febre do ouro aguça desmedidamente as ambições e atiça o espírito aventureiro de homens valentes, intrépidos, rudes, cruéis, muitas vezes e quase sempre obstinados. Gente que mata e morre para garantir seu cadinho do ouro, da prata e do diamante que, generosos, brotam das minas recém-descobertas. À procura do Eldorado, esses titãs embrenham-se por terras desconhecidas, desbravam o sertão bruto, escalam espigões, cruzam rios e abrem picadas em meio à solidão das selvas onde também degradam e escravizam o índio, seu dono legítimo e habitante soberano. (Claro, 1998, p. 5) Essas famílias se fixaram, derrubaram as matas e instalaram várias culturas para subsistência a princípio e, posteriormente para a movimentação da economia local. O fumo e a cana-de-açúcar tiveram papel importante no mercado jauense, sendo cultivados em muitas fazendas. No entanto, as dificuldades com a mão de obra e meios de transporte fizeram com que tais produtos fossem consumidos apenas na região, sendo exportada somente a aguardente de cana. Tais produtos foram sendo substituídos pelo café diante da fertilidade do solo (latossolo roxo), das condições de relevo (planalto), do clima tropical, e obviamente do mercado que se encontrava favorável para a sua comercialização.

Após a abolição da escravatura e a necessidade de mão de obra nos cafezais, imigrantes europeus (principalmente italianos e espanhóis) vieram compor a população de Jaú e proporcionar uma nova miscigenação, chamada por Antonio Cândido e José de Souza Martins de acaipiramento ou acaipiração. Estava implantado o colonato nos interiores das fazendas de café já por volta de 1890.

O Senhor Luiz Rogatto, filho de italianos e nascido no Brasil, foi um dos colonos das fazendas de café em Jaú. Antes de morar na cidade, em 1983, ele teve um sítio de sete alqueires e meio onde plantava algodão, milho e café. Seus filhos o ajudavam no plantio e colheita destes produtos; no entanto, quando era preciso seus vizinhos sitiantes o auxiliavam para tal tarefa.

Ajudava, mas éramos todos, todos colegas, sabe. Como, vamos supor: eles tinham uma plantação para colher, eles pediam para mim. Eu ia ajudá-los. Depois, quantos dias eu levava lá no deles, depois eles davam os dia para mim. Tudo trocado, tudo de colega, sabe. Nenhum pagava nada para o outro, pagava sim, a troco de serviço, sabe. Eu trabalhava para ele, depois ele trabalhava para mim.8 Porém, tal forma de ajuda mútua não caracteriza o mutirão, mas este alterado, acompanhando as transformações da sociedade; seria o que Antonio Cândido (1987) chamou de solidariedade vicinal. Esta não tem a festa no final da empreitada, e implica a retribuição equivalente do beneficiário – não no formato do dinheiro, porém uma dívida moral.

Atualmente, as dificuldades financeiras não permitem festas, não deixam tempo para comemorações e às vezes, nem há o que comemorar. Ocorre a passagem de uma economia fechada com mínimos de subsistência para uma capitalista acompanhada pelos sintomas da crise cultural e social.

Em Jaú, o colonato, com o sistema de trabalho familiar, possibilitava a sociabilidade entre as famílias, que se reuniam para as modas de viola e serenatas, para as festas dos dias santos e para os funerais, apesar da constante mobilidade por entre as fazendas na busca de contratos mais vantajosos. A remuneração era pouca, sendo efetuada, conforme o contrato, uma, duas ou três vezes ao ano, mas a fartura em alimento era permanente.

O assalariamento mobilizou ainda mais os trabalhadores da roça; famílias de caipiras foram para a cidade, além do que, muitas fazendas foram loteadas e transformadas em bairros periféricos. O que antes era café, agora é cana-de-açúcar; os fazendeiros que antes contratavam trabalhadores rurais cedem espaço às usinas que compram ou arrendam suas terras; o colono virou bóia-fria e sua comida farta precisa de muito suor para ser comprada.

Considerações Finais

A individualização provocada, a princípio, pelo assalariamento é um dos sintomas de vulnerabilidade da cultura caipira em Jaú; a sociabilidade vai se tornando cada vez mais rara, existindo tão somente por meio da fé nas manifestações religiosas (missa, quermesse, festa junina, festa do padroeiro da cidade, funerais etc).

Neste contexto, cultura, do latim colere, diz respeito ao cuidado com a natureza, plantas e animais. Segundo Chauí (1993), a cultura pode ser entendida como

... ordem simbólica por cujo intermédio homens determinados exprimem de maneira determinada suas relações com a natureza, entre si e com o poder, bem como a maneira pela qual interpretam essas relações, a própria noção de cultura é aversa à unificação. (Chaui, 1993, p. 45) Desta forma, em cada lugar desenvolvem-se modos diferenciados para lidar com a natureza, para lidar com a reprodução da vida, ou seja, é o modo de vida específico de cada civilização e de cada lugar que vai caracterizar a cultura de uma determinada população.

As diferenças culturais, ao entrarem em contato com o mundo da mercadoria adquirem novos padrões, impostos pelo capital e mediados pelo Estado. Coloca-se em um único plano não só o ritmo da vida de cada lugar, mas também as relações sociais e culturais destes lugares.

Para o caipira jauense, a cultura massificada e o avanço tecnológico e informacional chegaram no campo ameaçando a sua existência, a existência da sua reprodução cultural. O acesso à educação e entendimento do mundo moderno desmistificaram as crendices e superstições; a ingenuidade cedeu lugar ao sonho e à ambição do status social, da qualificação profissional; as pessoas adquiriram novos valores como o consumo, o sonho do carro e da casa própria, do conforto etc.

A televisão, o rádio, a internet abriram o caminho para a cultura fabricada nos porões da sociedade moderna, movida e reproduzida pela economia de mercado. O caipira tende a virar o country, já que a sua música mercantilizada é a sertaneja.

As festas tradicionais foram deturpadas e são festas comerciais com a venda e compra de comes e bebes que simbolizavam a fartura da colheita. As conversas ao pé do fogo são sussurros em frente ao aparelho de tevê; os doces e compotas que tinham magias e mistérios na sua preparação são atualmente adquiridos no mercado9, rotulados pela industrialização.

E assim encontramos o nosso caipira jauense10 que abraçou os traços impostos e propostos pela economia de mercado; sua cultura virou memória de alguns velhos que ainda benzem com ramos de arruda e curam feridas, que acreditam em assombrações e seres fantásticos que habitam as matas, que contam histórias e lendas que ouviam de seus pais e avós; lembram que dançavam, tocavam e cantavam modas de viola como nos relata o Senhor Luiz Rogatto:

Ah, fazia assim de brincadeira sabe, divertia assim. Eles faziam, tocavam violão e dançavam e... Às vezes faziam um churrascão, churrasco assim, todos os colegas, sabe. Um dava uma leitoa, outro dava um frango, outro... então juntávamos todos nós e fazíamos aquele... sabe, fazíamos aquela festa,, uma janta, um almoço... Naquele tempo, a turma toda gostava muito de vinho, tomava vinho, pinga, cerveja, tudo. Comia carne, assava carne no fogão de lenha, forno de lenha, tudo de lenha, não tinha nada de gás. Hoje em dia, para nós, não tinha naquele tempo nada disso aí, fogão a gás... nada... É importante salientar que no campo a tecnologia (luz elétrica, água encanada, fogão a gás etc) trouxe benefícios ao dia a dia das pessoas. Não podemos ser românticos e tratar da rusticidade como pura poesia, sem enxergar as dificuldades que esta trazia para os moradores e trabalhadores da roça. Estamos tratando de um modo de vida de uma determinada população (os caipiras) em um determinado lugar (Jaú), que recebeu de braços abertos novos valores e confortos domésticos.

Podemos dizer que a luz elétrica foi apenas um dos sintomas do fenômeno que aconteceria mais tarde: a incorporação pelo caipira de novos comportamentos despejados pela economia de mercado.

O problema não é a tecnologia, mas esta aliada ao mercado cuja intenção é massificar e homogeinizar a sociedade, caminhando para a destruição das diferenças e especificidades de cada lugar. Cabe, portanto, a cada grupo tradicional, manter ou não as suas manifestações e os seus valores, receber ou não a cultura de massa, persistir ou não pela sua sobrevivência.

Em Jaú, o lugar do caipira parece ser o mesmo do trabalhador e do consumidor, mesmo que precariamente. As suas manifestações são os espetáculos da sociedade de consumo; a festa profana em nome do sagrado, como por exemplo as quermesses para arrecadar dinheiro para benfeitorias na Igreja.

O que resta ao caipira é a si mesmo, a sua simplicidade, o seu carisma e sua criatividade...
 

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Notas

1.Bolsista do CNPq e pós-graduanda em Geografia Humana do Departamento de Geografia da Universidade de São Paulo/Brasil, sob a orientação do Prof. Dr. Heinz Dieter Heidemann.

2.As palavras originais faladas por Luiz Rogatto foram corrigidas devido às dificuldades no seu entendimento, já que o texto destina-se a um evento internacional. No entanto, é importante deixar claro que para a pesquisa que venho realizando, as suas palavras são essenciais já que, na seu jeito “errado” de falar a língua portuguesa, ele expressa o falar do caipira paulista.

3.Estes estereótipos têm a ver com modo de vida do caipira cujos valores não são os mesmos que carregavam os colonizadores e viajantes europeus.

4.Apud Souza, 1910.

5.7ª edição.

6.Segundo Antonio Cândido (1987), “a parceria é uma sociedade, pela qual alguém fornece a terra, ficando com direito sobre parte dos produtos obtidos pelo outro”. (pg. 107)

7.Jaú é um município do estado de São Paulo e nossa área de estudo.

8.Entrevista cedida por Luiz Rogatto em outubro de 1999. Aqui também faço a correção da língua portuguesa para um melhor entendimento de suas palavras.

9.Conforme relato cedido por Dona Elsa, moradora da Fazenda Santana em Jaú, em outubro de 1999.

10.Não queremos dizer, de modo algum, que o caipira não existe enquanto portador de uma cultura tradicional. Podemos encontrar em algumas cidades como Dois Córregos, por exemplo, vizinha de Jaú, famílias vivendo da maneira mais rústica que se pode imaginar, permanecendo suas crendices e costumes. Isso é possível pelo fato de tais famílias estarem afastadas do convívio com a cidade, isoladas e sem acesso aos meios de comunicação e tecnologia. Cabe, portanto, uma pergunta que nos levaria a uma nova pesquisa: “É resistência consciente da cultura caipira diante da modernidade ou estes caipiras se isolam porque têm medo do novo?”
 

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