Scripta
Nova REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98 Vol. VII, núm. 146(018), 1 de agosto de 2003 |
A EXPROPRIAÇÃO
COLECTIVA DE HABITAÇÃO NA RENOVAÇÃO URBANA DE
BRAGA DA SEGUNDA METADE
DO SÉCULO XIX
A expropriação coletiva de habitação na renovação urbana de Braga da segunda metade do século XIX (Resumo)
A cidade de Braga durante a segunda metade do século XIX, tal como as demais cidades portuguesas, foi sujeita a um intenso dinamismo urbanístico, que se manifestou no alargamento da maior parte das ruas do seu centro histórico. Além das alterações do desenho urbano, muitas dos edifícios herdados do passado desapareceram, dando origem a uma nova estrutura cadastral e iniciando uma fase de renovação da edificação.O presente estudo dá testemunho do processo de expropriação colectivo tutelado pela Câmara Municipal, sistematicamente expresso através de uma série de documentos, constituídos por autos de transação amigável de propriedade, existentes no Arquivo Municipal e que foram privilegiadamente celebrados entre os anos de 1861 e 1928.
A partir da perspectiva das expropriações de habitação foi possível reconstituir o processo de animação urbana, nas suas vertentes rítmicas e espaciais, elegendo a fonte como um elemento indispensável para compreensão da geografia urbana de Braga na referida época.
Palavras-chave: geografia histórica, renovação urbana, expropriação de habitação, urbanismo no século XIX.The colective residence expropiation in the urban renovation of Braga, in the second half of 19th Century (Abstract)
The city of Braga during the second half of the XIX th century, like the other portuguese cities, was submitted to an intense urbanistic dynamism, which was shown in the enlargement of the greatest part of streets in its historical center. Besides the changes in the urban drawing, many of the inherited buildings of the past were gone, giving birth to a new cadastral structure and beginning a renovation phase.
The present study gives evidence of the collective expropriation process tutored by the Town Hall, systematically expressed through a series of documents, composed by acts of "friendly transaction" of property, existing in the municipal archive and celebrated between 1861 and 1928.
From the perspective of the residence expropriation it was possible to rebuilt the process of urban animation, in its rhythmic and spatial slopes, electing the fountain as an essential element for the comprehension of the urban geography of Braga in the referred period.
Como considerando prévio à presente comunicação, devemos referir que este texto resulta da reflexão efectuada sobre uma parte de um estudo mais vasto, O Espaço Urbano de Braga – obras públicas, urbanismo e planeamento (1790-1974)1, título da tese de doutoramento que defendemos em Maio de 2002 na Universidade do Minho [Portugal]. O campo empírico aí desbravado baseia-se fundamentalmente na consulta do acervo documental designado por Série das Obras Urbanas (OU), referente ao longo período compreendido entre 1835 e 1988, existente no Arquivo Municipal de Braga (AMB). Isto é, no repositório arquivístico de todos os processos de obras públicas da cidade que comprometeram a intervenção directa da autarquia.
O tema das obras de urbanização relacionadas com a habitação não cobre, naturalmente, toda a densidade e o significado intrínseco que cada um destes termos encerra. Na verdade, se pretendêssemos reconstituir o filme exaustivo da edificação e reedificação urbana resultante da iniciativa individual, ou mesmo privada, tendo necessariamente de recorrer ao cruzamento de um âmbito diversificado de fontes, estaria, todavia, a extrapolar o objectivo que agora nos propomos abordar.
A fonte, porém, constitui um filtro insubestimável relativamente ao tema de estudo que pretexta a presente comunicação, muito particularmente se quisermos avaliar o impacte dos principais surtos intervencionistas no espaço urbano braguês, equacionados, preferencialmente, a partir do planeamento e das obras públicas. Mais não fosse tratar-se-ia de um testemunho ilustrativo dos processos de urbanização, perspectivados sob a óptica da edificação de habitação com impacte estrutural, no caso, concernente ao exemplo de uma cidade portuguesa de magnitude intermédia.
Nesse sentido, analisados que foram todos os processos de obras e, ou, as unidades documentais inventariadas, onde se faz menção expressa da temática, excluindo outras referências afins, como a habitação social ou a urbanização industrial, individualizamos um quantitativo documental de cerca de 60% deste conjunto. Ou seja, reunimos todos os assuntos relacionados com construção/reconstrução; reparação; demolição; alienação de património; e loteamento; quer se tratassem de prédios urbanos individuais, ou de urbanizações visando a promoção de rendimento. Em suma, seleccionámos no âmbito da Série, o denominador comum das relações entre a autarquia e os particulares, quer estes se apresentassem individualmente ou associados a grupos de interesses privados.
Dentro deste grupo complexo e heterogéneo de documentos distinguiram-se dois domínios substantivos extremos. O primeiro, sobretudo incidente no correr da segunda metade do século XIX - que corresponde ao fácies arquivístico que mais interesse nos despertou -, reporta-se à informação apensa aos diversos processos de compra/venda de prédios a abater ou reconstruir, perpetrados aquando da abertura de novas ruas ou rectificação das existentes. A este domínio juntamos ainda toda a documentação respeitante aos apeamentos e reconstruções de estruturas (muros, fontes, acessos, etc.) tomados, na maior parte dos casos, como contrapartidas assumidas entre a autarquia os proprietários. No tocante ao segundo domínio, fundamentalmente manifesto no correr do século XX, reportando-se já aos projectos mais vastos de edificação de novas urbanizações e promoção de loteamentos, verificámos já que as finalidades perseguidas, ainda que, de início, invocassem explicitamente as motivações do alojamento social como um pretexto para a sua viabilização, perseguiam fundamentalmente os objectivos do rendimento e do investimento privado.
Ora,
será precisamente no âmbito do primeiro domínio enunciado,
que sobressai um conjunto documental amplo, relativo a processos de expropriação
urbana, assentes em acções concertadas de rectificação/alargamento
e de abertura de novas ruas que, pela sua continuidade e coerência
processual, poder-se-á afirmar, constitui uma subsérie documental
aparte. É pois sobre este registo e a partir das ilações
que ele proporciona que nós iremos de seguida nos debruçar.
As urbanizações, edificações e outros assuntos de construção insertos na série das OU
Do ponto de vista metodológico, os processos/unidades documentais, contemplados com o presente atributo, dizem respeito não só ao espaço urbano já consolidado como às novas áreas de expansão da cidade. No primeiro caso, e como já fizemos referência, as intervenções de urbanização/habitação, durante a segunda metade do século XIX, surgem-nos amiudadamente associadas aos processos de expropriação colectiva relacionados com as rectificações viárias encetadas, cujas implicações afectaram um número elevado de proprietários. Daí decorreria um maior volume de pequenas obras de contrapartida, trabalhos de demolição, edificações sobre os novos alinhamentos rectificados, etc., reunindo um montante documental privilegiadamente incidente nas áreas centrais da cidade e nos arrabaldes mais antigos. No segundo caso, simbolicamente a partir do início do rasgamento da Avenida da Liberdade, na primeira década do século XX, e depois de meados da década de quarenta em diante, com as intervenções urbanísticas em larga escala em todos os quadrantes de expansão. Aqui a documentação chancelada de urbanização/habitação surge-nos já mais relacionada com processos onde pontuam os loteamentos privados e a expropriação de quintas destinadas a urbanizar, sendo estes maioritariamente localizados na coroa de crescimento da cidade, e, genericamente, tendo a particularidade de envolver um menor número de protagonistas para uma maior área de intervenção.
Dentro
da presente rubrica, a maioria dos processos/unidades documentais,
encontrando-se estreitamente associados, quer aos domínios da infraestruturação,
quer ao das expropriações, excluem todo o dinamismo
meramente individual da edificação, pelo que, a perspectiva
que a seguir vos apresentamos, incide, por assim dizer, nos casos em que
o processo de edificação afectou, em fases coerentes, conjuntos
ou áreas consideráveis, tanto do edificado consolidado, como
do próprio tecido urbano bracarense. Trata-se enfim de ensaiar uma
metodologia do estudo da evolução urbana, realizado a partir
da análise dos processos de expropriação e de urbanização.
O processo de urbanização assente em programas de expropriação colectiva
Iniciaremos o nosso estudo pelo processo de urbanização que abarca privilegiadamente a segunda metade do século XIX e que se estende continuadamente até ao final dos anos de 1920, terminando com o crescendo de protagonismo motivado pela abertura da principal avenida da primeira metade do século XX [avenida da Liberdade]. Isto não significa que o regime de expropriações em massa, destinadas a permitir a abertura dos novos alinhamentos viários, tenha deixado de se efectuar para além dessa data. Apenas perdeu o mesmo sentido de coerência e o significado relativo no contexto das Obras Urbanas.
Os primeiros pedidos de licenciamento de obras com que nos defrontamos, embora esporádicos, surgem-nos a partir da década de 1840, reportando-se à rua das Águas (futuro topo Norte da avenida da Liberdade) e circunscrevem-se à reforma da frontaria de casas, onde a principal preocupação ordenadora parece subordinar-se unicamente ao encaixe do edifício no alinhamento da rua. A reduzida documentação existente, durante este período, além de nos dar conta do projecto do alçado, regista, sem sistematicidade, os custos e o termo de responsabilidade dos trabalhos. Contudo, a matéria não permite inferir grandes generalizações que possam ir além do quadro específico da fonte.
No entanto, sabemos que o quadro legal decorrente da homologação do Código Administrativo, de 1842, protagonizado pelo ministro Costa Cabral, veio a atribuir às Câmaras Municipais competências para implementar novos alinhamentos urbanos e deliberar sobre a negociação de empréstimos, sobre a construção de obras, sobre a aquisição, alienação e troca das propriedades do concelho (J.F. H. Nogueira.1914, p.84).
Entre 1849 e 1853 as expropriações e arrematação de materiais sobrantes das demolições destinadas à abertura ou alargamento de ruas, concentrar-se-ão em torno do projecto de rectificação da rua do Souto, envolvendo o desafogamento decorrente dos espaços viários conectantes: a rua do Castelo e o largo fronteiro da Porta do Souto - separados pela porta da muralha medieval então demolida - tendo este último, por decorrência do seu principal mentor, vindo a designar-se de largo Barão de S. Martinho. No entanto, as expropriações conducentes ao novo alinhamento viário da rua do Souto prolongar-se-iam pelas duas décadas seguintes.
Desde a década de sessenta, o novo panorama reedificativo permite ser acompanhado com maior sistematicidade, a partir da leitura, chamemo-lhe assim, da subsérie das transacções amigáveis2, ou seja, do tipo de documentação inserta na série das Obras Urbanas relativa a expropriações que já fizemos referência anteriormente.
Antes porém, não podemos deixar de abordar, prévia e sucintamente, o desenvolvimento, em bruto, dos processos de transacção celebrados entre a CMB e os particulares, enquanto eixo ordenador dos principais ritmos de expropriação. Recordemos aqui que a presente subsérie compreende um universo de praticamente meio milhar de processos, com informações detalhadas sobre a substância das expropriações e, muito particularmente, das motivações que estiveram subordinadas ao seu ordenamento.
Sem entrar exaustivamente no âmago do material disponível, diremos apenas que a subsérie das transacções amigáveis se desenvolve, sistematicamente, entre os anos de 1861 e 1928, podendo constatar-se que 70,4% dos processos se efectivaram ainda no século XIX.
Por outro lado, as motivações expressas que estiveram na base da sua celebração fundamentaram-se, quase que invariavelmente, no alinhamento/abertura (termos usados com maior frequência) dos novos, ou melhor dizendo, dos renovados espaços viários existentes.
A todo este processo não foi certamente estranha a publicação do Decreto Lei de 31/12/1864, que procedia à regulamentação da construção, conservação e polícia de estradas e abertura de ruas, dando particular ênfase, pela primeira vez, às questões jurídicas do ordenamento urbano em Portugal. Nele viria a ser explicitado o Plano Geral de Melhoramentos que reiterava o domínio público imprescritível das estradas e dos arruamentos urbanos3, abrindo assim caminho para que as intervenções planeadas de alinhamento - inicialmente motivadas pela necessidade de regularizar as estradas/ruas - bem como toda a edificabilidade em geral vertente para as mesmas, se adequasse aos condicionalismos urbanos emergentes. Neste sentido, o citado articulado municiava as Câmaras com toda uma instrumentação legal que lhe atribuía o uso da declaração de utilidade pública e urgente todas as expropriações necessárias para inteira execução do plano ordenado4. É certo que o teor da lei se destinava vocacionadamente a ser implementado na cidade de Lisboa e, por outro lado, a cidade de Braga não viria a reclamar qualquer instrumento desse tipo. Todavia, a força substantiva da lei viria a constituir, em articulação com o código de 1842 do qual emanava, o suporte jurídico que sustentou os processos de realinhamento e de construção de ruas, estreitamente associados à implementação de uma política de expropriações e transacções de terrenos em série, que determinaria a reconfiguração cadastral e o sistema de edificação subsequente seguido na cidade.
A este propósito, é oportuno evocar o conteúdo dos artigos números 46º e 47º do citado articulado que regulamenta a fixação do alinhamento para a reconstrução dos prédios, obrigando, nesta conformidade, a indemnizar os proprietários quando o alçado dos seus prédios tivesse de recuar, ou, em sentido inverso, a pagar, quando fosse necessário os alçados avançarem (artgº 46º). Simultaneamente, os proprietários dos terrenos que confrontassem as vias eram obrigados a construir edificações n'esses terrenos, segundo os projectos que fo[ss]em aprovados, dentro do prazo de um ano, a contar da intimação (artgº 47º). Caso não o fizessem, ou não pudessem fazê-lo, o mesmo regime jurídico contemplava medidas que, embora não impusessem a transacção de propriedade, garantiam a prossecução da edificação.
A margem de competências atribuídas às autarquias incrementaria a construção célere ao longo dos novos alinhamentos, constituindo um expediente necessário à prossecução das obras urbanas em curso.
Nesta acepção a apreciação evolutiva dos processos de expropriação, que estiveram na base dos decorrentes surtos edificadores e reedificadores, permite-nos indagar, antecipadamente, as prioridades de intervenção efectuadas sobre o desenho urbano preexistente, p. ex., tanto no plano intra como extramuros (Figura 1).
Fonte: Série das OU - AMB. * os processos referentes aos lugares intramuros, compreendem as expropriações localizadas junto às portas da muralha e nas ruas que a circundam do lado exterior, excepto as praças e os campos |
A evolução dos autos de expropriação individualizados, entre a CMB e cada um dos proprietários dos prédios urbanos, no âmbito da subsérie em análise, evidenciam um claro crescimento até ao início da última década do século XIX, em conformidade com amplo programa de rectificação viária dos arruamentos intramuros. Daí para a frente, todo o processo, embora mantenha elevados valores de expropriação colectiva, decresce bruscamente para menos de 1/4, na última década do século, até que, nesta ordem de classificação, torna-se insignificante no decorrer dos anos de 1930.
Contudo, as expropriações em massa no intramuros só ultrapassarão as mesmas acções no exterior durante a década de setenta - e lembremo-nos que, então, a dicotomia intra/extra já não fazia o mesmo sentido orgânico que fizera cem anos antes (Bandeira. 2000, p.62) - atingindo, assim, um montante concentracionário de 87% das expropriações efectuadas. Precisamente, antecedendo as vastas obras de demolição, rectificação viária e decorrente edificação, que se prolongariam, praticamente, até aos alvores do século XX.
Naturalmente, para acompanharmos com o maior detalhe o processo de edificação privado - que decorre, como já explanámos por via indirecta, ao longo da série das OU - somos obrigados, por utilidade operativa, a cruzar os processos das transacções amigáveis de propriedade com os processos de arrematação de obras, particularmente aqueles que se referem: à venda de materiais de casas demolidas; aos autos de louvação; aos mapas de medição e avaliação das expropriações necessárias, apensos aos projectos; e ainda, na medida do possível, à leitura das actas das sessões e de outros livros de registo pertencentes ao AMB.
Os anos anteriores a 1860, como anteriormente já o afirmámos, ficaram marcados pelas expropriações de casas na rua do Souto e seus espaços conectantes, no extremo nascente da artéria. Estas prosseguiriam, com igual relevo, pelas décadas de sessenta e setenta, tendo, durante o último período, se concentrado até ao ano de 1873, e incidido nas casas do alçado Sul do citado arruamento (Quadro 1).
Igualmente durante a presente época, a abertura e alinhamento daquela que, mais tarde, viria a ser denominada rua de Santa Margarida, entre 1867 a 1868, afectaria, só por si, dez moradas de casas e cinco parcelas de terrenos, dos quais constaria ainda o quintal traseiro de uma moradia, e, ainda, um grupo denominado de casitas. Ao todo estavam envolvidos onze proprietários.
Este é um exemplo do detalhe reconstitutivo que a leitura dos processos de transacção nos permite explorar. Porém, não cederemos a essa tentação exaustiva de análise, apreciando, daqui para frente, somente os grandes conjuntos de intervenção que envolveram a expropriação de, pelo menos, uma sequência de cinco proprietários envolvidos. Isto não significa que o resto dos espaços ficassem incólumes ao processo, ou mesmo que, aqueles que atingiram uma sequência de, pelo menos, cinco autos de transacção amigável por década, também, não deixassem de registar, ainda que pontualmente, expropriações nas décadas precedentes ou nas posteriores.
A década de setenta espelha já o desbravamento rectificativo e o consequente surto reedificador do denominado bairro das Travessas, sensivelmente a área comum aos espaços da cidade romana e medieval (Figura 2).
Figura
2. Distribuição
dos processos (“Autos de transacção Amigável”)
por tramos viários de 50 mts (1861-1928) |
Como resultado desse processo iremos assistir, nos anos imediatos, a um surto construtivo de edificações de raiz sobre os novos alinhamentos. O destaque vai, inequivocamente, para a rua do Souto, em particular no alçado Sul, que prosseguirá o vasto processo renovador.
Na rua da Sé (actual Paio Mendes), que passará a contar com uma secção transversal correspondente à largura da antiga Praça do Pão - fronteira à catedral - vir-se-ão a destacar novos edifícios, insertos em lotes mais amplos, sobretudo na fiada de alçados, também da margem Sul, a mais afectada pelo novo traçado. Seguem-se as ruas Verde/Couto do Arvoredo, no fundo uma mesma artéria que, ao confluir com a anterior, irão, com o renovado seccionamento, anular o tramo Norte da rua das Chagas (Bandeira. 1992, p.206), definindo assim uma nova rua - D. Frei Caetano Brandão - com edificações inteiramente distintas das anteriores, em ambas as suas margens. Tal como virá a acontecer noutros espaços viários, também aqui os alinhamentos projectados farão recuar os limites da rua até ao confronto com os quintais traseiros das fiadas das casas que, no mesmo quarteirão, lhe ficavam opostas. Permitia-se, assim, o surgimento de novos loteamentos profundamente subversores da recortada malha cadastral preexistente.
A rua da Misericórdia, a Norte da Sé, estrutural por permitir o acesso privilegiado à Praça do Município, será igualmente sujeita a uma profunda remodelação, acentuando a estreita ligação que já mantinha com a cervical rua do Souto.
Nos anos oitenta, com a população urbana a crescer significativamente, decorrerá então o período mais intenso de celebração dos autos de transacção amigável entre a CMB e os diversos proprietários urbanos. Estes anos, em termos absolutos, permitem reunir um montante de 36,6% do total das transacções amigáveis inventariadas.
Neste espaço de tempo, o rastilho do estaleiro intramuros estende-se a todo o espaço urbano em geral. Quase uma dezena de topónimos vão estar sujeitos a uma dinâmica cadastral activa (Quadro 1).
O programa de rectificações da década de oitenta dá seguimento ao processo iniciado no período anterior, tendo por foco privilegiado os alargamentos da já referida rua da Sé e do alinhamento das ruas Verde/Couto do Arvoredo (actual tramo Sul da D. Frei Caetano Brandão). Projectava-se, a sua continuação a partir desta última, pelas ruas dos Sapateiros e a rua do Campo (actual tramo Norte da D. Frei Caetano Brandão), até ao extremo NW do perímetro amuralhado. Neste trajecto serão especialmente releváveis as novas edificações a implantar na ala nascente da rua dos Sapateiros e, na frente oposta, na rua do Campo5. Por outro lado, a leitura da série das OU, através dos diversos autos de arrematação de materiais, referente aos produtos sobrantes loteados das casas demolidas, permite-nos inferir que o ritmo das demolições se terá concentrado aproximadamente entre Junho de 1887 e o mesmo mês de 1889, afectando, no último trimestre do ano de 1888, muito particularmente, as edificações do cruzamento formado pelo presente eixo com a rua D. Diogo de Sousa.
Mais a Sul, paralelamente à rua da Sé projectar-se-ia a grande via de atravessamento W-E da cidade intramuros, substituindo o tortuoso e quebrado eixo de travessas por uma nova e ampla via rectilínea - a rua D’El Rei (actual D. Afonso Henriques). Este projecto, ambicioso pela dimensão e magnitude das expropriações, obrigaria a ser executado por fases, tendo arrancado preferencialmente do lado das Carvalheiras e só terminado, já em pleno século XX, no largo S. João do Souto6. A intervenção seria, neste caso, de tal forma incisiva que não viria a sobrar, de ambos os lados da rua, qualquer edificação precedente ou vestígios significativos da fisionomia e do cadastro anterior.
Dentro do perímetro amuralhado sobressairiam ainda as expropriações efectuadas na primeira metade da década, respeitantes fundamentalmente à rua de S. Paulo e sua área confinante - o traçado da rua era um dos mais irregulares do desenho urbano -, confirmando que o sector meridional das travessas não foi adiado para uma fase posterior.
Fora de muros, a cidade conheceu também uma vasta acção renovadora, tendente não só à definição de novos espaços viários, como ao ordenamento propiciador do levantamento de novas massas edificadas. Seguindo um critério decrescente, em função do volume dos proprietários envolvidos nas transacções, citem-se os casos dos novos arruamentos, tais como; a rua Gabriel Pereira de Castro; a rua do Caires; a rua Paes Abranches; a rua Conselheiro Lobato; e a rua entre o largo de Maximinos e a Madre de Deus (actual rua Padre Cruz). Todas estas artérias situavam-se na periferia da cidade, ou seja, no âmbito da sua frente de expansão mais avançada, trilhando, na maior parte dos casos, a direcção de antigas cangostas, cuja natureza das expropriações afectavam um número significativamente elevado de prédios rurais (Figura 2).
Do conjunto maioritário das transacções, todas situáveis fora de muros, teremos contudo de excluir a rua Cândido Reis (actual rua dos Chãos) - uma via perfeitamente consolidada, herdeira do populoso arrabalde urbano com antecedências medievais - cujo processo de alargamento começou nesta década a adquirir substancial relevância e que iria proporcionar um dos surtos edificadores mais densos do virar de século. Daí resultaria uma nova rua, então caracterizada por possuir o sector mais denso e com maior número de pisos do conjunto urbano de Braga.
Naturalmente que o processo se estendeu a outros arruamentos da cidade, como p. ex., em Junho de 18847, o arranjo do Largo de Santa Theresa, e que interferiria com um grupo de cinco casas então aí existentes.
Independentemente do ritmo com que os novos alinhamentos iam sendo implementados, Braga adquiriu a imagem de uma cidade estaleiro, caracterizada por exibir vastas fiadas de arruamentos em obras, com diversos focos de demolição e amontoados de materiais em depósito.
A última década do século XIX, correspondendo à continuidade do período anterior, acentuaria ainda mais os trabalhos de renovação da rua Chãos e, também, o prosseguimento daquela que é actualmente a rua D. Afonso Henriques (Quadro 1).
Quadro 1
Autos de transacção
de propriedade efectivados por local
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rua
do Souto |
Set
1862 - Mai 1865 |
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rua
entre o largo da Sª a Branca e Infias - actual rua Stª
Margarida |
Mai
1867 - Nov 1869 |
|
rua
do Souto |
Jun
1870 - Dez 1873 |
|
Campo
do Salvador/Feira e rua de acesso - actual rua Alferes
Ferreira |
Mar
1871 - Abr 1878 |
|
rua/largo
da Sé |
Out
1874 - Set 1876 |
|
ruas
Verde/Couto do Arvoredo |
Out
1875 - Mar 1877 |
|
rua
da Misericórdia |
Abr
1877 - Jan 1878 |
|
rua
Paes Abranches (actual do Taxa) |
Jun
1889 - Dez 1889 |
|
rua
dos Sapateiros/ rua do Campo |
Jan
1887 - Dez 1889 |
|
rua
Gabriel Pereira de Castro/Escoura |
Jun
1885 - Out 1888 |
|
rua
Nova entre as Carvalheiras e S. João
-
futura rua Nova D`El Rei, actual rua D. Afonso
Henriques |
Jul
1889 - Dez 1889 |
|
rua
Cândido Reis - actual rua dos Chãos |
Jul
1889 - Set 1889 |
|
rua
do Caires |
Jan
1884 - Mar 1886 |
|
rua
entre o largo de Maximinos e a Madre de Deus - actual rua
Padre Cruz |
Jun
1887 - Fev 1889 |
|
rua
Conselheiro Lobato |
Fev
1889 - Nov 1889 |
|
largo
de S. Bento e rua de S. Paulo |
Ago
1883 - Mar 1885 |
|
rua
Cândido Reis - actual rua dos Chãos |
Out
1890 - Out 1895 |
|
rua
Nova entre as Carvalheiras e S. João
-
futura rua Nova D`El Rei, actual rua D. Afonso
Henriques |
Mar
1890 - Out 1892 |
|
avenida
da Liberdade |
(...)
1900 - Mar 1909 |
|
rua
Cândido Reis - actual rua dos Chãos |
Fev
1906 - Out 1907 |
|
avenida
Arthur Soares |
Mar
1907 - Ago 1907 |
|
largo
Barão de S. Martinho |
Mar
1904 - Mar 1906 |
|
avenida
da Liberdade |
Mar
1910 - Nov 1910 |
|
avenida
da Liberdade |
Jan
1920 - Jul 1920 |
|
rocio
de Traz da Sé/rua do Forno |
Nov
1921 - Nov 1926 |
|
rua
Dr. Justino Cruz |
Mar
1920 - Dez 1926 |
|
rua
Miguel Bombarda - actual rua dos Capelistas |
Jul
1920 - Nov 1921 |
|
Fonte: Série das Obras Urbanas - Arquivo Municipal de Braga
A rectificação do bairro das Travessas estender-se-ia praticamente à totalidade dos arruamentos do conjunto que, hoje em dia é reconhecido, do ponto de vista urbanístico e arquitectónico, são dominados pelo presente ciclo interventivo. O relevo da sequência iria desta vez para as ruas: de Traz de S. Tiago (actual rua de Santiago), intervencionada durante toda a década de noventa e que, supostamente, se estenderia, com o mesmo risco, facto que jamais ocorreu, pela rua D. Gualdim; do Poço (actual rua D. Gonçalo Pereira), com demolições já iniciadas na década anterior, afectando no primeiro momento a ala poente e o tramo Sul8; e ainda, no tocante a outras transacções pontuais, condicionadas ao âmbito do mesmo objectivo, para os casos das ruas do Coelho e de Traz da Sé.
Do ponto de vista das demolições, os indicadores recolhidos vêm-nos confirmar que, logo a partir de Agosto de 1890, estas recaíram preferencialmente na área da Travessa Nova (actual D. Afonso Henriques), sendo acompanhadas por solicitações de autorização de reconstrução no novo alinhamento. Também, no mesmo ano, há registo de se ter procedido à venda de materiais dos prédios, entretanto desmantelados, na rua dos Chãos.
No domínio da urbanização e da edificação o início do século XX fica inquestionavelmente marcado pelas novas perspectivas derivadas do arranque do projecto de abertura da futura avenida da Liberdade (Quadro 1).
Numa primeira fase, o projecto ocorrerá sob o princípio de uma profunda rectificação da rua das Ágoas, que, de início, irá só alterar o topo Norte do lado poente. Tratava-se, sem dúvida, de um projecto de grande magnitude - ultrapassado só mesmo, na ambição, pelo quimérico projecto do século anterior, denominado de avenida Paes Abranches (estrada para o Bom Jesus) e que, como é sabido, não passou de mera conjectura. Também neste caso o rasgamento da avenida da Liberdade comprometia um elevadíssimo número de expropriações, razão pela qual esta só veio a ser cumprida na segunda metade do século XX (Figura 2).
Ora, seria precisamente no topo Norte da rua das Ágoas, do seu lado poente, onde aflorava parte do antigo e vasto Convento dos Remédios e a cuja cerca encostavam as casas que confrontavam a referida rua, que se constituiria a principal fonte de recurso de solos que iriam suportar o desenvolvimento das futuras construções faceantes à avenida da Liberdade. Do complexo edificado conventual, apenas o seu mirante vertia directamente para a rua das Águas, tendo os materiais que o constituíam, a sua demolição e remoção, sido arrematados em praça pública, em Novembro de 1907. No mês seguinte, seguir-se-ia a alienação dos materiais do edifício propriamente dito, reunidos em 4 lotes, bem como a colocação em hasta pública de 18 parcelas de terreno edificáveis9. As praças públicas sucederam-se até ao ano de 1916.
O facto do presente projecto ter sido iniciado pelo extremo Norte da rua das Ágoas, no espaço coalescente ao largo Barão de S. Martinho, certamente justifica que, cinquenta anos após a demolição da Porta do Souto, este largo voltasse novamente a sofrer uma readaptação morfológica. Embora, o cômputo das transacções aí realizadas não se afigurasse relevante, a exiguidade da praça e a sua centralidade aumentaram o valor do realinhamento matricial que deu origem às novas edificações. Mais não bastasse, o facto de se encontrarem projectos de alçados de iniciativa privada, sujeitos a licenciamento no seio da série das OU, é em si suficiente revelador da importância dedicada a esta intervenção.
Paralelamente, decorriam em franco progresso as renovações incisivas das ruas dos Chãos e da actual rua D. Afonso Henriques. Enquanto que a primeira manteria a elevada pujança demolidora da década anterior, a segunda intervenção entrava agora na fase final de consolidação definitiva.
Como novidade, o início do novo século trar-nos-á, igualmente, a abertura de um novo arruamento com características distintas - a avenida Artur Soares. Rasgada muito particularmente em função da criação do novo estabelecimento prisional de Braga, esta artéria, em cul-de-sac, dotada de duas faixas de rodagem, pretendia-se como um lugar residencial. Ainda assim, embora se projectasse alongar até S. Vicente, sacrificando o tramo Sul das rua das Palhotas, a avenida ficar-se-ia pelo seu tramo setentrional, vindo a ser mais tarde ocupada por moradias unifamiliares, de modesta volumetria.
Nos anos de 1910, ao mesmo tempo que a população urbana diminuía bruscamente, acentuou-se também o decréscimo das transacções conducentes à abertura/alargamento e consolidação de novas áreas, na cidade (Quadro 1).
Durante o presente período deu-se início ao levantamento das primeiras construções de ambição monumental no topo da Avenida. Ao protagonismo edificador erguido do lado poente, não foi estranho, como já o referimos, a desamortização e consequente loteamento do amplo território onde se encontrava assente o ex-Convento dos Remédios. Iniciada a depuração da rua das Ágoas pelo derrube do citado mirante, seguir-se-ia, ainda neste período, a desafectação do casario adossado à cerca. A avenida, no projecto denominada de Conselheiro João Franco até ao colapso da monarquia, surgiria, após a queda do regime, integralmente consolidada, ainda que somente a poente, até à rua do Raio.
De facto, não deixa de ser curioso notar que o processo de rectificação da rua das Ágoas ou, se se preferir, dada a sua amplitude, de abertura da avenida da Liberdade, denota a transição entre o período em que as expropriações particulares sugeriam a preocupação restrita do realojamento dos locatários afectados, para uma nova época que passava a privilegiar os loteamentos de rendimento.
A mesma década de dez regista, por outro lado, a expansão da área residencial da cidade ao longo da rua 31 de Janeiro. Tratando-se, no caso, de um projecto originário do virar de século e, simultaneamente, de um novo arruamento de raiz que trilhava, na sua quase exclusividade, espaço exclusivamente agrícola, compreende-se que o número de propriedades desoneradas para o efeito afectasse um número igualmente parco de proprietários. Neste caso, a natureza da edificação viria a ser distinta, já que o primeiro troço aberto veio a ser marginado por moradias circuitadas de jardins, pertencentes, desta vez, aos estratos mais elevados da sociedade bracarense de então.
Os anos vinte prosseguiriam com o protagonismo da avenida da Liberdade, aquela que, mais tarde, se irá denominar de Avenida Marechal Gomes da Costa (AMGC). O processo da sua abertura até à plena consecução deverá, porém, ser acompanhado a partir de outros suportes documentais (Quadro 1).
Por outro lado, será interessante notar o reincremento das intervenções dentro do espaço definido pelo perímetro amuralhado. Podendo ser analisadas agora sob dois moldes distintos. O primeiro corresponderá à rectificação viária, decorrente da reedificação das vias envolventes da Sé Catedral, processo este que, aliás, até aos dias de hoje, nunca conheceu qualquer interrupção definitiva. O segundo, reporta-se ao caso da rua Justino Cruz, uma artéria rasgada ab initio, no sector NE intramuros, que se manteve incólume ao longo dos séculos por integrar a dominialidade da mitra. Este arruamento acolheria as primeiras edificações precisamente a partir dos seus dois extremos opostos: a rua do Souto e o Campo da Vinha/gaveto com a rua Miguel Bombarda, que exibiram até há cerca de duas décadas o tramo intermédio da ala nascente desprovido de qualquer edificação.
A finalizar, um tópico referente ao derradeiro topónimo - a rua dos Capelistas - citado para adiantar que, também aí, durante a presente década, ocorreu o mesmo dinamismo construtivo inerente à imposição de um novo alinhamento.
Os modos e as condições em que se desenrolou o processo de edificação com impacte estrutural
O longo período até aqui analisado, da urbanização e da edificação assentes em processos de expropriação colectiva, não ficaria devidamente abordado se aqui não se procedesse ao esclarecimento, ainda que singelo, dos termos e dos modos em se desenrolou.
A documentação patente na série das OU, compreendendo os anos de 1880 a 1910, é suficientemente esclarecedora quanto às condições em que decorreu o surto de alienações/demolições dos prédios e seus materiais, suas construções/reconstruções, e até, nos casos em que se manifestou, a partir do próprio loteamento.
Através da leitura dos processos e dos autos de arrematação, podemos encontrar alguns dos denominadores comuns que ajudam a caracterizar melhor a dinâmica urbana deste período. Neste sentido, os numerosos editais publicados na imprensa da época, para além dos elementos descritivos da substância colocada em praça, testemunham-nos dois níveis de informação fundamentais: as condições da arrematação; e os prazos dos diferentes níveis de compromisso.
Começando pelos primeiros, verificamos que a maior parte das arrematações se reporta à demolição, remoção e venda de materiais dos prédios urbanos expropriados sujeitos às rectificações então encetadas. Em geral, trata-se da venda, por licitação verbal, à melhor oferta, da pedra, madeira e telha, pelo qual eram estruturalmente compostos os edifícios. Contudo, pelo meio, passam alguns detalhes regulamentadores dignos de nota. No âmbito deste processo, a CMB assume-se habitualmente por salvaguardar a reserva de qualquer peça de material que designe uma antiguidade, objecto d’arte e substâncias mineraes, ou de qualquer natureza, não enjeitando, em numerosos casos, a posse dos materiais em pedra lavrada e até, quando os havia, dos tanques, das escadas, dos esteios e do diverso material em ferro. Objectivamente, as prioridades da autarquia orientavam-se para o trabalho de demolição, do terrapleno necessário aos novos nivelamentos projectados e da limpeza do terreno, configurando-se, assim, os materiais em bruto como uma contrapartida motivadora de interessados.
Como é sabido, sobretudo na década de oitenta, uma das preocupações dominantes da edilidade prendia-se com a minimização dos estorvos causados pela magnitude das obras em curso, quer estes fossem resultantes dos entulhos sobrantes, por colocarem obstáculos à circulação nas ruas, quer ainda pela arritmia com que se desenrolavam as expropriações e demolições, impostas pela conservação de edifícios, ou grupos de construções, que aguardavam a sua vez de serem intervencionadas.
Estando a ocupação dos terrenos públicos sujeita ao pagamento de uma taxa, a autarquia promoveria a disponibilização gratuita de terrenos para depósito dos materiais aproveitáveis, desde que estes se dispusessem em boa arrumação, durante períodos que oscilavam entre os doze e os vinte meses. De entre os diversos parques onde foi consentido amontoar esses materiais, destaque-se o Campo das Carvalheiras e os largos das Latinhas e de S. João do Souto. Porém, nem todo o produto das demolições justificava o seu reaproveitamento, pelo que o destino dos entulhos também veio a ser especificado nas respectivas condições de arrematação. Assim, as obras de terraplanagem da avenida Arthur Soares, da futura rua 31 de Janeiro e da própria avenida da Liberdade, viriam aproveitar, para os necessários trabalhos de aterro, os entulhos provenientes de muitas das demolições realizadas.
Por outro lado, a CMB pretendia que os projectos fossem implementados com rapidez, determinando, para o efeito, medidas cautelares e períodos de execução que garantissem o bom andamento dos trabalhos. Embora os trâmites de conclusão variassem em função do montante dos trabalhos, a generalidade das demolições encontravam-se geralmente aprazadas para se iniciarem oito dias após o termo da arrematação, chegando, nalguns casos, a exigência a transitar para o dia seguinte. Quem os não cumprisse arriscava-se a perder o depósito bancário e a pagar o ónus do incumprimento, do qual poderia mesmo resultar a revenda dos materiais para pagamento das despesas de execução ou ainda o pagamento de multas em numerário.
As condições impunham igualmente normativos de segurança na execução dos trabalhos, de forma a não haver desastres a lamentar (...), acrescentando-se, mais tarde, que o apeamento e remoção [deveria ser] feito com todas as regras de segurança (...) evitando qualquer desastre pessoal, tendo o máximo cuidado com a segurança dos operários empregados nesse trabalho. Ao mesmo tempo garantia-se a responsabilidade do arrematante face a prejuízos que este pudesse causar na via pública ou nos prédios adjacentes.
Além das demolições, era exigida a limpeza total do terreno e o seu nivelamento em função do novo leito adoptado, de molde a que este se encontrasse em condições de acolher, quanto antes, o arranque dos novos trabalhos de edificação.
No que concerne às novas edificações propriamente ditas, dentro dos limites que a fonte nos oferece, temos elementos suficientemente consistentes, referentes ao presente período, para correlacionar os procedimentos com as posturas camarárias vigentes.
O primeiro regulamento impresso de que há notícia, assumidamente denominado de Codigo de Posturas Municipaes do Concelho de Braga, publicado em 1852, nomeia já, com carácter percursor, algumas medidas disciplinadoras referentes à edificação e concertos das casas. Porém, não existe nenhuma rubrica especificamente dedicada a obras, pelo que, mesmo a leve alusão que faz ao licenciamento, a propósito Do seguro e livre trânsito, e limpeza da Cidade (Título III), nada esclarece quanto à sua obrigatoriedade ou aplicação sistemática. Serão antes as cautelas relacionadas com a circulação e a higiene pública que suportarão as principais finalidades do presente articulado.
Mais tarde, com o Código de Posturas do Concelho de Braga de 10/12/1859, passará então a manifestar-se expressamente a preocupação de regulamentar a condução das obras de edificação e de acautelar alguns dos normativos respeitantes à construção de futuras edificações. Embora persistindo nos mesmos princípios do código precedente, o capítulo referente ao livre trânsito e limpeza da cidade - cap. XVI - torna ainda mais visíveis as preocupações relativas à construção e reedificação das casas, designadamente nos aspectos ligados à circulação e sinalização das obras. Tratando-se de um articulado de teor fundamentalmente restritivo, nele estão expressas as proibições de interferência na via pública, quer ao nível das drenagens, quer da deposição de materiais. Os trabalhos deveriam estar assinalados com guardas de barrotes, ou taboas compridas nas duas extremidades da propriedade, fossem estas devido aos estaleiros de obras ou somente se tratasse de lavagem dos prédios. Ainda dentro da mesma rubrica impor-se-ia a obrigatoriedade de dotar as novas construções com dispositivos de escoamento das águas pluviais, ligando, sempre que fosse possível, estas ao sistema de saneamento pluvial. De igual modo, determinava-se a obrigatoriedade de impedir que a drenagem das coberturas pudesse danificar o pavimento macadamizado dos arruamentos.
No capítulo especificamente respeitante às Obras, cap. XVII -, além da ênfase, vinda de trás, dada às questões de circulação e sinalização, aqui acrescidas pela necessidade de resguardar os materiais com um tapamento de madeira da altura de dez palmos, e com taboas sobrepostas, e portas que abram para dentro - especificando-se que a ocupação do terreno público ficaria sujeita a um aluguer - as principais finalidades do articulado recaem inquestionavelmente na proibição de se fazer qualquer obra nova, ou de reforma nas fronteiras das casas da cidade, sem previa licença da Camara, e deposito da quantia que lhe for arbitrada pelo Vereador de Obras (...) precedendo planta em duplicado competentemente aprovada10.
As regulamentações posteriores, tais como os acrescentos de 1864 e 1877, condimentados e actualizados no Código de Posturas do Concelho de Braga, publicado em 1886, traduzem, nesta matéria, a herança continuada do primitivo, sendo o doutrinário o mesmo de 1859, excepto na actualização dos padrões de medida, já que até o valor das coimas manteria os mesmos montantes.
Os exemplos que dispomos relativos à actividade edificadora privada em Braga, até 1920, não nos permitem sistematizar o tipo, ou mesmo os processos mais frequentes, em que esta se operava. Excluindo as iniciativas estritamente individuais, dispomos, porém, de diversos testemunhos indiciadores das práticas seguidas pela autarquia bracarense. Nesse sentido, estamos em crer que, a Câmara, ao colocar em praça a empreitada de uma série de prédios urbanos, além do habitual apeamento e nivelamento do terreno, exigia também individualmente do arrematante que este assumisse a obrigação de se responsabilizar pela reconstrução no estado de poderem ser habitadas.
Todavia, à medida que entramos pelo século XX em diante, verifica-se um crescendo dos pedidos de licenciamento, particularmente notados após a implantação da República e, nas obras da avenida da Liberdade. Relativamente a estes, era-lhes imposto que se fizessem acompanhar da planta do alçado da edificação, devendo então ser submetidos ao parecer da denominada Junta d’Obras.
Com o tempo, e uma vez mais a partir do projecto da avenida da Liberdade, vem-se a dar uma maior ênfase aos prazos de conclusão dos edifícios. Pretendia-se evitar a situação prolongada de desocupação dos terrenos com viabilidade construtiva.
Por fim, não
podíamos concluir este tópico sem antes fazermos uma pequena
alusão às exigências de beleza respeitantes à
edificação, já que, no domínio da estrutura,
estas estão completamente ausentes de todo o processo, deixando ao
critério e à competência de quem tinha a responsabilidade
de se pronunciar sobre o projecto, inteira margem de arbitrariedade para
se pronunciar. Apesar da questão estética cair fora da alçada
da presente abordagem, o caso da ocupação de um pequeno terreno
na rua Miguel Bombarda (actual rua dos Capelistas) a propósito
do projecto do seu novo alinhamento, viria a ser um exemplo sintomático
e elucidativo dos valores que a autarquia votava a esta questão.
Se é certo que alguns dos cadernos de encargos faziam alusão
directa ao aspecto decorativo das fachadas dos prédios, sem todavia
o concretizarem, o caso do arrendamento que a CMB fez a um privado, em 1917,
no terreno fronteiro à igreja dos Terceiros, especificava
que a fachada da nova construção deveria ter a elegância
precisa e digna do local, limitando a frontaria a quatro metros de altura
e impondo ao arrendatário a obrigação de este conservar
sempre em bom estado de limpeza e asseio a fronteira da fachada,
pois, tratando-se de um estabelecimento comercial, contava-se que este deveria
fazer boa disposição dos artigos que exposer à venda11.
Notas
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Planta de Braga - Francisco Goullard, 1/500, 1883/84, folhas aguareladas, 30, Arquivo de Obras da Câmara Municipal de Braga - este mapa está acondicionado num armário concebido para o efeito, no Convento do Pópulo - Braga, com 15 gavetas (2 folhas por gaveta).
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