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Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VII, núm. 146(030), 1 de agosto de 2003

OPULÊNCIA E MISÉRIA NOS BAIRROS DE FORTALEZA (CEARÁ/BRASIL)

Ana Maria Matos Araújo
Adelita Neto Carleial
Universidade Estadual do Ceará - UECE, Fortaleza


Opulência e Miséria nos Bairros de Fortaleza (Ceará/Brasil) (Resumo)

Esta investigação foi fundamentada em Lefebvre, em informações históricas e em dados censitários disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), para o ano de 2000. Seus resultados permitiram questionar o pensamento técnico-científico predominante que explicava a ocupação e uso do solo urbano em Fortaleza, capital do estado do Ceará, no nordeste do Brasil, dividindo esta metrópole em duas cidades, onde, de um lado, concentram-se os pobres e, do outro, os ricos. Descobriu-se uma metrópole em que seus bairros comportam internamente desigualdades sociais, contrastes e tensões, onde ricos e pobres moram na mesma unidade censitária, em toda a extensão urbana, desfazendo essa Fortaleza partida.

Palavras-chave: habitar, desigualdades sociais, bairro.

Opulence and Misery on the city districts of Fortaleza (Ceará/Brazil) (Abstract)

This investigation was based on Lefebvre, historical information and census data which became available by the Brazilian Institute of Geography and Statistics (IBGE) for the year 2000. It's results allowed questioning the major scientific and tecnical thought that explained the ocupation and use of the urban soil in Fortaleza, capital of Ceará State, on the Brazilian northeast; dividing this metropolis in two towns, where, in one side, there is poverty concentration and, in the other side, there is richness. It has been discovered a metropolis in whichexist, inside the city districts, social inequality, contrasts and tensions; where both rich and poor live in the same census unit, on the hole urban extension, unmaking this broken Fortaleza.

Key-words: to habit, social inequalities, city district.

Na cidade de Fortaleza, capital do Ceará, situada ao nordeste do Brasil, concentram-se investimentos públicos e privados, e, por isso, a produção de riqueza naquele lugar é a maior do estado, bem como muitos dos problemas da miséria ressaltam-se nesse espaço, chamando-se à atenção para a consecutiva concentração populacional, agravada pelos fluxos migratórios vindos do interior.

O objeto deste estudo é investigar o habitar, a distribuição da miséria e da riqueza entre grupos da população, no espaço urbano de Fortaleza, mostrando as diferenças e as semelhanças em seus bairros; determinadas pelas inversões econômicas, pelos movimentos de populações, e pelas relações de trabalho, pelas condições de moradia e de renda; e outras, necessárias à reprodução social.

A análise, utilizada neste estudo, baseou-se em dados censitários apresentados em setores (menor unidade de abrangência dos domicílios pesquisados) e bairros, disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), tendo por base o Censo Demográfico, realizado em 2000. Como proxis da opulência e miséria, utilizaram-se as informações sobre a renda e a educação dos chefes de domicílios, depois aprofundando o tema da habitação, questionou-se o tipo de moradia (permanente ou improvisado), as condições de propriedade (do domicílio e do terreno), a verticalização dos solos (domicílios tipo apartamento), e as condições de saneamento do domicílio (água, esgoto e lixo).

Os dados foram espacializados em pequenos recortes (escalas), e sua interpretação, apoiada em informações históricas, deu-se à luz da perspectiva lefebvriana, que amplia o conceito de moradia, relacionando-o ao habitat, enquanto lugar de reprodução e de práxis social urbana (LEFEBVRE:1991), permitindo o conhecimento dessa realidade, pela construção da cartografia das desigualdades em Fortaleza, comprovando-se a diversidade na unidade, constituída em um mix de opulência e miséria.

A metrópole abstrata

Os indicadores sócio-espaciais estaduais destacam Fortaleza como um município privilegiado em comparação aos demais.

Em cada mil, das 15.466 indústrias sediadas e ativas no Ceará, em 2000, 560 localizavam-se na Capital. No comércio atacadista, a concentração ainda era maior, chegando a 66% de um total de 3.567 estabelecimentos. Em alguns setores especializados do comércio varejista, a relação de Fortaleza com o interior do estado era, igualmente, de preponderância: as livrarias, papelarias e artigos de escritório (62% de 1.331), e o setor de brinquedos (61% de 1.160). O artesanato (com artigos de couros e de cerâmica) concentrava 64% dos 624 estabelecimentos comerciais em Fortaleza. Os serviços, também, estavam predominantemente na metrópole (58% de 5.037), notadamente, os de saneamento, limpeza urbana e construção civil (76% dos 1.944 estabelecimentos). Finalmente, para se ter uma idéia do volume de capitais concentrados nessa capital, observe-se os depósitos bancários realizados no Ceará, em 2001, que de um valor de R$ 5.620.399.846,00, cerca de 84% foram efetivados nesta cidade (IPLANCE: 2002).

Esta metrópole atrai milhares de pessoas do interior do estado, e de vários pontos do país. A migração, nessa direção, é antiga, contribuindo para que, desde 1980, os não naturais totalizem em torno de 4% da população local (IBGE, 1980/91/2000). Este espaço é altamente disputado pelos imigrantes e pelos naturais do lugar, fazendo com que, a sua densidade demográfica, em 2000, fosse de 6.854,68 pessoas, em cada quilômetro quadrado. Os efeitos dessa concentração populacional têm sido: habitações de difícil acesso, maior nível de violência (ocorrências criminais), dentre outras desvantagens relativas (IPLANCE: 2002). Desta forma, o habitar, enquanto lugar de reprodução e de práxis social urbana, perde em qualidade (LEFEBVRE,1991).

Essas constatações, entretanto, falam de uma cidade como uma totalidade, desconhecendo as particularidades de seus bairros. Pensar e expressar Fortaleza, como um todo, é negar suas especialidades e nuances. Pouco esclarece sobre a configuração sócio-espacial desta metrópole, dizer que no ano 2000, existiam 2.141.402 residentes, todos urbanos, sendo 1.139.166 mulheres, e 1.002.236 homens; 450.756 eram jovens, com idade de 15 a 24 anos, e 75.506 eram idosos, com mais de 65 anos de idade; ou, então, que R$846,68 era o valor do rendimento médio mensal do responsável pelo domicílio naquela cidade.

Tais informações tornam Fortaleza uma cidade abstrata, onde não se sabe as diferenças entre os grupos sociais, nem onde eles se localizam, tampouco, se estão em situações de conflito e tensões. Por isso, é necessário evitar generalizações, para demonstrar a pluralidade da realidade social existente. O que faz Fortaleza diferente das outras metrópoles não é a concentração populacional, nem as desigualdades sociais, a pobreza ou a riqueza; as especificidades de Fortaleza não estão nessas informações, mas nos arranjos grupais, em suas relações de poder, e como esses segmentos sociais se posicionam no espaço.

O mito das duas cidades

Algumas análises técnico-científicas dividem Fortaleza, a partir de seu Centro, tendo a BR 116, como divisor de áreas, em duas cidades: uma pobre, do Oeste; e outra, rica, do Leste. Esta cartografia da Capital cearense apresenta oposições entre bairros onde moram pessoas de rendas diferentes, que podem ou não, ter acesso aos serviços e aos equipamentos sociais de boa qualidade:

"Nas proximidades da Jacarecanga, a chegada do mundo da fábrica imbrica novas relações a partir da separação do lugar de produção do lugar de residência em conseqüência da especialização sócio-espacial do trabalho. A cidade vai pouco a pouco criando novas formas de morar, surgem as vilas operárias e bairros inteiramente dominados por atividades e hábitos até então desconhecidos. A cidade burguesa da Jacarecanga transfere-se lentamente para o leste, alcança a Aldeota e suas adjacências, recria espaços e firma-se no cenário da contemporaneidade. (...) Entretanto, novas linhas divisórias, mais rígidas, substituem os limites e estabelecem as áreas segregadas no interior e na periferia do espaço urbano" (SILVA: 1999, p.7A).

"A cidade tem uma oferta considerável de imóveis vagos. Os pobres, alijados desse mercado, insistem nas ocupações nas dunas e várzeas de nossa cidade, lugares únicos de possibilidade de abrigo" (SILVA: 2001, p.37).

"Antes de mais nada, a desigualdade social se evidencia no plano espacial, na segmentação da cidade configurada por uma divisão entre leste e oeste. A primeira parte, predominantemente habitada pela população de padrões médios e altos de renda, concentra o comércio, os serviços de melhor qualidade e a infra-estrutura de turismo, enquanto a segunda, habitada sobretudo pelas camadas de baixa renda, a indústria, o pequeno comércio, o aterro sanitário e os serviços realizados de modo precário" (CENTRO JOSUÉ DE CASTRO: 1998, p.17).

"A zona oeste, que tem solo impermeável, elevado lençol freático e carência de infra-estrutura, apresenta uma alta densidade de população de baixa renda. Na zona leste, com melhores condições de solo e infra-estrutura, encontram-se elevadas concentrações de população com renda média e alta" (PMF: 1992, p.13).

Todas essas concepções que apartam Fortaleza, segmentando-a, estão fundamentadas em sua história de segregação espacial. De certa forma este discurso analisa a cidade com dados do passado. É uma fala que expressa uma realidade que já não é mais a mesma, portanto, a persistência deste texto não contemplará as novas tendências urbanas que os dados evidenciam.

A sustentação desse mito, da existência de duas cidades em Fortaleza, retoma a história de sua ocupação territorial, respaldada na estreita relação entre as transformações nas formas comerciais e na conseqüente apropriação do espaço urbano (PITAUDI, 2001:144).

A história registra que os artigos importados durante os séculos XVIII e XIX enfeitavam as vitrines das lojas do centro da cidade, destinadas às pessoas de mais altas rendas. Os cafés, as casas de chás os coretos das praças eram os pontos de encontro no núcleo urbano. Além disso, os transportes, também, ali se concentravam, como os mendigos buscavam o centro para sobreviver. Tudo dava vitalidade ao centro: a riqueza e a pobreza.

Até os anos trinta, a cidade de Fortaleza concentrava sua população no centro onde se localizava o comércio, e, na sua periferia a oeste, no bairro industrial de Jacarecanga, o sítio das famílias dos empresários; como também, a sudoeste, no bairro do Benfica, o logradouro de grandes proprietários de terra. A organização espacial de Fortaleza sofreu, nas décadas seguintes, uma mudança no uso e na ocupação de seu solo urbano, com a paulatina transferência das famílias de rendas alta e média para o setor leste da capital. Nessa época, as famílias pobres foram segregadas em torno dessas áreas ou nas imediações do Porto das Dragas, no litoral central desta urbe.

Aos poucos, há uma migração dos capitais comerciais para outros bairros, notadamente, para a Aldeota, área de expansão urbana a leste do centro, que passou a ser um dos núcleos dos negócios das pessoas de alta renda. A abertura de grandes avenidas facilitou o acesso a este lado da cidade por veículos particulares e coletivos, simultaneamente.

A mobilidade frenética de capitais, pelo setor imobiliário, foi uma das responsáveis por essas transformações no espaço. Alguns lugares chegaram a se deteriorar, pois perderam seu valor frente aos interesses especulativos e imediatos de lucros, em outros espaços. Foi o que aconteceu com os centros das cidades brasileiras, e Fortaleza não fugiu à regra (CARLOS, 2001:180).

Desde os anos setenta que a cidade vem crescendo no sentido leste, expandindo-se horizontal e verticalmente. A construção do Shopping Center Um, em 1974, na Aldeota, trouxe consigo inúmeros outros investimentos privados, entre unidades comerciais de bancos e cartórios. Equipamentos de ensino e de lazer, como a Universidade de Fortaleza (UNIFOR) e o Centro de Convenções, também daquele ano, levaram o tecido urbano para o sudeste. Com esses empreendimentos desencadeia-se um processo de ocupação de novos bairros, como, por exemplo, o de Edson Queiroz e o da Água Fria.

Nos anos oitenta, há uma consolidação deste expansionismo urbano, neste setor da cidade, envolvendo poderosos interesses comerciais, e, sobretudo, imobiliários. São implantados, contraditoriamente, o Parque do Cocó e o Shopping Center Iguatemi, em um mesmo espaço físico, redefinindo zonas residenciais, em áreas de manguezais, em torno de mananciais hídricos; expulsando antigos moradores, de baixa renda, que sobreviviam daquele ecossistema, e atraindo uma população de renda bem mais elevada, pela existência de infra-estrutura implantada pela administração pública.

A construção do Centro Administrativo Virgilio Távora (1981), sede do governo estadual, fez parte dessa mesma estratégia de valorização do sudeste urbano, envolvendo o poder político. Depois, o Fórum da Comarca foi transferido para o mesmo setor, em 1997, para reforçar a tendência de valorização daquele espaço.

Do outro lado, o comércio, que se dirigiu ao setor oeste da cidade, foi aquele ligado diretamente à reprodução dos trabalhadores. Conforme SILVA (2001:24), "na periferia só tem farmácia. Lojas e supermercados são sempre raros". Ao contrário, as pequenas unidades familiares de comércio, as bodegas, são muito freqüentes e permanecem oferecendo produtos essenciais para as populações mais pobres, pelo sistema de crediário, de anotação em caderneta. As feiras livres de legumes, frutas e verduras também fazem parte do cotidiano deste lado da cidade, diferentemente do seu oposto (o leste).

Ainda, segundo Silva, a distribuição dos supermercados com maior variedade de produtos sofre essa mesma tendência de instalarem-se na área leste da cidade, pela valorização que há nos seus bairros: Aldeota, Meirelles, Varjota e Água Fria. No setor oeste, poucos são os bairros onde existe esse tipo de equipamento comercial: Montese e Bezerra de Menezes.

Em termos de verticalização urbana, este é, também, um processo recente, e concentrado no setor leste, pois se iniciou nos últimos vinte anos, começando com prédios de apenas três pavimentos, progredindo para enormes e modernos espigões. Atualmente, há um movimento desenfreado de capitais em direção a essa verticalização do solo urbano de Fortaleza, notadamente na Praia de Iracema, Aldeota, Meireles, Papicu, Cocó e adjacências (SILVA, 2001:29).

Nesses espaços localizam-se os empreendimentos hoteleiros e os apartamentos para aluguéis a veranistas e turistas. De acordo com Ana Fani (2001:179), "o turismo representa a conquista de uma parcela importante do espaço que se transforma em mercadoria". Essa atividade capitalista reorientou os usos de toda orla marítima situada à leste de Fortaleza, influenciando nas áreas vizinhas.

Essa autora alerta sobre a passagem do valor de uso da terra urbana para o de troca, pela transformação do espaço em mercadoria. Com isso, nos bairros os espaços fora do valor de mercado ficariam restritos às populações mais pobres que tentam escapar desta armadilha de preço e valor. Essas brechas de espaço a serem apropriadas pelos mais pobres tornam-se, futuramente, áreas de risco ou são passíveis de desocupação. Essas estratégias determinam, portanto, que em um mesmo bairro morem próximos pobres e ricos até o limite em que as classes burguesas utilizem o aparelho de estado para retirá-los do lugar.

Acompanha esse processo de valorização do espaço intraurbano a segregação dos mais ricos e a desapropriação ou a retirada dos mais pobres. Ambas medidas envolvem melhores condições de moradia para as classes de maiores rendas.

Essa desigualdade, na posse da terra urbana, em Fortaleza, depende dos usos desses espaços pela atividade econômica (indústria e comércio), reforçada pela mediação dos poderes públicos (Estado), em termos de financiamento em infra-estrutura, que valoriza o solo enquanto mercadoria no mercado imobiliário.

Conforme recente estudo de Fuck Júnior (2002) sobre a expansão urbana de Fortaleza para o sudeste, comprova-se que essa reestruturação urbana foi possível pela valorização diferenciada do solo, recriada pelo mercado imobiliário, mediado pelo Estado, como forte agente na produção do espaço, enquanto gestor urbano e controlador dos conflitos sociais na apropriação dos espaços por segmentos da população. Ainda, segundo o mesmo pesquisador (op. cit. p.118), o Estado, por exemplo, ao fazer investimento no setor viário torna alguns locais privilegiados pela sobrevalorização do solo, que passará a ser apropriado por classes médias e altas.

Rosner e Vilsmaier, citados por Fuck Júnior (2001: 118), já haviam mencionado a estreita relação entre os interesses especulativos de ricas famílias cearenses (Jereissati, Queiroz e Ribeiro), proprietárias de terras localizados a leste e sudeste, e a política de investimentos públicos, infra-estruturais, em Fortaleza.

No espaço geográfico, o habitar supõe a articulação de duas dimensões, que são: a localização, cuja valorização no mercado é decorrente da inversão dos investimentos públicos e privados; e o seu conteúdo, que são as relações sociais ali estabelecidas. Por isso, as famílias ricas ao procurarem tranqüilidade, segurança e conforto, desde que tenham condições de acesso aos principais pontos de comércio e serviços, ao lazer e ao trabalho, estão buscando as vantagens locacionais para suas moradias. Quando essa qualidade de vida não é possível, a segregação das classes média e alta em condomínio fechado é uma alternativa utilizada. Isto é uma novidade no Brasil, na década de oitenta, e em Fortaleza é ainda mais recente, apesar de já existirem mais de 100 condomínios residenciais, quase todos eles localizados a sudeste (FUCK JÚNIOR: 2002, p.146).

O processo de desocupação de parte do Farol Novo, nas Dunas da Praia do Futuro, na zona leste, ocorreu como medida de "limpeza" da área, pela retirada dos pobres, que incomodavam aos ricos, sob o pretexto de que os pobres se apossaram de terrenos do Estado, expressando as contradições entre vizinhos.

Todos estes fatores, relativos à divisão de Fortaleza em Leste-Oeste, são reais e compõem a situação urbana desta cidade; porém, a questão que se está discutindo refere-se a desconstrução dessa idéia que abstrai a natureza das desigualdades sociais como condição de existência da própria cidade. Essa segregação social não está localizada em uma área física particular desta cidade, mas permeia toda a sua dimensão. Desta forma, essa realidade social é tensa e contraditória, em toda a extensão da metrópole, onde os conflitos entre os ricos e os pobres aparecem nas formas de uso da terra urbana. Esse processo de luta urbana é permanente, e continuará a redefinir os espaços físicos na cidade. Portanto, essa visão partimentada de Fortaleza, em Leste-Oeste, nega a amplitude e a generalidade na capital, das relações desiguais de poder entre os proprietários e os sem tetos, expressas na especulação imobiliária, e na vinculação entre senhores de terrenos citadinos e o governo.

Cartografia das desigualdades em Fortaleza

Conforme foi dito, a cidade com o tempo foi mudando seus contornos, através da mobilidade espacial de famílias abastadas, antigas moradoras do centro ou de bairros a oeste do perímetro central, que, devido à instalação de comércio e a localização de postos de trabalho de pobres, transferiram suas residências para o leste, área de expansão urbana. Porém, a novidade recente é que fica, cada vez mais difícil, o isolamento dessas famílias em bairros específicos, pois, os pobres têm aumentado sistematicamente. Como eles estão por todos os lados, a convivência com os miseráveis está se impondo aos bairros, que, anteriormente, eram redutos da burguesia; e, por isso, requer, então, que novas perspectivas de análises sejam incorporadas no discurso urbano que interpretem essas transformações na ocupação do solo citadino.

Nos anos noventa em diante, essas diferenças sociais acentuaram-se, de tal modo, que se estenderam a todas as partes da cidade, universalizando-se, nos bairros, a miséria. Não se trata de diversas cidades, dentro da Cidade de Fortaleza, mas de uma única cidade cheia de contrastes. Os dados revelam uma urbe com uma regularidade em seus bairros: uma unidade na diversidade, um espaço que existe com essa relação de oposições, ou seja, uma espacialidade capitalista que discrimina uns, ao mesmo tempo em que, privilegia outros.

Os dados do Censo 2000 (IBGE) mostram Fortaleza com 114 bairros, nos quais estão presentes as evidências das disparidades de renda e suas repercussões no nível educacional, reflexo do sistema político-econômico dominante.

Os chefes de família com rendas médias mais elevadas estavam residindo em 2000, sobretudo no leste (por tradição) e sudeste (por expansão), a começar do Centro (R$ 1.306,06), passando pelos bairros de Meireles (R$ 4.288,36), Aldeota (R$ 3.336,30), Praia de Iracema (R$ 1.859,73), Mucuripe (R$ 2.796, 98), Varjota (R$ 2.167,98), Papicu (R$ 2.220,41), Cocó (R$ 3.437,34), Praia do Futuro I (R$ 1.616,46), Joaquim Távora (R$ 1.572,94), Estância (Dionísio Torres) (R$ 3.264,66), Salinas (R$ 2.125,66), Guararapes (R$ 3.537,79), Engenheiro Luciano Cavalcante (R$ 1.469,07), Cidade dos Funcionários (R$ 1.685,57), Parque Manibura (R$ 2.125,68), Cambeba (R$ 1.675,89) e Alagadiço Novo (R$ 1.566,29). Observa-se, que esta grande área é palco de inúmeros investimentos de infra-estrutura, que beneficiam setores estratégicos da economia, como o comércio para classes de renda alta, e as áreas de recepção de turistas. Mesmo assim, alguns bairros do setor oeste aparecem entre aqueles com renda alta: Fátima (bairro próximo ao centro) com renda média de R$ 2.017,22; Benfica (bairro antigo) com 1.417,93; e, Parquelândia (R$ 1.530,53).

Ao se observar, as rendas mais baixas dos chefes de domicílios, que variam entre R$ 269,63 a R$ 373, 87, é no setor oeste, que se vê a predominância. São bairros antigos e novos que se misturam, nesse traçado, acompanhando o litoral (Arraial Moura Brasil, Pirambu, Cristo Redentor, Barra do Ceará e Floresta), além de prosseguir no sentido norte-sul (Autran Nunes, Genibau, Granja Portugal, Granja Lisboa, Bom Jardim, Parque São José, Parque Santa Rosa (Apolo XI), Parque Presidente Vargas, Canindezinho e Siqueira); finalmente, mais para o sul, encontram-se: Barroso e Jangurussu, e Curió. Alguns são bairros periféricos, outros estão nas imediações do litoral; e, nem todos, estão na mesma situação de renda. Mas, o que eles têm em comum é que se localizam em torno de fábricas, como aqueles que fazem limites com o Município de Maracanaú, sede de dois distritos industriais. Nesse caso, também, existem bairros considerados pobres no setor leste, eles se situam no extremo do litoral, no Cais do Porto e Vicente Pinzon, assim como, outros margeiam a área de expansão mais abastarda, a sudeste, que são Edson Queiroz e Sabiaguaba (figura1).

Verifica-se uma associação direta entre níveis de escolaridade e renda. Nos bairros, onde os chefes de família apresentam níveis mais elevados de renda, eles situam-se melhor quanto à escolaridade, entre aqueles, que estudaram 15 anos e mais. Ao contrário, onde os chefes têm rendas mais deprimidas, eles, também, apresentam uma tendência maior de estarem sem instrução ou terem cursado apenas um ano de estudo. Alguns casos chamam atenção, pela diversidade de situações, sugerindo que os bairros não são áreas tão homogêneas como se pode supor.Por exemplo: os bairros Edson Queiroz e Vicente Pizon, tidos como de rendas baixas, registraram chefes com educação nos dois extremos: os de mais de 15 anos de estudo; e, os sem instrução e os com apenas um ano de estudo. São essas diferenças que remetem a pesquisa para o questionamento desse discurso sobre os bairros do leste e do oeste.

A distribuição dos domicílios improvisados, em Fortaleza, segundo setores censitários e bairros, mostra o quanto a problemática habitacional está pulverizada em todo tecido urbano; tendendo a uma concentração nas áreas onde a ocupação ainda é incipiente, ou, nesses locais, considerados de risco. Nesse tocante, há pouca diferença entre os setores oeste e leste. Bairros, tidos como ricos, p. ex.: o Papicu e a Praia do Futuro I, mostraram concentrações de domicílios improvisados. Outros, tradicionalmente, de famílias abastadas, como Estância (Dionísio Torres), tinham um percentual expressivo desse tipo de habitação (figura 2).

A construção de conjuntos habitacionais na periferia oeste permitiu que houvesse uma maior concentração de domicílios próprios, quitados, nessa área. Assim, os bairros considerados de alta renda, situados na região leste não são detentores únicos dessa condição.O sonho de aquisição da casa própria, como parte dos valores, da maioria dos segmentos sociais da sociedade cearense, pode explicar essa situação (figura 3).

O problema do déficit habitacional pode, em parte, ser visto pela distribuição dos domicílios alugados, que estavam no setor oeste, no centro e no leste, particularmente, para atender o turismo. Os domicílios cedidos por outra pessoa, afora o empregador, mostraram as necessidades de moradia na periferia de Fortaleza, apesar dessa modalidade acontecer nos quatro pontos da cidade (figuras 4 e 5).

A verticalização de Fortaleza está concentrada nos bairros do leste, notadamente, no Meireles, Aldeota e Cocó; mas, ela, também, segue para oeste, em Padre Andrade, Pici e bairro de Fátima (figura 6).

Outras informações, sobre o domicílio, complementam essa discussão sobre o habitar. Em termos de abastecimento d'água, quase toda a metrópole estava sendo atendida por rede geral. Poucos utilizavam poço ou nascente, e, menos ainda, procuravam outra forma de suprimento. Esses últimos casos localizavam-se em de lugares periféricos, de risco, por situarem-se em vazantes, não se limitando ao leste ou ao oeste da cidade. Na Praia do Futuro II e no Vicente Pizon, por exemplo, ocorreu com freqüência essa tipologia de abastecimento (figura 7).

O esgotamento sanitário, por rede, estava restrito à faixa litorânea e a alguns conjuntos habitacionais. Nesse sentido, não há, praticamente, diferenças entre os setores leste e oeste. A fossa rudimentar surge como alternativa de solução popular e vai complementar os espaços deixados pela ausência da rede coletora. Ainda assim, havia um expressivo número de domicílios sem banheiro ou sanitário; cuja predominância, mostrava-se, bem mais visível, na periferia e naqueles lugares com características mais rurais, do que urbanas. No setor oeste, a falta de sanitários apareceu com maior expressão em Vila Velha, Passaré, Jangurussu, Siqueira, Parque Presidente Vargas e Bom Sucesso. Ao leste, observa-se, com destaque, no bairro Vicente Pizon, considerado um bairro rico, além de, em menor escala, aparecer em bairros em expansão, tal como Sabiaguaba (figuras 7 e 8).

O sistema de coleta domiciliar de lixo, também, está bastante disseminado em Fortaleza; ficando de fora, apenas, aquelas periferias mais distantes e de ocupação mais recentes, como, as localizadas no setor leste; situação desvantajosa, em comparação, ao setor oeste da cidade. Antigas práticas de destinação do lixo, mais comuns, em áreas rurais, ainda acontecem em Fortaleza. Por exemplo, costuma-se enterrar o lixo domiciliar na propriedade. Esta é uma iniciativa mais freqüente na periferia do setor leste, que é, de ocupação mais dispersa e recente, como foi dito anteriormente. Outras práticas, também, agressivas ao meio ambiente, que prejudicam o habitat, como p.ex. o lixo ser queimado na propriedade, ou ser jogado em terreno baldio, ou logradouro, são claramente periféricas, embora, não se faça diferença entre os setores leste e oeste, que se mostram ambos com esses mesmos problemas. Chama-se à atenção, inclusive, para Vicente Pizon, que sendo considerado um bairro rico, ainda, se adota essa prática de destinar os resíduos sólidos a terrenos baldios e logradouros. O número dos que lançam esses dejetos em rio, lago ou mar é bastante diminuto, entretanto, ele vai aparecer em áreas vazantes a rios, particularmente, situadas a oeste da cidade (figuras 9, 10 e 11).

Assim, ficou claro que a segregação social e a expansão da periferia seguem a lógica do avanço capitalista, que desconhece os espaços particulares, e homogeneíza suas contradições e tensões em todo o território.

Comentários finais

As principais constatações retiradas dessa pesquisa foram reveladas com o auxílio de escalas micro-espaciais, onde, pouco a pouco, o habitar mostrou-se diferenciado, desfazendo as certezas anteriores sobre os bairros, tidos como um todo homogêneo. Os indicadores mostram a coexistência espacial de ricos e pobres, em um mesmo bairro. Bairros considerados ricos, que aparentavam uma paisagem mais visível da riqueza, guardam uma miséria que os dados censitários fizeram emergir.

A fragmentação do espaço tornou-se visível na escala de setores censitários, evidenciando as heterogeneidades e as homogeneidades dos espaços intraurbanos, inerentes aos bairros. Por isso, a divisão de Fortaleza em dois setores é bastante questionável, do ponto de vista da expressão da realidade social. Sob vários aspectos, aqueles bairros, tidos como ricos, apresentaram ilhas de pobreza e os considerados pobres mostraram dimensões de riqueza.

As informações desvendaram um ladrilho de pequenas unidades censitárias, nem todas de mesmo tamanho e da mesma forma social, revelando uma apropriação do espaço urbano de modo desigual e articulado.

 

Bibliografia

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SILVA, José Borzacchielo da.  A Cidade partida. Fortaleza, Jornal O Povo, 10 de outubro de 1999, p.7A.
 

Anexos
Figura 1. Fortaleza, renda dos donos dos domicílios altos e baixos segundo bairros, 2000.
 
Figura 2. Fortaleza, domicílios particulares improvisados, em setores censitários e bairros, 2000.
 
Figura 3. Fortaleza, domicilios particulares permanentes propios quitados en setores censitários e bairros, 2000.
 
Figura 4. Fortaleza, domicilios particulares permanentes alugados em setores censitários e bairros, 2000.
 
Figura 5. Fortaleza, domicilios particulares permanentes cedidos por outra forma não empregador em setores censitários e bairros, 2000.
 
Figura 6. Fortaleza, domicilios particulares permanentes tipo apartamento em setores censitários e bairros, 2000.
 
Figura 7. Fortaleza, domicilios particulares permanentes com banheira ou sanitario e rede geral de esgoto ou plumas em setores censitàrios ou bairros, 2000.
 
Figura 8. Fortaleza, domicilios particulares permanentes com banheiro ou sanitario em fossa rudimentar,  em setores ou bairros, 2000.
 
Figura 9. Fortaleza, domicilios particulares permanentes com lixo queimado na propriedade em setores ou bairros, 2000.
 
Figura 10. Fortaleza, domicilios particulares permanentes com lixo jogado em terreno baldio, em setores ou bairros, 2000.
 
Figura 11. Fortaleza, domicilios particulares permanentes com lixo jogado em rio, lago ou mar em setores ou bairros, 2000.


 

 

© Copyright Ana María Matos Araujo y Adelita Neto Carleial, 2003
© Copyright Scripta Nova, 2003

 

Ficha bibliográfica:
MATOS, A. M. y NETO, A. Opulência e Miséria nos Bairros de Fortaleza. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2003, vol. VII, núm. 146(030). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-146(030).htm> [ISSN: 1138-9788]

 
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