Menú principal
Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788.
Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VIII, núm. 170 (32), 1 de agosto de 2004
“FAVELAS.COM": UMA ANTROPÓLOGA NA FRONTEIRA DO VIRTUAL

Caterine Reginensi
Antropóloga
Universidade de Toulouse Le Mirail



“Favelas.com”: uma antropóloga na fronteira do virtual (Resumo)

O artigo discute as formas de acesso à novas tecnologias nos espaços considerados como territórios da exclusão. Propõe uma leitura do site www.rocinha.com.br , espaço virtual do que é considerada a maior favela da Ámerica Latina, no Rio de Janeiro (Brasil), a partir de dois temas : o espaço de trabalho e o turismo.

Minha problemática é tentar compreender qual representação os indivíduos têm sobre as novas tecnologias. A questão a ser discutida seria: como essa apropriação, tanto da tecnologia como dos novos territórios (físicos, simbólicos e virtuais), pode modificar o cotidiano e favorecer uma nova forma de cidadania?

Palavras chaves: Favela, espaço virtual, trabalho, turismo, cidadani


Favelas.com: an antrophologist in the virtual frontier (Abstract)

This article is dealing with the forms of access to new technologies in the spaces considered as territories of exclusion. It proposes through a reading of the Internet site www.rocinha.com.br , which is the virtual space of the favela considered as largest of Latin America, to consider two topics: the space of work and tourism. My work is aiming at understanding which representation have the individuals of new technologies. The question in debate is as follows: how this appropriation, at the same time of a technology but also of territories(physic, symbolic and virtual) can modify the daily one and favor a new form of urbanity?

Keywords: Favela, virtual space, space of work, tourism, urbanity


Este artigo propõe uma leitura cruzada de um trabalho de campo realizado no Rio de Janeiro, na comunidade da Rocinha em 2002[1], e do site www.rocinha.com.br, espaço virtual da Rocinha. Completei esta leitura com entrevistas com atores das tecnologias de informações, comunicação (TIC) e com alguns moradores (fevereiro 2004).

A partir da minha preocupação de tentar compreender qual a representação os indivíduos têm das novas tecnologias, entendo colocar a questão de uma maneira diferente, ou seja : estas tecnologias podem ser ou podem virar ferrementas aptas para construir uma cidade sustentável ?

Tentarei na primeira parte situar o debate no contexto da globalização e das cidades. Na segunda parte, vou abordar o tema no contexto da Rocinha, escolhida como lugar de pesquisa e de reflexão sobre a apropriação tanto da tecnologia como dos novos territórios (físicos, simbólicos e virtuais).

Por fim, falarei da minha última viagem na Rocinha e a situação preocupante com relação à violência no cotidiano intitulada por vários interlocutores : “Guerra na Rocinha, é a paz que nós queremos”. Abordarei nesta última parte a questão extremamente complexa da relação entre violência e tecnologia.
Emergência das “novas” tecnologias no contexto da globalização e a questão da sustentabilidade: abordagem teórica empírica do tema no espaço das cidades.

O interesse pelo impacto das novas tecnologias de informação na sociedade se focaliza na construção de análises com abordagens teóricas de disciplinas distintas sobre uma sociedade cada vez mais envolvida em redes complexas (tecnológicas, econômicas e sociais) e influenciada por um tipo “de desenvolvimento socio-técnológico não livre de riscos e conseqüências indesejáveis” (Machado: 2003,p.9).
As novas tecnologias, que não são realmente “novas”, mas diferenciam-se das tecnologias clássicas (imprensa, rádio, televisão), têm um papel importante e determinante na sociedade. Assim como a maioria das atividades humanas, no cotidiano, no trabalho, ao nível local e ao nível planetário, estão diretamente ou indiretamente relacionadas e modificadas pelas trocas de informações e de dados que generalisam o desenvolvimento das tecnologias da informação e da comunicação.
Surge uma economia em rede, que implica transformações organizacionais e institucionais. De acordo com Castells (1999, p.188) as redes são os componentes fundamentais das organizações, sendo capazes de formar-se e expandir-se devido ao poder das informações divulgadas.
Falar sobre a “era da informação” transforma-se em um lugar comum.

Manuel Castells debate os temas da “era da informação” e da cidades. No caso dos Estados Unidos, este autor sulinha a emergência de uma cidade fragmentada e de uma nova concepção do espaço urbano e da relação indivíduo/cidade, mas as novas tecnologias não modificam a localização das atividades econômicas (1989, p.226).

No contexto da globalização, as cidades, para ele e para Jordi Borja, passam a depender cada vez mais das formas de articulação da economia global e, por conseqüência, a “nova fronteira da gestão urbana” consisteria em “situar cada cidade em condições de enfrentar a competição global da qual depende o bem-estar de seus cidadãos” (Borja e Castells:1998;p.31).

Nesta abordagem, não há contradição entre a agenda da competitividade e a da sustentabilidade urbanas, visto que uma não pode existir sem a outra. Aliás, os dois autores estabelecem uma relação entre qualidade de vida urbana e competitividade, afirmando que “as novas condições de produção, distribuição e comunicação convertem a qualidade de vida urbana em um fator essencial de atratividade para investimentos e para a mão-de-obra altamente qualificada. Ao mesmo tempo, o entorno social positivo permite aumentar a produtividade dos recursos humanos ao mesmo tempo que ajuda a desenvolver atitudes positivas” (op.cit. p. 204).

Em um texto mais recente (publicado no Brasil em 2003, Machado,org., op;cit. pp. 15-31), Castells, debate, entre outros, sobre o tema cidades/novas tecnologias destacando o papel da Internet na criação de políticas inovadoras que estimulem a participação cidadã e reflita em uma maior qualidade de vida.

Porém, é importante considerar o papel da tecnologia na articulação do território em função do uso –ou não uso -que será feito da tecnologia. As tecnologias e os usuários das tecnologias não representam um grupo homogêneo e é essencial comprender a lógica dos usos. Por exemplo, retomando as palavras de Schwach, (1992, p.105) : “para alguns é evidente que certos problemas administrativos possam ser resolvidos por telefone, mas para outros, sem bem que dispondo deste tipo de equipamento, preferem ir pessoalmente ”.

Este comentário mostra que o uso das tecnologias provoca interações espaciais e sociais muito diferenciadas. A abordagem adotada consiste em compreender como os indivíduos utilizam as tecnologias e como esta utilização modifica o cotidiano deles. Então, quais são os métodos para abordar o papel das tecnologias, a suas influências na emergência de novas formas de urbanidade, nas cidades ?

A utilização das tecnologias no cotidiano e nos modos de vida se aproxima da teoria chamada sociologia dos usos e da apropriação. Esta teoria sugere que o indivíduo e os grupos, em diversos contextos, reinventam os usos tecnológicos, restruturam o espaço-tempo social, superam a distância, transgridem as barreiras (geográficas) manifestando relações privilegiadas com a realidade destes novos espaços (Chambat, 1994, Harvey,1995). Trata-se de uma aproximação que quer levar em consideração e valorizar o contexto cotidiano. Aliás, os objetos tecnológicos só são integrados ao cotidiano se eles correspondem às representações dos indivíduos. Assim, cada um pode utilisar diferentemente as diversas tecnologias. Enfim, esta aproximação se inscreve no quadro da reflexão sobre a relação indivíduo/cidade mas também no quadro pouco claro do famoso desenvolvimento sustentável. De fato, o desenvolvimento sustentável é um sujeito atual que capta, de um lado, o interesse dos pesquisadores, dos peritos, dos políticos e do mundo associativo. A noção é todavia vaga e é o objeto de numerosas controvérsias. Todos os atores se referem ao relatório Brundtland (1988) e quatro noções estão no centro de todos os discursos:

·A econômica que se refere aos países do Norte e do Sul e interroga os modos de produção, o comércio e a consumação,

·O aspecto social que tenta levar em conta as desigualdades e os desequilíbrios sociais,

·A ecológica e o meio-ambiental que são o fil condutor dos diferentes discursos,

·A governança que questiona sobre os modelos de governo, poder político e de gestão pública e se baseia na idéia de democracia participativa, muito inspirada do “caso brasileiro”, à saber, o orçamento participativo em Porto Alegre.

Trazer o tema das tecnologias de informação e de comunicação (TIC) para o debate sobre o desenvolvimento durável das cidades significa aproximá-lo cada vez mais da aproximação teórica e empírica escolhida : uma sociologia de apropriação. A apropriação controlada das tecnologias da informação e da comunicação se baseia nas relações ativas entre as técnicas e as pessoas : domínio dos meios que não devem somente ser impostos à nível técnico e econômico mas cujos os usos os mais pertinentes se impõem no interior das energias e das sinergias sociais : então, aprendizagem e consciência crítica destes meios estão no centro do debate assim como uma aproximação transversal (científica, cultural, geopolítica) do objeto da pesquisa.

Minha contribuição visa, através do estudo do caso apresentado, questionar mais e amplamente em vista de uma verdadeira pesquisa futura. Duas questões principais serão enfocadas :

-Quais são as implicações da utilisação da TIC para os indivíduos dos bairros considerados como territórios de exlusão ?

-Como os cidadãos destes diferentes lugares podem dominar as TIC e melhor participar da vida da cidade, do bairro ?

www.rocinha.com.br : Da favela ao bairro : à procura da sustentabilidade na era da informação.

Várias abordagens apresentam os bairros populares, chamados “favelas”, como lugares da pobreza urbana ou como espaços de segregação. Os moradores destes bairros são representados (tanto na mídia como pelos cientistas) como excluídos, marginalizados da sociedade moderna, e o efeito da mundialização provocaria uma degradação dos territórios e da situação dos indivíduos (ao nível da moradia como da vida social em geral) acentuando o processo de exclusão social. Assim, as tecnologias de informação e de comunicação não seriam acessíveis para esta parte da população urbana considerando-se que eles possuem um modo de vida “tradicional”, “popular” dominados pela informalidade. Uma referência à “cultura da pobreza” (Oscar Lewis) numa visão, monográfica e descontextualizada predomina nos estudos das populações de baixa renda no Brasil mas também em diferentes países do Sul.

O processo de vitimização étnica ou racial das condições sociais, a feminização da pobreza e a cultura dos guetos são os temas destacados nos discursos em torno da pobreza e da exclusão. Outras visões existem. Por exemplo o antropólogo Michel Agier discute esta questão da cultura e da pobreza e sugere, estudando alguns casos brasileiros, levar em consideração os diferentes níveis das relações e das interpretações onde se cria o sentido das situações de pobreza; para isto ele se dedica particularmente aos espaços “medianos” dos grupos, às instituições “do meio”, intermediárias (associações, igrejas, sindicatos, grupos culturais), que desenvolvem os ritos e os valores ao mesmo tempo que os laços sociais (1996, p.227).

É importante contrastar a realidade dos moradores da favela e demistificar a “pobreza urbana”. A antropóloga Janice Perlman (1977), tentou fazê-lo, no seu trabalho de pesquisa baseando-se em depoimentos de mais de 300 famílias em comunidades do Rio de Janeiro. Ela mostrou que a favela deve ser vista como uma invenção urbanística solidária de comunidades e não como um gueto de marginais.

Este novo enfoque, pioneiro, mudou o padrão antigo de intervenção pública. Esta mesma pesquisadora voltou ao Brasil recentemente, localizou e entrevistou umas 700 pessoas (2003). Diante dos dados apresentados por Janice Perlman é interessante ressaltar que, se os moradores das favelas não podem ter poupança, o nível de consumo de bens deles é uma prova da elevação dos seus padrões de vida e a pesquisadora acrescenta: “a realidade é consideravelmente mais complexa do que as porcentagens apontam.”

O professor Pedro Abramo, do IPPUR, no estudo piloto realizado em parceria entre a Prefeitura do Rio e o Instituto de Planejamento Urbano e Regional (IPPUR) da UFRJ (2003), trata da favela como um pólo gerador de riqueza. No complexo da favela de Jacarezinho: “esta (favela) possui estrutura comercial e mercado imobiliário compatíveis com o modelo de uma cidade média em nosso país”. São 58 mil habitantes, 17.200 domicílios distribuídos em uma área de 350 mil metros quadrados, na região norte do Estado, numa área próxima à estação do metrô, do trem suburbano e servida por dezenas de linhas de ônibus. Essa comunidade recebeu , através do programa “Favela-Bairro” investimentos e a pesquisa do IPPUR confirmou outro estudo feito no contexto de outras áreas que as favelas também têm um conjunto de ímoveis destinados à atividades produtivas. Dentro de uma favela desse porte, em 2001, a proporção era de 1,9 imóvel não-residencial para cada 100 habitantes quando, na cidade do Rio havia 5 estabelecimentos para cada 100 habitantes da área tradicional da cidade. Dentro da favela do Jacarezinho, a pesquisa identificou 934 estabelecimentos, unidades produtivas registradas ou não. Deste total, 742 operam de forma cotidiana em horário comercial.

Retornando ao objetivo deste artigo, que é o de entender a utilização das tecnologias para os moradores de baixa renda na Rocinha., tenho que mencionar as pesquisas da socióloga Licia Valladares (1978, 2002, 2003) que reviu o estereótipo do “território da exclusão”, apoiando-se no caso da Rocinha, mostrando que a mundialização atua sobre “os pobres” de maneira diversificada, com modalidades diversas. Uma delas fala da ordem da integração, parcial mas crescente, das populações no mercado. Ela fala também da Rocinha a partir do site www.rocinha.com.br , presença anunciada, num imóvel, na saída do túnel Dois Irmãos, que permite a ligação entre os bairros místicos da Zona Sul do Rio: Copacabana, Ipanema e Leblon com a área super chic de São Conrado e Barra da Tijuca. A primeira vez que vi a Rocinha foi em 2000, de ônibus atravessando esta paisagem de praias e de repente a Rocinha, como que suspensa no ar, gravou-se na minha memória. Em 2002, trabalhando na pesquisa, descobri o anúncio do site, tal como explica Licia Valladares.

Leitura do lugar através do site e da TV ROC (o cabo da Rocinha)

Entrando no web, o site da Rocinha oferece um portal de acesso à informações variadas sobre a comunidade e permite a consulta de diferentes links . Dando um clic a homepage apresenta 5 temas : História, Notícias, Empresas, Pessoas, Localização.

Vou começar pela história.

Rocinha, considerada como a maior favela da América Latina, situada no bairro de São Conrado, tem uma história confusa:“Gente que vem de longe; trazendo força de vontade efé pra dividir com quem mais precisar. São confusas as origens da Rocinha, dizem que tudo começou com uma pequena produção de gêneros alimentícios que eram vendidos para as casas vizinhas em São Conrado e Leblon(...). Como era uma roça muito pequena e humilde era conhecida como rocinha. Tanto se falava sobre a tal rocinha que mais e mais pessoas passaram a buscar abrigo nessa área. Com o tempo esse comércio começou a ficar mais denso e o nome pegou definitivamente. Outras fontes dizem que o nome provém de uma ex-moradora, muito loira, com cabelos quase brancos que foi apelidada de “Russinha”, e por ser muito conhecida no local deu nome ao bairro” (Tema “História”, no site da Rocinha ). Em um trabalho de mestrado de antropologia social (Segala,1991), dois relatos místicos principais confirmam essa origem vaga da comunidade.

Primeiro relato:...”Isso aqui era uma chácara, não existia essa comunidade favelada. A estrada da Gávea era um caminho por onde passavam aqueles vendedores de frutas que vinham de Jacarepaguá com aquelas tropas de camelos e burros... Eles diziam : “Vamos na rocinha pra ver se elas têm”. Então pegou, por causa da roça, da chácara que elas tinham, pegou o nome”. (Ismael Elias da Silva, morador da Rocinha)

Segundo relato: “Na época da Estació de Sá , morava aqui uma mocinha muito bonita, muito loura, que se chamava “Russinha”... ficou nome da Rocinha, não tinha nehuma roça aqui”. (Evan Martins, morador da Rocinha).

Se continuarmos a visita do site, a história mais recente da comunidade está expressa desta forma:

“1992 ano da virada, a Rocinha passa a ser considerada oficialmente como um bairro. Passa a ter sua própria Região Administrativa e um Administrador Regional”.

Acima de tudo é interessante esta leitura da identificação da Rocinha com a cidade do Rio de Janeiro: de um lado a história, seja mística ou real e, do outro lado, a apropriação da palavra “bairro” para designar o lugar. Já na pesquisa, em 2002, podemos perceber que nem todos os habitantes têm a mesma imagem da cidade, a mesma relação ao urbano. Assim, a questão da urbanidade e dos processos de identificação ao urbano se coloca de maneira crucial nas Américas (Monnet, Capron: 2000).

Uma moradora da Rocinha valoriza a vantagem de viver na Rocinha, tido como um lugar “amigável” :

“A vantagem é porque, eh... você faz amigos....Eu acho a vantagem assim : a amizade.(Ester, moradora da Rocinha)”

Outra dizia: “A favela não foi feita, mas existe para. Não tem que existir para. Mas, o motivo dela existir é esse”. (Lucimar, 33 anos e nascida na Rocinha).

O discurso sobre a Rocinha no site participa desse trabalho de demistificação da pobreza e propõe a idéia de surgimento de um novo consumidor. O comércio descobre a Rocinha; sabem que, por trás da aparência pouco sedutora da comunidade, se esconde um novo tipo de consumidor. Pessoas com renda média de R$ 400,00 que começam a dar forma àquela que já pode ser considerada a maior empresa a céu aberto do Cone Sul: ROCINHA S.A.

A empresa [2]é a outra temática a descobrir no site:

“Deacordo com estimativas da Associação Comercial da Rocinha, a ex-favela abriga hoje cerca de 2.500 estabelecimentos - entre lojas de eletrodomésticos, bares, academias de ginástica,restaurantes de comidaà quilo, papelarias, lojas de CDs e quase tudo que se possa imaginar. Empreendimentos, que proliferam da noite para o dia, atestando que investir no potencial de consumo da Rocinha é um bom negócio.

Mudar o olhar sobre a Rocinha é a proposta do site que foi criado pela iniciativa da TV Roc, o cabo do lugar (www.tvroc.com.br) . “A informação como geradora de conhecimento, já não estará nas mãos de poucos mas verdadeiramente ao alcance de todos. Não será mais o privilégio de alguns mas sim uma realidade alcançável por todos. A Internet é a grande democratizadora do saber”.

“A TV ROC aposta no futuro, aposta nas possibilidades; com sua rede codificada preparada para receber tecnologia última geração, aposta no homen. A rede mais moderna de todo Brasil à serviço dos marginalizados aposta na criatividade do homen moderno com a convicção absoluta de que nós homens devemos criar um milênio com igualdade de oportunidades, com a possibilidade de ter uma cultura sã e de dizer não ao sometimiento, às drogas e às armas. Um milênio de superação, criatividade e conhecimento a serviço da justiça e da igualdade”.[3]

A TV ROC é um empreendimento iniciado em 1997 por um pequeno empreendor argentino chamado Dante Quinterno. Ele define o projeto como pioneiro (entrevista do 4 de feveiro de 2004) : “Um projeto pioneiro de democratização das informações através de um dos meios de comunicação que neste momento é a TV a cabo. Em 1996, iniciamos em parceria com a Globo (www.globo.com.br), a UTH Unite Global (www.uniteglobal.com) e o Banco Icatu (www.icatu.com). Isso no Rio, em Londrina e em São Paulo mas com uma experiência anterior no Perú e  na Argentina desenvolvendo operações de tv a cabo para classes baixas. Considerando que mais de 60 % da população brasileira é de baixa renda, deveríamos mostrar aos moradores e às empresas estrangeiras a nossa capacidade de desenvolver produtos, visto que são populações e cidadãos de comunidades emergentes. O principal é considerar que para os cidadãos das favelas é importante democratizar a informação.(...) Outro ponto:  se 1% está envolvido com a criminalidade, o que está acontecendo com os 99% restantes? Então, nosso trabalho em 96/97 foi investir no trabalho com o restante, os 99% que são o mercado emergente. Começamos fazendo em 1996 uma pesquisa não só orientada ao consumo de tecnologias mas ao acesso ao rádio, à tv, Internet, computação. Mas também sobre as cores, entender como funciona a casa, quem maneja as finanças, quem são as pessoas da casa : pai, mãe e outras pessoas. Assim, eles escolheram as cores e o nome da TV. A pesquisa foi feita por pesquisadores de fora.”

O diretor explica também como a TV a cabo gera emprego na comunidade: “ 70% dos empregados sobre 32 pessoas empregadas são originárias da Rocinha : departamento técnico, recepção... nós criamos postos de trabalho e dentro da comunidade, um posto de trabalho gera auto-estima. Abrimos uma possibilidade, uma porta… ”

Trabalhar com parceiros neste processo de desmitificação da favela, revela-se muito importante. Por exemplo : com organismos de formação como o SENAC ou com universidade (a Universidade Católica do Rio –PUC) para intercambiar estagiáiros ao nível de jornalismo : “ O mais importante é que estas pessoas tenham amanhã a possibilidade de uma bolsa. Elas podem passar um tempo de prática dentro da comunidade fazendo uma matéria e depois vaõ embora”.  (Entrevista Dante)

Essas trocas permitem integrar pessoal competente: “Temos um radialista  que tem um programa de 35 minutos falando da Rocinha.”(entrevista Dante).

Como ele interpreta este acesso à tecnologia ? Dante coloca na análise a questão do acesso à cidadania:

“2003 foi uma época de diversas conecções com vários setores novos, vislumbrado com as novas tecnologias que estavam aparecendo. Isso deu um novo sentido de cidadania para as pessoas dentro da comunidade : o acesso não só aos programas de televisão (cartoon, canalde esporte) mas poder participar ao vivo e em direito da eleição do presidente da associação demoradores. Então, acho que os favelados, através de diferentes tecnologias, conseguiram um direito à cidadania”.

Este acesso à cidadania também passa pela parceria com diferentes canais na comunidade: escola, posto de saúde, com empresas : a parceiria com a TIM (provedor de celulares) é um exemplo de relação tanto comercial como simbólica forte:

“ A TV Roc funcionou como uma ponte quando a TIM quis apresentar os celulares na Rocinha. Convidamos tudo o mundo da comunidade e fizemos um café da manhã com a Tim e os celulares no meio da favela. O pessoal da TIM perdeu o medo da favela, gueto inexplorado. Acho que é importante desenvolver metodologias totalmente distintas das que utilizam as agências de publicidade para realmente se introduzir dentro da comunidade. Eles não falam da favela mas da urbanização, das canalizações, através da  comunicação interna, por  códigos, pela língua. ”(Entrevista Dante, op.cit)

A TV ROC pretende ser um serviço social adaptado à vida da comunidade dando informações no dia-a-dia. Por isso eles se opuseram ao fechamento do canal comunitário. A idéia é fortalecer o canal com a parceria das ONGS e do provedor da internet Bridgepara obter acesso rápido e barato.

Dante insiste na importância de desenvolver uma nova metodologia de uso dessas tecnologias :“As pessoas que moram em comunidade se você lhes dá tudo gratuitamente é muito fácil, eles não vão aproveitar mas se você lhes ensina, eles vão adoptar como uma atividade, não como uma coisa isolada como o uso de um computador”.

Este comentário se aproxima das nossas observações de campo que ressaltaram a utilização dos meios de comunicação, em particular a Internet, dentro de uma dimensão coletiva.

Na nossa pesquisa de 2002, os entrevistados indicaram terem celular e acesso à televisão mas nehum tinha acesso à Internet e passeando pela Rocinha, nós vimos vários lugares parecidos com cybercafés.

O link Laboratório da Internet no site da Rocinha fala das aulas de computação e o Centro Profissional da Rocinha oferece aulas de acesso e navegação Internet, com objetivo de preparar melhor os jovens moradores do bairro para o mercado de trabalho.

Os resultados não são sempre muito visíveis e capacitar os jovens utilizando Internet não é uma prioridade, como diz Carlos Costa da ONG Rocinha XXI:

“A preocupação quanto as novas tecnologias na favela não é uma prioridade. Nosso papel é mais capacitar os jovens quanto as relações humanas porque os jovens vivem uma situação de violência e de negação: eles não têm nada... Saber se relacionar com a sociedade em geral e saber absorber com menos impacto as discriminações. Na TV ROC jovens de 14 a 18 anos participam das matérias no jornal de notícias e quando eles vêem a assinatura deles no jornal, eles as mostram na escola, para a família e querem virar jornalistas”.

O tema da cidadania também sugere como conhecer melhor os moradores.

Qual seria a população atual da Rocinha? O que é o dia-a-dia deles? Quais são as caraterísticas dos assinantes da TV a cabo ?

Tais foram a minhas perguntas na leitura do site e nas entrevistas realizadas.

População: 200 mil habitantes anuncia o site. 130 mil habitantes diz Carlos Costa, presidente da ONG Rocinha XXI, mas o IBGE, pelo censo do ano 2000, contabiliza mais ou menos 42 mil. “Acontece que o IBGE considerou encerrado o trabalho na Rocinha, mas em parte da rua 4 o censo 2000 não passou...Antigamente, os mapas do recenseador tinham uma descrição: “vai do beco tal, dobra na birosca tal...”Agora não, só consta o nome da rua: Rua D, rua 4. Como o recenseador não tinha a descrição, não foi. Piorainda, nesse censo o IBGE tirou as duas meninas da Rocinha que supervisionavam o censo aqui e escolheu duas deCopacabana paratrabalhar na Rocinha. E por ai vai. Como é que vou dar credibilidade às informações que eles estão colhendo... Nós fizemos um projeto por área e enviamos seis agentes de porta em porta  para encontrar 26 mil domicílios.” (Carlos Costa in, Pandolfi, Grynszpan, 2003, p. 89-90)

O espaço da Rocinha é muito complexo. O espaço físico é dividido em vários sub-bairros – 17, nos disse um entrevistado, em 2002. Nós constatamos que a favela cresce verticalmente e que avança para dentro da mata. Nós tivemos que adotar a distinção de alto e de baixo da favela para explicar os diferentes tipos de moradia, de serviços e o seu funcionamento. Diante do pouco tempo passado no terreno, não foi possível captar todas as divisões, “ fronteiras ” simbólicas existentes no espaço da Rocinha. Estas divisões complexas são um ponto discutido na fala de Dante quando é questão dos assinantes. “Dentro da comunidade cada domicílio tem uma identificação diferente. No início, cometemos vários erros, identificamos o domicílio como uma porta, uma janela. Dentro de um andar havia subdivisões internas, com quartos internos e externos, com um banheiro compartilhado. Do nosso ponto de vista isso geraria vários assinantes. Interrelações dentro da comunidade são muito complicadas, nem todo mundo tinha linha fixa, por isso o grande número de celulares.  Através do canal comunitário, oferecemos um pacote de programação”.

Como se trata de TV a cabo, tem-se que pagar uma assinatura: “Hoje temos 30 000 assinantes.(...) Eles pagam quando podem! Oferecemos um pacote de 22 reais por mês. TV ROC é um projeto financeiro e social. A maioria da comunidade da Rocinha é assinante. Temos pessoas que pagam regularmente e há pessoas que pagam sistematicamente um mês atrasado e nós não descobrimos o por quê. 40 % pagam, a maioria são mulheres...a mulher organiza o orçamento da casa e com isso não têm dúvida. Fazer contrato com homens é o maior problema! As mulheres são mais exigentes mas são mais cumpridoras”(entrevista Dante)

Dante insiste também na diversidade dos perfis dos moradores e incorpora a noção do morador-migrante, na maioria dos casos originário do nordeste:

“A medida que fomos crescendo na Rocinha nós percebemos que há assinantes que dormem de noite e trabalham de dia. Outros, no mesmo domicílio, que trabalhavam de dia e de noite (como garçons) e outros como porteiros que trabalham de noite. Então, como classificar os domicílios?

Há um mínimo e um máximo de população nordestina na Rocinha.. A cada 6 meses há um movimento migratório, entre outobro e março. O mês de abril é um período baixo. A justificativa tecnológica de tudo isso foi a negociação da inserção da TV Aratu na nossa programação, o canal cultural dos nordestinos com apresentação da música deles... Viva favela /Viva Rio site é uma agência de notícias TV ROC que tem de alguma maneira parceira com eles”.

O atendimento a todo tipo de morador é um princípio na TV ROC. Uma pesquisa com 300 pessoas foi feita para conhecer as pessoas e atender melhor no cotidiano.

A recepção da TVROC é um lugar de sociabilidade, não existe só para efetuar pagamento. É um espaço para reclamar, divulgar informações. Fiz várias observações deste espaço e percebi que muitos moradores utilizam como espaço de transgressão de “fronteiras” entre o “velho mundo da favela” e o mundo da tecnologia, das redes de informações. A localização da empresa a 5 minutos à pé da entrada da Rocinha, perto do supermercado “Sendas”, na Estrada da Gávea, confere ao lugar um situação privilegiada. E pode-se assistir às vezes, à uma deslocalização da esfera privada. Na recepção da TV ROC as informações são anedóticas e engraçadas. Por exemplo, relatou Dante, “um cahorro se perdeu, um homem encontrou o animal e cuidou dele. O proprietário não reclamou. O cachorro se perdeu novamente e o homem  (o segundo dono) pediu ajuda à TV ROC, para procurar o animal. Foi assim que se apresentaram, de repente , na recepção, dois donos do cachorro!”

O morador pode vir reclamar, efetuar pagamento ou divulgar informações. Uma mulher diz“quando preciso comunicar alguma informação aproveito para vir aqui. Não demoramais de 24horas que já a informação circula em toda a Rocinha”(Entrevista fevereiro de 2004).Ela tinha a TV a cabo e espera que a comunidade seja equipada com Internet banda larga. Hoje utiliza a recepção como lugar facilitador de informações.

Na pesquisa de 2002, compreendi que as redes sociais que o morador organiza no dia-a-dia, baseava-se em uma troca de serviços e de informações ou seja as ligações entre indivíduos e entre grupos existiam (Medeiros, Freire e Chinelli, 2003). Mas eram muito difíceis de serem estudadas : onde começam e onde terminam as redes? Quantas combinações existem? Os recursos dos telefones celulares, da Internet que permitem uma comunicação de forma rápida podem ajudar nesta construção ou fortalecer o laço social ?

Não pretendo responder a esta pergunta, apenas sugerir que uma verdadeira investigação seria interessante para compreender melhor como os atores sociais articulam estratégias de proximidade e conexões [4].É preciso “desconstruir as lógicas individualistas” disseram vários interlocutores. Acesso à Internet não significa necessariamente que cada indivíduo tenha Internet em casa. O importante é ter várias possibilidades de acesso às tecnologias.

Faça Turismo na Rocinha(Site www.Rocinha.com.br)

Voltando à desconstrução do mito da favela, o site da Rocinha informa o internauta como fazer turismo na Rocinha. Marcelo Armstrong responsavél da Favela Tour (www.favelatour.com.br), explica assim : “Quando iniciado em julho de 1992, Favela Tour, era visto pelo trade turístico hora com interesse, hora com desconfiança e desdém. Passados 12 anos de atividades, hoje percebo surpreso como tantos outros profissionais qualificados ou não, se apresentam no mercado como operadores de passeio à favela. Confesso que não esperava chegar a tamanha popularização e até banalização deste tipo de passeio”(entrevista fevereiro de 2004)

Como esta iniciativa tem concorrência, para Marcelo Arstrong parece oportuno esclarecer diferenças diante da proliferação de serviços similares. “Não se pode olhar este tipo de tour com superficialidade. Os valores apresentados são o resultado de uma política séria e contínua de envolvimento social. Envolvimento é um compromisso nosso e não uma opção dada ao turista participante ”. Marcelo explica que “Favela Tours” tem 7 guias cadastrados no Embratur e que trabalha com uma quinzena de hoteis no Rio. Os clientes são por 60% europeus, 25% dos Estados Unidos e o demais do mudo enteiro. Os turistas pagam 60 reis para fazer três horas de passeio.

O conceito de turismo participativo, receptivo, parece funcionar. Vários depoimentos de guias estrangeiros e vários artigos apresentam Favela Tour como uma visita de favela que não se pode perder:

Mudar o olhar dos turistas sobre a favela e os favelados parece possível. Do ponto de vista dos moradores a visão é diferente pois ela não se situa no mesmo nível de interpretação do “fazer turismo na favela”: “Desenvolver uma atividade econômica (artesanato) e captar um mercado, tudo bem ! Mas parece insuficiente. Como gerar emprego de guia, por exemplo, para os jovens da comunidade?” (questiona um responsavél de associação).
Todas as iniciativas que querem dar uma legitimidade à “Rocinha bairro” na cidade apostam no futuro e na capacidade inventiva dos moradores no presente. Infelizmente o confronto com a violência entre a polícia e os traficantes constitue um elemento modificador das práticas profissionais mas também uma experiência complexa, na qual todos os segmentos da sociedade se encontram envolvidos.
O confronto da violência: entre a volta dos “velhos dogmas” e a resistência no cotidiano

“A gente entra no Rio de Janeiro como dentro de um sonho. Tudo está presente, encontrado e oferecido ao primeiro olhar, por toda a eternidade - a luz amarela da cidade, o odor forte da terra, o ar morno e apimentado, o horizonte cortado pelas montanhas, o oceano vico-prata, as favelas que sobem pelos morros, o Pão-de-Açúcar, o Corcovado, a circulação incessante…” (Lapaque, 2004, p.3)

Entrei no Rio como num sonho mas aprendi rapidamente que, às vezes, o sonho vira pesadelo. A questão da violência é onipresente. Também é pensada de forma bastante distinta pelos moradores. Na pesquisa na Rocinha, em 2002, apareceram três grupos de moradores:

-um primeiro que negava a violência como se o fato deles não terem relação com o tráfico os isentassem de vivenciar a violência:

 “Eu num acho aqui violento, não. À vista de muito bairro, bairros que têm por aí que eu vejo no Rio de Janeiro... Nada! Aqui é muito quieto. Eu não sei se é porque eu não saio à noite, eu não sei se é porque eu não fico, não fico, assim: saindo, nem perguntando... Mas num é... É quieto. Muito quieto. Eu não tenho conhecimento, assim, se é violento... não. Violento, a gente vê o mundo inteiro, tem coisa que a gente nem sabe, se acontece... mais aí.... de violência? Eu não reclamo aqui não, porque tá em todo canto. Mas aqui, não; aqui é uma das favelas que tem menos, assim... É que como eu assisto  “repórte” todo dia; então eu vejo quais são os bairros mais perigoso, que são mais falados, que acontece mais as coisa... Todo mundo sabe, né? Aqui, não. Aqui é muito quieto.” (Margarida, 43 anos e há 18 mora na Rocinha)

-o segundo grupo que reconhecia a violência na favela, mas sempre fazendo o contraponto com a violência na cidade ou com a violência em outras favelas isto é, percebe-se nos relatos uma tentativa de esvaziar a argumentação do senso comum que pensa a Rocinha como um lugar extremamente violento e localizá-la em um contexto geral de violência na cidade. Há neste grupo, ainda, aquelas que reconhecem no poder do tráfico uma forma de proteção local :

“Não tem violência. Aí é mais violento, fora da Rocinha, eu acho que aqui a Rocinha é outro lugar que não tem violência. Mas por fora, assim Cidade de Deus, Tijuca que é pesada, é quente, mas aqui na Rocinha eu posso falar que é tranquilo. Até hoje eu posso garantir.[grifo nosso]” (Antonio, 47 anos e há 25 mora na Rocinha)

“agora que tá muito perigoso aqui na Rocinha. [mas] Aqui ainda é tranqüilo, muito tranqüilo comparado ao Morro do Alemão...pô, aqui é tranqüilo demais.” (Marcos, 20 anos e nascido na Rocinha)

-um terceiro grupo relatou os impactos da violência no cotidiano de suas vidas. Embora, muitos destes relatos também localizem a violência na favela em um contexto mais amplo, eles apontam para a especificidade de viver sob as leis do narcotráfico:

“Tem essa violência[do confronto com a polícia], né? porque aí você corre o risco da bala perdida. Você tem esse confronto; aonde tá acontecendo, de que maneira, nem tudo que sobe desce (risos). Mas tem a violência também do próprio tráfico, porque acaba , de uma certa forma, você ehh..., sabendo que existe, né? e... você tendo que conviver com ele, mas de uma maneira que, você tem que saber conviver, saber conviver, porque a ASPA nunca se envolveu, nunca se envolveu com o tráfico, nunca foi pedir nada ao tráfico, então, nós fazemos nosso trabalho, e eles faz o trabalho deles lá; trabalho deles, então o problema  deles é com a justiça. Então nós, desenvolvemos nosso trabalho, na tentativa de prevenção, né? (Firmino, 35 anos e há 8 mora na Rocinha).

“Quando entra a polícia é um grande problema porque, a penúltima vez que eles entraram aqui, tem aquela história de avisar, mas quando as crianças desceram para ir paras a escola, eles desceram por dentro, pelas escadas, não passou cinco minutos que eles saíram de casa e foi tiro para um lado e para outro. Aí minha irmã desceu correndo e nós ficamos aqui feito umas loucas, porque a gente não sabia se eles estavam presos ali no meio do caminho com os tiros ou se eles tinham voltado. Quer dizer, a gente não sabia o que tinha acontecido. Só que quando começou os tiros eles voltaram e foram pegar ônibus lá na rua que eu te falei, fizeram a subido toda da ladeira, só que a gente não sabia, aí o que que aconteceu? A minha irmã desceu atrás deles e ficou presa lá em baixo sem poder subir, que aí dá tiro de um lado, dá tiro de outro, quem é que vai se meter no meio, bala não tem endereço, nem dono. Então deixa ver se eu entendi o que você falou, se eu tiver errada você me corrija: de certa forma, quando está sem a polícia, quando estão só vocês e o pessoal do movimento, se vocês não se meterem eles também não se metem como vocês, e aí fica tranquilo.

É exatamente isso, sobra para todo mundo, porque eles vão defender o que é deles, a polícia também quer fazer o que é delas, só que quem tá no meio, se metendo ou não se metendo, se você tá passando na hora do tiro ou você se abaixa ou você se abaixa, porque o tiro vai pegar. Cada um quer ver o seu lado, tanto a polícia quanto o pessoal do morro, cada um cuida do que é seu. Até aí tudo bem, só que os inocentes que vão passando na hora do tiro”. (Lucimar, 33 anos e nascida na Rocinha).

Estas diversas representações da violência estão relacionados com outras representações ainda mais fortes do território da favela já sulinhadas anteriormente mas, sobre as quais acho interessante voltar para compreender o processo da violência e as formas de mobilisação dos diferentes atores da Rocinha através das tecnologias de informação e de comunicação.

Como observa Licia Valladares (2002;op.cit.), três “dogmas”contribuiram para gerar representações da favela : a favela “lugar da pobreza” é um território considerado por vários atores como homogêneo, a imagem da cidade partida (Ventura,1994) simboliza o território dos excluídos e por fim, a idéia da favela território específico (Zaluar, Vito,1998). Neste último dogma encontra-se a figura do traficante. A trajetória social típica dos jovens favelados seria o mau resultado escolar e a atração pelo dinheiro e pelo poder, a entrada no “ movimento ” do tráfico de drogas. “ Movimento ” designa as atividades ligadas com a droga pelos membros ou os simpatisantes do grupos ligados ao narcotráfico. Este termo  daria uma certa conotação positiva. Nota-se ainda que o tráfico é um mercado de trabalho, mas  não só. Ele é também uma das formas de expressão da revolta antipolicial, uma maneira de administrar o risco e uma técnica de individuação (Peralva, 2000, p.156).

O tráfico nada mais faz que aproveitar esta cultura da pobreza e assumir várias práticas que sempre existiram nas favelas, levando-as a un grau inimaginável anteriormente: relação de controle dos moradores e das suas associações, relação de clientelismo com a comunidade, manutenção e instrumentalização da favela pela violência. Nem todos os jovens moradores são traficantes mas  a falta de perpectivas e a violência conduzem vários deles ao caminho do tráfico: Carlos Weelf Teixera, rapper no clipe “Fábrica de Marginal” ressalta a falta de opções que termina por jogar certos jovens na criminalidade, no vídeo, o rapper sobe e desce as vielas, becos e ladeiras da Rocinha cantando as dificuldades de viver numa favela:

“Canto o Brasil de ontem e hoje. Só não canto o pais de amanhã porque este é dificil deprever como será.”

Também o confronto da violência tem períodos mas duros que outros, no caso da Rocinha, em 2002 tinha essa visão contrastada da violência num tempo que o confronto polícia/traficantes não estava muito forte. Em 2003, quando voltei na Rocinha era um período mais difícil : “aqui temos uma suposta guerra e os moradores querem a paz”. (Carlos Costa). Entendi que houve, nas últimas semanas, a presença repressiva da polícia (particularmente do BOPE –Batalhão de Operações Especiais) na Rocinha, um grupo de policiais entrou e disparou em varias direções. No dia 7 morreu uma mulher de 55 anos, baleada. No mês de fevereiro morreram três adolescentes de 13, 16 e 17 anos durante a operação do BOPE. Na versão da polícia, os três seriam ligados ao tráfico. Os familiares, porém garantem a inocência dos adolescentes. A favela se cobrira de branco e marchara pela paz.

Para concluir: Rocinha entre guerra e paz

Nesta conjuntura decidi participar da manifestação pela paz na Rocinha (9 de fevereiro). O encontro marcado com Dante (TV Roc) e Carlos (Rocinha XXI ) era na passarela. Quando cheguei, moradores, policiais e jornalistas estavam esperando para passear no bairro. O objetivo da manifestação era denunciar a violência da polícia e reclamar contra o sensacionalismo da TV Globo:

Com essas ações repressivas e inconseqüentes da polícia, que pelo jeito visam alimentar o marketing da TV Globo, enquanto faz apologia à violência e ao crime organizado, os turistas e os trabalhadores não sobem o morro por estarem com medo, as igrejas não realizam seus cultos, os serviços sociais não funcionam adequadamente e toda a comunidade é penalizada....Não somos contra a presência da polícia em nossa comunidade, mas que seja verdadeiramente para proteger a população....Nós não perdemos a esperança e ainda acreditamos na possibilidade de entendimento. Por isso exigimos o cumprimento do compromisso assumido pela Secretaria Estadual de Segurança Pública em reunião com representantes da comunidade, realizada no CIEP Airton Senna, em 02 de fevereiro último, de que desenvolveria uma política de segurança pública humanitária. (Boletim distribuído pelos representantes da comunidade da Rocinha: “A paz que a Rocinha traz”)

A passeata durou duas horas e acabou na via Apia com uma manifestação de teatro: o grupo Roça casa cultura tem mas de 13 anos de existência, são artistas não profissionais, alguns estudantes,  todos da comunidade. Encadenados e mascarados recitaram uma oração no meio da rua. No final observou-se um minuto de silêncio. Depois os jornalistas entrevistaram William, o Presidente de uma das mais importantes associações de moradores e Carlos Costa de “Rocinha XXI”.

Durante a passeata segui o cameraman da TV ROC que filmou no beco 11, no restaurante  A Garota da Rocinha,  os impactos das balas. Uma fotógrafa pousou quase histérica para fotografiar, sinal de um scoop ou efeito do sensacionalismo de um certo tipo de imprensa? Outros impactos nas paredes das casas dos moradores. Uma profusão de câmeras, de aparelhos, verdaderias “metralhadoras”, eu decido fotografar estes e aqueles que utilizam meios bastante sofisticados “o filme do filme” para guardar as imagens, uma lembrança daquilo que me parece o mais importante: a resistência que percebo no olhar das pessoas que trabalham, comem, riem, dançam, são tristes ou alegres e de alguma maneira só querem viver e sonhar no bairro da Rocinha e na cidade maravilhosa. Um direito que me parece legítimo sem portanto idealizar o mundo da favela e os seus habitantes. Exprimindo isso eu não nego a importância de um trabalho de fundo dos jornalistas de investigação para explicar, e finalmente estar ao lado dos pesquisadores ou dos responsáveis das associações para denunciar o mito da favela território dos pobres. Otrabalho cotidiano da TV a cabo da Rocinha participa desta dinâmica de fabricação de uma informação testemunho, a questão não é para eles fazer “melhor” ou de outro modo, eles marcam talvez, como eu , antropóloga do urbano, a fronteira entre aqueles que se acomodam do mundo virtual e da sociedade néo liberal e aqueles que adotam uma outra alternativa. Resistir aos mitos e à virtualização exagerada não significa ser contra ela. De uma forma mais pragmática e modesta, jornalistas e pesquisadores devem pensar o mundo de um jeito complexo com indivíduos múltiplos. Os cibernautas da Rocinha são indivíduos que se apropriam das TIC do jeito deles e surfar nas páginas do net deveria lher dar uma visão nem idílica nem catastrófica do cotidiano. Concordo plenamente com Dominique Wolton(2003, p.39), que diz “ criar conhecimentos é desenvolver o espírito crítico que distingue os valores e os interesses, a lógica normativa e a lógica funcional na informação, a cultura e a comunicação. Aprender a não confundir o progresso técnico com os serviços realmente úteis, o discurso comercial com a aspiração à comunicação, os processos econômicos com a realidade das relações sociais, a transparência assegurada pela Internet, com a realidade das relações de poder, a aspiração com os riscos da ciber criminalidade ”.
 

Notas

 
[1] Pesquisa realizada de agosto à outubro de 2002 em vários espaços residenciais da cidade do Rio de Janeiro. A Rocinha foi um dos espaços estudados.e realizou-se 20 entrevistas. Este trabalho inscreve-se em uma pesquisa mais ampla com a participação de equipes multidisciplinares em 4 cidades da América Latina (Buenos Aires, Caracas, México, Bogotá e Los Angeles nos Estados Unidos) e trata do processo de homogeneização residencial e do habitar. A pesquisa chamada “Habiter quelle ville ? : situations d’homogénéisation résidentielle et (re)définition de l’urbain et de l’urbanité dans les Amériques” beneficiou de uma ajuda financeira do Governo francês através do PUCA (Plan Construction Architecture) no programa “Habitat e vida urbana”.
 
[2]Segundo a associação comercial encontram-se na Rocinha: 2 Bancos (CAIXA e BANERJ), 2 Rádios, 3 jornais, 3 Salas de Variedades, 2 pontos de táxis, diversos pontos de moto-táxis e duas linhas regulares de Combis (Rocinha-Botafogo e Rocinha –Copacabana), assim como combis que cobrem o circuito interno. Os serviços são importantes na área : Rocinha possui 4 escolas públicas, 1 posto de saúde da Prefeitura, 1 agência dos Correios, 1 telefônica e um número impreciso de creches (próximo de 10) particulares e convencionadas com a Prefeitura.
 
[3] No site da TV ROC
 
[4]No caso da Africa a criação em número importante de cybercafés, na forma de cooperativas são um testemunho da emergência das práticas e do “vai e vem ” entre formal e informal. Emmanuel Eveno, geógrafo explicou que em Dakar, estes cybercafes transformam-se em “escritório de escrivão público” com oobjetivo de desenvolvimento social dos bairros( Conferência “Café Géographiques” 3 de março de 2004, Toulouse “ Des TIC a Internet : sociétés et territoires de l’information ”).
Bibliografía

ABRAMO P.(2003).Mercado para imóveis de uso comercial em favelas: estudo piloto no Jacarezinho. Instituto de Planejamento Urbano e Regional (IPPUR), Prefeitura do Rio, UFRJ coleção “Estudos da Cidade”.

AGIER M. (1996).”Pauvreté, culture et exclusion. La question du sens en anthropologie urbaine ”in LE BRIS E., (org.) Villes du sud. Sur la route d’Istambul. pp.227-243

BORJA J., CASTELLS M.(1997). Local y global. La gestión de las ciudades en la era de la información.Madrid :Editorial Taurus

CASTELLS M. (1989).The information city. Oxford:Blackwell Publishers. 402p.

(1999). A sociedade em rede. A era de informação.Economia, sociedade e cultura. Rio de Janeiro:Paz e Terra

(2003).”A cidade na nova economia”in MACHADO J.A. (org.) Trabalho economia e technologia. Novas perpectivas para a sociedade global. pp.15-29

CHAMBAT P.(1994).”Usages des technologies de l’information et de la communication(TIC):évolution des problématiques ”, in Technologies de l’information et Société, 6(3)pp.249-270

HARVEY P.L. (1993). Cyberespace et communautique. Quebec :Les Presses de l’Université Laval. 239p.

LAPAQUE S. (2004). Le goût de Rio, Mercure de France

LEWIS O.(1963). Les enfants de Sanchez. Autobiographie d’une famille mexicaine.Paris: Editions Gallimard, coll.NRF, 639 p.

MEDEIROS FREIRE M., CHINELLI F.(2003). Favelas e redes solidárias: formas contemporâneas de mobilização e organização popular no Rio de Janeiro. Coordenação Licia Valladares, UrbanData-Brasil, 47p.

MONNET J. CAPRON G., (2000). L’urbanité dans les Amériques. Toulouse:Presses Universitaires du Mirail. 220p.

NEVES R.(2003).”A ultima milha de utilities integra a favela à cidade” in Copo pela metade.. Editora:Negocio

PANDOLFI CHAVES D. GRYNSZPAN M.(2003). A favela fala. Editora FGV 360p.

PERALVA A.(2000). Violência e democracia. O paradoxo brasileiro. Prefacio de Alain Touraine. Rio de Janeiro: Paz e Terra

PERLMAN J. (1977). O mito da marginalidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra

(2003). Marginalidade: Do mito a realidade das favelas do Rio de Janeiro. Prefeitura do Rio, Estudos n°102

SCHWACH V.(1992). “L’intégration des objets techniques dans la vie quotidienne”in GRASA., JOERGES B., SCARDIGLI V. (org).Sociologie des techniques de la vie quotidienne. Paris :L’Harmattan. pp.103-108

SEGALA L(1991). O riscado do balão japonés. Trabalho comunitario na Rocinha(1977-1982), Mestrado de Antropologia social. Museu Nacional, UFRJ, Orientador: José Sergio LEITE LOPES

VALLADARES L. (1978).Passa-se uma casa :analise do programa de remoção de favelas do Rio de Janeiro.Rio de Janeiro:Zahar

(2002).”Favelas, mondialisation et fragmentation”in NAVEZ BOUCHANINE F. La fragmentation en question : entre fragmentation spatiale et fragmentation sociale ? Paris :L’Harmattan. 411p.

(2003). com MEDEIROS L. Pensando as favelas do Rio de Janeiro. Uma bibliografia analítica. Rio de Janeiro:Relima Dumara. 479p.

VENTURA Z.(1994). Cidade partida. Rio de Janeiro. Companhia das Letras. 277 p.

WOLTON D.(2003). L’autre mondialisation. Paris:Editions Flammarion, collection Champs. 211p.

ZALUAR A. ALVITO M.(org.) (1998).Um século de favelas. Editora FGV

Sites consultados (Janeiro, fevereiro 2004)

www.rocinha.com.br

WWW.vivafavela.com.br : No minimo Xico VARGAS, Viva Rio noticias.

WWW.no.com.br: MACHADO Roberto, O divorcio entre a favela e a miséria

WWW.klepsidra.net : Mario Sérgio BRUM, bacherel em Historia UFF, Repressão, cleintelismo, resistência ...relações entre Estado e favela no Rio de Janeiro

WWW.realhiphop.com.br

WWW.comciencia.br Revista eletrônica de jornalismo científico
 

© Copyright Caterina Reginensi, 2004
© Copyright Scripta Nova, 2004

Ficha bibliográfica:

REGINENSI, C.“Favelas.com”: uma antropóloga na fronteira do virtual. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2004, vol. VIII, núm. 170 (32). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-170-32.htm> [ISSN: 1138-9788]

Volver al índice de Scripta Nova número 170

Volver al índice de Scripta Nova


Menú principal