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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.
ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VIII, núm. 170 (36), 1 de agosto de 2004

A (CIBER) GEOGRAFIA DAS CIDADES DIGITAIS

Michele Tancman Candido da Silva
Universidade Salgado de Oliveira (UNIVERSO) – SG – Rio de Janeiro - Brasil


A (ciber)geografia das cidades digitais (Resumo)

O ciberespaço se apresenta como uma das dimensões do espaço geográfico. Neste sentido, as cidades reais adquirem um novo conteúdo, a partir da sobreposição de uma camada do ciberespaço traduzida como cidade digital.
As cidades digitais emergem como uma alternativa de potencializar o território de modo complementar a organização das cidades reais. Em escala planetária, algumas iniciativas são referencias e foram idealizadas para atender a comunidade em rede, virtualmente criada de acordo com as necessidades de cada comunidade real. Esta pesquisa tem como objetivo central analisar a cidade digital no bojo das transformações da sociedade informacional, em que o ciberespaço se constitui numa projeção e representação das relações sociais nas redes de Internet.

Palabras clave: Ciberespaço, Cidades Digitais, Sociedade informacional, cibergeografia


A (cyber)geography of digital cities (Abstract)

The cyberespace comes as one of the dimensions of the geographical space. In this sense, the real cities acquire a new content, starting from the overlapping of a layer of the cyberespace translated as digital city.
The digital cities emerge as an alternative of potentiating the territory in a complemental way the organization of the real cities. In planetary scale, some initiatives are references and they were idealized to assist the community in net, virtually maid in agreement with each real community's needs. This research has as central objective to analyze the digital city in the salience of the transformations of the society informational, in that the cyberespace is constituted in a projection and representation of the social relationships in the nets of Internet.

Keywords: Cyberespace, digital cities, society informational, Cybergeografia


A idéia básica deste artigo é a de discutir o conceito de cidade ao longo da história, para em seguida compreendermos o conceito de Cidade Digital. A partir de diversas definições, identificaremos os elementos comuns que norteiam este conceito e sua dimensão sócio-espacial.

Cidade: Um conceito Polissêmico

Vários são os conceitos envolvidos na discussão acerca do que podemos entender como uma Cidade. É preciso considerar que a cidade não é uma coisa única. Ela é reconhecida como real e como representacional, como espaço e como tempo, socialmente vividos e (re)construídos, concebidos e percebidos, tal como assinala Lefebvre (1981) no entendimento do espaço produzido pelo capitalismo e pelas lutas sociais.  As imagens, discursos e objetos dão a forma e conteúdo ao espaço urbano e traduzem um entendimento e organização do mundo, que é em si produzido histórica e socialmente (Roncayolo).

Talvez esta seja a grande dificuldade de conceituá-la. A noção de cidade pode, muitas das vezes, ser confundida com o conceito de Urbano. É possível fazer uma distinção. “A cidade é o concreto, o conjunto de redes, enfim, a materialidade visível do urbano enquanto que este é o abstrato, o que dá sentido e natureza a cidade” Santos, (1992 pág 241).

A cidade, ainda, pode ser entendida como um espaço social onde todos moradores teriam, a priori, o direito de ir e vir, de compartilhar a cultura, a riqueza, os bens de serviços, desfrutar do conhecimento coletivo, direito ao trabalho e a participação nas decisões do uso dos espaços da cidade.

A cidade é o lugar do encontro e desencontro, do estrangeiro e do habitante. Neste lugar, as trocas acontecem, a cultura toma corpo; a educação nem sempre é de qualidade; a saúde se aperfeiçoa, mas, às vezes, seu acesso é problemático para parte da população; a alimentação se mecaniza, mas nem sempre é para todos; os conflitos políticos envolvem diversos grupos sociais; as leis buscam organizar o espaço; e a justiça, às vezes, se legitima. Mas também é neste lugar que a violência, o racismo, o fundamentalismo e a xenofobia se exacerbam a exclusão social.  “É na cidade que o cidadão aprende a desenvolver suas particularidades e as integra socialmente, mas é também onde ele descobre as mazelas de sua própria vida como ser de relações”. Guerreiro(2001)

Pires, (1991, pp. 231-237) define a cidade como um imbricado histórico cuja sua lógica espacial constitui uma totalidade de relações (culturais, políticas, econômicas e sociais), onde a parte preponderante ou dominante dessas relações pode influir na determinação de suas características estruturais.

No dicionário Michaelis (2002), cidade é definida como o centro urbano, sede de município, um aglomerado permanente, relativamente grande e denso, de indivíduos socialmente heterogêneos.

A cidade foi definida por muitos pensadores, historiadores e achamos oportuno resgatar algumas dessas definições porque as mesmas refletem diferentes conceitos de cidade.

A definição de Platão (1990) no início do livro X da República remete à cidade como algo poético. Platão classifica a poesia e a pintura como imitação (mimesis). No interior de sua teoria acerca de uma cidade, ela é vista como perfeita e imaginada de forma a ser justa. Platão diz que os poetas, como imitadores, não têm conhecimento sobre aquilo que imitam, e fazem uma brincadeira sem seriedade. A poesia e a pintura, para ele, estão em três pontos afastados da realidade e como não se encontra semelhante cidade nem na história, nem na realidade presente, cumpre fundá-la completamente na imaginação.
Maquiavel (1987) definiu a cidade como local onde os homens devem ser governados, os arsenais lotados e as muralhas fortificadas para a defesa da cidade, não importando o instrumento do poder.

Na literatura, Calvino (1994) definiu-a nas “Cidades Invisíveis” como reflexo de construções imaginárias, de arbitrariedade de variadas fabulações e falas que nelas circulam e, a partir dela, se constroem vários aspectos simbólicos e físicos caminhando juntos, unindo o real e o imaginário. Calvino se utiliza a narrativa para condicionar com precisão os objetivos que levariam às diferentes cidades imagens, símbolos e caminhos.

Rolnik (1988) atribui à cidade o principal meio ambiente do homem, que surge da sedentarização e da organização das sociedades. Sua dinâmica se identifica com um imã: temos nela a atração por um local de grande importância geográfica, o centro da organização do trabalho de grupo, e o foco da atenção das práticas religiosas por localizar-se nela o templo. Funciona também como uma forma de escrita, um registro histórico de uma sociedade.

Lefebvre, em "Metafilosofia", afirmou que o tempo e o espaço humano mudaram e o símbolo mais imponente é a situação do que chamamos de cidade "por hábito", aglomerados disformes, heranças da época em que a cidade era um espaço social e havia um sistema urbano concreto. Lefebvre observa a cidade a partir de uma perspectiva dialética. “Neste caso, a cidade é vista como uma obra, como o resultado concreto dos atos de seus habitantes. São as pessoas que moldam a cidade conforme o uso que fazem dela”.(Milênio, 2004)

Milton Santos (1965) em “As Cidades nos Países Subdesenvolvidos” discutiu sobre os problemas da cidade e a dificuldade dela se inserir numa competitividade industrial. Ele definiu o significado de cidade como noção e categoria de análise:

"... a cidade é, antes de tudo, definida por suas funções e por um gênero de vida, ou, mais simplesmente, por uma certa paisagem, que reflete ao mesmo tempo essas funções, esse gênero de vida e os elementos menos visíveis, mas inseparáveis da noção de 'cidade': passado histórico ou forma de civilização, concepção e mentalidade dos habitantes”.

Antanas Mockus[1] definiu a cidade como um espaço onde é possível estabelecer uma interação muito fértil e respeitosa entre desconhecidos:

 “É o paraíso onde, sendo anônimo e com espaço para a solidão e a autonomia pessoal, tem-se à mão pessoas que sabem e contribuem com coisas diferentes. A cidade é como um tecido social denso que facilita coisas que são boas para todos: espaço público, arte, cultura, educação”.

Na exposição de idéias e definições, cada indivíduo apreende e define a cidade de forma diferente. Isto acontece porque a cidade designa uma espécie de receptáculo caracterizado pelo subjetivo. A paisagem sempre exerceu em nós um encantamento transformando a realidade em representação pelo ato de ver. Este olhar subjetivo se insere no contexto da história de cada um. O imaginário atua como referencial constante para a construção da cidade, para a percepção e conseqüente formulação de imagens e conceitos de seus habitantes, num processo interativo em que cidade e homem se moldam.

A cidade pode ser considerada como a materialização de uma condição imaginária, que se transforma – e a transforma – continuamente. O reconhecimento deste imaginário contribui para a legibilidade da cidade, dos processos que geraram seus signos e da sua própria identidade. Iwata (2001)

Milton Santos (2000, p. 60), em outro momento, definiu a cidade como multidimensional, caracterizando-a como “um lugar em que é possível uma mistura de interpretações mais ou menos corretas do mundo, do país e do próprio lugar”.

Apesar das diferentes concepções individuais e ou coletivas do que é uma cidade, podemos caracterizar ou classificar as cidades pelo que ela representa em relação à cultura, ao que ela disponibiliza aos cidadãos, ao número da população residente, pelo seu desenvolvimento, pela importância que a mesma ocupa em relação ao seu entorno, pela função social, pela sua economia, pelo que ela representou ao longo de sua história entre outros.

O recorte sobre a origem das cidades privilegiou a concepção ocidental. Apesar da ênfase nas cidades do Oriente Médio, há outras possibilidades de análise sobre as cidades da América, África e Ásia. Entretanto, em face do tempo, deixamos de lado tal perspectiva de análise. A Mesopotâmia  foi o ponto de partida para o desenvolvimento das primeiras civilizações, da escrita, dos sistemas de comércio, do dinheiro, da estratificação e hierarquias sociais (clero, nobreza, povo, etc.), da religião e da educação organizada, da agricultura sistemática, e de muitas outras coisas mais.

No entanto, o desenvolvimento da cidade industrial que conduziu uma série de processos que resultaram na complexidade da Cidade em que vivemos. A cidade, como fruto da Revolução Industrial e da sociedade capitalista, passa a ser vista como problema.

A poluição, a falta de infra-estrutura, engarrafamentos, excesso de lixo, escassez de áreas verdes, violência, enchentes e muitos outros processos combinados originaram um novo tipo de cidade: unidades fabris no centro, a fumaça enegrecendo o sol, a paisagem e os pulmões; casas operárias amontoadas à sombra das chaminés; ausência de praças e jardins, Benigno (2004) A cidade Industrial é também analisada como espaço de reprodução capitalista. A produção do espaço urbano, embora apresente uma aparente desordem, se dá dentro de uma ordem coerente com o modo de produção dominante. Rezende[2] (1992). Entretanto, por ser a cidade um tecido de lutas de classes, há constantes fissuras nessa ordem hegemônica.

O processo de Industrialização provocou o crescimento das cidades, surgindo as cidades consideradas Megacidades. Segundo Castells (1999) trata-se da maior transformação urbana de nosso tempo.

“As aglomerações de grandes dimensões (10 milhões de habitantes, às vezes mais, às vezes menos) concentram o essencial do dinamismo econômico, tecnológico, social e cultural dos países e estão conectadas entre si numa escala global. As megacidades se estendem no espaço e formam verdadeiras nebulosas urbanas onde se integram campo e cidade, criatividade e problemas sociais ao mesmo tempo ”.

Na sua maioria, as megacidades concentram a pobreza. Atualmente são típicas de países pobres porque das dez maiores cidades do mundo, sete estão nos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento (Tabela 1) . Com a renda pequena, as Megacidades arrecadam pouco em impostos e, portanto, investem menos ainda em infra-estrutura e saneamento, aumentando os problemas ambientais e as questões sociais, principalmente saúde, educação e segurança.

Os problemas se agravam a medida que aumenta o crescimento  urbano e provoca uma deficiência nos serviços urbanos para a população carente, que é a grande maioria, Estas pessoas dependem muito mais dos serviços públicos.

 
Tabela 1 
Maiores Aglomerados Urbanos do Mundo 2000
Aglomerados Urbanos(1)
Países
População (em mil)
Tóquio
Japão 
26,4
Cidade do México
México 
18,1
Bombaim
Índia 
18,1
São Paulo(2)
Brasil 
17,8
Nova Iorque
Estados Unidos 
16,6
Lagos
Nigéria
13,4
Los Angeles
Estados Unidos 
13,1
Calcutá
Índia 
12,9
Xangai
China 
12,9
Buenos Aires
Argentina 
12,6
Fonte: ONU / IBGE / Fundação Seade  - (1) Aglomerado Urbano é o território contíguo habitado com densidade residencial, desconsiderando-se os limites administrativos   (2) Refere-se à Região Metropolitana de São Paulo

A ONU projeta para 2025, 61% da população mundial vivendo em cidades. Em 1975 este índice era de 37%. Das 21 maiores metrópoles do mundo 14 estão em países subdesenvolvidos. Esse percentual deverá aumentar 89% em 2025. Ou seja, as projeções indicam uma multiplicação das grandes cidades nas regiões pobres, num cenário radicalmente diferente de 50 anos atrás quando apenas 100 aglomerações urbanas tinha mais de 1 milhão de habitantes, e a maioria delas localizava-se em países ricos. Ainda segundo a ONU, em 2025 haverá 527 grandes cidades sendo 2/3 delas localizadas nos países menos desenvolvidos.

A cidade resulta das contradições socioespaciais, das ações de ordem política de seus gestores e do cotidiano dos grupos sociais.

O que as grandes cidades oferecem em oportunidades acaba por tirar em qualidade de vida.  Ter qualidade de vida é poder viver com segurança, é poder freqüentar o espaço social, é ter emprego, saúde, educação, moradia, infra-estrutura e saneamento básico. Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano (HDR - PNUD), grande parte dos países ainda não começou a cumprir os objetivos fixados pela ONU para 2015. Noventa e três países, com 62% da população mundial, não estão no caminho para reduzir a mortalidade de menores de cinco anos para dois terços, até 2015. Onze milhões de crianças com menos de cinco anos morrem todos os dias de causas que se poderiam prevenir — cerca de 30.000 por dia.

Apesar das diferentes definições para Cidade, alguns pontos comuns são percebidos, tais como:

1 – A Cidade é um espaço material de relações sociais.

2 – A Cidade não pode ser confundida com o urbano.

3 – A Cidade é o lugar onde a cidadania faz sentido.

4 – A Cidade é um misto de representações.

5 – A Cidade pode ser uma referência de lugar.

6 – A Cidade é um dos palcos da política.

7 – Na Cidade, assim como no campo, estão presentes os dilemas cotidianos.

Hoje em dia, a definição de cidade e as relações sociais que nela são travadas ganham novo contexto analítico, no âmbito do ciberespaço.

A partir dos avanços na microeletrônica e na informática, as relações sociais passaram por radicais transformações. A emergência de novas redes comunicacionais tem impactos diretos sobre a cidade real. A busca de uma compressão espaço-tempo e de uma maior presentificação, em tempo real, tem sido um dos fatores de expansão das chamadas Cidades Digitais.

Nesse sentido, entender o significado das Cidades Digitais e a dialógica com as cidades é um grande desafio.

 O Conceito de Cidade Digital na Sociedade em Rede

A Cidade Digital, conhecida também por Cibercidade, Cidade Virtual, Município Digital ou Virtual, Cidade Eletrônica, Cidade Inteligente e outros nomes, representa uma projeção de simulacros de diferentes cidades e emerge como uma das forças que contribuem para organização do espaço

No contexto das redes comunicacionais, as especializações e a função social das Cidades Digitais serão definidas pelos seus gestores, indutores e freqüentadores. A guisa de exemplificação, algumas Cidades Digitais caracterizam-se como culturais por apresentarem uma ênfase nas atividades e divulgações no campo da cultura; outras históricas, por preservarem a história de seus freqüentadores; e algumas outras apresentam características no campo social, e assim por diante. Infinitamente seriam os exemplos e as possibilidades.

É possível, porém, identificar em todas uma grande agilidade se comparada a uma cidade.

Os seus idealizadores são dotados e impulsionados pela criatividade, ainda que esta criatividade se apresente em diferentes estágios. À medida que a cidade vai se desenvolvendo a performance tende a melhorar.

As primeiras cidades surgem a partir do desenvolvimento das novas tecnologias comunicacionais e obrigatoriamente dependem de uma concentração de infra-estruturas locais com nódulos de tecnologia.

As Cidades Digitais emergem para atender a comunidade em rede, virtualmente criada de acordo com as necessidades de uma comunidade real e são difundidas a partir de algumas iniciativas que visam caracterizar estes espaços virtuais. Dependendo dos promotores destas iniciativas, podemos caracterizar algumas Cidades Digitais. Dentre tantos modelos, definiremos cinco tipologias de Cidades Digitais.

Antes de definirmos os tipos de Cidades Digitais, cabe ressaltar que não a entendemos apenas como um corredor de serviços a serem acessados. Isso porque ela é também um espaço de socialidade, de manifestação do poder e um dos campos de luta. E não poderia ser diferente, pois a consideramos uma projeção da cidade real.

a – As Cidades Digitais Governamentais de iniciativas do Governo local ou regional.

Nestas cidades, o governo costuma ser o grande provedor de serviços. Utilizam a tecnologia da informação na administração pública para prestação de serviços online, beneficiando os cidadãos na desburocratização, transparência das funções governamentais, tais como a compra e venda de serviços através dos leilões digitais, certificações e outros. São consideradas, no atual cenário, fundamentais para os processos de tomada de decisões em organizações públicas e privadas. Os serviços podem ser diferenciados dependendo do município, estado ou país.

b – As Cidades Digitais não governamentais

As Cidades Digitais não governamentais são aquelas em que as comunidades digitais só podem ingressar após preenchimento de um cadastro e obter uma senha para freqüentar a cidade. O acesso poderá ser cobrado ou gratuito. Os grupos organizadores despertam o interesse da comunidade ao promoverem lazeres digitais, encontros virtuais em chats, permitir acesso a várias revistas de grande circulação, enciclopédias, classificados digitais, informações turísticas, informações locais etc.

c – As Cidades Digitais de iniciativas do Terceiro Setor

Estas cidades são formadas por diferentes grupos sociais organizados da sociedade civil, como as Organizações Não-Governamentais, Fundações e Associações com apoio de empresariado e que não visam lucros.  Normalmente são temáticas e abordam a inclusão digital e social. Geram informações sobre diferentes temas, apresentam projetos sociais, financiam projetos ou informam fontes entre várias ações.

d – Iniciativas espontâneas e individuais

Esta cidade é diferente das demais e talvez a mais comum. Ela se caracteriza pelo ingresso espontâneo da comunidade digital local, ainda que desordenadamente. Vários grupos e indivíduos são responsáveis pela sua arquitetura e se organizam através de alguns vínculos como os sites locais, pessoais ou não, as salas de bate-papo do mesmo nome da cidade real, da freqüência em endereços eletrônicos que divulguem as notícias locais e eventos, dos delivers, de outros agentes produtores de serviços, dos consumidores e dos que praticam a socialidade da rede local. Tal dinâmica é fruto das relações sociais (os fluxos) da cidade real.

Assim sendo, os fixos[3] se localizam na Cidade Real. De fato, tal interpretação se aproxima da preposição teórica de Milton Santos  (1996, p.50), quando afirma que “fixos e fluxos juntos, interagindo, expressam a realidade geográfica e é, desse modo, que conjuntamente aparece como um objeto possível para a Geografia”.

e - As Cidades Digitais de Iniciativas Mistas

As Cidades Digitais, neste caso, são projetos de inclusão digital e social, ou de serviços através de parcerias entre o público, privado e terceiro setor. A compreensão dos diferentes conceitos de uma Cidade Digital pode ser comparada, a uma geografia das cidades, caracterizadas e denominadas por sua função, conflitos, sua economia, etc. Reunimos alguns dos conceitos de Cidades Digitais que pudessem representar um pouco esta temática para em outro capítulo apresentar alguns modelos.

Zancheti (2001) explica que, o conceito de Cidade Digital não tem uma definição precisa, apesar de que desde o meado dos anos 90, o número de Cidades Digitais está crescendo. De fato, encontramos muitas definições que variam conforme as características da comunidade que irá acessar a Cidade Digital. Zancheti define Cidades Digitais como “um sistema de pessoas e instituições conectadas por uma infra-estrutura de comunicação digital (a internet) que tem como referência uma cidade real cujos propósitos variam e podem incluir um ou mais dos seguintes objetivos:

1 – Criar um espaço de manifestação política e cultural das pessoas e grupos;

2 – Criar um canal de comunicação entre as pessoas e grupos;

3 – Criar canais de comunicação e negociação entre a administração municipal e os cidadãos;

4 – Favorecer uma maior identificação dos moradores e visitantes com a cidade referência;

5 – Criar um acervo de informações das mais variadas espécies e de fácil acesso sobre a cidade referência.”

A primeira definição/noção de Cidade Digital foi dada por volta de 1985 com a fundação da América Online. A companhia registrou como uso exclusivo o termo Cidade Digital e ninguém nos EUA pode utilizar mais. A AOL é responsável pelo site Digital CITY que apresenta as cidades americanas. No entanto foi Toffler (1995), em 1980, um dos primeiros a apresentar o termo, definindo Cidade Digital como o estágio evolutivo de capacitação de uma comunidade em um sistema tecnológico de informação, cujo objetivo final é atingir a reestruturação interativa da vida social.

Tecnicamente, a Cidade Digital, segundo conceito de Toru (2000), é a plataforma de fomento à formação de redes comunitárias.  A cidade integra informações urbanas em tempo-real, criando espaços públicos para os cidadãos.  Desde 1994, mais de 100 organizações locais, européias começaram discutir Cidades Digitais.  Os tópicos incluem aplicações telemáticas e tecnologias.

No Japão, o projeto de Kyoto da Cidade Digital foi lançado para criar uma infra-estrutura social de informação para o século XXI e se define na utilização de Sistemas que integram informação urbana (recuperável em tempo real).

Uma concepção européia é o consenso de que a "Cidade Digital" constitui um parâmetro de qualificação do desenvolvimento das cidades européias. Um "Projeto da Cidade Digital", para eles, tem como principais objetivos à qualidade de vida dos cidadãos, a competitividade econômica e a integração social. A utilização de tecnologias digitais de informação e de telecomunicação para a melhoria dos cuidados de saúde, a efetiva redução da burocracia administrativa, a capacidade de geração de trabalho qualificado e de teletrabalho, simplificação e transparência dos processos de decisão, a diversidade da informação recebida ou tratada, a abertura e reconhecimento dos processos de educação e de formação profissional, a generalização segura do comércio eletrônico, a oferta de novos modos de lazer, o apoio a cidadãos com necessidades especiais, entre muitas outras dimensões. Estes seriam os elementos constitutivos do modelo da "Cidade Digital".

A Cidade Digital idealizada foi a de Mitchell, (1999), chamada de “A Cidade dos Bits” e definida como uma grande urbe nascente, conformada pelo conjunto dos espaços virtuais, interconectados. “Trata-se de um fenômeno absolutamente novo: uma cidade global, que, em alguns momentos, é paralela, em outros, complementar e, em outros, até concorrente dos espaços urbanos “tradicionais e concretos” espalhados pela superfície do globo terrestre”.

Neste caso é possível viver numa pequena comunidade e estar conectado a uma cidade maior e mais diversificada. Mitchell (2000, p.46/47), sugere o termo “Gesellschaft virtual”[4] porque “é possível migrar para uma cidade distante, ou estar permanentemente em trânsito, sem perder o contato com a cidade natal e a família – uma “Gemeinschaft” mantida eletronicamente”.

Um outro aspecto a ser analisado é a Cidade Digital como uma tendência aos aspectos regionais e locais, um contraponto às tendências globalizantes características da difusão da Internet em outras tecnologias de informação e comunicação. Alguns autores, tais como Borja (1997), falam sobre uma nova “plataforma social” que almeja algo intermediário, uma espécie de “rede intercomunitária” que estaria a caminho entre o Global e o Local, com base na coordenação entre movimentos de organização comunitária de redes através de um sistema de comunicação que assegure a conectividade e os fluxos globais de pessoas, bens, informações e, sobretudo, recursos humanos capazes de produzir e administrar um novo sistema econômico.

Barletta (2002) define Cidades Digitais como uma representação de modelos que existem no mundo real.

“... É uma nova resposta social que se baseia nos desenvolvimentos tecnológicos que estão de uma forma ou de outra, alterando nosso comportamento. São cidades que se constituem através de interfaces criadas graças às facilidades que oferecem o desenvolvimento de software especializado para se trabalhar na Internet”.  “... É uma forma diferente de aproximar-se a uma Cidade Real”.

“... representam mais que um meio de comunicação que nos permite participar como parte integrante ao identificarmos com alguns de seus componentes ou até para opiná-los”.

“... Uma Cidade Digital é a representação de uma nova forma de se tratar o conhecimento”.

Levy (2000 p 185:196) aborda a relação entre a Cidade e o Ciberespaço em que diversas atitudes estão sendo adotadas por diferentes atores, sejam eles teóricos, sejam práticos. Sugere agrupá-las em quatro grandes categorias:

1 ) - a enunciação das analogias entre as comunidades territoriais e as comunidades virtuais;

2) - o raciocínio em termos de substituição ou troca das funções da cidade clássica pelos serviços e recursos técnicos do ciberespaço;

3) - a assimilação do ciberespaço a um equipamento urbano ou territorial clássico;

4) A exploração dos diferentes tipos de articulação entre o funcionamento urbano e as novas formas de inteligência coletiva que se desenvolvem no ciberespaço.

Essa última perspectiva de análise se contrapõe a percepção do ciberespaço concebida nesta pesquisa, pois a Cidade Digital é uma projeção da cidade real. Nesse sentido, não haveria a articulação de dois espaços qualitativamente diferentes, e sim contradições sociais que se expressam no espaço geográfico e são manifestadas e manipuladas no ciberespaço enquanto um espaço virtual caracterizado pela unidade na diversidade, ou seja, pela existência de espaços de controle e espaços representativos de uma “ciberdemocracia”. A própria tipologia de Cidades Digitais já sinaliza para a existência de espaços de controle e de espaços produzidos pela fluidez das práticas dos “cibernautas”.

Cidades Inteligentes é um outro grupo que muito se aproxima das Cidades Digitais. São as cidades cujo conceito se baseia nos aparatos físicos, cabeamento, por exemplo. Em outras palavras, seriam os aparatos de infra-estrutura, que se instalam numa cidade ou em parte da mesma.  Estas cidades possibilitam uma série de atividades com programas pré-definidos de forma semi-automática e foram concebidas para satisfazer as necessidades de seus habitantes, uma vez que toda a infra-estrutura que as compõem estão voltadas a chegar a todos os lares, negócios e locais de trabalho.  Uma diferença substancial é que quando identificamos uma cidade inteligente, consideramos os aspectos de infra-estrutura resultante de uma série de combinações tradicionais de provedores, redes equipamentos em seu espaço físico para que todos os moradores possam desfrutar de certos serviços oferecidos de maneira remota.

A Cidade Eletrônica definida por Graham (2002) se baseia numa visão de que a Cidade Eletrônica pode servir de ferramenta para melhorar a comunicação entre os cidadãos e os governos locais, estimulando muitas atividades promovedoras de oportunidades aos cidadãos, conforme podemos identificar abaixo.

“... As cidades virtuais são espaços eletrônicos, em geral com base na World Wide Web, que foram desenvolvidos para interligar, de forma explícita, as agendas de desenvolvimento de cada cidade. Tais cidades virtuais estão funcionando como ferramenta política para uma variedade de planos e objetivos urbanos: marketing urbano global, estímulo ao turismo de negócios e de consumo, melhoria das comunicações entre os cidadãos e os governos locais, aumento da competitividade das empresas locais, maior integração das economias locais e o renascimento do civismo e da cultura local”.

Enquanto esses sistemas oferecem, em geral, acesso a outros serviços da Internet - e que podem ser acessados de qualquer parte do mundo - sua ênfase principal reside nas discussões locais, nas interações e nos serviços de informação que inserem os cidadãos em suas próprias cidades. Isso inclui a possibilidade de acesso eletrônico a serviços locais de caráter municipal e comercial, informações on-line sobre execução de planos, desenvolvimentos e serviços públicos, oportunidades comerciais e de empregos, contatos entre agências de bem-estar social, informações tipo "O que há de novo", debates em BBSs sobre uma variedade de assuntos locais. Também podem ser estabelecidas oportunidades de agenciamento de transações locais, como por exemplo, o pagamento on-line de impostos e taxas.

As formas de fazer política ganham força com esta ferramenta virtual propiciando uma lógica de investimentos estratégicos na imagem pública para fazer-se visível, reforçando o local, delegando ações e funções e muitas das vezes o gestor público transfere suas áreas de atuação. Vários temas globais e locais podem ser discutidos politicamente, vários grupos sociais se articulam politicamente na rede. Uma articulação pela comunicação que no lugar de panfletos utilizam este espaço virtual para várias manifestações e protestos[5].

Diferente de Graham (2002), o termo Cidades Virtuais tem outras definições como a de Barletta (2001) . Para ele, as Cidades Virtuais são difíceis de serem definidas porque não fazem referência a nenhuma cidade do mundo real[6]. É feita de especulações que a tecnologia permite, criando condições para aqueles que a acessam desfrutem de seu conteúdo. Elas apresentam vários temas, vários desenhos. Elas podem ser uma simulação como a de um Jardim Zoológico que permita aos cidadãos experimentar a mesma sensação de estar entres os animais virtuais copiados de uma realidade. O mesmo acontece para lugares e para certos entretenimentos em que os personagens podem estar jogando, interagindo com situações que estimulem a sua permanência. Os Otakus[7], personagens Barral (2000), praticamente buscam a virtualidade semelhante.

Lemos (2000) define de forma semelhante uma Cidade Virtual, porém prefere chamá-la de cibercidade entendida como uma descrição/narração na qual os olhos não vêm coisas, mas simulações de quase-objetos; ícones e símbolos gráficos como praças, ruas, monumentos. O integrante desta cidade seria o cidadão que não é um flâneur que passa pelas ruas, mas um flâneur que clica nos links do ciberespaço, tendo uma relação muito mais intelectual do que corporal com o lugar.  Esta cidade compra a virtualidade à cidade real, tal como assinala Zanquetti.

A cidade eletrônica de Silva (1998) é um misto de espaço real e virtual e, operada por computadores e pessoas especializadas difere da cidade "normal", com seus prédios, congestionamentos, circulação de pessoas e idéias.

Ingrid Götzl (2001), do projeto europeu Telecities e da Prefeitura de Viena, define a Cidade Digital como associação entre formação de espaços públicos e atuação de governo. Para ela o enfoque maior está na informática comunitária e praticamente se confunde com o governo eletrônico, a ampliação da cidadania passa antes de qualquer coisa pela reengenharia do setor público e pela consideração do cidadão como um cliente. Palácio (2001) fala que uma Cibercidade não se constrói apenas na Internet, separadamente da Cidade Física, mas, pelo contrário, é o resultado da incorporação e uso das tecnologias telemáticas no cotidiano da Cidade Física.

Schuler (2001) acredita que a Cidade Digital tenha uma infra-estrutura muito mais social do que propriamente aquela infra-estrutura de uma cidade física.

Em linhas gerais, nas diversas tentativas de definição do que venha ser uma Cidade Digital, alguns elementos comuns se constituem, na verdade, pressupostos básicos na tentativa de compreender o ciberespaço. Ao longo da análise dos autores supracitados, qualquer uma das definições apresentadas pressupõe que as Cidades Digitais são expressão da sociedade em rede telemática. Além disso, seu estudo e produção implicam:

Entender as Cidades Digitais como projeção da cidade real. Logo, é uma realidade concreta que se apóia na relação dialética entre espaço, técnica e poder. Nesta pesquisa, não aprofundamos o debate em torno das relações de poder nas redes, visto que não era o objetivo central da dissertação. Enfim, a Cidade Digital é uma manifestação de uma dimensão técnica de práticas sociais que se afirma através da rede de computadores.

Uma produção do espaço que prepara o terreno para que absorva uma infra-estrutura necessária para interligar os sistemas físicos de cabos, fibra-ótica, sistema de telefonia, antenas e outros para integrar o espaço material ao virtual.

Desenvolvimento de uma infra-estrutura de aplicações como a utilização de softwares e hardwares, ou seja, a produção de objetos com forte conteúdo informacional. Neste caso, as políticas públicas de desenvolvimento de softwares livres, conforme aponta Pires[8], devem ser implementadas como estratégias para barateamento dos custos dentro dos padrões tecnológicos da economia digital.
Registro no ciberespaço de um domínio para obter o endereço eletrônico.
Os hipertextos da Cidade hospedados em provedores de acesso,
Universalização de acesso aos serviços digitais através de telecentros.
Garantia de velocidade de transmissão para as aplicações que necessitam da transferência de grande quantidade de dados em questão de frações de segundo.
Dimensão da sociedade na rede informacional, o que significa muito mais do que ter condições de, pelo ciberespaço, comprar, buscar informações. Significa a participação efetiva, na qual os indivíduos tenham a capacidade não só de usar e manejar os processos telemáticos, mas, também, de prover serviços, informações e conhecimentos, conviver e estabelecer relações que promovam a inserção das múltiplas culturas nas redes.

Ordenamento territorial das Cidades Digitais

A análise até aqui desenvolvida sugere que estamos diante de uma forma de produção social do espaço. A imagem-fluxo, a presentificação, a realidade virtual e as diversas possibilidades de comunicação on-line sugerem um novo ambiente, que alguns chamam de Cidade Digital, conforme já assinalamos.

Tais redes são o suporte estrutural para a projeção da cidade real nas redes, a que Virilio (1993) chamou de telecidades. A cidade eletrônica é resultado de um conjunto de máquinas que interagem simultaneamente via rede de informática (internet, por exemplo), provocando investimento no espaço-tempo[9]. Mas é, antes de tudo, não uma forma, e sim um processo caracterizado pelo predomínio do espaço de fluxos Castells (1999, p.423). Apesar de a economia e as relações sociais se processarem, majoritariamente, nas cidades reais (a produção, as trocas e a cultura de massa), tem se dado através da expansão de uma “cidade eletrônica” colocada pelas redes. Logo, a cidade eletrônica não é outra em relação a cidade. É a própria cidade real. A telecidade visa a incrementar a materialidade da economia capitalista via redes e sistemas interativos diversos. Logo, as redes e as telecidades possibilitam, não só uma sociabilidade, mas também processos capitalistas de circulação e consumo.

A estrutura organizacional desta cidade lembra um rizoma, ou seja, uma multiplicidade de conexões, conforme fora vista no capítulo anterior.

Muitas são as possibilidades de análise da Cidade Digital a partir das estruturas rizomáticas. Os fixos e fluxos são descentralizados, conectando pontos ordinários. O ciberespaço não tem um controle centralizado, multiplicando-se de forma anárquica e extensa, sem que se estabeleça um ordenamento, a partir de conexões múltiplas e diferenciadas. No entanto, essa “ausência” de ordem não acontece, visto que o caráter anárquico das relações que se travam na rede expressa uma desordem organizadora.

A Cidade Digital é um espaço de movimentação de informações e imagens que demanda organizar zonas de fixação. De acordo com Levy (1996, p.152), “o deslocamento não elimina a fixação: ele a setoriza codifica, tornando-a dispersa, internamente fragmentada”.

De acordo com Silva (1998), a materialização da Cidade Digital é um simulacro, não é cópia de nada. Ele afirma que a cidade eletrônica é um “simulacro do espaço, mas é espaço”.

Entendemos que esta definição só pode ser compreendida a partir de uma concepção materialista das transformações estruturais por que passa a sociedade, em face da supressão do espaço-tempo e da interatividade entre as pessoas através das infovias. O simulacro da Cidade Digital só pode ser espaço, no sentido de estar calcado numa realidade objetiva e material. O que ocorre no ciberespaço é apenas uma potencialização das relações sociais e das forças produtivas na forma de um simulacro de cidade. No entanto, para se vivenciar uma realidade virtual é necessário um espaço material e mutável. A realidade virtual que se apresenta no ciberespaço não é somente fruto de contemplação sensorial das imagens e troca de informações, mas antes de tudo, uma forma objetiva de ser da nova materialidade do arranjo social em redes comunicacionais.

Enfim, como já é sabido, o avanço nas forças produtivas sob a égide do capitalismo sugere maiores investimentos na velocidade como vetor das relações sociais. Na implantação de uma Cidade Digital as grafias deixadas pelas relações sociais são acompanhadas pelas redes de circulação de mercadorias, informação, capital, etc. Para tanto, os investimentos no espaço-tempo (teleporto, cabos de fibra ótica, satélites, etc) constituem a dimensão do espaço físico-social da Cidade Digital.

Virilio (1993) afirma que à medida que as tecnologias de comunicação estão cada vez mais velozes e ligadas ao tempo real, destroem-se as geográficas, obliterando-se os territórios através de uma transferência do espaço real das cidades e dos territórios para as imagens, ou seja, para a tela dos computadores.

Apesar das considerações de Virilio, mesmo sem ser um espaço material, a cidade eletrônica é parte integrante da concepção materialista da sociedade contemporânea conectada nas infovias.  Entender o domínio das técnicas de criação de novos sistemas de relações sociais, e desses novos espaços, é abrir um verdadeiro leque das aplicações possíveis para a Geografia, já que o fim da geografia é uma veleidade.

A socialidade da telecidade se contrapõe a sociabilidade real, inaugurando uma socialidade eletrônica, conforme já explicamos anteriormente. A cultura das redes aí instalada não tem vinculação com qualquer tipo de regionalidade, já que é uma cultura do imediato, sem referências nacionais específicas. Na verdade, poderíamos também nos referir às redes comunicacionais informatizadas como cultura. Há uma cultura se firmando fora dos espaços materiais através das telecidades cuja “estrada principal” é via satélite e cabo de fibra ótica. Apesar da dificuldade de caracterizar essa socialidade eletrônica, é notório que estamos diante de um outro tipo de produção cultural, no qual a referência identitária a um lugar desaparece. Na rede não há fronteiras para as práticas sociais das tribos eletrônicas. Na rede, diversos grupos de pessoas se identificam e passam a ter uma relação afetiva com um espaço virtual, que é, de fato, o próprio espaço geográfico, só que na dimensão global.

Essa forma de comunicação em rede instala uma forma de ver o real, na qual a segregação emerge da seleção de diversos tipos de relações societárias que desejamos vivenciar. Na verdade, o ordenamento das cidades eletrônicas implica a sua partilha por diversas tribos que se juntam por laços de afetividade cultural, sexual, racial etc. Nesse sentido, mais uma vez, podemos observar o virtual como extensão do real.

Os avanços tecnológicos das telecomunicações via informática criaram não só um ambiente artificial – a Cidade Digital - como também tem impactado na cidade. As principais cidades do país e do mundo já estão reestruturando seu espaço, em face das grandes empresas transnacionais que demandam a inserção dos lugares em um espaço de fluxos globais, como é o caso da Volkswagen, em Resende (RJ), através de investimento em cabeamento ótica, telefonia celular, etc.

Do ponto de vista da força de trabalho, a rede já altera a geografia dos trabalhadores. Tradicionalmente, a cidade real é diferenciada internamente entre o local de trabalho e a residência. Hoje alguns empresários já promovem a utilização da própria casa do trabalhador como um pequeno escritório acessado à rede central da empresa e ao mundo.

É neste sentido, que podemos afirmar que a inserção de um grupo maior de pessoas, empresas e outras organizações políticas no ciberespaço pode potencializar as redes de comunicação da cidade real, tal como afirma Levy (1996), ao usar os serviços de uma Cidade Digital sem barreiras políticas, mas com acesso controlado por senhas, em que o ordenamento não se realiza pela disposição de formas espaciais materiais, e sim por uma organização lógica do acesso à rede.

Enfim, apesar de muita desconfiança por parte dos geógrafos em analisar o ciberespaço e de seu caráter altamente de exclusão social[10] para grande parte da população mundial, tudo indica que a sociedade moderna do novo milênio estará cada vez mais conectada à rede mundial de computadores. Neste sentido, cabe à Geografia problematizar a revolução tecnológica das telecomunicações enquanto impacto e reflexo das mudanças qualitativas do capitalismo, levando-se em conta a emergência de uma socialidade inserida na Cidade Digital e a multiplicidade de práticas sociais ali verificadas como projeção da cidade real.

 

Notas
 

[1] O filósofo e matemático Antanas Mockus Cívicas, filho de imigrantes lituanos, assumiu pela segunda vez a prefeitura da capital colombiana, para um período de três anos (2001) in entrevista para a revista eletrônica Terra América.
[3] Os fixos neste caso são os domicílios dos freqüentadores desta Cidade Digital.
 
[4] O Termo Gesellschaft foi utilizado por Ferdinand Tönnies, que procurava conceituar a comunidade (Gemeinschaft) em oposição à sociedade (Gesellschaft) . Como explica Recuero, no site http://www.pontomidia.com.br/raquel/teorica.htm.
[5] Este tema é desenvolvido no paper de Eduardo Cavalcanti, endereço eletrônico: http://www.intercom.org.br/papers/xxiii-ci/gt27/gt27a4.pdf  intitulado Contestação online: Comunicação e organização política na Internet.
 
[6] Não ter referencia alguma a cidade real é um exagero, uma vez que as referencias simbólicas, semióticas são construídas a partir da relação do homem com a realidade concreta por ele vivenciada. Podemos então entender que para Barletta, as cidades virtuais seriam um C_Espaço  teorizado por Batty.Esta cidade virtual idealizada por Baretta se opõe a proposição teórica de Zanquetti, já que para ele as Cidades Digitais tem como referencia uma cidade real.
[7]. Os otakus são pessoas inteligentes e sonhadoras, apesar de tímidas. Às vezes, a atração pelos seus personagens e o que representam se torna obsessão e o limiar entre a vida real e a ficção se dilui na mente. Na raiz do fenômeno estaria a opulência da sociedade japonesa, cuja sofisticação permite aventuras cibernéticas impensáveis em países emergentes
 
[8] PIRES, Hindenburgo Francisco é professor adjunto da Uerj e analisa no texto Geografia, Internet e Software Livre, disponível no endereço: http://www.cibergeo.org/agbnacional/documentos/hfpires5mesa3.pdf , entre outros assuntos, as estratégias propostas de políticas públicas para o desenvolvimento na área de software no Brasil, narrando as conquistas que estão sendo implementadas no que ele considera como a mais importante revolução  da era atual:  A Revolução do Software Livre.
 
[9] Cabe lembrar que essas observações não visam justificar a fuga para o ciberespaço. Isso porque se o espaço urbano é expressão das contradições sociais dos processos de reprodução capitalista, a busca pelo ciberespaço não assinala para a solução dos problemas das grandes cidades. Quando pedimos uma pizza pela internet, o entregador precisará vencer as dificuldades do cotidiano urbano. Desse modo, a rede de comunicação que se dá no ciberespaço não esvazia o espaço urbano. Pelo contrário, pode vir a radicalizar seus problemas. Não poderia ser diferente, pois o ciberespaço é apenas uma forma de projeção do espaço geográfico através das novas redes comunicacionais.
 
[10] A exclusão digital não é oriunda da difusão tecnológica e sim de uma estratégia de poder, da vontade política para sugerir reformas políticas, do empenho dos empresários locais e do apoio internacional.
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Ficha bibliográfica:

TANCMAN, M.  A (ciber)geografia das cidades digitais. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2004, vol. VIII, núm. 170 (36). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-170-36.htm> [ISSN: 1138-9788]

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