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Geo Crítica
Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. IX, núm. 183, 15 de febrero de 2005


MONUMENTOS, POLÍTICA E ESPAÇO

Roberto Lobato Corrêa
Departamento de Geografia – UFRJ, Brasil

Monumentos, política e espaço (Resumo)

Estátuos, templos, memoriais e outras formas simbólicas grandiosas são representações materiais de eventos passados, que compõem a paisagem de certos espaços públicos da cidade.

São intencionalmente dotados de sentido político, comunicando mensagens associadas à celebração, contestação ou à memorialização, visando o presente e o futuro. São, contundo, submetidos a diversas interpretações.

Nesta revisão bibliográfica os monumentos são considerados segundo relações com conflitos envolvendo identidades racionais, religiosas, de raça e classe social e como memoriais de guerra. Os exemplos dizem respeito a monumentos em Paris, Moscou, Roma, Atenas, Washington, Tashkent, Richmond e Auschwitz, entre outros.

Palavras-chave: templos, estátuas, memoriais, identidade, conflitos e representação.

Monuments, politics and space (Abstract)

Statues, temples, memorials and other imponent symbolic forms are material representations of past events which constitute part of some urban public space landscape. They are intentionally political, objects, communicating messages directed to celebration, contestation or  memorialization, aiming both the  present and the future. However, they are submitted to different interpretations.

This paper reviews some studies considering monuments associated to conflicts of national, religious, racial and class identity, as well war memorials. Among the exemples are those located in Paris, Moscou, Rome, Athens, Washington, Tashkent, Richmond and Auschwitz.

Key Words: temples, statues, memorials, identity, conflicts, representation.

Os monumentos são, no presente trabalho, entendidos como formas simbólicas grandiosas como estátuas, obeliscos, colunas e templos. Representações materiais de eventos passados, integram o meio ambiente construído, compondo de modo marcante a paisagem de determinados espaços públicos da cidade.

A despeito da importância atribuída aos monumentos pelo senso comum e do interesse que despertaram nos pesquisados de diversas ciências sociais e humanidades, na geografia o interesse por eles foi tardiamente desenvolvido. Segundo Atkinson e Cosgrove (1998) o desenvolvimento dos estudos sobre monumentos na geografia tem como referência inicial explícita o estudo de Harvey (1979) sobre a Basílica Sacré Coeur de Montmartre, em Paris, no qual o autor discute os significados políticos em torno da construção daquele templo. É, em realidade, no âmbito de uma geografia cultural renovada, crítica e centrada nos significados atribuídos à natureza e às construções humanas (Cosgrove, 2000), desenvolvida durante a década de 1980 que, de modo crescente, aparecem estudos que discutem os significados atribuídos aos monumentos, incluindo os embates sobre a sua construção, localização e iconografia.

O presente texto procura resgatar as leituras realizadas por geógrafos ao analisarem alguns expressivos monumentos, visando contribuir para a sistematização do conhecimento a respeito de uma importante faceta da espacialidade e temporalidade humana e, ao mesmo tempo, oferecer aos geógrafos brasileiros um outro caminho a ser trilhado, ao longo do qual novos e importantes aspectos da geografia brasileira podem ser evidenciados, analisados e compreendidos. Os monumentos, parafraseando Cosgrove (1998), estão em toda parte, impregnando a paisagem de símbolos, cujos significados podem ser variáveis, denotando celebração, memorialização e contestação.

O texto divide-se em três partes: Na primeira, breves notas sobre a natureza e os significados dos monumentos são apresentados, enquanto na segunda são discutidos importantes estudos sobre monumentos, procurando evidenciar os contextos espaço-temporais nos quais estão inseridos, constituindo-se simultaneamente em marca e matriz (Berque, 1998). Na terceira, algumas observações são tecidas no intuito de sistematizar aspectos relativos à localização, escala e interconexão associadas aos exemplos discutidos.

Monumentos: breves notas

Os monumentos não são apenas objetos estéticos. São intencionalmente dotados de sentido político, capazes de “condensar complexos significados” (Rowntree e Conley, 1980, pp. 460) em torno de valores e práticas e, ao mesmo tempo, atuar como “mecanismos regulatórios de informações que controlam significados (Rowntree e Conley, 1980, pp. 465). Neste sentido os monumentos podem ser vistos como textos (Duncan, 1990), impregnados de figuras de linguagem como metáforas, metonímias, sinédoques e alegorias, que comunicam mensagens em forma simbólica (Duncan, 1990, Livingstone e Harrison, 1982), associadas a temas como poder, identidade e conflitos gerados por ambos.

Textos, rituais e símbolos materiais como os monumentos são meios pelos quais afirmação e contestação podem se manifestar. Os monumentos, contudo, são mais acessíveis à maioria da população. Fixos, comunicam permanentemente as mensagens que deles se espera comunicar (Johnson, 1994). Apresentam, assim, forte potencial para perpetuar antigas tradições, fazer parecer antigo o que é novo e representar valores que são passados como se fossem de todos.

No final do século XIX e início do século XX as principais cidades européias e americanas ganharam inúmeros e por vezes grandiosos monumentos: estátuas, memoriais e templos, entre outros, foram construídos. A sua construção é, em geral, parte integrante do processo de remodelar e embelezar o espaço urbano dessas cidades (Atkinson e Cosgrove, 1998). Esses monumentos expressam os sentimentos estéticos do momento e, ao mesmo tempo, constituem representações materiais dos profundos processos econômicos, sociais e políticos de um período de grandes transformações. Identidade e poder parecem ser as palavras-chave em torno das quais aquelas representações materiais foram produzidas.

Construídos pelo Estado os monumentos objetivavam o fortalecimento de identidades nacionais, em baixa ou necessitando ser criada, ou ainda enfatizada em razão das conquistas imperiais. Os monumentos celebram e glorificam o passado nacional e as histórias heróicas, que “articulariam e legitimariam circunstâncias políticas do momento e aspirações futuras” (Johnson, 1994, pp. 78). Pretende-se, assim, dar continuidade ao passado, torná-lo presente, como, entre outros, apontam Lowenthal (1975) e Withers (1996).

Os monumentos foram também construídos por grupos sociais ou por instituições que os representam. As elites, por exemplo, constróem monumentos visando expressar e ratificar os seus valores e exibir o poder que detêm (Peet, 1996). As instituições religiosas, por outro lado, ao construírem os seus monumentos, templos ou outras formas simbólicas, materializam o local do culto, como também exibem o poder da instituição ao comunicar a mensagem religiosa proclamada, que une e identifica a comunidade de seus fiéis.

Parte integrante do processo de transformação urbana, os monumentos recriaram paisagens. Foram elas dotadas de inúmeros símbolos, preenchidas “com signos portadores de mensagens ideológicas, que contribuem para cumprir a tarefa de modelar o imaginário social, gerando a formação de imagens do passado e do futuro, criando e alterando padrões de significados” (Peet, 1996, pp. 23).

Os monumentos, contudo, enquanto construções sociais, politicamente concebidos, são portadores de ambigüidades. A sua capacidade de comunicar aquilo que deles desejavam os seus idealizadores pode ser limitada e mesmo contestados os significados que deles se desejavam. Este ponto é enfatizado por Daniels e Cosgrove (1993) que argumentam que as imagens, como aquelas associadas aos monumentos, possibilitam interpretações distintas, não se constituindo, como no caso de textos escritos, em fontes seguras para a construção de um único conjunto de significados. A instabilidade dos monumentos, vistos como textos, é apontada também por Mondada e Söderstrôm (1993).

Duncan (1990), Duncan e Sharp (1993), Peet (1996), Auster (1997) e Atkinson e Cosgrove (1998), entre outros, reconhecem que uma única e oficial interpretação da história, articulada pelas elites e expressa em monumentos em espaços públicos, tem como contrapartida interpretações populares, mais amplamente compartilhadas, que se caracterizam pela contestação e pela pluralidade de significados. A tentativa de impor um único significado “por meio da paisagem material é inevitavelmente alterado, tornado móvel e aberto a leituras alternativas e por vezes contraditórias” (Atkinson e Cosgrove, 1998, pp. 30).  As paisagens, e nelas os monumentos, são objetos de plurivocalidade, que confere a estes um sentido político. Os monumentos são, como aponta Leib (2000, pp. 289), “elementos centrais da iconografia política do território”.

É esta plurivocalidade, que opõe celebração e contestação, que é o reflexo de leituras distintas de uma mesma forma material, expressando diferenças por vezes profundamente antagônicas, que dá sentido político ao estudo dos monumentos. Mais do que artefatos estéticos, são objetos em torno dos quais diversos confrontos podem se dar. A este respeito Johnson (1995) menciona os protestos dos prefeitos de Colonia e Dresden, na Alemanha, contra a estátua erguida em Londres em 1992 em homenagem a Sir Arthur “Bomber” Harris, responsável pelos ataques aéreos que, cerca de 50 anos atrás, destruíram aquelas duas cidades. O monumento, por outro lado, homenageia também cerca de 55.000 tripulantes da aviação inglesa que morreram durante a Segunda Guerra Mundial.  Semelhantemente, houve protestos contra a manutenção do monumento ao Exército Vermelho em Budapest. Sua manutenção é creditada ao papel que o exército soviético teve na liberação da capital húngara no final da Segunda Guerra Mundial. Isto se dá no contexto no qual foram removidos dos espaços públicos estátuas de Marx e Engels, entre outras, que foram transferidas para “espaços de memória”, a serem visitados por turistas (Johnson, 1995).

O sentido político, mesmo que expresso efemeramente, estava nitidamente presente na Feira Mundial de Paris, ocorrida em 1937, na qual defrontavam-se formas simbólicas associadas à Alemanha nazista, à Itália fascista, à Espanha republicana e à União Soviética (Strohmayer, 1996). E ainda na substituição da estátua de Luis XV à Place Louis XV, em Paris, em 1792, por um monumento dedicado à Liberdade na então renomeada Place de La Revolution, atual Place de la Concorde (Azarhyahu, 1996).

Monumentos: identidade e poder

A análise geográfica dos monumentos pode estar centrada em dois focos principais, identidade e poder. Ambos manifestam-se de diferentes maneiras, entre elas nos monumentos. Por meio da necessária espacialidade que os monumentos têm, implicando em localizações fixas e dotadas de longa permanência, os monumentos são poderosos meios de comunicar valores, crenças e utopias e afirmar o poder daqueles que os construíram. Dotados de alcance espacial limitado face aos modernos meios eletrônicos de comunicação que instantânea e simultaneamente produzem imagens impregnadas de intenções, no entanto, os monumentos têm um papel fundamental na criação e permanência de determinadas paisagens urbanas, impregnando lugares de valor estético e simbólico. As paisagens e os lugares são parte da espacialidade dos monumentos. É nesta perspectiva geográfica que a análise de estudos selecionados será feita.

A divisão desta segunda parte não implica em limites rígidos entre os tópicos, cujos conteúdos muitas vezes estão parcialmente superpostos.

Templos: conflitos e identidade

Dois templos, um católico, em Paris, a Basílica Sacré Coeur de Montmartre, estudada por Harvey (1979), e o outro, da religião ortodoxa russa, em Moscou, a Catedral Cristo Salvador, estudada por Sidorov (2000), são exemplos de monumentos religiosos cujas construções estiveram associadas a contextos políticos e de identidade. Em ambos a escala dimensional estava inserida no significado político pretendido por aqueles que os construíram.

Em razão da derrota militar francesa para a Prússia em 1870, que gerou o cerco de Paris, e do levante social, que culminou com a Comuna de Paris em 1871, a elite francesa comprometeu-se em 1872 a erguer um monumental templo para expiar os “pecados” franceses, inclusive a Comuna de Paris, e também como agradecimento pelo fim do cerco à cidade. O lugar escolhido foi a colina de Montmartre, que domina toda a cidade, o único lugar onde a “dominação simbólica podia ser assegurada” (Harvey, 1979, pp. 376). Esta colina fora no passado lugar de martírio dos primeiros cristãos, daí derivando o seu nome, que significa “monte dos mártires”; durante a Comuna foi um dos lugares onde legalistas e revoltosos foram mortos. A colina estava, pois, impregnada de simbolismo.

A natureza política do monumental templo manifestou-se nos debates a favor e contra a sua construção. Em 1919 o templo foi finalmente consagrado, comemorando-se também a vitória sobre a Alemanha. Protestos, por outro lado, impediram que a Estátua da Liberdade, posteriormente doada e localizada em Nova York, fosse instalada em frente ao templo.

Harvey pergunta o que representa este monumento. Um símbolo identitário das elites? Argumenta ele que na Basílica estão representados todos aqueles que participaram das lutas sociais da França, monarquistas e republicanos, militares e cerca de 20.000 “comnunards” mortos em 1871. A história das lutas sociais está gravada no monumento.

A Catedral Cristo Salvador, localizada a duas quadras do Kremlin, foi inaugurada em 1997. Possui 103 metros de altura e é o maior templo russo. Sua rápida construção na década de 1990, a história do local onde está situada, assim como os monumentos que anteriormente existiram ou que se desejava construir, estão impregnados de significados políticos, como aponta Sidorov (2000).

Entre 1831 e 1881 foi ali erguida a primeira catedral dedicada a Cristo Salvador, comemorando a vitória sobre as tropas de Napoleão em 1812. Símbolo nacional, localizava-se no local do antigo convento de Santo Alexius, inaugurado em 1360. Maior igreja russa, foi concebida originalmente para ser maior que a Basílica de São Pedro, em Roma, principal igreja católica, junto ao Vaticano. Foi demolida em 1931 para dar lugar ao Palácio dos Soviets, planejado para ser o novo monumento nacional, símbolo do novo modelo político e social: por isso foi planejado para ser mais alto que a Torre Eiffel, em Paris, e o Empire State Building, com 105 andares, em Nova York, inaugurado em 1931. O prédio nunca foi construído e em seu lugar, posteriormente, construiu-se gigantesca piscina pública. Entre 1994 e 1997, sob outras condições políticas, constroi-se, no mesmo lugar a nova e monumental catedral dedicada a Cristo Salvador. O novo monumento nacional visava reafirmar a identidade religiosa do povo russo (Sidorov, 2000).

Os monumentos existentes, a Basílica Sacré Coeur e a Catedral Cristo Salvador, os que os antecederam ou foi planejado, atribuíram aos dois lugares um significado político. As paisagens que criaram são também portadoras desse sentido. Monumento, paisagem, política e identidade nacional ou religiosa são, afinal de contas, faces da mesma realidade social e de seu movimento.

Monumentos e identidade nacional

Os monumentos podem ser portadores de um sentido identitário nacional. Quatro exemplos evidenciam este sentido e, ao mesmo tempo, reforçam a existência de interpretações contrastantes a respeito deles. O primeiro exemplo refere-se à Itália, o segundo à Irlanda, o terceiro à Grécia e o quarto ao Usbequistão, envolvendo países em relação aos quais a unidade nacional ou independência foi constituída tardiamente, estando associada a inúmeras visões contrastantes e vários conflitos.

O monumento a Vittorio Emanuele II, o primeiro rei da Itália unificada, localizado em Roma e inaugurado em 1911, cinqüenta anos após a unificação italiana, constitui-se em magnífico exemplo de associação entre produção simbólica e identidade nacional, como apontam Atkinson e Cosgrove (1998). Trata-se de um monumento cívico, cuja construção não foi objeto de intensos debates como os que caracterizaram a construção da Basílica Sacré Coeur de Montmartre. O monumento em questão foi o cenário de manifestações fascistas na década de 1930.

Grandioso, com três níveis, o monumento em estilo neo-clássico “desenvolve uma narrativa heróica da história italiana “(Atkinson e Cosgrove, 1998, pp. 33). Além da estátua equestre do rei estão representados, em forma de alegorias, o passado imperial, a unificação italiana, o caráter secular do Estado italiano, em oposição à presença próxima do Vaticano, os soldados italianos mortos em diversas guerras, e as cidades e regiões italianas. Considerado simbolicamente como o “altar da nação”, o monumento constitui-se em exemplo de retórica, isto é, “técnicas de argumentação visando convencer e persuadir no espaço público urbano [...] fortemente aliadas à arte da memória (Atkinson e Cosgrove, 1998, pp. 31).

A localização do monumento a Vittorio Emanuele II está impregnada de significados simbólicos. Localizado à Piazza Venezia, está no centro simbólico de Roma, “na junção entre a zona arqueológica do Fórum Romano, a cidade medieval e barroca dos Papas” e a cidade do século XIX (Atkinson e Cosgrove, 1998, pp. 28). Mais significativa é a localização junto à encosta norte da colina do Capitólio, onde a cidade foi fundada, onde estão as ruínas do Fórum Romano, sede do Império e onde no século XIV uma efêmera República Romana resistiu à expansão do Vaticano. A colina do Capitólio tem o sentido de “sítio sagrado”, local de celebração do culto à comunidade”, um conjunto de valores que, admitidamente, impregna toda a nação italiana. A localização junto à colina do Capitólio tem o sentido de continuidade espaço-temporal da tradição romana imperial, a qual está presente na moderna Itália unificada.

A visibilidade foi ampliada por meio de inúmeras obras de demolição de prédios e alargamento de ruas e praças, incluindo a Piazza Venezia. A centralidade expressa-se também pela localização do monumento, na interseção dos eixos norte-sul e leste-oeste da cidade. Simbolismo, visibilidade e acessibilidade compõem, juntos os fins e os meios que giram em torno do monumento.

O monumento a Vittorio Emanuele II, juntamente com a Piazza Venezia, foi, durante o fascismo, o ponto focal da espacialidade desse regime. Ambos foram articulados por via terrestre e por radiofonia – os discursos de Mussolini eram proferidos na Piazza Venezia, em frente ao monumento – a toda a cidade e ao território italiano. Tentava-se, assim, reviver a Roma Imperial.

Atualmente constitui-se em monumento cujo prestígio é limitado, sendo mesmo objeto de desprezo. A retórica que o colocou como ponto focal da unidade italiana e do fascismo desapareceu. O monumento acumulou distintos “significados, identidades, histórias e memórias”, compondo uma rica, densa e polissêmica paisagem urbana (Atkinson e Cosgrove, 1998, pp. 46).

Diferenças entre interesses políticos podem levar a disputas pela implantação de monumentos associados a esses interesses. Foi o caso da Irlanda no final do século XIX, quando os debates pela independência se acirravam, opondo, ‘unionistas’, que queriam manter os laços com a Inglaterra, e os nacionalistas, que queriam a independência do país. Neste contexto os dois grupos comemoram os atos de seus heróis e as respectivas tradições nacionais por meio de textos e do ambiente construído, incluindo-se aí os monumentos, mais acessíveis e de comunicação mais direta à maioria da população (Johnson, 1994).

Os monumentos construídos pelos ‘unionistas’ referiam-se a personagens como Nelson, Wellington e sobretudo a rainha Victoria. Apresentavam alegorias relativas à nação e à guerra por meio de figuras femininas; a Irlanda era representada por uma mulher pobre. Os monumentos dos vitoriosos ‘unionistas’ copiavam as formas dos monumentos romanos relativos às vitórias, colunas e obeliscos. Os monumentos dos nacionalistas, por sua vez, localizavam-se nas proximidades dos locais de nascimento dos heróis ou de seus túmulos. As alegorias referiam-se a traços da cultura celta, como a cruz celta, gaélica, representando a masculinidade, e as lutas pela independência, como, por exemplo, um camponês musculoso e armado com lança, protegendo um padre (a Igreja Católica) e a terra, a Irlanda. Esta era também representada por uma figura feminina, Erin, o nome simbólico da Irlanda, protegida por um camponês. Muitos monumentos homenageiam todos aqueles que, desde o século XVII lutaram e morreram pela Irlanda (Johnson, 1994).

Acrópole é o nome simplificado, difundido no mundo ocidental, da Rocha Sagrada da Acrópole Ateniense. Trata-se do conjunto, natural e socialmente construído, localizado no centro da capital grega, que se constitui no principal símbolo nacional e referência cultural para todo o Ocidente. Monumentos como o Parthenon, o Eretéion, o templo de Atenas e o Propileu, construídos no século V a.C., aí se situam. No sopé da Acrópole localizam-se as ruínas da Ágora. Compõem eles a paisagem e fazem parte da história e da geografia da Grécia.  Natureza e cultura estão aí harmonicamente interpenetradas.

Este conjunto é objeto de interpretações distintas, que se traduzem tanto pelo nome pelo qual o local é referenciado, como no tratamento paisagístico do conjunto. Neste sentido, duas denominações e dois tratamentos da paisagem refletem a dupla interpretação dada ao local. De um lado estão os esforços ocidentais visando a sua apropriação econômica, política e artística, desenraizando o conjunto de suas raízes profundas na Grécia Clássica (Loukaki, 1997). Nesta perspectiva está a American School of Classic Studies (ASCS), criada em 1881 e mantida com fundos de diversas universidades e fundações.  Para a ASCS a Acrópole, o nome simplificado da Rocha Sagrada, representa o modelo republicano e a democracia, em oposição à monarquia e absolutismo da Europa dos séculos XVIII e XIX.  Suas formas arquitetônicas “denotavam elevada cultura e forneciam a prova de que eles”, os americanos, ao adotarem essas formas em muitos de seus prédios públicos, estariam simbolicamente “domando e domesticando o mundo selvagem” que conquistaram (Loukaki, 1997, pp. 314).

Em contrapartida, do outro lado, está a resistência de gregos, que em certos momentos incluía parte da população das áreas em torno da Rocha Sagrada, população submetida à desapropriação de suas casas para fins de escavação, “cujas lutas para construir um estado e forjar um sentido de identidade nacional, tem estado fortemente associada à interpretação de seu patrimônio arquitetônico e arqueológico” (Loukaki, 1997, pp. 306). A paisagem recriada por eles distingue-se daquela da ASCS, estando mais condizente com a longa e complexa cultura grega.

O quarto exemplo refere-se aos monumentos na cidade de Tashkent, capital do Usbequistão, país que em 1991, com o colapso da União Soviética, tornou-se independente.

Em 1930 a capital da república soviética do Usbequistão foi transferida de Samarcanda para Tashkent. A nova capital foi ampliada e remodelada, visando criar uma cidade moderna, dotada de uma paisagem segundo a concepção soviética. Inúmeros monumentos foram erguidos ao longo do período que se estende de 1930 à independência. Juntamente com outras formas simbólicas, como avenidas, praças e prédios, visanvam esses monumentos viabilizar a criação de uma identidade soviética, combinando desigualmente elementos da cultura dominante, russa, formas representando o internacionalismo soviético e, com menor força a cultura nativa, usbeque. Inaugurando em 1974, a estátua de Lenin, a maior em toda a União Soviética, atingindo uma altura equivalente a um prédio de 10 andares, é um exemplo da iconografia política do período soviético (Bell, 1999).

A independência nacional gerou a necessidade de se criar a identidade usbeque, inexistente no período pré-soviético e impedida de florescer plenamente na era soviética. Os espaços públicos de Tashkent foram objeto de reformulação simbólica. Assim, na então redenominada Praça da Independência (ex- Praça Lenin) a gigantesca estátua de Lênin foi substituída em 1992 por enorme globo de bronze representando a Terra, no qual apenas apareciam os limites do território usbeque. A criação da identidade nacional está também explícita na substituição do memorial dedicado a Karl Marx pela estátua equestre do rei-guerreiro da Ásia Central medieval Tamerlão, inventado como o fundador do Usbequistão. O poeta medieval Alisher Navoi é considerado como a grande referência cultural do Usbequistão, ganhando uma estátua e dando o nome a um recém-criado museu.

Este exemplo ratifica a tese do sentido político dos monumentos, objetos de celebração e contestação.

Monumentos: conflitos raciais e de classe

Diferenças raciais e de classe, muitas vezes apresentando-se unidas, geraram ao longo da história humana inúmeras oposições e conflitos. A segregação residencial é uma expressão social e espacial dessa oposição e, muitas vezes, base para conflitos. Os monumentos e sua localização dão visibilidade a essas oposições e conflitos, seja porque marcam posição de supremacia racial e social, seja porque traduzem contestação por parte de um grupo face a um outro. Se os monumentos revelam conflitos, por outro lado, podem acirrar esses conflitos. Nesses conflitos a história e a geografia estão presentes, por vezes com intensos conflitos, como se procurará mostrar.

A localização de um monumento no espaço urbano tem um sentido político, suscitando debates sobre onde localizar o monumento. O debate ganha força quando se trata de localizar monumentos de heróis que representam causas conflitantes, como aponta Leib (2002) em seu estudo sobre o monumento em homenagem a Arthur Ashe em Richmond, Virginia, nos Estados Unidos. Trata-se de um monumento dedicado a um negro, tenista renomado e defensor dos direitos civis. Proposto pelo movimento negro, o monumento seria localizado à Monument Avenue, onde em 1890, com a presença estimada de cerca de 100.000 pessoas, foi inaugurada a estátua equestre do general Robert Lee, herói confederado da Guerra de Secessão. Alcançando a mais de 15 metros de altura, a estátua é um símbolo dos valores conservadores do Sul. Estabelece-se o debate, iniciado em 1995, e logo o monumento a Arthur Ashe é inaugurado, sem pompa e sob protesto de um grupo conservador, a uma certa distância da estátua do general confederado, mas à mesma avenida.

Leib (2002) argumenta que houve uma forte disputa em torno da localização e da paisagem a ser criada, porque ambas transmitem informações a respeito de raça, poder e identidade, as quais fazem parte de uma Richmond branca e negra.

Em 1927, na pequena cidade de Petersham, na Nova Inglaterra, Estados Unidos, é inaugurado o memorial em granito comemorando a vitória de tropas governamentais sobre agricultores pobres que se rebelaram contra a possível destituição de suas terras como pagamento de dívidas.  Essa rebelião ocorreu em 1787 e foi comandada por Daniel Shay. O memorial foi construído pela New England Society, uma agremiação política conservadora, constituída por naturais e descendentes de pessoas originárias da Nova Inglaterra, que visava não só preservar como também difundir os valores tradicionais da elite dessa região. A pequena e culta elite de Petersham também associou-se à construção do memorial por intermédio da Petersham Historical Society (Peet, 1996).

O memorial, de um lado, materializa o discurso conservador, que valoriza a ordem e o respeito às leis e instituições sociais, assim como a permanência do poder em mãos de uma elite regional de origem anglo-saxônica.  De outro, o memorial é parte do processo de re-criação da história, paisagem e tradição de Petersham pela elite local e da transformação de pequeno núcleo em lugar de veraneio para pessoas de status elevado (Peet, 1996). O memorial tem, assim, um significado político que vincula-se a uma interpretação da história regional; sendo, ao mesmo tempo, um elemento de uma paisagem valorizada economicamente.

Os monumentos em Richmond e Petersham estão nitidamente associados aos conflitos raciais e sociais. Os monumentos localizados na região escocesa das Highlands revelam também os conflitos que ali se verificam desde o século XVIII, derivados das profundas transformações ocorridas no mundo agrário, no qual verificou-se uma mudança no uso do solo, na estrutura fundiária e nos processos produtivos. Migrações e a formação de um campesinato sem terras e de uma pobreza rural são as conseqüências sociais imediatas. A paisagem foi também alterada (Withens, 1996).

Protestos e embates verificaram-se, ao mesmo tempo que do lado dos grandes proprietários de terras verificaram-se manifestações de regozijo. Nas proximidades da pequena cidade de Golspie foi erigido em 1834 uma enorme estátua, situada sobre um pedestal, alcançando mais de 20 metros de altura, do Primeiro Duque de Sutherland, o principal responsável pelas transformações agrárias nas Highlands. A estátua domina a paisagem da qual foi o principal artífice. Conhecido regionalmente como o Duque Negro, em 1994 sua estátua foi objeto de contestação por parte de grupos com profunda visão crítica da história regional. A destruição da estátua foi proposta “como um meio de apagar a versão (dominante) da história, de modo a refazer uma nova identidade local no futuro” (Withers, 1996, pp. 332). A despeito de concordar com a interpretação sobre o papel do Duque de Sutherland na história e geografia agrária da região, outro grupo admitia a permanência da estátua porque negavam outros significados para o local ou porque acreditavam que a “identidade local deve incorporar o passado e não negá-lo ou apagar os seus traços” (Withers, 1996, pp. 332-333).

As lutas pela terra (Highland Land Wars, segundo Withers) são a contrapartida. Protestos, confrontos, ocupação de terras verificaram-se durante os séculos XVIII, XIX e XX. Ainda que com contradições por parte dos sem-terra e rendeiros, essas lutas foram celebradas com monumentos, menos grandiosos mas significativos, marcando a paisagem com formas simbólicas de contestação: em Glendale, Braes, Gartymore, Culloden, Knoydart e Park Deer, entre tantos outros (Withers, 1996). Representam eles a memória popular, de agricultores sem terra e rendeiros, em oposição à memória da elite. A paisagem contém, assim, formas simbólicas cujos significados são profundamente distintos e antagônicos. Esses monumentos reforçam as identidades dos lugares, construídas por meio de embates, cujo foco é a terra.

Memoriais: as guerras e os mortos

Os “lugares de memória”, expressão cunhada por Pierre Nora (1989), tem em suas representações materiais os memoriais, que são também objetos “abertos a diferentes interpretações e maleáveis de acordo com as necessidades de poder do Estado e forças religiosas” (Charlesworth, 1994, pp. 579). São, assim, objetos cujos significados podem ser recriados e apropriados por instituições e grupos com motivações, interesses e práticas distintas e, por vezes, contraditórias. Isto aparece, por exemplo, ao se considerar os monumentos dedicados aos soldados confederados mortos durante a Guerra de Secessão, localizados em numerosas cidades do Sul dos Estados Unidos. A localização deles em espaços públicos foi objeto de debates, pois os monumentos representam uma reafirmação de valores sulistas derrotados nos campos de batalha (Davis, 1982). Como afirma Mayo (1988), os memoriais de guerra são parte da memória política de uma nação. Neste sentido, os memoriais de guerra localizados na Austrália e relativos aos 60.000 australianos mortos ou desaparecidos na 1ª Guerra Mundial, constituem exemplos eloqüentes, objetos de afirmação nacional e de contestação, como indica Jeans (1988).

A contestação aparece também no controvertido Memorial dos Veteranos do Vietnã, erigido em 1982. Sua concepção, por uma jovem estudante americana de origem chinesa, Maya Lin, foi visto como uma valorização do “outro”, mulher, anônima, não-branca e de outra cultura. Sua localização, próximo ao prédio do Congresso e do Lincoln Memorial, lugares de celebração, contesta o sentido atribuído a esses símbolos nacionais. A contestação é ratificada ao se considerar o próprio monumento. Construído em granito negro, é constituído por duas muralhas, cada uma com 160 metros de extensão e três metros e meio de altura, em forma de V. Nelas estão gravados os nomes de 58.132 soldados mortos na guerra. A sua forma gerou inúmeras interpretações, uma delas sendo a “cicatriz negra da vergonha” (the black gash of shame). Transformado em santuário cívico, o memorial era visitado diariamente por cerca de 20.000 pessoas (Sturken, 1991).

A memorialização do Holocausto, exemplificada com o caso de Auschwitz, analisado por Charlesworth (1994), não foge à regra. Trata-se do mais tenebroso campo de concentração e extermínio de judeus implantado na Polônia pelo nazismo: cerca de quatro milhões de pessoas, das quais 87% eram judeus, em sua maioria judeus não-poloneses, foram ali sacrificados (Charlesworth, 1994). Auschwitz foi escolhido, após a Segunda Guerra, para a criação de um memorial relativo ao genocídio verificado. Outros campos tinham sido destruídos pelos nazistas, como Treblinka e Sobidor, ou re-utilizado pelo serviço secreto soviético, como Majdanek, sendo assim considerado inconveniente para um memorial. Auschwitz, por outro lado, era, entre os principais campos de concentração, o mais ocidental, em local, à época, próximo à fronteira alemã, de onde vieram os algozes.

Auschwitz, liberado pelo exército soviético, foi, durante o regime comunista na Polônia, considerado como um memorial relativo ao assassinato de milhões de pessoas pelo terror nazista. Não havia referência aos judeus. Este processo de des-judeização de Auschwitz foi, a partir da década de 1970, fortemente ampliado. Há uma outra re-interpretação do campo de extermínio, no qual os judeus foram, de novo, deixados de lado. O campo passa ser considerado como o símbolo do martírio do católico povo polonês: ali foram assassinados poloneses, entre eles padres e freiras, inclusive Padre Kolbe, beatificado e canonizado posteriormente, e Edith Stein, uma judia convertida que se tornara freira (Charlesworth, 1994).

A catolicização de Auschwitz foi estimulada pelo então arcebispo de Cracóvia, em cuja diocese localiza-se Auschwitz, Karol Wojtyla, o futuro Papa João Paulo II, desde os anos 70. Em 1983, o lugar da sede do comando nazista é transformado em igreja e em 1984 é inaugurado um convento das Carmelitas. Cerimônias religiosas, como a Via Sacra, são ali realizadas. Uma enorme cruz domina a paisagem de Auschwitz.

A sovietização e a catolicização do memorial, em detrimento da memória de judeus assassinados, não se fez sem protestos por parte de representantes religiosos e intelectuais. A apropriação e metamorfose, duplamente efetivadas, de um dos mais tristes “lugares da memória” da história humana, tem um sentido político por parte daqueles que não foram as mais numerosas vítimas de um genocídio sistemática e cientificamente programado. A apropriação e metamorfose do memorial situa-se na interface de conflito no qual estão em jogo elementos como poder e identidade, quer em sua dimensão de organização sócio-política, quer como identidade nacional, quer ainda como identidade religiosa.

Cerca de um milhão de soldados britânicos morreram durante a Primeira Guerra Mundial, especialmente na Frente Ocidental, na Bélgica e na região nordeste da França em particular. Desde 1915 intensos debates trouxeram à tona o destino dos corpos dos soldados. Nesses debates estavam envolvidas posições a favor do repatriamento e enterro individual, diferenciado, e a favor da criação de cemitérios e memoriais no continente europeu, o mais próximo possível dos campos de batalha. Neste contexto não haveria diferenças, os cemitérios seriam os mais semelhantes possíveis e os túmulos seriam indiferenciados, sendo indicados apenas o nome do soldado e a sua unidade. Os debates envolviam diferenças sociais, religiosas e de identidade nacional. A segunda proposta foi vitoriosa, a despeito das inúmeras críticas feitas (Hefferman, 1995).

Em 1930 haviam sido criados na Bélgica e na França 891 cemitérios, com cerca de 550.000 túmulos. Dezenove grandes memoriais foram erigidos, entre eles o Tyne Cot Memorial, Arras Memorial, Menin Gate Memorial e o Somme Memorial, em Thiepval, este último um monumento que ascende a 44 metros de altura (cinco menos que o Arco do Triunfo, em Paris, segundo o acordo estabelecido entre os governos francês e britânico). Inaugurado em 1932, domina a paisagem em torno, sendo visto a quilômetros de distância. Nele estão gravados os nomes de cerca de 75.000 soldados desaparecidos na guerra. Memoriais foram também construídos para os soldados desaparecidos da Irlanda do Norte, Canadá, Austrália, Nova Zelândia, União Sul-Africana e Índia, domínios e colônias britânicas à época (Hefferman, 1995).

Os cemitérios e memoriais tornaram-se lugares sagrados, objeto de peregrinação cívica, tornando-se símbolos da identidade nacional. Ainda na década de 1990 uma dúzia de empresas turísticas organizam tours a esses santuários cívicos, que atraem milhares de turistas, emocionalmente já distantes daqueles ali enterrados ou lembrados. Conforme Hefferman argumenta, a política britânica optou criar um quadro de recordação dos mortos da guerra visando esquecer a própria guerra. Mas a pergunta que fica sem resposta é, afinal, para que e por quem esses e todos os soldados morreram? Os memoriais, submetidos a múltiplas interpretações, podem também dar origem a esses questionamentos.

Sistematizando alguns pontos

Alguns pontos devem ser agora sistematizados. O primeiro refere-se à localização dos monumentos. A despeito dos templos terem a visibilidade e acessibilidade garantidas em virtude de suas dimensões e do poder de atração que exercem sobre os fiéis, a localização, especialmente para os demais monumentos, é de fundamental importância, pois a visibilidade e acessibilidade maximizadas garantem a maximização da capacidade de comunicarem aquilo que deles se espera. Mas a localização representa muito mais do que visibilidade e acessibilidade. Além de seu caráter absoluto, referente ao sítio do monumento, e de seu caráter relativo, referente à acessibilidade face aos espaços sociais e econômicos da cidade, a localização apresenta um caráter relacional, que inclui os significados que foram construídos a seu respeito pelos diversos grupos sociais. Este é um ponto importante porque o monumento pode incorporar os significados já atribuídos à sua localização. Ao mesmo tempo, esses significados, em razão da presença de um dado monumento, podem ser fortalecidos, ampliando o potencial simbólico do lugar. Inversamente, a localização de um monumento pode minimizar ou reverter os significados atribuídos ao lugar, estabelecendo-se uma ambigüidade locacional. Assim, a localização é parte integrante do planejamento de um monumento, seja templo ou não.

O caráter relacional da localização foi objeto de consideração, e por vezes de debates, na escolha do sítio da estátua de Arthur Ashe, em Richmond, da Basílica de Sacré Coeur de Montmartre, em Paris, do pretendido Palácio dos Soviets, em Moscou, das estátuas dos rebeldes irlandeses e do monumento a Vittorio Emanuele II, em Roma. Pode-se, assim, falar em política locacional das formas simbólicas.

O segundo ponto diz respeito à escala do monumento, entendida tanto como dimensão absoluta, envolvendo área, volume e altura do monumento, como dimensão relacional, envolvendo a comparação com monumentos de mesma natureza, mas produzidos e considerados expressões simbólicas por grupos e instituições em confronto. A escala, assim qualificada, expressa poder e, mais do que isto, pode expressar supremacia. Neste sentido, como se refere Marston (2000), a escala é uma construção social, tendo uma conotação política.

A estátua equestre do general Robert Lee, em Richmond, a Basílica de Sacré Coeur de Montmartre, em Paris, o monumento a Vittorio Emanuele II, em Roma, e a estátua de Lênin em Tashkent são exemplos de monumentos cujas dimensões absolutas exprimem poder, de fato, ou simbolicamente a eles atribuídos. A competição entre grupos e instituições em confronto, por meio de seus monumentos, aparece, por exemplo, na política da escala estabelecida pela Igreja Ortodoxa Russa face à Igreja Católica Romana e do governo soviético face ao mundo capitalista, cujo monumento mais expressivo situava-se em Nova York.

O terceiro ponto, por sua vez, refere-se à interconexão entre práticas de afirmação ou contestação política que, à primeira vista podem parecer isoladas entre si. Este ponto, por outro lado, deriva do anterior e aborda essas práticas em escala mais ampla. Essas práticas articulam processos gerais por meio de formas simbólicas que aparentemente têm significados localizados em contextos locais, regionais ou nacionais. Mas apenas aparentemente.

Os monumentos aqui analisados foram criados nos séculos XIX e XX, um período no qual verificaram-se profundas contradições e mudanças – unificação nacional, expansão imperialista, independência política, conflitos sociais, afirmação de uma classe burguesa, ascensão e queda de regimes totalitários, entre outros – que alteraram valores e crenças e ao mesmo tempo suscitaram novas formas simbólicas. Como as mudanças acima mencionadas estão conectadas entre si, ainda que nem sempre de modo direto, é possível estabelecer conexões entre esses monumentos. Assim, estabelece-se uma conexão entre a recusa parisiense de instalar a Estátua da Liberdade em frente à Basílica de Sacré de Montmartre e a sua localização em Nova York. Ou uma conexão entre a inauguração do Empire State Building em Nova York, em 1931, e o projeto, no mesmo ano, do Palácio dos Soviets, em Moscou, cuja altura suplantaria o do então mais elevado prédio do mundo. Ou ainda, as articulações entre os monumentos dedicados aos rebeldes irlandeses ou construídos em homenagem às lutas pela terra na Escócia e aquele localizado em Petersham, que celebra a vitória das tropas americanas sobre os camponeses da Nova Inglaterra. E ainda, entre os memoriais dedicados a todos aqueles que, independentemente de classe, raça ou religião, morreram em todas as guerras. Singulares em sua aparência e sentido, os monumentos fazem parte da história e da geografia geral.

Na história e geografia dos monumentos questiona-se, como faz Loukaki (1997, pp. 310), “quem, exatamente, tem o poder e o privilégio para definir padrões de julgamento para a compreensão e transformação” de monumentos que foram construídos no bojo de uma história e geografia marcada por contradições e conflitos. Celebração e contestação são partes integrantes da mesma realidade social.

Concluindo com questionamentos

Que monumentos existem no Brasil que merecem ser analisados? Esta questão torna-se duplamente pertinente. Primeiramente em virtude do que foi anteriormente exposto, isto é, os monumentos, cívicos ou religiosos, podem ser objetos de disputas entre grupos distintos e, assim, submetidos a interpretações contrastantes, revelando a sua natureza política. Esta pode ser revelada mesmo sem contradições e conflitos aparentes. Em segundo lugar, torna-se pertinente em razão da história e geografia do país ter sido caracterizada por mareadas contradições e conflitos (poucos dos quais analisados pelos geógrafos). Essas contradições e conflitos traduziram-se em representações por meio de monumentos? Se isto for verdadeiro questiona-se sobre o contexto econômico, social e político, envolvendo a construção dos monumentos, os agentes sociais participantes desse processo, bem como os seus interesses e os embates entre eles, a localização dos monumentos tanto à escala regional como intra-urbana, sobre a iconografia dos mesmos e os seus significados de acordo com os diversos grupos em confronto.

À guisa de sugestão admite-se como monumentos relevantes para análise a estátua do Cristo Redentor, na metrópole carioca, considerada como um dos símbolos da cidade do Rio de Janeiro, a Basílica em Aparecida do Norte, construída para ser o símbolo do catolicismo no Brasil, a estátua do Padre Cícero, em Juazeiro do Norte, reverenciando o líder do catolicismo popular do semi-árido nordestino, e o templo da Igreja Universal do Reino de Deus, no Rio de Janeiro, localizado à antiga Avenida Suburbana, redenominada de Dom Helder Câmara. Outros monumentos podem ser também objeto de análise.

Nos monumentos estão inscritos as representações que os homens fazem da história e da geografia. São eles, portanto, parte da complexa e variável temporalidade e espacialidade que caracterizam a ação humana.

 

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Ficha bibliográfica:
CORRÊA, R. L. Monumentos, política e espaço.
Geo Crítica / Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 15 de febrero de 2005, vol. IX, núm. 183. <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-183.htm> [ISSN: 1138-9788]


 
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