Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.
ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. IX, núm. 194 (13), 1 de agosto de 2005


ATUAÇÃO DO PÚBLICO E DO PRIVADO NA ESTRUTURAÇÃO DO MERCADO DE TERRAS DE PORTO ALEGRE (1890-1950)

 

Tânia Marques Strohaecker

Professora no Departamento de Geografia - UFRGS, Brasil.

E-mail: tania.strohaecker@ufrgs.br

 


Atuação do público e do privado na estruturação do mercado de terras de Porto Alegre (1890-1950) ( Resumo)

A estruturação atual das cidades brasileiras é produto de um longo processo de idealização, construção, destruição e reprodução dos espaços frente à atuação de diferentes agentes sociais. Entre os agentes modeladores do espaço urbano destacam-se os proprietários dos meios de produção, os proprietários fundiários, os promotores imobiliários e o Estado. O trabalho procura analisar o processo de estruturação urbana de Porto Alegre (RS/Brasil), no período de 1890 a 1950, enfocando as estratégias do Estado, na esfera municipal, e dos promotores fundiários frente à nova ordem mundial que preconizava a modernização da cidade como fator preponderante para a sua inserção na economia capitalista.

 

Palavras-chave: companhias de loteamento, agentes modeladores do espaço urbano, proprietários fundiários, estruturação urbana de Porto Alegre.


Public and private performance in the struturation of the land market of Porto Alegre (1890-1950) (Abstract)

Today’s structuring of Brazilian cities is a product of a long term idealization, construction, destruction and reproduction processes of spaces produced by different social agents. Among the urban space modeling agents, the most evident are the resource capitalists, landowners, real-estate developers and the State. This work seeks to analyze the urban structuring of Porto Alegre, the capital city of the State of Rio Grande do Sul, Brazil, from 1890 to 1950, focusing on the strategy of the State, at the municipal, and the real-estate developers, considering, the new world order that promotes  city modernization as being essential to capitalist economic integration.

 

Keywords: real-estate developers, urban space modeling agents, landowners, urban structuring of Porto Alegre.


 

A pesquisa baseou-se principalmente em fontes primárias como: os relatórios anuais das companhias publicados na imprensa durante os anos de 1895 a 1950; os relatórios anuais da Intendência Municipal de 1895 a 1950; os documentos originais disponibilizados pelas companhias Predial e Agrícola e Condor Emprendimentos Imobiliários; os documentos originais arquivados na Junta Comercial de Porto Alegre; em entrevistas com funcionários e dirigentes das companhias extintas; em planta cadastral com o nome dos proprietários dos imóveis dos loteamentos implantados pela extinta Companhia Territorial Porto Alegrense. Para complementar o trabalho analisou-se fontes secundárias sobre a história urbana e regional, a biografia dos principais acionistas das companhias de loteamento, a legislação urbanística, códigos de posturas, mapas e plantas antigas da cidade.

 

O texto está estruturado em três partes: na primeira, analisa-se a formação do capital imobiliário e o surgimento das companhias de loteamento, destacando-se a atuação da Companhia Territorial Porto Alegrense na última década do século XIX. Após, destaca-se o ideário da modernização encabeçado pelo Estado frente às pressões do capital emergente e a atuação da Companhia Predial e Agrícola, a principal detentora de terras da cidade nas primeiras décadas do século XX. Na terceira parte, analisa-se a reforma urbana empreendida por três governos sucessivos, concomitantemente à atuação da Schilling & Kuss Cia. Ltda., principal empresa loteadora em Porto Alegre nas décadas de 1930 a 1950.

 

Portanto, o trabalho analisa conjuntamente as estratégias de dois agentes urbanos (Estado e promotor fundiário), pois entende-se que suas ações espacializadas, respectivamente, na área central e na periferia urbana, foram responsáveis, entre outros fatores, pelas contradições sócio-espaciais da cidade atual.

 

 

A formação do capital imobiliário e as companhias de loteamento

 

A partir de 1860, Porto Alegre começa a sair da letargia de quarenta anos com a decadência do ciclo do charque no sul da Província devido à concorrência platina e à gradativa organização comercial das colônias alemãs. A capital se impõe como pólo comercial passando a ser alvo de maciços investimentos.

 

Diversos melhoramentos urbanos são introduzidos frente às inovações tecnológicas da época, como o telégrafo (1867), os bondes à tração animal (1873), a estrada de ferro e a iluminação a gás (1874), a rede de abastecimento de água (1876), o serviço telefônico (1886), que fornecerão os serviços e equipamentos indispensáveis à emergência do capitalismo.

 

O excedente apropriado pelo grande capital comercial passa a ser canalizado para atividades manufatureiras, exploração de serviços públicos, além do investimento no mercado de terras, sobretudo a partir da última década do século XIX, com a constituição de várias companhias de loteamento.

 

A reforma monetária empreendida nos primeiros anos da República, conhecida como Encilhamento, propiciou o surgimento de inúmeras empresas, fábricas e companhias em todo o país. No Rio Grande do Sul, os efeitos do Encilhamento se estenderam aproximadamente até 1895 (Pesavento, 1990: 76). Essa reforma dinamizou o setor financeiro em virtude das facilidades que concedeu à emissão e concessão de crédito.

 

A partir desse contexto favorável, começaram a ocorrer alianças entre grandes capitalistas de diversos segmentos econômicos (proprietários fundiários, banqueiros, grandes comerciantes, políticos) para a constituição de companhias de exploração de serviços públicos, companhias de loteamento, além de companhias de seguros, fábricas e instituições financeiras.

 

O crescimento demográfico registrado no período 1880-1890 em Porto Alegre, passando a população de 29.723 para 52.421 habitantes, a emergência da industrialização na capital com a demanda crescente de mão-de-obra, o início do processo de especialização funcional do núcleo central, entre outros fatores, condicionaram o surgimento de empresas atuantes no mercado de terras.

 

A Companhia Territorial Porto Alegrense, fundada em 15 de setembro de 1892, tinha como objetivos fixados em seus estatutos: a compra de bens de raiz, especialmente de terrenos e prédios no município de Porto Alegre, a venda de terrenos e lotes, abertura de ruas ou avenidas, a exploração e venda de materiais existentes em suas propriedades (madeira, pedra, saibro, aterro), construção de prédios em suas propriedades. Os incorporadores dessa companhia eram o tenente-coronel Manoel Py, o comendador Antonio Chaves Barcellos pertencente à família tradicional e abastada, o capitalista e proprietário fundiário Eduardo de Azevedo Souza Filho e o empresário José Luiz Moura de Azevedo.

 

A Companhia Territorial Porto Alegrense atuou principalmente na zona norte da cidade, loteando bairros como Navegantes, São Geraldo e parte dos atuais bairros São João e Higienópolis, além de outras áreas. A empresa promovia loteamentos distintos para grupos de renda diferenciados, conforme o sítio e a localização dos mesmos. Dessa forma, o loteamento Bela Vista, localizado em área salubre e adjacente aos bairros nobres da Independência e Moinhos de Vento, foi lançado visando o mercado de classe média, constituído basicamente de descendentes de portugueses que exerciam atividades ligadas ao comércio da cidade. Por outro lado, os loteamentos Navegantes-São João e Várzea do Gravataí, localizados em áreas sujeitas a inundações e distantes do centro urbano, foram destinados às classes operárias, principalmente imigrantes (italianos, alemães e poloneses), que procuravam residir nas proximidades das fábricas. Nesse período, a indústria porto-alegrense distribuía-se longitudinalmente às margens do lago Guaíba e à ferrovia.

 

A partir de 1898, a Companhia Territorial Porto Alegrense começou a sofrer graves prejuízos devido à crise econômica nacional. Nesse período, houve uma retração brutal na comercialização dos imóveis da empresa, além da inadimplência de muitos contratantes, o que obrigou a diretoria a reduzir os dividendos dos acionistas de 10% para 5% ao ano, além de amortizar o capital social da empresa em 50%, conforme descrição nos relatórios anuais publicados nos meses de janeiro a março nos jornais Correio do Povo e A Federação. No entanto, essas medidas não foram suficientes para abrandar a crise interna, o que levou à incorporação da mesma pela Companhia Predial e Agrícola, em 24 de julho de 1902.

 

A Companhia Territorial Rio Grandense, fundada em seis de agosto de 1895, tinha como diretores José Caetano Ferraz Teixeira e Francisco Cândido Lopes. Esta empresa teve curta duração, pois, em assembléia geral extraordinária de 2/10/1899, a diretoria resolveu proceder à respectiva liquidação, sendo suas propriedades leiloadas, conforme anúncios veiculados nos principais jornais da época. A área de atuação dessa empresa compreendia loteamentos no arraial da Piedade (hoje bairro Rio Branco), nas adjacências do Campo da Redenção (atual bairro Bom Fim), e cortes de chácaras nos arrabaldes de Teresópolis, Partenon e Glória.

 

A Companhia Rural e Colonizadora fundada em junho de 1896 tinha como incorporadores Conrado Campo Penafiel, José Luiz de Moura Azevedo, Domingos de Souza Brito, Lourenço Guimarães e Carlos Trein Filho. O patrimônio fundiário estava concentrado nos arrabaldes de Teresópolis e Glória. Esta empresa também teve curta duração, pois, em 1898, ocorreu a sua fusão com a Companhia Predial e Agrícola.

 

A Companhia Predial e Agrícola fundada em 7 de janeiro de 1897, tinha objetivos mais amplos do que suas concorrentes. Sua atuação não se restringia ao município de Porto Alegre, mas também ao interior do Estado, com interesse em comercializar terras para colonização e empreitar a construção de obras e estradas. Os incorporadores desta companhia eram Eduardo de Azevedo Souza Filho, José Luiz Moura de Azevedo, Manoel Py e seu genro Possidônio Mâncio da Cunha Júnior. Entre seus acionistas constavam tanto pessoas físicas como jurídicas, destacando-se E. de Azevedo & Cia. e o Banco da Província. Esta companhia foi a única entre as citadas que conseguiu sobreviver à crise econômica do final do século XIX e início do XX, estando em pleno funcionamento até os dias atuais.

 

A área de atuação inicial da Cia. Predial e Agrícola compreendia a zona sudeste de Porto Alegre, principalmente os arrabaldes da Glória e Teresópolis. Devido às condições do sítio -mata exuberante, profusão de nascentes e cursos d,água, topografia acidentada e acessibilidade dificultada – foram comercializados primeiramente para fins de veraneio e sítios de lazer.

 

Práticas das companhias de loteamento

 

A partir da análise dos relatórios anuais das empresas, publicados nos jornais da época, bem como nos documentos existentes no arquivo morto da Junta Comercial de Porto Alegre, e da planta dos loteamentos lançados pela extinta Cia. Territorial Porto Alegrense, pode-se constatar algumas práticas e estratégias comuns:

 

·       Compra de ações de empresas localizadas nas áreas loteadas - a Cia. Territorial Porto Alegrense adquiriu 800 ações da Cia. Carris de Ferro Porto Alegrense e 60 ações da Cia. Casa de Saúde Bela Vista (atual Hospital Militar), com o intuito de valorizar seus imóveis para comercialização (A Federação, 18/02/1895).

 

  • Compra de ações de empresas exploradoras de serviços públicos - a Cia. Territorial Porto Alegrense comprou ações de empresas como Cia. Hidráulica Porto Alegrense, Cia. de Carris Ferro Porto Alegrense, com o objetivo de pressionar estas companhias a estender seus serviços às áreas loteadas. A Cia. Predial e Agrícola, por sua vez, possuía ações da Cia. Hidráulica Porto Alegrense, da Cia. Fluvial e da Cia. Melhoramentos do Caí, essas duas com o intuito de estender os serviços às áreas loteadas na colônia.

 

  • Construção de prédios em lotes pré-determinados para uso da empresa ou para locação para efeitos de valorização dos loteamentos, além de extração da renda fundiária - a Cia. Territorial Rio Grandense edificou quinze lances de casas na rua dos Venezianos (Cidade Baixa) para locação (A Federação, 6/8/1895). A Cia. Predial e Agrícola construía pequenos chalés de madeira para locação em arrabaldes distantes como Glória e Teresópolis (A Federação, 9/04/1900).

 

  • Reserva de áreas com arrendamento de terras - A Cia. Territorial Porto Alegrense e a Cia. Predial e Agrícola utilizavam essa expediente prevendo futura valorização dos imóveis (A Federação 01/02/1986 e 18/02/1901).

 

  • Reserva de quadras e lotes com boa localização pelos incorporadores das empresas - Manoel Py, Antônio Chaves Barcellos e Possidônio da Cunha Jr.  reservavam quadras adjacentes a lotes de uso comercial ou institucional e ainda junto às vias de melhor acessibilidade.

 

  • Venda de lotes insalubres e mal localizados em prestações módicas e em longo prazo - o loteamento Várzea do Gravataí, localizado na periferia urbana, foi parcelado em lotes de tamanho médio (12x55 m) e adquirido por pessoas de pequenas posses, principalmente imigrantes alemães ou seus descendentes.

 

O emergente setor imobiliário de Porto Alegre teve no Estado um forte aliado. De fato, as mínimas restrições legais impostas pelo poder público municipal, proporcionaram ampla liberdade de ação aos empreendedores. O Código de Posturas Municipais sobre Construções, de 1893, exigia apenas aos interessados em doar ruas à municipalidade anexar ao requerimento uma planta com a situação das mesmas e sua orientação em relação às ruas vizinhas, mesmo no caso de terrenos suburbanos.

 

Não havia por parte da Municipalidade restrições à testada mínima dos imóveis, tampouco à relação desproporcional entre largura e comprimento dos lotes. A Intendência exigia apenas um alinhamento de quatro metros das construções em relação à rua e que a área edificada não ultrapassasse a dois terços da área total do imóvel.

 

Na realidade, era apenas obrigatório que as novas áreas loteadas tivessem os imóveis voltados para logradouro público. As ruas e avenidas doadas para servidão pública pelas companhias loteadoras eram precárias. Não havia pavimentação nem previsão de escoamento das águas servidas, o máximo que se fazia era aterrar o leito da rua com um parco recobrimento de areião e cascalho que, com o passar do tempo, desaparecia por completo, cedendo lugar à lama e aos buracos. Obras de infra-estrutura para redes de água, energia e esgoto também não eram exigidas pelo poder público municipal às empresas.

 

As despesas das empresas limitavam-se ao custo inicial das glebas, bem como sua avaliação, escritura ou título Torrens, aterros, drenagem, medição, demarcação, registro e indicação do nome das vias. O lucro provinha da diferença entre o preço de compra e o de venda, embutidos os custos de produção e promoção dos empreendimentos.

 

A análise do contexto do final do século XIX revelou as intrincadas relações dos diferentes agentes econômicos dispostos no novo cenário republicano com a emergência do capitalismo. Um breve estudo da biografia dos principais empreendedores das companhias de loteamento demonstrou como suas ações permeavam todos os setores da economia urbana, conforme apresentado no quadro Nº 1.

 

As principais companhias loteadoras adotavam uma delimitação bem clara das áreas de atuação para a promoção fundiária. A partir do centro de Porto Alegre foram identificados três direcionamentos básicos: para o norte pela Territorial Porto Alegrense, para leste pela Territorial Rio Grandense e para o sudeste pela Cia. Predial e Agrícola.

 

As práticas das companhias de loteamento analisadas demonstram o grande interesse na valorização de seus empreendimentos através da incorporação de bens, usos e serviços. A reserva de grandes áreas dentro dos loteamentos por parte dos capitalistas revela a preocupação no direcionamento dos recursos para um setor com lucratividade garantida em longo prazo, em um período marcado por forte desvalorização monetária e expansão da demanda real. Por outro lado, as mínimas exigências regulamentadas pelo poder público municipal para os novos loteamentos indicam a ampla liberdade de ação dos promotores fundiários que, coincidentemente, ocupavam importantes cargos públicos.

 

Portanto, pode-se afirmar que, a partir da última década do século XIX, a figura isolada do proprietário fundiário começa a desaparecer do cenário da capital cedendo lugar às companhias de loteamento, criadas especificamente para atuar no mercado de terras.

 

Quadro Nº 1

Cargos nos setores público e privado dos principais acionistas da Cia. Predial e Agrícola

 

Principais acionistas da Cia. Predial e Agrícola

Cargos no setor privado

Cargos no setor público

Manoel Py

-Diretor da Cia. Hidráulica

  Porto Alegrense

-Diretor da Cia. Carris Porto      Alegrense

-Diretor da Cia. Gráfica Porto Alegrense

-Diretor do Banco Comercial Franco-Brasileiro

-Fundador e sócio majoritário da Cia. Fiação de Tecidos Porto Alegrense – Fiateci

-Tenente-coronel da Guarda Nacional

-Deputado estadual por 4 mandatos (1893-1909)

-Deputado Federal

Possidônio Mâncio da Cunha Jr.

-Presidente da Cia. Força e Luz Porto Alegrense

-Presidente da Cia. Telefônica Rio Grandense

-Presidente da Cia. Previdência do Sul

-Incorporador da Sociedade Colonizadora Catarinense

-Sócio e presidente da Cia. Fiateci

-Incorporador do Banco Franco Brasileiro

-Diretor da Cia. Gráfica Porto Alegrense

-Secretário Estadual da Fazenda e de Obras Públicas

-Deputado estadual

-Deputado federal

-Relator de Finanças da Assembléia Legislativa

José Luiz Moura de Azevedo

-Diretor-presidente do Banco Nacional do Comércio S.A.

-Diretor-gerente da Cia. Territorial Porto Alegrense

-Diretor da Cia. Hidráulica Porto Alegrense

-Diretor-secretário da Cia. Carris Porto Alegrense

-Major da Guarda Nacional

 

Fonte: Elaboração da autora a partir de levantamento das biografias dos referidos acionistas.

 

 

O ideário da modernização e a expansão da cidade

 

A cidade repleta de vestígios da época colonial começa a "incomodar". Discursos inflamados e artigos nos jornais clamam pela modernização de Porto Alegre, principalmente quanto ao saneamento, à viação urbana e ao embelezamento geral. Na realidade, é a nova ordem econômica emergente no país que exige esses melhoramentos. Assim, os escassos recursos disponíveis são canalizados primordialmente para o centro da cidade e para aquelas áreas onde o grande capital começava a ser locado.

 

José Montaury, representante do Partido Republicano Rio Grandense (PRR) de matriz positivista, permaneceu frente à Intendência Municipal por vinte e sete anos (1897-1924), período no qual foram realizados vários melhoramentos entre os quais se destaca a municipalização dos serviços públicos de infra-estrutura, a construção do cais do porto com recursos estaduais, a extensão da rede de abastecimento de água e de energia elétrica para os bairros mais próximos do centro, elaboração do primeiro plano urbanístico de Porto Alegre pelo arquiteto João Moreira Maciel.

 

Observa-se a preocupação do poder público municipal com a estruturação da cidade a partir do seu núcleo central, onde ocorrerão as maiores transformações, bem como nas áreas de implantação industrial valorizadas pelo capital. As práticas do Estado refletem as exigências de ruptura com o passado colonial e de afirmação de uma imagem urbana condizente com os novos tempos. Os modelos inspirados em outras capitais como Rio de Janeiro e Recife, reforçam a necessidade de Porto Alegre preparar-se para sua nova função urbana de pólo industrial, atraindo investimentos e, conseqüentemente, população.

 

O fluxo demográfico crescente gera na cidade uma demanda significativa por habitação que se concretiza, por um lado, na utilização de antigas casas como cortiços, pensões e estalagens na área central para as camadas mais pobres e, por outro lado, na formação de novos bairros residenciais nas direções norte e sul, para os quais se dirigem as camadas médias, formadas por funcionários públicos, militares, empregados qualificados do comércio e da indústria, que possuíam uma remuneração estável e suficiente para as despesas de transporte, aquisição de terreno e construção de uma casa.

 

O poder público municipal passa a controlar de modo mais efetivo o uso e ocupação do solo na área central com a promulgação, em 1913, do Regulamento Geral de Construções. Entre seus vários dispositivos, destaca-se a proibição para a construção de prédios em madeira na zona servida por rede de esgotos (área central), a exigência de cercamento de terrenos baldios na zona urbana e a isenção de imposto predial e territorial para todas as edificações construídas a partir de 1/1/1914 com boas condições de habitabilidade. Dessa forma, ocorre uma pressão velada para a saída dos moradores da área central que não se adequavam às novas normas urbanísticas.

 

A Companhia Predial e Agrícola foi a única empresa que conseguiu sobreviver aos difíceis anos que deram início ao século XX. Com a incorporação das extintas companhias Territorial Porto Alegrense, Territorial Rio Grandense e Cia. Rural e Colonizadora, a Companhia Predial e Agrícola praticamente monopolizou o mercado de terras da capital do Estado até a metade da década de 1920. Ela detinha um patrimônio fundiário considerável na periferia da cidade em arrabaldes ou bairros emergentes da zona sul (Glória, Teresópolis, Partenon), como nos bairros ao norte da capital (Navegantes, São João, Higienópolis e Auxiliadora).

 

De 1908 até o início da Primeira Guerra Mundial, em 1914, ocorre um incremento significativo no volume de negócios do setor imobiliário. Esse aumento da demanda reflete-se no âmbito de toda a cidade com a introdução dos bondes à tração elétrica, a implantação de várias fábricas e melhoramentos urbanos. De fato, as vendas de imóveis crescem extraordinariamente. Através da análise do número de contratos efetuados anualmente desde a fundação da Cia. Predial e Agrícola, percebe-se que, em média, eram contratados cerca de cinqüenta imóveis por ano. Mas, em 1909, ocorre um aumento no volume de vendas para 184 imóveis, um incremento de 268%. Esse desempenho se deve primordialmente à introdução dos bondes à tração elétrica na cidade, a partir de 1908, o que permitiu o deslocamento dos estratos de renda média para bairros mais distantes do centro com a facilidade e rapidez do novo sistema de transporte coletivo.

 

No período de 1914 a 1918 as vendas de imóveis da Cia. Predial e Agrícola decrescem vertiginosamente. O pior desempenho ocorreu em 1918 quando foram comercializados apenas dezenove imóveis. Através da análise do cadastro de imóveis contratados da referida empresa, percebe-se que os preços permaneceram estáveis aos valores atribuídos no período anterior à Primeira Guerra Mundial. O problema estava na demanda fortemente reprimida porque temerosa das conseqüências econômicas.

 

Os melhoramentos públicos empreendidos nos bairros industriais de Navegantes e São João, sobretudo em infra-estrutura (redes de água e energia elétrica) e no sistema viário (terraplanagem, calçamento e pavimentação) impulsionaram o crescimento na comercialização de imóveis e construção de residências a partir de 1925. A maioria das edificações destinadas à moradia nesses bairros era em madeira, comprovando que a população aí residente era de baixa renda. Os imóveis existentes na zona norte da Cia. Predial e Agrícola receberam, indiretamente, uma valorização devido aos melhoramentos implementados pelo poder público municipal.

           

 

A reestruturação do centro e seus reflexos na cidade

 

Em meados da década de 1920, Porto Alegre começa a apresentar modificações crescentes em sua paisagem, fortalecendo a função de pólo industrial e ampliando a população residente. O setor imobiliário apresenta um crescimento notável e a expansão da cidade ocorre de forma desordenada, principalmente na zona suburbana, onde não havia legislação urbanística incidente.

 

Após a longa administração do Intendente José Montaury, três novos dirigentes se sucederam no comando do Município, colocando em prática muitos projetos concebidos no Plano de 1914. A área central assimila usos e atividades do setor terciário, enquanto o uso residencial é segregado em bairros de alto, médio e baixo status. A modernidade urbana esteve condicionada à exclusão da área central da cidade para os estratos de menor poder aquisitivo.

 

A legislação urbanística foi um dos instrumentos políticos que viabilizou o processo de segregação sócio-espacial. O Decreto 108, de 10/09/1927, regulamentava a abertura de vias de comunicação e o disciplinamento dos empreendimentos imobiliários no município. Inovou ao tratar de áreas a serem doadas à municipalidade dentro dos loteamentos, quando se considerasse relevante a inclusão de praças, jardins e largos. Esse princípio urbanístico aparentemente de cunho apenas estético foi importante para o conjunto da cidade, pois distribuiu de forma equilibrada os espaços públicos e privados, contribuindo significativamente para a qualidade ambiental urbana.

 

Houve a preocupação do poder público com o Decreto 108 em padronizar as vias quanto à sua localização, ou seja, em área urbana, suburbana ou rural. Assim, para as vias públicas dentro do perímetro urbano era exigido calçamento de paralelepípedo ou concreto, meio fio de granito, construção de obras de arte para o escoamento das águas pluviais, redes de água, esgoto e iluminação, arborização nos passeios e placas com a nomenclatura das vias. Para as vias públicas entre o perímetro urbano e suburbano, onde ocorreram os principais loteamentos da época, era exigida uma calha lateral de paralelepípedos, leito entre calhas de macadame simples, construção de obras de arte para escoamento das águas pluviais e placas com nomes das ruas. As redes de infra-estrutura eram de responsabilidade da Intendência Municipal. Para as vias entre o perímetro suburbano e o rural era exigido apenas um leito carroçável com cascalho e valetas para o escoamento das águas pluviais.

 

O Decreto 115/1927 regulamentava a delimitação do município e sua divisão territorial em distritos e zonas (urbana, suburbana e rural). A zona urbana foi retificada para 1.778 hectares, uma área extremamente ampla frente à baixíssima densidade demográfica. Além disso, classificava as ruas situadas na zona suburbana servida por linhas de ônibus como pertencentes à zona urbana. Na verdade, esse decreto tinha como objetivo ampliar a cobrança do imposto predial para a zona suburbana.

 

O Decreto 180, de 19/12/1927, estabelecia o imposto sobre imóveis, classificando os prédios por localização, densidade e tipologia, conforme demonstra o Quadro Nº 2. Assim, os imóveis na zona urbana eram taxados em dobro em relação aos situados na zona suburbana. Quanto à densidade, os imóveis de apenas um pavimento tinham uma taxação maior em relação aos imóveis verticalizados, incentivando, portanto, o adensamento urbano e a racionalização econômica da infra-estrutura instalada.

 

Quadro Nº 2

Distribuição Percentual do Imposto sobre Imóveis em Porto Alegre – 1927

 

Especificação

Distribuição Percentual (%)

LOCALIZAÇÃO

   Zona urbana

   Zona suburbana

 

10

5

DENSIDADE

   1 pavimento

   De 4 a 5 andares

   De 6 andares e mais

 

20

5

2

TIPOLOGIA

   Cortiços/porões

   De madeira

   Mista

 

50

50

25

 

Fonte: Porto Alegre, Decreto-lei n0 180, de 19/12/1927.

 

 

Além disso, o Decreto 180 estabelecia o imposto predial diferenciado, conforme a localização e tipologia dos prédios, passando a taxar também os terrenos não edificados, com o objetivo de minimizar a especulação imobiliária já existente na época, conforme demonstra o Quadro Nº 3.

 

As companhias de loteamento usufruíam de certas regalias em relação à cobrança de impostos municipais, uma vez que estavam isentas de taxação por um ano a contar da data da abertura das vias, com exceção dos lotes já comercializados que passariam imediatamente a ser taxados, assim, os novos proprietários é que arcavam com a tributação.

           

A gestão de Alberto Bins, de 1928 a 1937, destacou-se pela conclusão das obras iniciadas por Otávio Rocha, além de obras de saneamento, viação e iluminação urbanas. Em 1931, através do Decreto n0 220, foi feita uma retificação dos limites da zona urbana, extrapolados no Decreto de 1927, devido às constantes reclamações de proprietários de imóveis quanto aos serviços públicos precários.

 

Quadro Nº 3

Imposto sobre Terrenos não Edificados em Porto Alegre – 1927

 

Localização

Valor (em réis) por metro de frente

Núcleo Central (Andradas/São Rafael/ Júlio de Castilhos)

100$000

Do Núcleo Central até Ramiro Barcelos

50$000

Área da Floresta

30$000

Ärea da Redenção

25$000

Cidade Baixa

15$000

São João

5$000

Navegantes

2$000

Da Protásio Alves até Bento Gonçalves

1$000

Demais áreas

Sem imposto

 

Fonte: Porto Alegre, Decreto-lei n0 180, de 19/12/1927.

           

 

A administração de Loureiro da Silva, de 1937 a 1943, coincide com o período em que foram executadas as maiores obras viárias de Porto Alegre. Dois fatores preponderantes influenciaram esse período: a ditadura instalada no país em 1937, que delegou amplos poderes ao Executivo dando oportunidade para a desapropriação de grandes áreas necessárias às obras projetadas, e a declaração de guerra junto aos países aliados que proporcionou a obtenção de vultosos recursos externos, praticamente inacessíveis em outras circunstancias (Macedo, 1968:112).

 

A empresa Schilling Kuss & Cia. Ltda., por exemplo, destacou-se no ramo imobiliário nas décadas de 1930 a 1950. Esta empresa foi instalada em 1926 com recursos provenientes do setor comercial de Porto Alegre. A sociedade era constituída por dois sócios: Jorge Júlio Schilling, pertencente à terceira geração de imigrantes alemães, e seu genro Arthur Eduardo Kuss, natural da Alemanha. Jorge Schilling era gerente da conceituada firma comercial Chaves & Almeida, além de acionista da Cia. Predial e Agrícola e da Cia. Força e Luz Porto Alegrense. O patrimônio imobiliário foi adquirido antes da constituição da empresa, no início da década de 1920. A estratégia de Schilling foi adquirir, como pessoa física, uma série de chácaras contíguas na zona suburbana de Porto Alegre em local aprazível e relativamente próximo ao núcleo central, na área que hoje engloba os bairros Petrópolis, Bela Vista, Chácara das Pedras, Três Figueiras.

 

A empresa procurava facilitar as condições de acessibilidade das novas áreas loteadas, através de contratos com empresas prestadoras de serviços, como, por exemplo, empresas de ônibus que faziam o percurso dentro dos loteamentos. Era prática comum da empresa, quando do lançamento de determinado empreendimento, a edificação de algumas moradias de boa qualidade arquitetônica para a valorização e incremento das vendas.

 

A Schilling & Kuss foi vendida em 1981 para a Máquinas Condor S.A., uma corporação que desenvolve atividades no setor metalúrgico, na indústria e comércio de implementos agrícolas e de mineração, e no setor de projetos florestais, agrícolas e pastoris. Atualmente, a empresa Condor Empreendimentos Imobiliários, subsidiária da Máquinas Condor, é a maior proprietária de terras de Porto Alegre (Oliveira, 1989:32).

 

Os principais fatores que levaram à extinção da referida empresa, segundo entrevista fornecida pelo seu antigo gerente-geral, Sr. Jorge Júlio Eichemberg, foram os elevados custos de implantação e manutenção dos loteamentos, leis municipais restritivas à atuação dos promotores imobiliários, burocracia dos órgãos públicos, excessiva tributação, crescimento da família Schilling e conseqüente descentralização do poder gerencial.

 

A expectativa projetada do crescimento da cidade por parte da Schilling & Kuss foi plenamente concretizada. Recentemente, grandes vazios urbanos de propriedade da sucessora da empresa, nos bairros Bela Vista, Petrópolis e Chácara das Pedras vêm sendo comercializados devido à construção da Terceira Perimetral, importante obra viária que passa por vinte bairros da cidade, ligando a zona norte à zona sul. A retenção de terras teve por objetivo a valorização indireta da área através dos investimentos públicos realizados, sem ônus para a empresa.

 

Após a Segunda Guerra Mundial, com a mecanização do campo, o êxodo rural e o adensamento urbano, uma série de instrumentos jurídicos restritivos foi sendo incorporado gradativamente à legislação municipal. A rigidez das normas urbanísticas provocou, indiretamente, a proliferação de loteamentos clandestinos na periferia urbana e a transferência de muitas empresas loteadoras para municípios vizinhos onde a legislação era mais branda.

 

A idealização de uma cidade moderna e saudável do início do século XX desmoronou frente às contradições socioeconômicas exacerbadas ao longo dos anos através das atuações de agentes públicos e privados que conduziram boa parcela da população ao processo de exclusão social.

           

 

Considerações finais

 

O estudo das principais companhias de loteamento que atuaram no mercado de terras de Porto Alegre no período de 1890 a 1950 comprovou que, na realidade, seus acionistas majoritários atuavam em setores estratégicos da economia urbana, além de ocuparem cargos no setor público. A complexa rede de atuações e de poder econômico dos detentores de grande capital indica que eles moldaram a cidade de acordo com seus interesses.

 

No caso de Porto Alegre, a "divisão de tarefas" para torná-la uma cidade moderna parece estar apoiada na atuação preponderante do Estado na área central, através de duas estratégias: a concentração de investimentos públicos (obras de saneamento, viação e embelezamento) e controle urbanístico (tributação, código de edificações) que condicionaram a modernização da área central e a conseqüente valorização do uso do solo, expulsando a população de baixa renda para a periferia. Por outro lado, o Estado proporcionou ampla liberdade de atuação à iniciativa privada na periferia urbana, principalmente às companhias de loteamento e às concessionárias de serviços públicos, além de promover incentivos fiscais e um controle mínimo para a ocupação e expansão da periferia urbana.

 

O processo de modernização efetivado no centro da cidade e nos bairros próximos condicionou a emergência da segregação sócio-espacial, onde os promotores fundiários tiveram um papel de destaque ao valorizarem de forma diferenciada porções de terra para fins de parcelamento. A cidade atual repleta de contradições sociais é produto, portanto, de dois processos simultâneos: modernização e exclusão.

 

 

Bibliografía

 

BAKOS, M. A continuidade administrativa no governo municipal de Porto Alegre: 1897-1937. São Paulo: USP (Tese de doutorado), 1986.

 

MACEDO, F. Porto Alegre: origem e crescimento. Porto Alegre: Sulina, 1968.

 

OLIVEIRA, N. e BARCELLOS, T. Vazios urbanos em Porto Alegre: uso capitalista do solo e implicações sociais. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística, 1989.

 

PESAVENTO, S. História do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1991.

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A autora agradece à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (Fapergs) a concessão de bolsa de iniciação científica ao acadêmico Eduardo Brandelli.

 

© Copyright Tânia Marques Strohaecker, 2005

© Copyright Scripta Nova, 2005

Ficha bibliográfica:

MARQUES, T. Atuação do público e do privado na estruturação do mercado de terras de Porto Alegre (1890-1950). Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (13). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-13.htm> [ISSN: 1138-9788]

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