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A RUA NO IMAGINÁRIO SOCIAL
Luciana Francisca Cabral
Mestre em geografia pela Universidade Federal Fluminense – RJ – Brasil
E-mail: franciscasan@ig.com.br
A rua no imaginário social (Resumo)
A importância de analisarmos a espacialidade da rua está no fato de podermos identificar a dimensão da vida cotidiana presente em suas formas, uma vez que ela representa a espacialidade das relações sociais. Para alguns a rua é simplesmente passagem, enquanto outros vêem na rua mais que um itinerário. Para nós, a rua revela-se como palco de contínuos acontecimentos, em movimento constante, por isso nela a vida social se manifesta. A rua nos revela formas de apropriações e temporalidades, pois guarda em si esta “vivacidade”.
Palavras-chave: rua - paisagem urbana - sociedade
The importance of analyzing the spaciality of
street is in the fact that we can identify the dimension of daily life present
in its forms, since it represents the spaciality of social relations. To some
people the street is simply scenery, while others see in the street more than
itinerary. To us, the street reveals itself as stage of continuous events, in
constant movement. Thus social life shows up in it. The street reveals to us
forms of appropriations and temporalities, for it carries in itself this vivacity.
Keywords: street
- urban scenery - society
A Rua e Suas Significações
O estudo das ruas se apresenta com relevância
em muitos aspectos, principalmente porque não se pode conceber uma cidade sem
as mesmas. Os múltiplos encontros realizados nas cidades são mantidos e
alimentados pelas trocas, que estabelecem as relações sociais. A rua, então,
passa a ser, por excelência, o grande palco das sucessivas cenas e dramas,
enfim, lócus das diversas
representações da sociedade.
Algumas abordagens teóricas
Para determinadas pessoas, a rua é mais que
um simples passar de transeuntes, ela possui uma “alma encantadora”, como nos
informa João do Rio, que com seu potencial literário descreveu o amor que
sentia pelas ruas, revelando de maneira sutil seus movimentos. Para ele, a rua
não é um simples alinhamento de fachadas, ela é agasalhadora da miséria, é o
aplauso dos medíocres, dos infelizes, dos miseráveis da arte. A rua é generosa,
é transformadora de línguas, matando
substantivos, transformando a significação dos termos, impondo aos dicionários
as palavras que inventa. (1995: 4)
Na visão dos arquitetos e urbanistas, por
exemplo, as ruas ligam os múltiplos pontos de interesse particular ou
semipúblico, formando o que Santos chama de uma
rede de canais livres e de propriedades coletivas. Se não existissem, não
haveria troca de espécie alguma, pois servem de suporte ao deslocamento de
pessoas, veículos, mercadorias, informações (1988:91). O autor nos fala
ainda das multiplicidades da rua com suas inúmeras funções e apropriações como
suporte não só da arquitetura, que por si só é obra das relações humanas, mas
também como local de encontro.
Para alguns autores da Geografia, a rua é
vista como uma dimensão concreta da espacialidade das relações sociais num
determinado momento histórico, mais do que isso, nas ruas se tornam
perceptíveis às formas de apropriação, nelas se afloram as diferenças e as
contradições que envolvem o cotidiano, enfim, as ruas se revelam como elemento
importante de análise da sociedade.
Segundo Carlos (1996:88), no transcurso de um dia é possível presenciar que as Ruas da cidade
são tomadas por passos com ritmos diferenciados, com destinos diferentes. A
autora afirma que as ruas guardam múltiplas dimensões, portanto, podem ter o
sentido de passagem; o sentido de fim em si mesmas quando seu uso se volta para
a realização da mercadoria; o de mercado, onde camelôs e feiras reúnem pessoas;
o de festa; o de reivindicação; o de apropriação como território e, finalmente,
o sentido de encontro.
Lefebvre (1999), em seu livro A Revolução Urbana, apresenta argumentos
favoráveis e contrários à dinâmica da rua. Em sua análise, o autor afirma que a
rua é mais que um lugar de passagem e circulação. Ele argumenta que com a
invasão dos automóveis destruiu-se toda a vida social e urbana, impedindo que a
rua fosse o local do encontro. Para ele, o encontro espontâneo proporcionava
sentido à vida urbana. Ao elaborar seus argumentos contrários sobre a rua,
Lefebvre questiona o tipo de encontro que ali poderia ser estabelecido. Segundo
o autor, uma vez que o indivíduo caminha lado a lado com o outro, não existe o
encontro. A rua, nesse aspecto converte-se numa rede organizada pelo/para o
consumo.
A rua e a evolução
de seu significado social
Anterior à era contemporânea, os logradouros públicos podem ter sido evitados pela aristocracia, para darem lugar às classes menos favorecidas, uma vez que a estratificação social sempre existiu. Porém não se podia impedir que as pessoas se movimentassem em espaços públicos.
É a partir da retificação das ruas, projetadas por meio das ações urbanísticas a fim de atenderem às novas necessidades das cidades, que as mesmas passaram, então, a ser “obra” da classe dominante sendo por ela utilizadas.
Para Saldanha,
a rua possui a mesma essência da praça, sendo aberta, ela é épica e histórica.
Em sua análise sobre a rua, o autor aponta que:
(...) a vivência da praça por parte das
classes altas terá sido sempre diversa da vivência por parte das classes baixas:
a construção mesma dos “logradouros” foi sempre obra das classes dominantes. (1993:22)
Nesse sentido, passaram a ser construídas com determinados propósitos: como local de festejos e cerimônias, pois tinham como função servir de espaço público, onde era comum a convivência social, por onde as pessoas passeavam tranqüilamente e faziam dela um espaço de lazer.
A rua,
então, se apresenta como o resultado da contradição entre o público e o
privado. Todavia, é importante que se esclareça sob qual concepção compreendemos
o público e o privado. Segundo Sennett (1993), o público e o privado sofreram
alterações em seu significado, desde a antiga Roma até a era moderna. Mas foi
no século XVIII que os padrões modernos passaram a referenciar as duas
dimensões da vida social.
O autor
ressalta o espaço público como algo desprovido de sentido, uma vez que
arquitetos projetam edifícios e se preocupam apenas com a estética e a
visibilidade, fazendo com que algumas ruas
do centro se transformem em local de passagem.
Isso resume o que o Sennett chama de “supressão do espaço vivo”, quando
o mesmo destina-se à passagem, e não à permanência.
Nesse
contexto, a rua aparecerá como forma de passeio público e lazer. No século
XVIII, surgem os famosos cafés e mais tarde os bares. Porém, o espaço público
ainda era considerado um espaço morto, por estar iniciando o processo de
movimentação, ou seja, ainda era um espaço vazio.
Na
realidade, à medida que o processo de modernização foi se desenvolvendo,
ocorreu uma certa supressão do espaço público, visto que esse espaço
destinava-se cada vez mais à passagem, e não à permanência. Criou-se, assim, o
paradoxo do espaço público ao longo dos anos.
Como
elucida Benjamin (1989: 35), por volta do século XIX, surgiu uma relação entre
o flâneur e as ruas quando
aspirava-se, simbolicamente, à sua conquista:
A rua se torna moradia para o Flâneur que, entre as fachadas dos prédios,
sente-se em casa tanto quanto o burguês entre suas quatro paredes. Para ele, os
letreiros esmaltados e brilhantes das firmas são um adorno de parede tão bom ou
melhor que a pintura a óleo no salão do burguês (...).
Para situarmos melhor a problemática da função das ruas, devemos
ressaltar a interferência que os automóveis passaram a exercer, a partir do
início do século XX, nas vias públicas, pois não é possível observarmos e
conhecermos as ruas dentro de veículos. Estes nos oferecem “liberdade” de
movimento, mas, ao mesmo tempo, tiram a liberdade de movimento de quem deseja
passar e conhecer as ruas da cidade.
Recorrendo
mais uma vez a Sennett (1993: 28):
(...) as ruas da cidade adquirem
então uma função peculiar: permitir a movimentação; se elas constrangem demais
a movimentação, por meio de semáforos, contramão etc., os motoristas se zangam
ou ficam nervosos (...).
Portanto,
a movimentação dos automóveis provoca um efeito contraditório no espaço
público, em especial no espaço da rua urbana. Com essa contradição, o espaço
perde seu sentido.
O termo
“cosmopolita”, derivado do público urbano, surgiu mediante os novos hábitos de
se “estar em público”. Associado ao público urbano, cosmopolita, tem como
significado em Sennett um homem que se
movimenta despreocupadamente em meio à diversidade, que está à vontade em
situações sem nenhum vínculo nem paralelo com aquilo que lhe é familiar (1993:31).
Assim sendo, o cosmopolita é um homem público, no sentido de ter uma vida que é
passada fora da família e dos amigos íntimos, onde a cidade seria o centro das
relações públicas.
Em sua
análise, Sennett (1993:32) afirma que o
homem moderno perdeu a oportunidade da experimentação que as ruas lhe ofereciam
por trocar o simples caminhar pela correria dos automóveis.
Quanto à
definição de modernidade, acordamos com Hansen (2000), ao afirmar que ela
encerra em si a valorização de elementos subjetivos e da razão, no que tange
aos parâmetros sociais, políticos, culturais e cognitivos. Isso justifica a
criação de instituições que, além de gerenciarem a vida da sociedade, legitimam
ações movidas pela racionalidade.
Como
elucida Harvey (1992), a modernidade envolve uma série de rupturas com todas e
quaisquer condições históricas precedentes, portanto, é caracterizada por um
interminável processo de interrupções e fragmentações internas. Mas, na
realidade, a compreensão e a visão moderna do mundo está estruturada em
diferentes modelos de racionalidade, por isso, os conflitos (diferenças) surgem
nos arranjos espaciais.
Para o
geógrafo Yázigi (2000), após as transformações urbanísticas estruturais em todo
o sistema viário e o aumento da frota nacional de veículos, as ruas passaram a
ser espaço destinado ao automóvel. Os zoneamentos atuais nas cidades marcam as
funções e usos do espaço, influenciando diretamente na vida dos pedestres.
Com a
modernidade, mudanças comportamentais chegaram à cidade. Tais mudanças
interferiram de forma negativa na relação da sociedade com a rua,
principalmente a partir de 1960, quando ocorreu o retorno da intimidade para os
interiores, priorizando-se mais os salões, os clubes e centros esportivos em
detrimento da rua como espaço público.
A era
contemporânea trouxe consigo benefícios e desequilíbrios ao contribuir com a
cisão do espaço público. As ruas e calçadas deixaram de ser espaço de
divertimento. Nesse contexto, surgem a televisão, o telefone e a ampliação dos
problemas sociais, como a violência. Todos esses fatores correlacionados
contribuíram, direta ou indiretamente, para o “esvaziamento” das ruas.
As ruas
das grandes cidades foram transformadas num espaço tumultuado, onde centenas de
pessoas de todas as classes e situações passam correndo umas pelas outras, sem
ao menos se olharem. As ruas das grandes cidades deixaram de ser espaço de
passeio e lazer para converter-se em espaço de indiferença.
A rua e suas apropriações
A rua como extensão da casa
Da Matta
(2000:15), em seu livro A Casa & a
Rua, trabalha Casa e Rua como duas “categorias sociológicas”:
Quando digo então que “casa” e
“rua” são categorias sociológicas para os brasileiros, estou afirmando que,
entre nós estas palavras não designam simplesmente espaços geográficos ou
coisas físicas comensuráveis, mas acima de tudo entidades morais, esferas de
ação social, províncias éticas dotadas de possibilidade, domínios culturais
institucionalizados e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações,
leis, orações, músicas e imagens esteticamente emolduradas e inspiradas.
A relativização que Da Matta (2000) propõe entre o espaço da casa e da
rua gira em torno da concepção do “espaço moral”. A moral e os bons costumes estavam
associados ao espaço da casa. Esta representava - e representa até hoje - o
espaço íntimo e privativo da sociedade brasileira desde a época colonial. Na
casa se poderia ter opinião, chamar a atenção, ter expressão; atos que, na rua,
seriam condenados.
Enquanto a rua possui oposição, representada pela fluidez e movimento,
nela se encontram os indivíduos anônimos, vigorando também nesse espaço o
discurso da impessoalidade, onde os segmentos dominantes, como elucida Da
Matta, tendem a tomar o código da rua para produzirem a fala totalizada, a qual
baseia-se em mecanismo impessoal, simbolizado: pelo modo de produção; luta de
classe; subversão da ordem, enfim, a lógica do capitalismo. Nessa concepção o
foco está somente nas leis, e não nos indivíduos.
Para Da Matta (2000), na rua é possível sermos desrespeitados por aqueles
que representam a “autoridade”, pois somos vistos por eles como “subcidadãos”.
Por não termos voz na condição de “subcidadãos”, apresentamos um comportamento
“dúbio” ao jogarmos o lixo e sujarmos ruas e calçadas, sem cerimônia, e ao
desobedecermos às regras de trânsito.
Na verdade, não recriamos na rua o mesmo espaço caseiro e familiar, não
vemos a rua como espaço público, no sentido de: pertence a todos, espaço comum,
de todos. Como adverte Da Matta (2000), a nossa sociedade tem uma cidadania em
casa, outra no centro religioso e outra na rua.
Segundo o autor, determinadas expressões marcam a distinção entre casa e
rua: “vá para a rua!”; “vá para o olho da rua!”; “estou na rua da amargura!”,
essas expressões, denotam rompimento e solidão. Mandar alguém ir para “o olho
da rua” significa rompimento e deixar alguém “na rua da amargura” significa
solidão, desproteção, estar sujeito às normas vigentes da rua.
Sabemos que essa concepção da rua e da casa é herança da nossa origem
colonial, pois o que permeia hoje as duas concepções teve inicio com as regras
(normas) estabelecidas e legitimadas pela sociedade colonial, de base
escravista. Normas estas relacionadas a atitudes, gestos, roupas, enfim, papéis
sociais aceitos pela sociedade da época.
Essas regras estabeleciam o comportamento da sociedade e sua relação com
o espaço da rua, as quais estavam de acordo com os valores daquela época. Por
isso, os viajantes que retrataram a cidade do Rio de Janeiro, na época
colonial, mostraram muito bem o espaço da rua designado aos negros, aos
ambulantes e aos escravos-de-ganho, pois esses eram vistos como insolentes.
Da Matta (2000), ao abordar a casa e a rua como categorias sociológicas,
não as faz como oposição absoluta, visto que as mesmas se reproduzem
mutuamente, pois também na rua há espaços ocupados no sentido da casa, onde
determinados grupos sociais vivem como “se estivessem em casa”. Mas, o que nos
motiva a estudar a rua, é o fato de a mesma admitir as diferenças.
Percebemos
a importância das ruas antigas no contexto da cidade do Rio de Janeiro, quando
lemos algo a respeito das mesmas, sob a ótica dos viajantes que por lá
estiveram e registraram suas impressões. Nelas, notamos a presença dos
vendedores ambulantes que, a princípio, nos parece que foram os que mais
circularam pelo Rio Antigo. Segundo Chambelain (s/d: 97), são comuns no Rio de Janeiro vendedores ambulantes, que batem de porta
em porta, visitando os arredores até várias léguas de distância, oferecendo
mercadorias de toda sorte.
Dentre os
vendedores ambulantes que percorreram as ruas do Rio Antigo, estavam – no
primeiro momento – os escravos-de-ganho. Mais tarde vieram os imigrantes:
franceses, ingleses, italianos, árabes e judeus.
A
forma-aparência das casas estava de acordo com o momento histórico e com o
alinhamento das ruas e, segundo Chambelain, apresentava-se da seguinte forma:
A maioria das casas,
especialmente as dos arrabaldes da cidade, possuem um só pavimento, com portas
e janelas de gelosia, chamadas rótulas, muito apropriadas para a entrada de ar
(...) ou que sem dúvida contribuem para manter os aposentos frescos enquanto
que os moradores podem observar tudo o que se passa na rua – vantagem de não
pouca importância para os brasileiros (s/d: 99).
Nas
análises de gravuras, notamos o código de valores da época colonial através da
forma-aparência das casas. As janelas serviam como mediação entre o espaço da
casa e o espaço da rua. A rótula nas portas e as janelas amplas possibilitavam
ver de dentro de casa o que se passava no espaço da rua. A princípio, as ruas
nos parecem um espaço inteiramente público – no sentido de estar à vista de
todos.
Segundo
Hermann Burmeister (apud Da Matta, 2000), consta que pelas ruas do Rio havia
mais gente de cor negra circulando, maltrapilhas ou seminuas do que gente
branca com trajes convenientes. Mais adiante, o mesmo autor continua sua
narração, dizendo que as ruas da cidade do Rio de Janeiro estavam entregues a
capoeiras, vagabundos e gente de todo tipo.
Ao
fazermos uma análise das informações mencionadas, podemos concluir: a rua no
período colonial era espaço dos ambulantes, e não da sociedade, principalmente
das mulheres. Esse fato reafirma a suposição da função da rua, anterior ao
século XX, como espaço apenas de passagem para alguns e espaço do comércio e de
permanência para outros.
Flanando
pela rua
A
importância do caminhar está, principalmente, no fato de se poder escolher por
e para onde ir. O pedestre cria seu próprio espaço de enunciação e, desta
forma, desconsidera a ordem espacial estabelecida, que condiciona e só nos
permite conhecer caminhos lícitos.
Certeau
(2000:176) nos fala, de forma poética, da importância dos passos que chama de um estilo de apreensão táctil de
apropriação cinética. O caminhar forma mapas urbanos, transcrevem-se no espaço
seus traços, moldam o espaço. O autor ressalta a importância da trajetória,
dos passantes.
O ato de
caminhar vai além das representações gráficas, pois Certeau (2000) encontra em
tal ato a primeira definição de espaço de enunciação. Para ele, a enunciação do
pedestre apresenta três características que se distinguem no sistema espacial:
o presente, o descontínuo, o “fático”. Assim sendo, cabe ao caminhante
atualizar, mudar, legitimar, desconsiderar, transformar, escolher, criar
caminhos, de acordo com sua necessidade e sua vontade.
O exemplo
dos atalhos representa todas as possibilidades do caminhante, visto que é ele quem
o escolhe. Portanto, a caminhada privilegia ou não, muda ou deixa de lado,
quando possível, elementos espaciais, podendo criar algo descontínuo.
Assim, o ir para lá ou acolá instaura uma articulação
conjuntiva e disjuntiva de lugares. Para Certeau, (2000:177) o espaço
geométrico dos urbanistas e dos arquitetos parece valer como o “sentido
próprio” construído pelos gramáticos e pelos lingüistas, visando a dispor de um
nível normal e normativo ao qual se podem referir os desvios e variações do
“figurado”.
O autor
afirma ainda que o espaço alterado se transforma em singularidades aumentadas e
em “ilhotas separadas”, criando-se um “fraseado espacial” de tipo antológico e
elíptico, em vez de um espaço coerente e totalizador.
A
importância de se percorrer as ruas, como espaço público, está no fato de
através delas, ser possível conhecermos a cidade. Visto que a cidade se inscreve, nos seus muros, nas
suas ruas. Mas essa escrita nunca acaba. O livro não se completa e contém
muitas páginas em branco, ou rasgadas percursos e discursos acompanham-se e
jamais coincidem (Lefebvre 1999:114). Portanto, como já dissemos, somente
quando percorremos a cidade nos surge à possibilidade de conhecê-la, pois na
forma-aparência está o discurso urbanístico cristalizado.
Certeau
(2000:179), ao abordar a retórica da caminhada, faz menção ao estilo e ao uso.
Segundo ele, o estilo manifesta o plano simbólico, conota o singular e o uso
define o fenômeno social, ou seja, remete a uma norma.
O estilo e o uso estão relacionados com a forma-conteúdo, pois a forma
trata de uma disposição espacial e o conteúdo nos remete ao uso. A forma urbana
tende a romper os limites que tentam aprisioná-la. Esses limites fazem parte do
discurso do espaço público.
Segundo Canevacci (1993:22), a cidade apresenta enfoque polifônico e
pode ser “lida” e interpretada de acordo com os olhares que se lançam sobre
ela.
O autor acrescenta que:
Um edifício “se
comunica” por meio de muitas linguagens, não somente com o observador mas principalmente
com a própria cidade na sua complexidade: a tarefa do observador é tentar
compreender os discursos “bloqueados” nas estruturas arquitetônicas, mas
vividos pela mobilidade das percepções que envolvem numa interação inquieta os
vários espectadores com diferentes papéis que desempenham..
As pessoas que circulam pelas ruas da cidade e lançam seu olhar sobre a
mesma, na condição de espectador, fazem uma interpretação singular por conta da
sua bagagem experimental e teórica.
Caso haja “comunicação”, o espectador pode mudar o sentido das formas de acordo
com os signos e valores atribuídos no tempo e no espaço.
Como nos esclarece Canevacci, dependendo da percepção do espectador,
pode ocorrer uma comunicação entre um edifício
e a sensibilidade de um cidadão que elabora percursos absolutamente subjetivos
e imprevisíveis (1993: 22). Ou seja, cada pessoa pode escolher um caminho,
de acordo com o horário que lhe for conveniente e até mesmo pelo fluxo diário,
enfim, cada pessoa pode elaborar seu próprio itinerário urbano.
Essa escolha pode estar relacionada com a forma ou até com o conteúdo.
Uma arquitetura mais antiga ou contemporânea, assim como o seu uso pode atrair
a circulação de pedestres que para lá se dirigem, de acordo com seus
interesses.
Canevacci (1993:22), em sua abordagem, afirma: cada forma arquitetônica tem o poder inexaurível de comunicar-se
através de todo o aparelho perceptivo-emotivo e racional as memórias
biográficas elaboram mapas urbanos invisíveis, por isso o autor afirma ser
a comunicação urbana um diálogo, retirando desta a visão restritamente
unidirecional.
Lynch (1999:1), ao falar da importância da imagem, nos esclarece que
não somente as partes físicas da cidade (as formas) são importantes, mas também
os elementos móveis (as pessoas) e suas atividades, pois estão todos inseridos
na dinâmica da cidade. Nesse sentido, as pessoas são mais do que meros
observadores do espetáculo são parte dele. O autor traduz a imagem como
combinação de todos os sentidos.
Para identificar-se o ambiente, necessariamente tem que usar os
sentidos, assim como outros indicadores como: mapas, placas de sinalização nas
ruas, sinais de trânsito, placas de itinerário de ônibus etc. Lynch (1999)
segue em sua análise, ressaltando a importância da orientação, no sentido de
equilíbrio e bem-estar. O estar perdido nos remete à angústia.
No processo de orientação, o quadro mental nos possibilita suporte não
só quanto à posição geográfica, mas quanto ao equilíbrio emocional. Portanto,
existe forte ligação entre o ambiente e o observador, pois o mesmo seleciona,
organiza e atribui significado a tudo que vê. Nessa acepção, afirma o autor que
a imagem de uma determinada realidade
pode variar significativamente entre observadores diferentes (1999:7).
Sendo assim, poderíamos ressaltar que a trajetória passa a ter valor e
significado quando há o despertar do passante, quando ele se abre ao
desconhecido, quando ele observa a cidade utilizando o aparelho
perceptivo-emotivo e racional. Só então ele poderá construir sua memória
biográfica da cidade, pois para elaborar mapas invisíveis, utilizando o
cognitivo, é preciso despertar o olhar e perceber a “comunicação” que está
presente no urbano, por este motivo ressaltamos a importância das ruas neste
contexto.
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© Copyright Luciana Francisca Cabral, 2005
© Copyright Scripta Nova,
2005
Ficha
bibliográfica:
CABRAL,
L. A rua no imaginário social. Scripta
Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona:
Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (60). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-60.htm>
[ISSN: 1138-9788]
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