Scripta Nova |
Cristiane Fernandes
de Oliveira
Doutoranda em Geografia - Departamento de
Geografia – FFLCH. Universidade de São Paulo – Brasil.
E-mail: cadolive@uol.com.br
A gestão dos serviços
de saneamento básico no Brasil (Resumo)
Os serviços de saneamento básico no Brasil são
analisados sob o aspecto da evolução de sua gestão. Para analisar esta evolução
procurou-se discutir aspectos do crescimento das demandas urbanas e sociais
relativas aos serviços de saneamento básico em determinados períodos
históricos, assim como discutir as oscilações de investimentos no setor a
partir das correlações existentes entre as políticas públicas de saneamento e
políticas econômicas.
Procurou-se também avaliar através de alguns
exemplos a ação de empresas públicas e empresas privadas responsáveis por
serviços de saneamento básico, em que se pese no atual período histórico a
tendência à substituição da gestão pública de cunho sanitarista pela forma de
gestão empresarial neoliberal.
Palavras chave: saneamento, gestão da água, abastecimento de água e serviços de
esgotamento sanitário, políticas neoliberais.
The sanitation
management services in
The water and sanitation services in
Keywords: sanitation, water management, public, water
supply and sanitation services
Historicamente o ser humano sempre
procurou construir suas moradias próximas às fontes de água, já que este
recurso é essencial à satisfação de suas necessidades básicas, à produção de
mercadorias e à reprodução das próprias necessidades.
À medida que foram sendo
desenvolvidas e difundidas técnicas de exploração e distribuição de água mais
eficazes, o ser humano pôde desenvolver atividades e expandir seus domínios de
moradia e produção para locais cada vez mais distantes destes recursos. Nota-se
deste modo, a expansão urbana disseminada de forma crescente, conduzidas em
grande parte por agentes produtores do espaço através do domínio da técnica e
da informação, mas, sobretudo pelo poder de influência político-econômico.
No Brasil, quando os primeiros
aglomerados urbanos se constituíram, a ausência de uma estruturação sanitária e
de abastecimento permitiu a formação de um pequeno mercado para serviços
privados, principalmente ao que tange a distribuição de água. Caracterizados a
princípio por trabalhadores individuais que, em geral prestavam basicamente
serviços de entrega de água, atualmente os serviços de saneamento são prestados
por grandes empresas.
Esta transformação de prestadores de
serviços individuais para grandes empresas especializadas se deu de acordo com
a evolução das demandas, que foram se tornando mais complexas. As preocupações
iniciais relacionadas somente a captação e distribuição da água, com o decorrer
do tempo, foram se estendendo aos problemas sanitários, que tiveram grande
crescimento em virtude da disposição inadequada de dejetos humanos. Podemos
afirmar ainda que além das necessidades de investimentos em coleta de esgotos
também passou a ser exigido destes prestadores investimento em desenvolvimento
de técnicas e de aplicação das mesmas em tratamento de esgotos.
Os serviços de saneamento básico no
Brasil são historicamente constituídos pela atuação de instituições públicas e
de instituições privadas.
A iniciativa pública passou a atuar
no Brasil, em alguns municípios, na área do saneamento entre o final do século
XIX e início do XX com a ampliação do acesso à água através de distribuições de
chafarizes e bicas públicas e, principalmente na implantação das primeiras
estruturas sanitárias destinadas à coleta de esgotos, com fins a solucionar
problemas de epidemias advindas das precárias condições urbanas.
As instituições públicas são aquelas
criadas pelo poder do Estado, principalmente representadas pelas instâncias
estaduais e municipais e já nascem possuindo um caráter mais sistêmico em
relação ao saneamento, considerando que sua atuação original estaria atrelada
às tentativas de desenvolvimento de soluções aos problemas relacionados ao
esgotamento sanitário e ao abastecimento de água.
As instituições privadas que atuam
na área de saneamento básico se apresentam sob duas formas de atuação: pequenas
e médias empresas (em geral nacionais), que atuam somente no ramo de exploração
subterrânea de água e de sua distribuição e grandes empresas, que podem ser
nacionais (em geral formadas por consórcio entre empresas) ou estrangeiras (em
geral subsidiárias de grandes corporações transnacionais) que nos últimos dez
anos tem substituído empresas públicas nos serviços de abastecimento, coleta e
tratamento de esgotos em áreas urbanas.
As pequenas empresas distribuidoras
atuam no Brasil desde o Brasil Colônia, quando entregavam, ainda em carroças, a
água vendida em cântaros ou em pequenos tanques aos compradores, como lembra
Aristides de Almeida Rocha (1997). Hoje ainda é possível verificarmos este tipo
de comércio de entrega de água em galões mesmo em grandes cidades,
especialmente em localidades em que pesam dúvidas sobre a qualidade da água
distribuída
A história do abastecimento da
cidade de São Paulo foi construída a partir da participação destes diversos
agentes, desde o pequeno distribuidor de água em cântaros, evoluindo para a
empresa Cantareira de Água e Esgotos que permaneceu responsável pelos serviços
de saneamento até novembro de 1892, até a mesma ser encampada pelo governo
Estadual através de diferentes instituições o que culminou com a criação da
SABESP – Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo - em finais da
década de 1960, perdurando até os dias atuais.
Várias cidades brasileiras também
são atendidas por empresas públicas quanto à prestação de serviços de
saneamento básico, sendo que em alguns municípios onde há alguma estruturação
organizacional, estes serviços são prestados pelos DAE - Departamentos de Água
e Esgoto, e em outros, em geral mais pobres e desarticulados há a concessão de
prestação destes serviços à empresas Estaduais, tais como a SABESP no Estado de
São Paulo ou à iniciativa privada, como discorreremos adiante.
O início da década de 1970 foi marcado
por grandes pressões por parte da população e de representantes da indústria e
comércio, reivindicando maiores investimentos no setor de saneamento básico,
tais como extensão das redes de abastecimento, redes de coleta e tratamento de
esgotos, já que os déficits estariam impedindo o crescimento econômico e social
das cidades, levando um grande número de empresas a abandonar os grandes
centros urbanos em virtude dos custos implicados em sua manutenção.
Neste período foi criado o PLANASA –
Plano Nacional de Saneamento – em que o poder federal concentrou o poder de
decisão e financeiro no Banco Nacional da Habitação, através do referido plano,
direcionando grandes investimentos para o setor de saneamento. Caberia,
portanto, ao Estado e aos Municípios aderirem ou não a este Plano para obterem
recursos, que por sua vez tinha origem no Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
– FGTS. Neste sentido, foram criadas em todos os Estados, Companhias de
Saneamento Básico, tais como a SABESP, que estariam responsáveis pelo
planejamento, execução e operação dos serviços de saneamento, através da
concessão dos municípios.
Entre 1971 e início da década de
1980 segundo levantamento efetuado por Marcos T.Abicalil (1998) o setor de saneamento
teve grande impulsão, crescendo 43% em cobertura de água e 122% em coleta de
esgotos.
Este crescimento do atendimento, no
entanto, não teria abrangido a população brasileira como um todo, como afirma
Ana L. Brito (2001: 18086), privilegiando “as regiões mais ricas do país, as
cidades mais populosas, e dentro delas os segmentos de maior renda”. Além disso, as possibilidades de subsídio
cruzado que teriam sido previstas em função do ressarcimento pelos serviços,
baseados em taxa única, não teria dado certo.
O motivo, como bem infere C.B.
Fabriani e V.M Pereira (1987) tem fundamento na concentração de renda da
população brasileira, já que a maioria estaria incapacitada de arcar com os
preços reais dos serviços prestados para a manutenção do sistema.
A partir de meados da década de 1980
o setor foi perdendo força, culminando com a extinção do órgão central do
sistema – o Banco Nacional da Habitação e com a pulverização das funções
exercidas pelo PLANASA.
Contemporaneamente, a luta pela
retomada do poder de decisão municipal tomava corpo através das eleições em
1985, seguido da constituição de 1988 que fornecia subsídios à descentralização
dos serviços de saneamento básico.
A década de 1990, por sua vez,
concretiza a possibilidade da privatização dos serviços de saneamento básico
aos moldes das grandes empresas. A princípio este modelo de gestão era
opcional, surgindo no primeiro mandato do governo Fernando Henrique Cardoso.
Porém, no segundo mandato, a imposição de reajuste econômico do FMI, como
lembra Brito (2001, induziu o governo federal a impedir a contração de novos
financiamentos por parte de empresas públicas e a disponibilizar grandes somas
às empresas privadas no setor de saneamento básico. Com isto as empresas
públicas estaduais e municipais que já se encontravam enfraquecidas pela queda
de investimentos, teriam que assumir sozinhas o ônus de novos investimentos
necessários ou ceder às pressões pela concessão dos serviços à iniciativa
privada.
A gestão privada nos serviços de saneamento básico
Apoiadas pelo desenvolvimento de
políticas neoliberais e pelo emprego do discurso de domínio tecnológico e de
organização moderna e funcional passível de suplantar instâncias públicas
“inchadas” e “arcaicas” a gestão privada dos serviços de saneamento foi
amplamente estimulada principalmente durante o governo Fernando Henrique
Cardoso, conforme supracitado.
As empresas privadas ligadas ao
setor de saneamento básico no Brasil são caracterizadas por capital estrangeiro
e por consórcios entre empresas médias e grandes de capital nacional.
Apesar de ainda não dominarem
totalmente o mercado, as grandes corporações transnacionais estrangeiras estão
relacionadas aos grandes capitais financeiros mundiais que resultam de
constantes fusões de empresas com tradição em setores distintos, tais como
transporte, pavimentação urbana, energia, comunicação, saneamento, entre
outros. Estas entraram em poucas cidades
brasileiras, mas se localizam em pontos estratégicos do ponto de vista das
áreas de produção de água mundial e em relação à potencialidade de exploração
de mercados consumidores.
Via de regra se instalam com a
denominação da cidade sede dos serviços prestados, com vistas à evitar
resistências quanto a sua origem estrangeira ou à evitar questionamentos quanto
ao histórico de atuação da corporação em outros países.
A alteração constante de designação
nestas corporações e subsidiárias, advindas de constantes fusões e aquisições
tem dificultado uma análise do processo de desenvolvimento e de atuação destas
empresas em relação aos períodos anteriores ao início da década de 1990, quando
se acirra mundialmente o processo de privatização de serviços de saneamento
básico. Além disso, essa pulverização da informação também dificulta o próprio
controle e fiscalização de suas ações, já que os investimentos entre empresas
irmãs e seus grupos de fornecedores é uma prática comum entre estas grandes
corporações.
Entre as maiores empresas do mundo
no setor de saneamento básico temos o grupo Suez Lyonaisse des Eaux (ex
Lyonaisse des Eaux), o grupo Veolia Environnement (ex Vivendi Environnement), o
grupo RWE Ag – Thames Water, o grupo Bouyques e o grupo Bechtel. Os dois
primeiros grupos são franceses e os maiores do mundo, com mais de 100
subsidiárias espalhadas entre mais de 80 países, os quais o Brasil faz parte.
No caso brasileiro, apesar das
pressões em relação às possibilidades de investimentos, a opção pela concessão
dos serviços de saneamento básico à iniciativa privada não foi adotada pela
maioria dos poderes municipais ou estaduais, sendo que atualmente, segundo a
Associação Brasileira de Concessionárias de Serviços Públicos de Água e Esgoto
– ABCON - há 37 concessões no Brasil concentradas principalmente em estados do
Sudeste e Centro Oeste.
São Paulo liderou as concessões à
iniciativa privada na região sudeste do Brasil, possuindo hoje 16 empresas
privadas responsáveis pela gestão dos serviços de saneamento básico, seguido do
Rio de Janeiro com 7, Minas Gerais com 3 e Espírito Santo com 1. Porém, a
privatização na região centro-oeste tem se expandido muito e além de uma
empresa atuante
Em relação a isto Marcelo C. Vargas
(2003) constata que o restrito número de empresas privadas frente ao potencial
de mercado brasileiro se dá principalmente em relação aos obstáculos ainda
existentes do ponto de vista “jurídico-legais presentes no seu ordenamento
institucional”, no que tange principalmente a regulamentação da titularidade
sobre os serviços de saneamento nas regiões metropolitanas e aglomerações
urbanas que ficou “congelada” na atual gestão do governo de Luiz Inácio Lula da
Silva.
Apesar da idéia de desonerar o
Estado e viabilizar investimentos em saneamento básico através da atuação
privada parecer atraente, deve-se esclarecer que a atuação privada em serviços
de saneamento básico, também carrega riscos, os quais José Esteban Castro
(1999) chama a atenção para a possibilidade de superexploração dos recursos
hídricos advindos da busca desenfreada por lucro e para os problemas correlatos
às supertaxações e exclusão da população mais empobrecida na cobertura dos
serviços.
Outra questão a ser refletida é
sobre a valorização da água, embasada na lógica de mercado. Se pensarmos que um
bem é valorizado a partir de sua escassez no mercado, chegaremos à conclusão
lógica que quanto mais escassa à água maior o seu valor, e, portanto, o
crescimento da escassez qualitativa, com o avanço de contaminação de fontes
hídricas sem a devida contenção ou tratamento, iria, neste sentido, ao encontro
dos interesses do capital.
Os investimentos das iniciativas
privadas, deste modo, se dão prioritariamente no avanço das redes de
abastecimento de água, deixando ao largo investimentos em coleta e tratamento
de esgotos.
A contaminação crescente de fontes
hídricas por sua vez, resulta não somente na diminuição dos volumes passíveis
de serem utilizados, mas, sobretudo no aumento dos custos de tratamento de
água, o que acaba sendo repassado aos consumidores finais, através do aumento
das tarifas.
Em países mais empobrecidos como é o
caso de vários países latino-americanos e africanos o aumento de tarifas sobre
serviços essenciais pode significar a exclusão de grandes parcelas da
população, levando o Estado a arcar com os incrementos em custos no setor de
saúde. A exemplo disso, segundo publicado pelo International Consortium of Investigative Journalism o Sul da
África em 2000 apresentou o desenvolvimento de um surto de cólera após a
empresa privada concessionária excluir da cobertura de água parcelas da
população que não podiam arcar com os preços cobrados, levando-as a buscar água
para o consumo em cursos d’água contaminados.
Escândalos relacionados ao não
cumprimento de metas, como grandes perdas de água por vazamentos nas redes,
como aumento abusivo de tarifas em curto período e mesmo como a remessa de
lucros para fora dos países onde são prestados os serviços ocorrem e não raro
se reproduzem em praticamente todas as grandes corporações estrangeiras
supracitadas. Porém, as concessões contratadas em geral por longo período, em
geral por mais de 30 anos, dificilmente são rescindidas, em virtude da
possibilidade do ônus da quebra de contrato recair sobre o Estado, como o
ocorrido no caso Colombiano em relação ao grupo Brechtel, em que a empresa
moveu um processo contra o Estado após este ter rescindido o contrato pelo não
cumprimento de metas propostas. A empresa deste modo solicita na justiça os
dividendos de lucro em potencial pelos anos em que a empresa ainda teria a
concessão dos serviços.
Pode parecer uma situação absurda,
mas as políticas neoliberais associadas às grandes intervenções de instituições
financeiras mundiais tais como o Banco Mundial e o FMI têm apoiado estas
grandes corporações, já que grandes somas estão envolvidas. A população passa a
arcar com o ônus em todos os sentidos, seja pelo não atendimento de suas
demandas, seja pela dívida advinda destes processos.
Além das pressões externas à
incorporação do capital transnacional nos serviços de saneamento básico no
Brasil podemos inferir que também as fragilidades internas quanto à estrutura
reguladora e fiscalizadora facilitariam a atuação destas corporações.
Com o desmantelamento das instâncias
públicas no processo de concessões, as fragilidades tornam-se mais evidentes.
As instâncias públicas que teoricamente seriam responsabilizadas pela regulação
dos serviços são encampadas por estas corporações através da manutenção
financeira destas instituições, impedindo o caráter de neutralidade na avaliação
dos serviços prestados.
Segundo William Tabb (1997: 28), as
frágeis estruturas políticas e sociais acabam por reforçar a idéia de que o
Estado não tem poder para frear esse movimento exploratório, o que por sua vez,
passa a ser uma “poderosa ferramenta do próprio capital”, encerrando um círculo
vicioso em que a exploração geraria mais fragilidades e mais dependência.
Produção social e privatização
Outro aspecto a ser refletido sobre
a atuação de empresas privadas na concessão dos serviços de saneamento é a
questão do emprego.
Como grandes parcelas da população
brasileira encontram-se desde a década de 1980 sob a pressão constante do
desemprego e o setor público sempre contribuiu para a absorção de parte destas populações,
a privatização tem significado a ampliação das taxas de desemprego.
Porém, do ponto de vista do
discurso, a geração de empregos também é importante para a obtenção de
empréstimos junto às instituições financeiras nacionais, como o caso do Banco
Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social que publicamente assumiu o
financiamento de 65,7 milhões de reais à empresa Águas do Amazonas (pertencente
ao grupo Suez), com vistas que a mesma estaria gerando 500 empregos diretos e
1.200 indiretos.
Uma análise minuciosa, porém, aponta
que o número de empregos no setor de saneamento básico com a entrada da
corporação diminuiu cerca de 50%, o que gera por sua vez uma retração dos
mercados locais e um aumento do processo de exclusão social.
Segundo Márcio Pochmann (2002: 179)
há uma relação estreita entre as políticas trabalhistas e o processo de
exclusão, assim quanto tratamos de privatização de setores essenciais para a
sociedade não podemos deixar de tratar também desta questão, já que a tendência
à dispensa de mão de obra por grandes corporações não somente altera as
relações de consumo locais, pela diminuição de postos de trabalho, mas também
pode levar parcelas da população à impossibilidade de consumir o que é
essencial à vida e a saúde pública, a exemplo da própria água tratada.
Neste sentido, o modelo econômico
vigente tem permitido o distanciamento cada vez maior do objetivo primordial da
prestação de serviços essenciais, como é o caso dos serviços de saneamento
básico, que é o alcance da equidade e da universalidade do atendimento,
propiciando o pleno exercício da cidadania à todos, conforme aborda Jaime Pinsky (2003).
A gestão pública nos serviços de saneamento básico
Os municípios gerenciados pelo setor
público em relação aos serviços de saneamento básico têm apresentado segundo
dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, para o ano de 2003,
tarifas médias praticadas que em sua grande maioria não chegam a 1 real por
metro cúbico de água consumida, enquanto que as tarifas médias praticadas por
empresas privadas em todas as regiões do país ultrapassavam 1,20 por metro
cúbico de água consumida. Notamos também que se compararmos os índices de
atendimento de água em áreas urbanas já consolidadas, como é o caso da região
Sudeste, tanto empresas privadas quanto empresas públicas apresentam médias
semelhantes, em torno de 95%.
A substituição de empresas públicas
por privadas, portanto, não podem ser apoiadas no discurso de melhor oferta de
serviços e de preços, já que isto não pode ser fundamentado nos índices
divulgados.
Contudo, em regiões onde ainda há
grande deslocamento populacional de áreas rurais para as urbanas, como é o caso
da região Norte, notamos a dificuldade das empresas públicas em lidar com a
demanda por novos investimentos. Fato este que se acirrou fortemente a partir
da década de 1990, com o impedimento de financiamentos, como supracitado.
Em relação aos índices de
atendimento urbano de coleta de esgotos, com exceção da SABESP que atende
grande parte da região Sudeste, os índices ainda são muito baixos para todas as
regiões atendidas pela iniciativa pública, variando em torno de 20% nas regiões
Nordeste, 27% no Sul, 46% no Centro Oeste e somente 6% na região Norte, que no
caso desta última região também empata com os índices apresentados pela
iniciativa privada.
Em relação ao consumo médio de água
por economia notamos que os índices apresentados pelas empresas públicas eram
em grande parte menores do que as apresentadas pela iniciativa privada,
principalmente no que diz respeito à região Norte. Isto se deve possivelmente
aos investimentos constantes de instâncias públicas na divulgação e promoção de
programas educativos com objetivos à redução do consumo de água, o que não
ocorre em relação à iniciativa privada com freqüência já que o não consumo
significa menor captação de lucro.
Em relação às perdas por faturamento
das redes é possível fazer uma associação entre a renda da maior parte da
população e as perdas. Os dados do SNIS mostram que as regiões Norte e Nordeste
são as áreas onde há maior perda de faturamento e são também as em que
predominam as menores rendas per capta no país. Isto aponta para dois aspectos
possíveis de situações de perdas: um relacionado ao baixo poder de consumo
destas populações, altos índices de inadimplência e consequentemente lucros
menores e outro relacionado às grandes potencialidades de irregularidades nas
redes, com perdas de volumes de água tratada em função das ligações
clandestinas. Neste sentido, tanto
empresas públicas, como as empresas privadas de prestação de serviços de
saneamento ainda não conseguiram uma solução definitiva ao problema, que está
no centro da questão – a extrema concentração de renda de nossa sociedade.
Considerações finais
O avanço de corporações privadas em
prestação de serviços considerados essenciais, tais como são os de saneamento
básico, deve ser avaliada não somente no sentido de possibilidade de
investimentos em manutenção e ampliação dos sistemas já existentes, já que nem
sempre, após o processo de concessão o ritmo de aplicação destes investimentos
ocorre conforme as metas contratuais propostas.
A frágil estrutura reguladora e
fiscalizadora do Estado tem permitido, por sua vez, grande maleabilidade das regras
contratuais, tanto do ponto de vista de sua instituição quanto do ponto de
vista de sua concretização. Neste sentido, conforme críticas de Horácio Capel
(2000) sobre a formulação dos contratos de licitação sobre a prestação destes
serviços, equipes técnicas de consultoria internacionais direcionariam as
grandes corporações às melhores oportunidades do mercado e, com a conclusão dos
contratos, estas desapareceriam de cena, deixando empresa e Estados com os
problemas derivados ou remanescentes de informações que raramente se encaixam.
Porém, estes agentes externos,
caracterizados por instituições financeiras ou consultorias que auxiliam a
entrada de grandes corporações não agem isolados. O próprio Estado,
caracterizado por representantes de instâncias governamentais em diferentes
hierarquias apresenta não raramente um empenho que não aponta para o interesse
comum. Na ânsia para solver problemas de cunho econômico de empresas públicas
prestadoras de serviço através de sua privatização, vale até mesmo arcar com
pesados ônus das demissões, livrando a empresa concessionária destes encargos e
ainda, formular contratos atrativos do ponto de vista das metas propostas e dos
prazos a serem cumpridos.
É possível compreender este contexto
quando o relacionamos às políticas neoliberais disseminadas na atualidade, que
têm levado o Estado a abandonar suas atribuições essenciais para garantir a
reprodução do capital. Assim, como bem lembra Bertha Becker (1995: 50) “A
ideologia liberal, com sua estratégia de modernização dos aparatos
institucionais que inclui como componentes centrais a desburocratização, a
privatização e a descentralização, visam justamente liberar o Estado de seus
constrangimentos em relação à nação para garantir a sua preservação e sua
aliança com a empresa”.
Quanto à localização destas
corporações pode-se dizer que elas se dirigem preferencialmente: aos locais em
que a renda da população permita arcar com o consumo, aos locais onde a
população urbana esteja razoavelmente consolidada, tais como as grandes
aglomerações, evitando necessários investimentos em ampliação das redes e aos
locais onde a produção de água potencialize sua exploração, seja no mercado
real ou no financeiro.
Todas as evidências as quais nos
referimos sobre a atuação privada e a pública, nos permite considerar que no
caso brasileiro, em que pesa a grave estrutura concentradora de renda, os altos
déficits em infra-estrutura de saneamento e uma séria crise de desemprego, o
subsídio ao acesso ao abastecimento e ao esgotamento sanitário torna inviável a
sustentabilidade do setor privado a não ser pela alta taxação. Além disto, a
opção pelo setor privado pode ter como conseqüências a ampliação da exclusão
social que pode ocorrer sob diversas formas: sob a forma de ampliação do desemprego
e da diminuição da movimentação das economias locais, sob a forma de aumento da
clandestinidade e irregularidades das populações não atendidas e sob a forma de
potencialidade de difusão de epidemias ligadas à veiculação hídrica, com o
aumento do ônus do Estado no setor de saúde.
Por outro lado, as resistências a
esta forma de Estado não esmorecem, as contradições urbanas se multiplicam, e
as diversas facetas com que se apresentam as conseqüências de uma estrutura
deficitária de saneamento básico coloca em xeque as tendências às formas de
elitização de serviços essenciais.
Problemas sanitários e difusão de
doenças vinculadas a estes problemas não obedecem a fronteiras, e apesar de
atingirem sempre com mais força as populações mais empobrecidas a água
contaminada pode chegar à locais distantes de sua origem, causando doenças como
o cólera, hepatite, meningite, entre outras. Assim, o comprometimento de cursos
d’água pelo não investimento em saneamento básico demonstra “a ponta do
iceberg” de decisões de gestão dos serviços de saneamento que vão na contra mão
do que se espera de um sistema sanitário e de saúde voltado para o bem comum.
O saneamento básico é um serviço que
tem por objetivo principal a manutenção da vida com qualidade através da oferta
de água de potável e do desenvolvimento de soluções ao esgotamento sanitário
com sua coleta e tratamento. Devendo ser, portanto, um direito de todos,
conforme rege a Constituição brasileira de 1988. Se o Estado através do
abandono do setor público privilegia o privado ele está negando sua própria
constituição, seja esta compreendida como aparato legal, regulador, seja esta
compreendida como própria instância representativa de seu povo e neste segundo
caso, não haveria mais Estado.
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© Copyright Cristiane Fernandes de Oliveira, 2005
© Copyright Scripta
Nova, 2005
Ficha
bibliográfica:
FERNÁNDEZ,
C. A gestão dos serviços de saneamento básico no Brasil. Scripta
Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona:
Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (73).
<http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-73.htm> [ISSN: 1138-9788]
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