Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.
ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. IX, núm. 194 (81), 1 de agosto de 2005

 

A TENDÊNCIA AO ESVAZIAMENTO DA ÁREA CENTRAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO E SUA ASSOCIAÇÃO COM A IMPLEMENTAÇÃO DO TELETRABALHO PELAS EMPRESAS            

 

Alvaro Ferreira

Professor Adjunto de Geografia da UERJ / Professor do Depto. Geografia da PUC-Rio.

E- mail : alvaro.ferreira@thema.trix.net

 


A tendência ao esvaziamento da área central da cidade do Rio de Janeiro e sua associação com a implementação do teletrabalho pelas empresas (Resumo)

Atualmente, é possível observarmos a utilização de teletrabalhadores por um número crescente de empresas na cidade do Rio de Janeiro. Essa forma de trabalho modifica a relação entre os trabalhadores e as empresas e entre os trabalhadores e a cidade. O objetivo deste trabalho é a identificação e análise dos indícios de novas territorialidades na cidade relacionados à utilização do teletrabalho no Rio de Janeiro, juntamente com uma tendência ao esvaziamento da área central da cidade. Assim, quando analisamos o espaço urbano carioca, estivemos entendendo-o como esfera do encontro das múltiplas trajetórias, da interdependência e da inter-relação. Assim, acreditamos que os agentes, através dessas inter-relações, produzem o espaço; e por estar sendo constantemente construído, está sempre por concluir. Nossa tese é que há novas territorialidades associadas à utilização do teletabalho na cidade do Rio de Janeiro, que provocam uma série de transformações na relação do teletrabalhador com a cidade e que contribuem para deslocações, desativações e redistribuições de firmas e de residências no interior da cidade. Ademais, tais processos encontram-se ligados à atuação dos agentes que produzem o espaço urbano a partir de relações construídas em escalas local-local e local-global.

 

Palavras-chave: desterritorialização –Território-rede – Teletrabalho – Rio de Janeiro. 


The trend to the “esvaziamento” of the central area of the city of Rio De Janeiro and its association with the implementation of telework for the companies (Abstract)

It is currently possible to notice the utilization of teleworkers by an increasing number of companies in the city of Rio de Janeiro. This type of work changes the relationship between workers and companies but also workers and city. The main goal of this work is to identify indications of new territorialities in the city related to the use of telework in Rio de Janeiro. The main question that this research tries to answer is: are there new territorialities associated with the emergency of telework in Rio de Janeiro, where agents who produce the urban space are mobilized in the intent to grasp the ongoing transformations? It is a relation of mutual, dynamic, and creative inclusion between the totality and its elements, which happens in a permanent interaction. I understand that dialectic is the way to the maintenance of the unity whole-parts. In other words, totality should be understood as a whole in process of development, where the understanding of the totality does not mean the understanding of the isolated parts. Through the holographic approach, we acknowledge that not only the global scale plays a pivotal role in the local scale but also that the local perception of the global phenomenon influences its local manifestation. This thesis indeed finds new territorialities associated with the use of telework in the city of Rio de Janeiro that cause a series of transformations in the relationship between the teleworker and the city and that contribute to dislocation, disappearence and redistribution of firms and residences within the city. Moreover, such processes are linked to the actions of agents that produce the urban space based on relations constructed in local-local and local-global scale.

Key words:  deterritorialization, territory-network, telework, Rio de Janeiro.


O todo sem a parte não é todo,

a parte sem o todo não é parte,

mas se a parte o faz todo, sendo parte,

não se diga, que é parte, sendo todo.

 

Gregório de Matos

 

 

Século XXI. Empresas desenvolvem suas atividades utilizando cada vez mais a rede mundial de computadores. Trabalhadores podem estar realizando suas funções em locais, muitas vezes, longe da sede da empresa a partir da utilização de computadores pessoais conectados à Internet: eis aí os teletrabalhadores.

 

Do teletrabalho podem fazer parte trabalhadores efetivos da empresa ou freelancers, que trabalham sob a forma de contrato por tempo determinado ou por tarefas. Se antes esse formato flexível de trabalho era adotado principalmente por empresas de tecnologia da informação, atualmente ganhou adeptos em outros setores como bancos, seguradoras, mídia, empresas da área da saúde, varejo e indústrias. As atividades de análise e programação informática, de consultoria, de vendas, de arquitetura, de contabilidade, de recursos humanos, de advocacia, de análise de mercado, de planejamento, ou aquelas que consistem em tratar, manusear ou produzir a informação, dentre outras, têm recebido maior atenção, no sentido de possibilitar a sua execução à distância, ou seja, fora da sede da empresa.

 

O deslocamento do teletrabalhador para seu novo local de trabalho não se dá incólume, já que esse trabalhador têm seu cotidiano totalmente modificado. Tratemos, então, de definir melhor o processo de des-re-territorialização a partir da territorialidade por ele produzida, ou seja, seus territórios, redes e até mesmo os aglomerados de exclusão[i] – seja como dimensões ou como elementos do espaço geográfico, quer dizer, podendo ser, ao mesmo tempo, dissociados ou participando de um processo comum.

 

Contudo, para tratarmos desses processos de territorialização, desterritorialização e reterritorialização precisamos esclarecer, inicialmente, de que maneira estamos entendendo a categoria território. Segundo Haesbaert (2001, p. 1770), é possível agrupar as concepções de território em três vertentes: jurídico-política, que é a “mais difundida, onde o território é visto como um espaço delimitado e controlado, através do qual se exerce um determinado poder, na maioria das vezes visto como o poder político do Estado”; quanto à segunda, trata-se do que poderíamos denominar vertente cultural(ista), que “prioriza a dimensão simbólico-cultural, mais subjetiva, em que o território é visto sobretudo como o produto da apropriação/valorização simbólica de um grupo sobre seu espaço”; finalmente, teríamos a vertente econômica, “bem menos difundida, enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas, no embate entre classes sociais e na relação capital-trabalho.” Aqui, podemos perceber a influência de leituras de Augé (1992), Deleuze, Guattari (1997), Storper (1994), Raffestin (1993) e Sack (1986) na concepção das três vertentes identificadas por Haesbaert (2001).

 

Assim, o território é fundamentalmente definido a partir de relações de poder. Então, se a associação entre território e poder remete a idéia de território nacional e, por conseqüência, a de Estado (responsável pelas questões do ordenamento e da gestão do espaço), devemos ter em mente que o território pode, também, ser entendido de outras maneiras. Atualmente, tais questões não se restringem mais apenas ao Estado, posto que tem ocorrido uma série de coalizões econômicas e sócio-políticas, através de parcerias, visando a organização espacial da cidade. Inclusive, muitos dos autores que alertam para o fim dos territórios – tendo em Badie (1996) um forte exemplo – os concebem tendo como alicerce o peso político dos Estados-Nações. Esse autor acredita na mudança de um “mundo territorial” para um “mundo das redes”, contudo, acreditamos que não seja tão simples assim. Mais tarde, ir-nos-emos utilizar da noção de território-rede como forma explicativa da associação entre os dois termos.

 

Destarte, é o próprio Haesbaert (2001, p. 1770; 1998, p. 31) que afirma que o território não deve ser visto, simplesmente, como um objeto em sua materialidade ou como um mero recurso analítico elaborado pelo pesquisador. Acredita esse autor, que se focarmos nossa análise sobre as representações espaciais perceberemos que “elas também são instrumentos de poder, na medida em que muitas vezes agimos e desdobramos relações sociais (implicitamente, relações de poder) em função das imagens que temos da ‘realidade’ ”. É nesse sentido que afirmamos que as subjetividades territorializadas não se limitam aos aspectos de sua auto-construção, mas também aos aspectos macro-objetivos do social. Na verdade, através da interação de ambos.

 

Assim, é preciso ainda entender que o território seria relacional não somente no sentido da incorporação de um conjunto de relações sociais, mas também no de envolver uma complexa relação entre processos sociais e espaço material (Haesbaert, Bruce, 2002, p. 26). Podemos concluir, então, que o território – em sendo relacional – inclui o movimento, a fluidez e as redes. 

 

Posto isso, uma noção de território que não leve em conta as relações e sua dimensão simbólica, mesmo entre as que enfatizem o seu caráter político, acaba por compreender apenas uma parte dessa categoria. Utilizando-se da distinção entre domínio e apropriação do espaço de Lefebvre (1994), Haesbaert (2001, p. 1770) propõe um apropriado olhar sobre o território, qual seja:

 

    “o território envolve sempre, ao mesmo tempo, uma dimensão simbólica, cultural, através de uma identidade territorial atribuída pelos grupos sociais, como forma de ‘controle simbólico’ sobre o espaço onde vivem (sendo também,  portanto, uma forma de apropriação), e uma dimensão mais concreta, de caráter político-disciplinar: a apropriação e ordenação do espaço como forma de domínio e disciplinarização dos indivíduos.”

É a partir desse olhar que trabalharemos os indícios de novas territorialidades. Agora, poderemos, então, apresentar melhor o que anteriormente denominamos territorialização, desterritorialização e reterritorialização (des-re-territorialização).

 

A territorialização – por ter forte relação com o lugar – dá-se sem a necessidade de firmar-se apenas através da ocupação do espaço de forma materialmente construída. Dá-se também a territorialização, através de um processo de criação de códigos e símbolos que caracterizam e particularizam um lugar para um indivíduo ou grupo. Este lugar está intimamente ligado às relações travadas entre as pessoas no decorrer do tempo; o lugar está impregnado de objetos comuns. A territorialidade deve ser entendida, também, como referente ao zoneamento do tempo-espaço em relação às práticas sociais rotinizadas.

 

Chama-nos a atenção o discurso genérico da globalização, que se faz acompanhar da noção de desterritorialização, de “desenraizamento” – no sentido antropológico, ou seja, no sentido da perda das raízes culturais – enquanto Giddens (1991, p. 29), por sua vez, denomina “desencaixe” a forma com que os indivíduos, graças aos avanços tecnológicos da sociedade moderna, exercitam um distanciamento progressivo de suas referências de tempo e espaço. O processo de desencaixe referir-se-ia “ao deslocamento das relações sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de tempo-espaço”. Nesse momento percebe-se uma interface entre essas três categorias, onde cada uma delas – da Geografia, da Antropologia e da Sociologia, respectivamente – busca o entendimento desse novo momento que desestabiliza a forma tradicional de análise dos fenômenos. Não seria correta ainda assim, a afirmação de que o espaço concreto cria seu oposto, o espaço virtual, como muitos autores assim propõem. Ao mesmo tempo em que temos desterritorialização, temos a reterritorialização. Tal certeza remete-nos à enfática afirmação de Deleuze, Guattari (1997, p. 87): “não há território sem um vetor de saída do território, e não há saída do território, ou seja, desterritorialização, sem, ao mesmo tempo, um esforço para se reterritorializar em outra parte”. 

 

Quando da desterritorialização, percebemos a perda dos vínculos com o lugar e com as relações efetivamente nele realizadas. Esta afirmação é enfatizada por Santos (1996, p. 262), quando argumenta que

 

                 “hoje, a mobilidade se tornou praticamente uma regra. O movimento se sobrepõe ao repouso. Os homens mudam de lugar(...)mas também os produtos, as mercadorias, as imagens, as idéias. Tudo voa. Daí a idéia de desterritorialização. Desterritorialização é, freqüentemente, uma outra palavra para significar estranhamento, que é, também, desculturização”.

A desterritorialização rompe com toda uma formação de sistemas simbólicos de significados, de valores, que foram instituídos através de práticas sócio-culturais que, por sua vez, foram responsáveis pela construção social do lugar. Convém reafirmar que a noção de desterritorialização deve ser percebida como uma concepção mais integradora do território, ao mesmo tempo espaço de apropriação/reprodução concreta e simbólica.

 

Pelo menos, em relação aos teletrabalhadores, a desterritorialização não tem longa duração, ela é passageira. Talvez seja essa característica que leve Haesbaert (2001, p. 1775) a afirmar que “desterritorialização, para os ricos, pode ser confundida com uma multi-territorialidade segura, mergulhada na flexibilidade e em experiências múltiplas de mobilidade ‘opcional’ ”. Aqui, devemos enfatizar o fato de que, em geral, aos teletrabalhadores não é dado o direito de escolha, trata-se de uma decisão unilateral da administração da empresa. Convém-nos acrescentar que, apesar da falta de opção dada aos teletrabalhadores, a idéia de multi-territorialidade trabalhada por Haesbaert é valiosa para nosso estudo, principalmente em associação com a noção de território-rede como veremos mais adiante. 

 

A reterritorialização, quando se faz, guarda novos traços e trajetórias, os quais, muitas vezes, divergem da territorialidade estabelecida anteriormente. A reterritorialização não exprime uma transferência de lugar apenas, representa uma nova rede de relações e processos que, em geral, desencadeiam uma nova codificação.

 

O teletrabalhador está envolvido nesse conjunto de transformações pelo qual vem se movendo o mundo contemporâneo e a transferência do local de trabalho do escritório para a casa do trabalhador exerce forte mudança nas relações sócio-espaciais vividas pelo teletrabalhador. A residência é mais que um local físico, é um lugar com uma representação mental, ou seja, transmite a idéia de aconchego, tranqüilidade, de fim de expediente de trabalho. A desterritorialização rompe com toda uma formação de sistemas simbólicos de significados e de valores instituídos que foram responsáveis pela construção social do lugar.

 

Outras implicações são observadas, já que o indivíduo ao trocar o escritório onde trabalhava, fazendo de sua residência seu local de trabalho, exercita uma desterritorialização para, posteriormente, reterritorializar-se em seu novo ambiente de trabalho. O trabalho em casa, com a utilização dos meios técnico-informacionais, não significa o retorno a um tempo em que toda a família exercia suas atividades de auto-sustento em sua residência. E, ao contrário do discurso, trabalhar em casa não é sinônimo de trabalhar pouco.

 

O teletrabalhador ainda carrega consigo os valores já instituídos do lugar do trabalho como algo distinto do lugar de morar. Percebemos claramente a necessidade de se ter bem definida a separação dos “dois lugares”. Na verdade, observamos um “mascaramento” dos lugares, seja quando se faz necessário esconder todo o material usado para esquecer que ali outrora fora um ambiente de trabalho, seja pelo cuidado para que a casa não perca o “sentimento de final de uma jornada de trabalho”. Nesse sentido, o teletrabalhador exercita uma desterritorialização e uma reterritorialização – para, posteriormente, desterritorializar-se e novamente reterritorializar-se – em uma mesma localidade no decorrer do dia.

 

A reterritorialização – na residência como local de trabalho, divergindo do escritório da empresa – guarda novos traços e trajetórias que divergem da territorialidade anteriormente estabelecida. O processo de reterritorialização estaria, além disso, se manifestando em associação a um movimento dentro da própria organização espacial da cidade.

 

Cada vez mais são criadas, nas cidades, condições propícias à implementação do teletrabalho. Exemplo disso encontra-se no mercado imobiliário do Rio de Janeiro, que começa a trabalhar um novo conceito de prédio residencial, o qual permite ao morador residir e trabalhar no mesmo endereço. Segundo matéria do Jornal do Brasil (10 de janeiro de 1999), todos os grandes lançamentos feitos a partir de 1998 no bairro da Barra da Tijuca “foram projetados para oferecer aos condôminos uma moderna rede de informática, com conexões diretas para a internet e intranet”.

 

Atualmente a IBM tem um contrato de parceria com a Construtora Gafisa em empreendimentos imobiliários que prevêem a existência de escritórios virtuais nos prédios, mantidos pelo próprio condomínio. Segundo a reportagem do Jornal do Brasil, “a IBM fornece os equipamentos e dá suporte técnico e toda a infra-estrutura tecnológica”. Esses escritórios virtuais são entregues totalmente aparelhados, com mobiliário de escritório, fax, impressora colorida, pontos de telefone e apoio de secretária e office-boy, caso necessário. Os atuais empreendimentos da Construtora Gafisa já preparam plantas com um home office para cada apartamento.

 

Segundo informações conseguidas, a própria IBM criou um programa de implantação do teletrabalho na empresa e já conta com 11% dos 2800 funcionários do Rio de Janeiro e de São Paulo trabalhando em casa. Mas o consultor responsável pelo programa de implantação do teletrabalho acredita ser necessário e possível elevar esse número de teletrabalhadores na IBM. Atualmente, quando algum dos teletrabalhadores têm de ir à sede, logo ao chegar ao prédio da empresa digita o seu nome em um microcomputador localizado no hall dos elevadores e aguarda a resposta quanto à localização da mesa em que irá trabalhar durante aquele dia e, então, suas ligações são transferidas para o local indicado pelo computador. Ao chegar, conecta o seu laptop à rede IBM, checa o e-mail, acessa o banco de dados e começa a rotina de trabalho.

 

O consultor responsável pela implantação do teletrabalho na empresa afirma ainda que o escritório de um futuro próximo poderá ser um local para troca de informações, enquanto o trabalho que exigir concentração sem interrupções passará a ser feito em casa.

 

A Shell, em 1998 (apenas um ano após iniciar o projeto de teletrabalho), já mantinha 25% de trabalhadores no sistema de teletrabalho, tendo como objetivo chegar já no ano de 2005 a 60% do total. Para tal, pretende – como forma de compensação para os trabalhadores – investir na localização dos telelocais, buscando lugares aprazíveis, proximidade a shoppings ou com forte concentração de serviços e comércio. Desse modo, possibilitando que os trabalhadores resolvam seus problemas particulares quando do seu deslocamento aos telelocais. A antiga sede da empresa, em um  prédio de 18 andares, que se localizava de frente para um dos principais cartões postais da cidade do Rio de Janeiro – a Enseada de Botafogo, com o Pão de Açúcar ao fundo – e que foi inaugurada 1979 foi vendida. Desde outubro de 2001, a Shell transferiu sua sede nacional para um centro empresarial localizado na Barra da Tijuca, ao lado do Barra Shopping. A nova sede ocupa apenas dois blocos do Centro Empresarial Barra Shopping.

 

O deslocamento da residência para o local de trabalho torna-se desnecessário ou reduzido a alguns poucos dias por mês. O que parecia ser tema de filmes de ficção científica tornou-se realidade em várias cidades do planeta, inclusive no Rio de Janeiro. Várias empresas fazem uso do teletrabalho, o que tem contribuído para a transformação do lay-out e da própria localização das sedes dessas empresas.

 

Para compreendermos como se dão, de maneira integrada, os processos de desterritorialização e reterritorialização – seja dos teletrabalhadores ou seja das empresas – optamos por trazer à tona algumas transformações que vêm ocorrendo na cidade do Rio de Janeiro e que se encontram associadas à implementação do teletrabalho pelas empresas.

 

Frente à implementação do teletrabalho nas empresas, os agentes que produzem o espaço urbano mobilizam-se no intuito de rever suas estratégias de atuação, visto que são percebidas deslocações, desativações e redistribuições de firmas e de residências no espaço urbano do Rio de Janeiro. Atualmente, a partir da utilização de teletrabalhadores, é necessário considerar a não-necessidade de fixar residência próxima à empresa. Não nos ateremos à longa descrição dos agentes que atuam na produção do espaço – até porque já é de conhecimento geral uma vasta bibliografia acerca desse debate – mas, efetivamente, no comportamento desses agentes no Rio de Janeiro frente à implementação do teletrabalho. Todavia, apenas no intuito de indicá-los, baseando-nos em Harvey (1982; 1980), Capel (1974) e Corrêa (1995) teríamos os seguintes grupos de agentes: as empresas da construção, os proprietários fundiários (incluindo-se proprietários usuários de moradia e proprietários rentistas), promotores imobiliários, as instituições governamentais (o Estado) e os grupos sociais excluídos.

 

Quando nos propomos a analisar como os agentes que produzem o espaço urbano têm se comportado frente à implementação do teletrabalho nas empresas e como a relação local-global tem colaborado para a conformação de indícios de novas territorialidades na cidade do Rio de Janeiro, temos de ter em mente que estamos tratando das relações realizadas em uma grande cidade capitalista e uma das mais importante do país. Logo, importa considerarmos os diferentes usos da terra, imbricados entre si, em um processo que contribuiu para a definição de áreas, de formas e de funções.

 

Muitas vezes o espaço produzido contribui mais para ocultar do que revelar. Isso porque, em geral, não desvela imediatamente o processo de sua produção (tal qual a mercadoria). É necessário que investiguemos as inúmeras codificações sobre as quais se assenta o espaço produzido e como os agentes que o produzem colaboram, simultaneamente, para ocultar sua decodificação. Para Lefebvre (1971, p. 161), a utilização da noção de forma, função e estrutura (utilizadas com o mesmo peso de importância) contribuiriam para a revelação do espaço produzido, já que permitiriam a apreensão de suas estabilidades provisórias e de seus equilíbrios momentâneos, até porque a própria noção de estrutura tem, também, um caráter provisório. Ademais, a conjunção das três noções permite desvelar um conteúdo sócio-espacial que se encontra oculto, posto que dissimulado nas formas, funções e estruturas analisadas.

 

Também Santos (1985, p. 50) propõe a utilização dessas categorias para o auxílio na interpretação do espaço em sua totalidade, entretanto acrescenta a elas uma quarta categoria: o processo. Ou seja, na inter-relação entre esse quarteto é que se encontra uma metodologia para a compreensão do fenômeno a ser estudado. Dessa maneira, poderíamos afirmar, em um esforço de síntese, que a função – relacionando-se diretamente à forma – seria a atividade elementar de que a forma espacial revestir-se-ia. Assim, as funções estariam materializadas nas formas que, por sua vez, seriam criadas a partir de uma ou várias funções. Em muitos casos, formas antigas são mantidas apesar de desempenharem novas funções, contudo, em geral, novas funções acabam por acarretar o acréscimo de novas formas ao espaço urbano. Ao contrário do que possa parecer, Lefebvre (1971, p. 161) não teria desconsiderado aquilo que Santos (1985, p. 50) denominara de processo. Na verdade, a noção de processo – como ação contínua, como movimento do passado ao presente e deste ao futuro – já estava presente na obra de Lefebvre como que atravessando as demais categorias. Assim, aquilo que Santos identificou como uma quarta categoria seria, de fato, uma propriedade das outras três.

 

Acredita Santos (1985, p. 57) que a estrutura social, dependendo do momento histórico, contribui ora para a transformação das formas, ora para a permanência. Trindade Júnior (2001, p. 134), também em um esforço de síntese, afirma corresponder a estrutura “à natureza social e econômica da sociedade em determinado momento histórico. (...) A estrutura, em qualquer ponto do tempo, atribui valores e funções determinadas às formas do espaço”.

 

Por sua vez, Gottdiener (1997, p. 195) trabalha com a perspectiva da produção do espaço em um contexto geral de uma teoria de organização social que analisa o papel da estrutura – no sentido das determinações gerais – e o papel da ação, no sentido da tentativa de pensar na atuação de coligações e redes relacionadas aos agentes locais. Gottdiener (1997, p. 226) enfatiza o fato das formas espaciais serem produzidas pelo que denomina “articulação entre estruturas capitalistas tardias e as ações do setor de propriedade, especialmente os efeitos de grupos hegemônicos e do Estado na canalização do fluxo de desenvolvimento social para lugares e modelos específicos”. Acreditamos que o debate dos três autores sejam complementares quando do objetivo da compreensão da produção do espaço urbano.

 

As primeiras três décadas do século XX demonstraram notável expansão da tessitura urbana da cidade do Rio de Janeiro. Nesse período, caracterizou-se o crescimento da cidade a partir de dois vieses: as classes alta e média ocuparam as zonas sul e norte, tendo no Estado e nas companhias concessionárias de serviços públicos seus maiores aliados; por outro lado, os subúrbios cariocas caracterizaram-se como locais de residência do proletariado, que, a partir do deslocamento das indústrias, se dirigiu, também, para lá. Se as zonas sul e norte tiveram apoio do Estado, em se tratando dos bairros suburbanos a ocupação se deu sem qualquer apoio estatal ou das concessionárias. Dessa maneira, logo se percebia a desigualdade sócio-econômica que se refletia na espacialidade da cidade.

 

A intensificação do processo de concentração de renda em curso culminou com a expansão da parte rica da cidade em direção a São Conrado e Barra da Tijuca. Para tanto, o Estado que se associou ao capital imobiliário teve importante papel, pois incorreu em um enorme investimento para a construção da Auto-Estrada Lagoa-Barra. Nesse período, essas novas áreas da cidade, apesar de esparsamente habitadas, tiveram no Estado importante agente para a produção do espaço. A partir da associação com o capital privado, seja na abertura de estradas e ruas, seja na pavimentação e instalação de infra-estrutura, o Estado investiu grandes somas de dinheiro na preparação desse novo eixo de expansão da cidade. Em um período de aproximadamente 40 anos, a Barra da Tijuca apresentou um crescimento surpreendente, principalmente nos últimos 15 anos.

 

A construção da rede viária contribuiu, segundo Kleiman (2001, p. 1597), para a configuração de seu padrão de segregação sócio-espacial. Os investimentos em direção à Barra da Tijuca continuaram com a abertura de novas vias de acesso: Avenida das Américas (que se prolonga em direção ao Recreio dos Bandeirantes) e a Avenida Alvorada (atual Avenida Ayrton Senna). Tais avenidas favoreceram, respectivamente, a expansão imobiliária em direção ao Recreio dos Bandeirantes e a acessibilidade maior a partir do bairro de Jacarepaguá.

 

Apesar de o governo federal ter anunciado sua intenção de concentrar seus investimentos em moradia para a população de baixa renda, as principais construtoras que atuam na cidade têm-se dedicado à construção para a classe mais abastada. Segundo levantamento da própria Associação de Dirigentes de Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi/RJ), publicado pelo jornal O Globo (2003), 50,5% dos novos projetos – imóveis na planta, em construção ou que acabaram de ficar prontos – custam hoje mais de R$ 251 mil. Além disso, 23,7% referem-se a unidades com preços acima de R$ 400 mil. Curiosamente, o próprio presidente da Ademi/RJ, ao analisar o resultado do levantamento, afirma estar diante de uma grande distorção no sistema, já que em condições normais os imóveis avaliados acima de R$ 251 mil não deveriam representar mais de 10% da oferta.

 

Voltando os olhos para o período pós-1984, percebemos o que Lago (2001, p. 1534) denominou “elitização do mercado imobiliário carioca”, pois com a crise do Sistema Financeiro de Habitação (SFH) a produção das grandes empresas passou a se concentrar mais especificamente na Barra da Tijuca. Contudo, não devemos esquecer que, na década de 1990, bairros como Botafogo, Lagoa, Jardim Botânico e Leblon começaram a vivenciar um processo de renovação do seu estoque imobiliário pelas grandes incorporadoras, seja para a construção de apartamentos de luxo, seja para edifícios de escritórios.

 

A Barra da Tijuca, além dos grandes condomínios residenciais (com instalações completas para home offices) – verticais ou horizontais –, apresenta também a maior concentração de shoppings e apart-hotéis da cidade.

 

Encontram-se presentes na dinâmica metropolitana carioca, transformações ligadas tanto à desconcentração e seus impactos no núcleo central quanto à ratificação de setores residenciais seletivos. A combinação de tais transformações pode ser reconhecida na Barra da Tijuca, percebida como nova centralidade seletiva e sócio-espacialmente fragmentada. Bienenstein (2001, p. 82) identifica que essa “área da cidade, além de típico setor residencial seletivo, vem se constituindo em um centro de negócios periférico que pode ser visualizado nos office park”. Segundo consulta aos dados da ADEMI/RJ, o número de edifícios de escritórios lançados na Barra, na década de 1990, representou 52% do número total de lançamentos na cidade.

 

Após a definição, pela Prefeitura do Rio de Janeiro, de que a maior parte das instalações esportivas dos Jogos Pan-Americanos de 2007 estará concentrada na Barra da Tijuca, a procura de empreendedores por novos investimentos fez com que o preço dos terrenos crescesse. A gerente da filial Barra da Imobiliária Júlio Bogoricin revelou que o principal comprador das imediações do Autódromo Nelson Piquet é a classe média que não tem poder aquisitivo para adquirir imóveis em áreas mais nobres do bairro. Segundo a gerente, esses futuros moradores sentem-se atraídos pela promessa de melhorias na infra-estrutura e, inclusive, com a possível chegada do metrô devido ao projeto dos Jogos Pan-Americanos.     

 

O crescimento de lançamentos de imóveis no eixo Barra da Tijuca-Recreio dos Bandeirantes (habitação ou comercial) é o maior da cidade, seguido por alguns bairros da zona Sul. Dentre tais lançamentos, a Barra da Tijuca responde por 21, ou seja, 27,63%. Se somarmos aos lançamentos no Recreio dos Bandeirantes e Itanhangá esse número salta para 39 (50,65%). É importante ressaltar que o bairro do Recreio dos Bandeirantes apresenta uma peculiaridade que o diferencia dos demais: a construção por sistema de condomínio e por pequenas construtoras; ou seja, o número de imóveis em construção e negociados é bem maior do que o apresentado acima. É possível identificar essa forma de construção também na Barra da Tijuca, porém em menor escala. Na zona sul, o bairro com maior número de lançamentos é Botafogo com 10, isto é, 13,16%. Dessa forma, a Barra da Tijuca tem se constituído, com os seus condomínios fechados, seus shoppings, seus centros empresariais e seus mega-centros de lazer e entretenimento, a materialização do atual processo de reconfiguração e modernização excludente da metrópole.

 

Dentre os lançamentos imobiliários, considerando apenas os imóveis residenciais, aproximadamente 72% deles têm cômodos destinados aos home offices; seja no apartamento ou na área comum do condomínio.

 

Dessa forma, percebemos o espaço, também, como a história de como os homens, ao produzirem sua existência, o fazem como espaço da produção, da circulação, da troca, do consumo, da vida (Carlos, 1999, p. 64, 1994, p. 36). Logo, convém-nos admitir que cada vez mais o espaço urbano, a partir da subordinação acelerada da apropriação e das maneiras de uso ao mercado, é destinado à troca. Percebemos, então, o predomínio do valor de troca sobre o valor de uso, contudo, não podemos deixar de afirmar que valor de uso e valor de troca ganham significado através da relação entre si.

 

Nesse ponto, ao analisarmos a atuação dos agentes que (re)produzem o espaço urbano do Rio de Janeiro, é possível perceber que os usuários proprietários de moradia estão relacionados com os valores de uso da casa, mas não devemos esquecer que o valor de troca está colocado quando nela realizamos modificações com a intenção de valorizá-la ou, ainda, quando ocorrem manifestações dos moradores contra o tombamento de imóveis em bairros nobres da cidade (Leblon, Ipanema, Jardim Botânico), que acabam por desvalorizar o patrimônio daqueles que tiveram seus imóveis tombados.

 

Como nos lembra Harvey (1980, p. 140), os corretores de imóveis operam no mercado de moradia para obter valor de troca. No Rio de Janeiro, a atuação desses agentes foi responsável pelo crescimento da zona sul da cidade, tendo como maior exemplo Copacabana. Em 1950, a “princesinha do mar” – apelido dado carinhosamente ao bairro de Copacabana e fortemente utilizado pelo capital imobiliário – já se tornara um subcentro com o crescimento dos setores de serviço e de comércio.

 

O crescimento da zona sul, e principalmente de Copacabana, provocou uma certa estagnação na área central. A sonhada verticalização da totalidade dessa área não aconteceu, mesmo com a intervenção durante o Estado Novo. Nesse período, acontecera a construção do Aeroporto Santos Dumont, a urbanização da Esplanada do Castelo – que passaria a abrigar a sede de vários Ministérios da República – e a construção da Avenida Presidente Vargas. Acreditava-se que a nova artéria urbana tornar-se-ia um prolongamento da Avenida Rio Branco e que seria costeada em toda sua extensão por elevados edifícios de escritórios e sedes de empresas. Na verdade, tal projeção realizou-se apenas nas proximidades do entroncamento das duas avenidas.

 

Abreu (1987, p. 114) credita tal fracasso ao coincidente crescimento das construções na zona sul, que acabaram atraindo a maior parte do capital imobiliário da cidade. Outro motivo, embora associado ao anterior, foi o crescimento populacional de Copacabana e sua transformação em subcentro que acabou retirando boa parte das atividades de serviços, comércio de luxo e lazer da área central.

 

Sobre a Avenida Presidente Vargas, Soares (1965, p. 358) afirma que embora tivesse sido planejada para que nela se processasse o desafogo do centro, “permanece ainda hoje – mais de 20 anos depois de sua abertura – em sua quase totalidade, integrada ainda na área de obsolescência da cidade, só tendo apresentado nesses últimos decênios um pequeno surto de renovação, com a zona bancária de edifícios moderníssimos que se constituiu no seu cruzamento com a Avenida Rio Branco”.

 

Passaram-se quase 40 anos desde a publicação do artigo de Soares (1965) e a situação da Avenida Presidente Vargas pouco mudou. Exceção feita ao início da Avenida (área denominada Cidade Nova), onde se construiu a nova sede da prefeitura da cidade na década de 1980. Na mesma área, na década seguinte, surge o primeiro prédio de um projeto de seis, denominado Teleporto. Prédio de arquitetura pós-moderna que se constitui, em sua maioria, de empresas de desenvolvimento de software, de provedores de Internet e de tecnologias de comunicação e informação. Segundo Matos (1999, p. 10), esse edifício constitui-se no “maior centro de telecomunicações da América Latina, (...) podendo ser considerado o exemplo carioca mais evidente do conceito de ‘edifício intelegente’. Porém, atualmente, o Teleporto (Centro Empresarial Cidade Nova) é o único prédio existente nos 250 mil metros quadrados do terreno junto à prefeitura à espera da concretização do projeto em sua totalidade”.

 

Embora o projeto Teleporto não tenha se concretizado em sua totalidade, grandes incorporadores aguardam um sinal positivo da Prefeitura no sentido de retomá-lo. Os incorporadores e a indústria da construção civil estão envolvidos no processo de criação de novos valores de uso para outros, “a fim de realizar valores de troca para si próprios” (Harvey, 1980, p. 141). Como podemos perceber, o Estado – em suas distintas instâncias – freqüentemente interfere no mercado imobiliário.

 

O Rio de janeiro apresentou uma história de crescimento urbano marcado por extensas periferias, em que residia a população de classe mais baixa, e por forte desigualdade da oferta de infra-estrutura e de serviços, em benefício das áreas habitadas pelas classes mais abastadas. Harvey (1980, p. 135; 1982, p. 11), já percebendo tal distribuição desigual, enunciava a alocação espacial diferenciada dos equipamentos urbanos de consumo coletivo.

 

Apesar dessa desigualdade, o crescimento populacional da metrópole carioca deu-se de forma intensa e a distribuição da população no espaço urbano ocorreu de maneira diferenciada pelas regiões administrativas e seus respectivos bairros.

 

Baseados nesses dados, pesquisadores do Instituto Pereira Passos, no Anuário Estatístico Rio 2000, fazem uma previsão para os cinco anos seguintes. Acreditam que a população da Barra da Tijuca crescerá 90% até 2005, passando de, aproximadamente, 170 mil para mais de 320 mil residentes. Teresa Coni Aguiar, uma das responsáveis pelas projeções do anuário, afirma que “a classe média alta do Rio está migrando para a Barra da Tijuca em busca de melhor qualidade de vida” (Jornal do Brasil, 2000).

 

Cardoso e Ribeiro (1996, p. 40) exercitam o estabelecimento de uma espécie de

 

   “classificação das regiões da cidade, tendo em vista seu estágio no ciclo de vida e considerando-se a seqüência ideal loteamento à urbanização à ocupação à densificação à verticalização:

-            áreas consolidadas: o ciclo de ocupação se completou claramente na AP-2, com as densidades mais elevadas de toda a cidade (...) e o ciclo segue com a transformação de parte da área residencial em comercial. Alguns bairros da AP-3 também podem ser enquadrados nesse tipo.

-            áreas estagnadas: o ciclo de ocupação permanece com baixa densidade nas RAs de Irajá, Madureira e Penha;

-            áreas em decadência: a área central, que vem perdendo população e que tem um parque imobiliário muito antigo;

-            áreas em expansão: a RA de Vila Isabel, na AP-2, e as RAs do Méier e da Ilha do Governador, na AP-3, que têm apresentado altos índices de crescimento populacional;

-            áreas de fronteira: as AP-4 e 5 que, por apresentarem ainda grande oferta de terras livres, configuram-se como as áreas de expansão por excelência”.

Acreditamos que tal classificação é por demais estática – apesar dos autores terem definido uma seqüência ideal, que em princípio denota movimento – e acaba por obscurecer as transformações que não se dão de forma tão linear como afirmam esses autores. Acontecimentos muitas vezes inesperados podem contribuir para a mudança da direção anteriormente estabelecida. Exemplo claro, conforme identificado por Ramos (2001, p. 35), se deu há, aproximadamente, cinco anos atrás, quando em uma novela da Rede Globo uma personagem da trama – baseada no ícone dos emergentes da Barra – era moradora da Barra da Tijuca (a mídia passou a tratar esses novos ricos, ligados em geral à atividade comercial, por “emergentes”) e tinha um perfil extremamente exagerado, era pouco instruída, tinha gosto duvidoso, mas era endinheirada e adorava a Barra da Tijuca. Esse perfil ficou tão marcado que o mercado imobiliário acusou uma queda na procura por imóveis nesse bairro e, em contrapartida, uma busca por imóveis na zona sul da cidade. Não impressiona, então, a quantidade de antigos casarões em Botafogo e no Jardim Botânico e de prédios baixos da década de 50 em Ipanema e Leblon, que estão sendo demolidos para a construção de condomínios de alto luxo nessas áreas da cidade. O ex-presidente da Associação de Dirigentes das Empresas do Mercado Imobiliário (Ademi), José Conde Caldas (O Globo, 2003), chegou a declarar que investir na construção de prédios na zona sul é retorno imediato e garantido.

 

Além disso, a administração pública tem investido na dinamização da área central da cidade, tendo inclusive alterado, através de lei de 1994, o decreto 322/1976 que proibia o uso residencial no núcleo central, passando a partir dessa data a permitir a moradia em toda a área central da cidade. Outro empreendimento que objetivava dinamizar essa mesma área foi a tentativa de trazer o Museu Guggenhein para área portuária localizada na zona periférica do centro da Cidade. Essa área “morta” seria recuperada a partir da transformação dos antigos armazéns em lojas, restaurantes, moradias, escritórios, universidades e centros culturais. Aliás, no que tange aos projetos de revitalização da área central, percebemos o encaminhamento em direção aos exaustivamente repetidos projetos de Jordi Borja.

 

Outro programa posto em prática pelo poder público foi o “Novas Alternativas”. O programa vem reformando os antigos cortiços e proporcionando melhores condições de habitação nas zonas periféricas do centro. A revitalização do centro histórico com seus sobrados de influência da arquitetura portuguesa e espanhola é o grande atrativo de áreas como a Praça XV e a Praça Tiradentes. Isso sem falar da proximidade com o chamado corredor cultural, com suas construções monumentais em estilo francês.

 

Ainda mais recentemente (O Globo, 2003) foi divulgado, pela Secretaria Municipal de Urbanismo, a concessão de licença para a construção de cinco prédios na Avenida Presidente Vargas – em área do centro da cidade, em frente à sede da prefeitura e ao prédio do Teleporto – e de oito blocos na Avenida Rodrigues Alves e na rua da Gamboa – área periférica do centro – com um total de 1306 apartamentos distribuídos por prédios de oito a doze andares, em terrenos da Rede Ferroviária Federal. Os imóveis contarão ainda com mais dois andares destinados a lojas, salas comerciais, garagens, piscinas e quadras poliesportivas; e serão financiados pela Caixa Econômica Federal e pela Previ-Rio.

 

Em entrevista ao Jornal do Brasil (21 de setembro, 2003), o secretário municipal de urbanismo, Alfredo Sirkis, afirma ser positiva a mistura de usos e vê o Centro como alternativa de moradia para a classe média carioca. Segundo o secretário, “ali há áreas com forte vocação residencial, como as avenidas Beira-Mar, Roosevelt e Presidente Wilson. E há também o eixo das ruas Riachuelo e Mém de Sá, além da área portuária. Hoje a população do Centro é de 30 mil pessoas. Em dez anos poderemos ter 250 mil”. Acredita Sirkis que com maior população residente, melhoram a segurança e demais serviços.

 

A prefeitura do Rio de Janeiro já realizou a compra do Pátio da Marítima da Rede Ferroviária, na área portuária, onde será construído aquilo que foi denominado “Cidade do Samba”. Também já se encontra em licitação a construção da Vila Olímpica da Gamboa e a nova conexão Área Portuária-Centro através de um túnel sob o Morro da Providência.

 

A divulgação, pela Prefeitura da cidade, dos bairros que sediarão as competições nos Jogos Pan-Americanos em 2007 constituiui-se em mais um exemplo que põe em questão a classificação de Cardoso e Ribeiro (1996). O projeto de construção do Estádio Olímpico Municipal, no bairro do Engenho de Dentro (no subúrbio carioca), contribuiu para o crescimento do número de licenças (151%) para construção no bairro e em seu entorno imediato: Pilares, Todos os Santos, Abolição, Encantado e Méier. Esses bairros, segundo dados da Secretaria Municipal de Urbanismo, somaram no primeiro semestre de 2003 um total de 83.500 m2 em alvarás concedidos. No ano anterior, a demanda foi de apenas 9.000 m2. Em matéria no Jornal do Brasil (15 de setembro de 2003), Rose Compans, assessora-especial da Secretaria Municipal de Urbanismo, afirmou que no ano de 2002 não houve um único pedido de licença para o bairro do Engenho de Dentro. 

 

Por tudo isso, não nos agrada a idéia de classificação de áreas da cidade sugerida por Cardoso e Ribeiro (1996), que nos parece não dar conta da dinâmica espacial do Rio de Janeiro. Até porque devemos considerar também o acaso (a contingência, o inesperado)[ii]; elemento que Morin (1998, p. 210) insiste em considerar mesmo levando em conta que “o acaso insulta a coerência (...) e aparece como irracionalidade, incoerência, demência, portador de destruição”. Ademais, no que se refere à expansão da cidade, há propostas no sentido de dar fim aos vazios urbanos e impedir o crescimento desenfreado da cidade para a zona oeste. Dessa forma, seria preciso voltar a usar os terrenos desocupados, as construções desativadas e prédios sub-utilizados no centro e em seu entorno, no subúrbio – ao longo da linha férrea – e na Cidade Nova. Essas áreas possuem uma infra-estrutura que a zona oeste carece e a ocupação desordenada desta a empobrece ainda mais.

 

A Barra da Tijuca tem, de fato, se destacado em se tratando das novas territorialidades cariocas. Há uma série de críticas ao modelo desse bairro que privilegia o automóvel e mantêm as pessoas em comunidades fechadas, criticando inclusive a validade dos padrões urbanos tradicionais. Mas o projeto original desenvolvido pelo arquiteto Lúcio Costa, em 1969, para a Barra da Tijuca viveu durante esse período sobre um forte dilema: por um lado, o plano piloto, que harmonizava natureza e urbanismo moderno; por outro, a pressão do capital imobiliário, que foi a principal responsável pela descaracterização do plano inicial. Não resta dúvida que a omissão da prefeitura também colaborou, até no que se refere à não aquisição das áreas que eram, em sua maioria, propriedades particulares.

 

Fato é que o crescimento populacional da Barra da Tijuca continua alto e, como no passado, tal crescimento gera uma demanda por serviços pouco qualificados, que atrai cada vez mais população de baixa renda em busca de postos de trabalho.

 

Os números relativos à arrecadação do Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), segundo José Maria de Barros, Presidente da Associação Comercial da Barra (Acibarra), são exemplos da importância que tem conquistado esse bairro para o Rio de Janeiro. De acordo com a prefeitura (Jornal do Brasil, 20 de dezembro de 2002), o bairro é o que mais arrecada, contabilizando algo em torno de R$ 61,3 milhões. O dobro do montante pago pelos contribuintes de Copacabana, que chega à casa dos R$ 30,1 milhões.

 

Quando se trata do Imposto Sobre Serviços (ISS), a Barra aparece como o sexto bairro em arrecadação, com R$ 19,8 milhões – apenas R$ 100 mil a menos que a quinta colocada: Copacabana. Dessa forma, percebemos que uma rede de serviços está se desenvolvendo na Barra da Tijuca. A liderança absoluta, neste caso, ainda é do Centro, que arrecada R$ 276,2 milhões ao ano.

 

No Rio de Janeiro, mesmo não sendo recente o processo de desconcentração, seja no que concerne à habitação ou à indústria e ao comércio, manteve-se no bairro do Centro o núcleo da gestão pública e do setor de serviços – principalmente no que se refere ao sistema financeiro, às sedes das empresas com filiais na cidade – e, também, toda forma de comércio, seja o popular ou o que se destina às classes mais abastadas da população. No que se refere ao centro do Rio de Janeiro, ainda que comportando outras funções, ele acabou por se tornar, basicamente, o centro financeiro e de gestão da cidade. Permanecem no centro do Rio de Janeiro as sedes de empresas como a Companhia Vale do Rio Doce, a Petrobrás, o BNDES, dentre outras.

 

Embora, atualmente, não haja muitos exemplos no que concerne ao lançamento de novos imóveis no Centro, a incorporadora Hines – uma das maiores do mundo – inaugurou a Torre Almirante; um prédio de escritórios de 36 andares no Centro da cidade, com um total de 39 mil metros quadrados de área locável. O imóvel, na esquina das avenidas Graça Aranha e Almirante Barroso, foi projetado pela própria empresa americana e tem investimento do Fundo Emerging Markets Real Estate Fund II (EMF II), uma parceria da Hines e da Trust Company of the West (TCW). A obra, que marcou a entrada da empresa no mercado carioca, teve início em novembro de 2002.

 

Projetada pelos renomados escritórios de arquitetura Robert A. M. Stern Architects – de Nova Iorque – e Pontual Arquitetura – do Rio de Janeiro – a Torre Almirante terá 1200 metros quadrados por andar, business center, incluindo salas de videoconferência, academia, três zonas de elevadores e garagem com 420 vagas. O empreendimento, com localização privilegiada, encontra-se situado a poucos minutos do Aeroporto Santos Dumont e próximo ao metrô, a terminais de ônibus, consulados, centros culturais e restaurantes.

 

Não restam dúvidas de que a área central do Rio de Janeiro é, ainda, o local onde se concentra a maioria das sedes de empresas sediadas no Rio de Janeiro. Contudo, como em outras partes do mundo, estamos encontrando indícios do surgimento de novas territorialidades para além da área central carioca.

 

O centro do Rio de Janeiro vem perdendo várias empresas e já é possível perceber o crescimento de salas e mesmo andares inteiros vazios nos edifícios da área central e o destino da maioria dessas empresas tem sido o bairro da Barra da Tijuca.

 

Em outubro de 2001, a Shell transferiu sua sede nacional de um edifício de 13 andares para um centro empresarial localizado na Barra da Tijuca, ao lado do Barra Shopping. Um ano antes, a multinacional francesa  Michelin – que encontra-se entre os três maiores fabricantes de pneus do mundo – havia se instalado em outro centro empresarial da Barra: Città America. Todos os setores de logística da empresa estão ali instalados, constituindo um total de 500 pessoas; o que não significa que todos estejam lá diariamente. No Città America já se encontravam outras empresas de peso como a Cisco Systems e a Novartis.

 

No fim de 2002 foi a vez de outra gigante do petróleo – a Esso – se mudar para a Barra da Tijuca. O mesmo caminho tomaram a Volvo do Brasil Veículos Ltda, a Conasa Construtora, a Diamond Informática, a Engemolde Eng. Ind. e Com. Ltda (mudou-se do centro em 1997), a Carvalho Hosken S.A. Eng. e Construções (mudou-se do centro em 1998), a Gafisa Engenharia e Construção e a sede administrativa da Infabra – Ind. Farmacêutica Brasileira, dentre outras. Ademais, é possível identificar também a saída do centro em direção à zona sul da cidade, como é o caso da CSN (Companhia Siderúrgica Nacional) que transferiu sua sede para o 36o andar da Torre do Centro Empresarial Rio Sul, em Botafogo. Também em Botafogo, em um prédio de arquitetura pós-moderna – e de gosto duvidoso –, encontra-se a sede de uma empresa de telefonia celular: a Vivo.

 

No segundo semestre de 2003, no recém lançado Centro Empresarial Mário Henrique Simonsen – localizado próximo ao Barra Shopping – encontram-se a Fundação Bradesco e a Siemens do Brasil. Dentre as vantagens salientadas pelos agentes imobiliários (Imóvel-on) que negociam as vendas dos andares do novo empreendimento, estão: infra-estrutura de comunicações que utiliza as mais modernas tecnologias para rede de voz e redes de dados de banda larga em fibra ótica; terreno de 78.400m2 com apenas 12,5% de área ocupada (paisagismo integrado à vegetação de restinga); centro de convenções e business center preparados para eventos e treinamentos; heliponto; 1.612 vagas para estacionamento; espaços diferenciados para empresas de todos os portes (por exemplo: Blocos 4 e 5 – áreas de 40m2, 75m2, 83m2, 97m2, 108m2 e 1.440m2; Blocos 2 e 7 – áreas de 130m2, 145m2, 228m2, 235m2 e 1.475m2).

 

A entrada dessas grandes empresas na Barra indica uma mudança no perfil do bairro. Em matéria do Jornal do Brasil (dezembro de 2002), vemos que esse movimento já está sendo percebido quando lemos que “a Barra nasceu areal, virou meca da classe média emergente nas duas últimas décadas (...) e está desenvolvendo vocação para os negócios”.

 

Se essa migração é irreversível e se irá se dirigir em massa para a Barra só o futuro dirá, contudo, fato é que há indícios de um movimento de desconcentração e acreditamos que a utilização do teletabalho tem contribuído para realização de uma nova territorialidade na cidade do Rio de Janeiro, seja a partir da mudança de endereço das sedes das empresas, ou seja pela territorialidade construída pelo teletrabalhador que, a partir de então, realiza suas atividades em sua própria residência.

 

Ao compararmos a Barra com o Centro do Rio de Janeiro deparamo-nos com bairros bem distintos. Como afirmamos anteriormente, só recentemente foi derrubada a lei que não permitia firmar residência no Centro da cidade. A Barra da Tijuca tem, atualmente, mais de 90.000 moradores, tem um índice de automóvel por habitante de 2,36 (semelhante ao de Los Angeles – 2,39 – nos EUA) e mais de 40% dos domicílios apresenta renda mensal superior a 20 salários mínimos. É interessante, também, perceber uma mudança radical no padrão de organização espacial da cidade, pois no bairro do Centro, é possível percorrer o núcleo central a pé, ao passo que na Barra da Tijuca isso é totalmente inviável, o automóvel é fundamental.

 

Outras grandes empresas têm saído do centro; a Amil está instalada no Centro Empresarial Barra Shopping desde julho de 2002, o mesmo em que se encontra a Shell. Deixaram, também, o centro da cidade e encontram-se agora na Barra da Tijuca a sede da finlandesa Nokia Networks e o escritório carioca da Fiat. Além de terem deixado o centro, outra característica que todas as empresas citadas mantém em comum é o fato de todas terem iniciado a implementação do teletrabalho em suas empresas pouco antes de deixar as antigas sedes.

 

Em contrapartida, no centro, existem poucos imóveis que podem servir para projetos tão diferentes – com salas amplas, praticamente sem divisórias – já que, em geral, tratam-se de edificações do início do século passado e com alto custo de manutenção. Não é surpresa verificar o esvaziamento de andares inteiros em prédios do centro da cidade. Eis um dos motivos pelo qual temos verificado o surgimento de filiais de universidades privadas no bairro. No entroncamento da Avenida Rio Branco e Avenida Presidente Vargas – até então o coração do centro empresarial carioca – surgiram filiais da Universidade Estácio de Sá, da Universidade Cândido Mendes e da Universidade Gama Filho, ocupando praticamente 50% dos andares. Aliás, impressiona a forma como a administração dessas universidades denomina seus novos campus: filiais. Apenas no centro do Rio de Janeiro, a Universidade Estácio de Sá já conta com quatro unidades: a anteriormente citada e outras três que se localizam no prédio do Terminal Menezes Cortes, na área dos Arcos da Lapa e na Praça XI.

 

Diante de tantas transformações os agentes vêem-se obrigados a buscar alternativas para a utilização futura do Centro do Rio de Janeiro. A revalorização cultural do centro carioca (com seu acervo de museus, bibliotecas, teatros e centros culturais), a permissão de firmar residência e a implantação de universidades no local já são indicadores da mobilização desses agentes. Assim, nessa seara de incertezas, os agentes sociais que (re)produzem o espaço da cidade estarão buscando novas formas de (re)valorização desse espaço. O centro do Rio de janeiro perde empresas, mas adquire novas funções.

 

Mais recentemente, outro exemplo do processo de migração do Centro do Rio de Janeiro esteve estampado em todos os jornais da cidade. O prédio da Confederação Brasileira de Futebol (CBF), construído em 1966 – Edifício João Havelange – localizado no coração do centro financeiro da cidade, na rua da Alfândega, quase esquina com Avenida Rio Branco, seria posto em leilão no dia 17 de setembro de 2003. São 2.280m2 divididos em oito andares, mais subsolo, térreo e sobreloja. No dia do leilão aconteceu um fato inesperado: não houve interessados. A CBF, desde 2002, localiza-se em uma moderna sede na Barra da Tijuca. A nova sede conta com um conjunto de dois blocos de quatro e cinco andares com uma infra-estrutura de tecomunicações de alta tecnologia.

 

A Barra da Tijuca, recentemente, tem recebido uma nova onda de “emergentes”. Tratam-se das empresas de Internet que passaram a ocupar os centros comerciais da Avenida das Américas, alocando-se no bairro que ganhou fama por ser o endereço preferido dos novos ricos cariocas.

 

A migração dessas empresas foi alavancada pela Embratel que, no início do ano de 2001, investiu US$ 15 milhões – quatro vezes mais que o valor investido nos principais bairros da cidade – para instalar uma rede de 67 quilômetros de cabos de fibra ótica na Barra e nos bairros vizinhos do Recreio e de Jacarepaguá, com capacidade de transmissão que chega a 2,5 bilhões de bits por segundo. Um aumento de velocidade bastante considerável se comparado aos 64 mil bits por segundo que navegam em um canal de voz comum.

 

Migraram para a Barra da Tijuca, dentre várias outras “pontocom”, Infolink, Par-Perfeito, Brasil Web, Guia Local, Mercado 21, Novo Estilo e-commerce, Tessera, Via Rio e Globo.com. Esclarece-nos o sócio diretor do site Guia Local, Daniel Delvisson, que conseguiu reduzir o custo mensal com conexão em pelo menos um terço, posto que afirma gastar algo em torno de R$ 400,00, ao passo que em outro bairro esse gasto não ficaria por menos de R$ 1.300,00. Bruno Parodi, sócio fundador da desenvolvedora de sites Tessera, localizada no Shopping Dowtown, enaltece o fato de que “na Barra a Embratel nos proporciona condições de acesso excelentes, adequadas ao que o site necessita”. O centro comercial vizinho, Città America, também agrega várias salas destinadas às empresas chamadas “pontocom”. Juntos, os dois têm 21 empresas de Internet (segundo pesquisa realizada até junho de 2003).

 

A cidade do Rio de Janeiro, posteriormente a metrópole, foi e é construída, desconstruída e reconstruída indefinidamente. Tal processo não se dá de forma homogênea ou linear, mas heterogeneamente e aos saltos, para frente e para trás. Os objetivos são, também, endógenos e exógenos, levando em conta interesses, que muitas vezes advém de agentes que se encontram a muitas milhas distantes das fronteiras da cidade e do próprio país.

 

Utilizar-nos da consideração do espaço como produto, condição e meio do processo de produção geral da sociedade, permite-nos perceber os agentes que produzem o espaço urbano buscando interligações que, muitas vezes, partem do global em direção ao local, e aí encontram sujeitos que ora apresentam-se como aliados, ora como oponentes. Para tanto, ao analisarmos a ação desses agentes será importante a percepção da (con)formação de territorialidades construídas a partir de processos de desterritorialização e reterritorialização por que passam os teletrabalhadores. Logo, é necessário trabalhar com a relação dialética entre estrutura e ação, conforme enunciada por Gottdiener (1997, p. 217), que resultaria numa compreensão do espaço que enfatizaria as determinações gerais do modo de produção, ao mesmo tempo que procuraria entender o papel dos agentes em suas articulações e não como elementos isolados.

 

Assim, temos nessas articulações o proprietário dos meios de produção, o setor imobiliário, “mas também elementos do capital financeiro e corporativo, políticas públicas, grupos locais de ativistas, partidos políticos necessitados de suporte financeiro, ambientalistas, proprietários de casa própria etc” (Gottdiener, 1997, p. 218). São exatamente esses interesses e os conflitos entre eles que formarão o fio condutor das mudanças espaciais.

 

Foi nesse sentido que trilhamos nosso debate até aqui; buscamos elencar os indícios de algumas deslocações de empresas de áreas tradicionalmente de negócios (CDB – Central District Business), e no caso específico do Rio de Janeiro o bairro do Centro, para outras que, até então, não exerciam a função de áreas de concentração empresarial – sendo o bairro da Barra da Tijuca o maior exemplo. Temos percebido que, ao contrário da tendência anterior em que as empresas buscavam localizar-se na área central da cidade (que tem como característica a verticalização), há indícios de uma desconcentração, que tem ocorrido de forma constante e que guarda características diferentes do local anterior: a área construída ocupada pelas empresas é bem menor, busca a horizontalização (prédios baixos) e a valorização dos espaços verdes.

 

Acreditamos que para essas mudanças, tenha contribuído também a crescente utilização das redes nesse tempo dos fluxos (Santos, 1996, 1994). Devemos observar que, no que concerne às redes, não seria a ocupação de áreas o que importa, mas a ativação e/ou criação de pontos e linhas. Contudo, no momento atual de evolução – que Santos (1996; 1994) denomina período técnico-científico-informacional – os suportes das redes encontram-se também centrados em objetos técnicos, dos quais o computador é seu maior representante.

 

Haesbaert (2002, p. 26) identifica três grandes perspectivas quando da distinção entre território e rede. Primeiramente, aquela em que o território se oporia à rede (Castells, 1996 e Badie, 1996, encontrar-se-iam nesse grupo); na segunda perspectiva, “o território seria uma forma de organização do espaço mais tradicional do que a rede. Neste caso abrem-se pelo menos duas perspectivas de análise”. Teríamos aquela que distingue duas lógicas espaciais: uma zonal – em área – e uma reticular. Por outro lado, teríamos aquela defendida por Lévy (2002, p. 15), que fala em duas métricas: uma contínua (topográfica) e outra descontínua (topológica), a métrica das redes.

 

A terceira e última perspectiva, caberia àqueles denominados “territorialistas”. A idéia de rede estaria “completamente subordinada à de território, e este se confunde com espaço geográfico, já que toda relação social seria também uma relação territorial. A rede é vista participando apenas de processos territorializadores, na medida em que ajuda a inegrar o território, visto sempre como sendo estável e enraizador” (Haesbaert, 2002, p. 28).   

  

Haesbaert (2002, p. 28) apresenta-nos uma leitura intermediária entre “a que separa claramente território de rede (pregando a hegemonia crescente das redes) e a que dilui completamente as redes no interior dos territórios, é a que afirma que território e rede formam um binômio em que a rede pode tanto ser um elemento fortalecedor, interno aos territórios [e aqui estaria se referindo às redes viárias e de comunicações como base para a integração do território nacional], quanto um elemento que se projeta para fora do território”, promovendo a sua desterritorialização. Nesse sentido, os fluxos e a própria rede podem se tornar de tal forma dominantes que acabam por se confundir com o próprio território.

 

Temos que compreender a desterritorialização e a reterritorialização como processos relacionais, pois a desterritorialização a que nos referimos não está acabando com o território. Dessa forma complexificamos a categoria território, que se encontra agora numa trama que incorpora ligações em rede e multi-escalares, mas também, por outro lado, shopping centers e condomínios fechados que separam as classes mais abastadas da cidade daqueles menos afortunados. 

 

Reafirmamos, então, a nossa posição no que concerne à inter-relação entre território e redes como encaminhamento teórico-metodológico fundamental para a compreensão desse debate. Em um mesmo território, há uma superposição de redes, que inclui redes principais e redes secundárias, conjunto de pontos e linhas, ou conforme Santos (1996, p. 214): redes principais e redes afluentes; o que Veltz (1996) denominaria “territórios em rede e território de redes”. Ou seja, nos territórios em rede não só as cidades se dissociam de seu território, privilegiando as relações com outras cidades às quais estão ligadas através das redes, mas, além disso, o território das redes dá lugar a um território em rede. Dessa forma, cada pólo se definiria como ponto de cruzamento e comutação de redes múltiplas. Nesse sentido, seria possível utilizarmos as expressões “território-arquipélago” ou “rede-arquipélago de grandes metrópoles” de Veltz (1996, p. 65; Veltz, Savy, 1996, p. 13) e Bourdin (2001, p. 60).

 

Destarte, nesse início do século XXI, é necessário reconhecer que os modelos centro-periferia, que segundo Veltz (1994, p. 189) funcionavam tanto para o espaço nacional quanto para o espaço mundial, se tornam menos viáveis, principalmente agora no que se refere ao teletrabalho. Atualmente, a periferia está no centro e o centro na periferia, pois a integração se dá através de interações verticalizadas (Santos, 1996, p. 226). O centro e a periferia, agora, tendem a se interpenetrar, ou seja, percebemos uma imbricação entre eles. Eis o motivo da nossa afirmação de que a periferia está no centro e o centro na periferia.

 

Encaminhamo-nos para além do modelo hierárquico centralizado. As redes hierarquizadas, conforme definidas por Christaller – baseadas em uma árvore de “localidades centrais” ligadas entre si em uma sucessão encadeada de níveis da hierarquia urbana – estariam sendo substituídas por redes multipolares desprovidas dessa hierarquia arborescente. O modelo anterior, além de não garantir a solidariedade do comportamento organizacional, mostra-se também contraditório com essa interação verticalizada. Por isso, Veltz (1994, p. 195) enfatiza que “integração e descentralização não são pois contraditórios; pelo contrário, a descentralização das estruturas surge como uma condição necessária da capacidade de reacção, incompatível com os longos vaivéns da pirâmide hierárquica.” Estar-nos-íamos encaminhando para o que Veltz (1994, p. 200) denominou de territórios-rede.

 

As relações verticalizadas entre os territórios-rede levam-nos a percebê-las como uma espécie de túnel, que atravessa as áreas de seu entorno sem com elas manter contato. Ou seja, há predominância das relações entre pólos sobre as relações com a hinterlândia, estaríamos passando de território-zona para território-rede. Nesse contexto de território-rede, podemos perceber que, no Rio de Janeiro, os teletrabalhadores vêm se desterritorializando – no sentido de desenraizamento dos indivíduos em relação ao seu território – em um momento em que há um acirramento da competitividade e do individualismo. Assim, a desterritorialização acaba por desconectar os teletrabalhadores em relação ao seu lugar de trabalho.

 

Os agentes responsáveis pela implantação do teletrabalho – e aqui não estamo-nos referindo apenas aos gerentes de projeto que efetivamente dão partida à sua implementação, mas também àqueles que se encontram na matriz da empresa, muitas vezes localizada em um outro continente, àqueles responsáveis pela criação de infra-estrutura (não somente, mas em geral, o Estado), às incorporadoras, às construtoras, etc. – acabam por fragmentar e provocar a desordem na tentativa de impor uma nova ordem que se desvincula da escala do local. 

 

A partir desse olhar, o território-rede é, simultaneamente, um espaço de conectividade/integração, ou de aproximação, e de distúrbio e descontrole no que se refere à organização espacial, pelo simples fato de que não existe a pura “ordem”, pois há sempre constrangimentos – rugosidades, permanências – a serem incorporados e porque a malha de redes tem o potencial de conectar e ao mesmo tempo de excluir os lugares (Veltz, 1996, p. 62; Haesbaert, 1997, 259).

 

Mesmo que o nosso objeto de pesquisa nos remeta a um local – o Rio de Janeiro – isso não significa afirmar que vemos a escala local como a instância decisória primordial. Acreditamos, junto com Rua (2003, p. 276) que há limites para a escala de ação local e que, ademais, “é preciso ter consciência de que a cidadania e a identidade se constróem em todas as escalas”. 

 

O fato é que as escalas não estão dadas, “mas são, elas mesmas, objeto de confronto, como também é objeto de confronto a definição de escalas prioritárias onde os embates centrais se darão” (Vainer, 2001, p. 146). Na análise, ao escolhermos uma escala, escolhemos nosso objeto e os sujeitos que estarão em jogo, logo a própria opção torna nossa análise limitada.

 

Temos de ter em conta que o poder das grandes empresas encontra-se menos em seu caráter global que em sua capacidade de interação entre as escalas global, nacional, regional e local. Dessa maneira, não se trata de considerar o global e o local.

 



Notas

 

[i] Joshua Lepawsky, em seu artigo apresentado no 97º Annual Meeting of The Association of American Geographers. Nova York, EUA, 27/02 a 03/03, 2001, apresenta como novos aglomerados de exclusão aqueles que não estão conectados a rede mundial de computadores e que, portanto, fariam parte da denominada Digital divide.

 

[ii] Em SOUZA (1997, p. 43-87) é possível observar a tentativa desse autor em trabalhar com a Teoria da Complexidade – associando o acaso (a partir da Teoria do Caos), ordem, desordem e sinergética – para explicar o desenvolvimento sócio-espacial.  

 

 

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© Copyright Alvaro Ferreira, 2005

© Copyright Scripta Nova, 2005

 

Ficha bibliográfica:

FERREIRA, A. A tendência ao esvaziamento da área central da cidade do Rio de Janeiro e sua associação com a implementação do teletrabalho pelas empresas. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (81). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-81.htm> [ISSN: 1138-9788]

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