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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.
ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. IX, núm. 194 (99), 1 de agosto de 2005

A QUESTÃO DA MORADIA PARA ALÉM DA RE-PRODUÇÃO SOCIAL[1]

Fernanda Keiko Ikuta
Doutoranda em Geografia na Universidade Estadual Paulista/Presidente Prudente

Antonio Thomaz Júnior
Professor da Universidade Estadual Paulista /Presidente Prudente e Pesquisador visitante junto à Faculdade de Geografia e História, da Universidade de Santiago de Compostela (Espanha)


A questão da moradia para além da re-produção social[2] (Resumo)

A questão da moradia, enquanto âmbito da esfera da re-produção, deve ser entendida de maneira imbricada com a esfera da produção. A divisão social e técnica do trabalho que dicotomiza o viver e o trabalhar exige esta imbricação teórico-metodológica que enfrentamos através do estudo das Associações de Moradores e dos Sindicatos dos Trabalhadores de Presidente Prudente. A práxis fragmentada que apreendemos destas entidades é entendida como resultante da sociabilidade do capital que afeta e divide a vida dentro e fora do trabalho. A necessidade dos trabalhadores de reapropriarem-se da totalidade das condições sociais de existência requer que unifiquem organicamente a luta para além de quatro paredes com a luta para além do chão da fábrica e, sobretudo, requer orientar estas lutas para além do capital.

Palavras-chave: questão da moradia, fragmentação da práxis social; esfera da produção; esfera da re-produção


The question of the housing for beyond the social reproduction (Abstract)

The housing question, like a scope of reproduction sphere, it must be understood interrelated with the production sphere.  The social and technical division of the labor that dichotomizes to life and to work demand this theoretical-methodological interrelation that we face through the study of the Residents Associations and the Workers Unions of Presidente Prudente.  The fragmented practice that we apprehend of these entities is understood as resultant of the sociability of the capital that it affects and divides the life inside and out of the work.  The workers' necessity to recover the control of whole of the social conditions of existence it requires that they organically unify the fight beyond four walls with the fight beyond the soil of the plant and, above all, it requires to guide these fights beyond the capital.

Keywords:  housing question; fragmentation of the social practice; production sphere;  reproduction sphere


Introdução

As Associações de Moradores e os Sindicatos dos Trabalhadores de Presidente Prudente (Estado de São Paulo/Brasil) com suas territorialidades geo-grafadas pelas transformações societais atuais, são aqui objeto da nossa investigação, expresso num conjunto de exercícios que nos propicia refletir sobre a fragmentação da práxis social na sociedade capitalista.

Fragmentação que deve ser pensada ontologicamente, cujo fio condutor por nós adotado será a discussão da fragmentação dos momentos sociais da produção e da reprodução, expressa na práxis fetichizada[3] das entidades comunitárias e sindicais sobre o território.

Assim, tendo em vista a questão da moradia, somos remetidos a pensar a dicotomização do viver/morar e trabalhar. Dicotomização esta, que é fundada na divisão social e técnica do trabalho e nos exige, então, a necessidade teórico-metodológica de uma imbricação entre os momentos sociais da produção e da reprodução, materializada na interlocução entre a questão da moradia e o mundo do trabalho para a construção de uma reflexão que possa ir além da unilateralidade que predomina tanto na prática como no discurso/análise destas questões.

Diante da nova ofensiva do capital para recuperar sua hegemonia perante a crise estrutural vivida, podemos supor que somente a práxis sindical é afetada, vivenciando um momento de crise, de intensificação da captura da sua subjetividade e incorporação da racionalidade capitalista. Todavia, partimos do pressuposto que vivenciamos uma crise política da classe, ou seja, uma crise da práxis política da classe trabalhadora. Assim, se o que está em jogo é uma questão de classe, toda a práxis social está igualmente envolvida, sendo que isto não deixa de incluir e abranger os conflitos do âmbito da esfera da reprodução, como a luta por moradia.

O objetivo maior de pensar a fragmentação da práxis social nos remete ainda à necessidade de se pensar a imbricação dessas lutas para um caminhar no sentido da superação do imediatismo, da atomização e da institucionalização. Isto é, uma luta contra-hegemônica, uma luta que objetive colocar-se para além do capital, e que seja então, unificada organicamente. Desta maneira, tal reflexão não se limitaria ao exemplo a ser trabalhado, ou seja, a necessidade de busca de unificação não é somente das dimensões citadas (moradia e trabalho), ao contrário, a discussão pode levar a um (re)pensar das práticas e das teorias de todos os movimentos sociais, ou ainda, da sociedade fragmentada (composta de indivíduos ensimesmados, distantes da perspectiva coletiva de organização) porque fetichizada pela lógica do metabolismo societário do capital em que vivemos.

E neste sentido, pretende-se discutir a questão da moradia ampliando as delimitações do debate predominante até o presente. Isto requer que entendamos a dinâmica desta problemática sem nos limitarmos apenas à análise da esfera da re-produção/consumo, mas que consideremos as relações sociais de produção para compreendermos a questão da moradia. Entendemos que a problemática da moradia é um dos componentes de todo um conjunto de precariedades manifestas nas condições de existência dos trabalhadores. Assim, o processo engendrante das contradições sociais não pode ser apreendido apenas através do mercado como espaço de leitura da história, pois o momento da reprodução não é uma esfera autônoma, independente do metabolismo social como um todo.

Nos propomos, então, a repensar, de um lado, a questão da moradia para além das restritas determinações impostas pela "leitura" predominante, que a limita enquanto análise que respeita apenas a esfera da reprodução (que é vista como reprodução dos meios de produção somente). E, de outro lado, a repensar certas "leituras" do mundo do trabalho, que ignoram ou consideram indevidamente (porque a fazem de maneira limitada e parcial) os aspectos da esfera da reprodução. Nossa busca seria então, tentar pensar a superação do "engessamento" das análises que dicotomizam tais processos. E neste sentido, a geografia do trabalho nos oferece elementos que contribuem para uma análise voltada para a compreensão da totalidade.

O morar e o trabalhar em Presidente Prudente

Discutir a fragmentação das lutas sociais é um objetivo fundamental para nós. E esta discussão é enviesada pela compreensão de que a sociabilidade, no âmbito do capital, afeta e divide a vida em duas esferas: dentro e fora do trabalho. A práxis social reflete tal dicotomização sobretudo em lutas cujo significado reivindicativo é específico, atomizado, imediatista.

A gênese desta fragmentação pode ser entendida nos processos de alienação e estranhamento[4]do ser social. Isto é, alienado no processo social de produção e submetido a uma existência inautêntica e estranhada o ser social fica impedido de viver a integridade da existência social. A alienação e o estranhamento, as fetichizações e reificações do ser social dissimulam as contradições sociais, dissolvem a luta de classes e isto se faz perceber nas práticas organizativas, nos movimentos sociais, nos sindicatos, nas associações. Daí propormos através de uma ponte entre moradia e trabalho, realizar uma reflexão que ultrapasse as fragmentações em que as práxis sociais são submetidas.

De um lado, o movimento operário reivindicando melhores salários e condições de trabalho e do outro, os movimentos urbanos, ecológicos, de gênero, de raça, etc., requerendo especificamente aspectos ligados à re-produção como moradia, saúde, educação, preservação da natureza, igualdade nas relações de gênero e raciais. E isto, em geral, sem um reconhecimento mútuo das lutas. Cada reivindicação tem a sua esfera de atuação. O trabalhador não associa o sindicato com a luta por uma escola no seu bairro e tampouco vai discutir as relações de trabalho na associação de bairro, por exemplo. E desta maneira, o viver e o trabalhar estão separados, fragmentados nas práticas das lutas.

Entendemos então, que o ser social é uno, mas sua submissão aos processos de alienação e estranhamento fragmenta-o, divide-o. Todavia, uma outra faceta do real (ou a nossa interpretação dele) nos demonstra o quanto o viver e o trabalhar estão imbricados. É o que apreendemos da análise do panorama das condições do morar e do trabalhar em Presidente Prudente. Percebemos que há uma superposição das precariedades no espaço e que todo o conjunto das condições de vida, tanto os aspectos diretamente ligados à esfera da produção (condições e relações de trabalho), como os ligados à esfera da re-produção (condições de moradia e urbanidade) são engendrados e afetados pelo metabolismo social do capital e sua lógica fragmentadora.

Ao levantar o quadro prudentino das condições de moradia e urbanidade (ocupação de áreas públicas; processo de luta por moradia popular; periferização da população; concentração dos imóveis precários; intervenções públicas nas áreas de favela e loteamentos; demanda por moradia, monopolização e especulação fundiária e imobiliária; loteamentos fechados; evasão escolar; saúde, transporte coletivo urbano, problemas sanitários e ambientais das ruas) e das condições e relações de trabalho (distribuição da demanda por trabalho e emprego no espaço urbano; atividades ocupacionais: empregos, sub-empregos, desemprego e outros; faixas salariais) [5], apreendemos que há uma superposição das precariedades que não se concretizam isoladamente. Todo o conjunto de sub-condições de existência, estão "confinados" nas áreas mais precárias da cidade. Os piores índices se concentram todos nas mesmas áreas, o que significa que é a mesma população que está precarizada no conjunto das condições sociais de existência, ou ainda, que as situações de exclusão[6] "são decorrentes da superposição de carências de diferentes naturezas".

Isto é, a sociabilidade no âmbito do capital precariza profundamente as relações do ser social, tanto fora como dentro do trabalho. "Fora" do trabalho o ser social vive mal, não tem casa ou mora em condições sub-humanas, não tem acesso à educação, saúde, transporte, lazer, alimentação, saneamento básico de boa qualidade. E "dentro" do trabalho, o capitalismo mundializado contemporâneo, estreita e restringe cada vez mais o núcleo de trabalhadores estáveis e com garantias, enquanto se intensifica a massa flutuante de trabalhadores instáveis (os subcontratados, os trabalhadores em tempo parcial, os temporários, os da "economia subterrânea" ou "clandestinos") e os proletários excluídos do trabalho, jogados por muito tempo ou até mesmo definitivamente fora do mercado de trabalho, vivendo a despossessão no limite.

Neste sentido, consideramos ser necessário evidenciar a relação entre a questão da moradia (em si) com o conjunto das condições sociais de existência dos trabalhadores, explicitando que o tratamento isolado destas questões não dá conta de explicar toda a processualidade social em apreço, seu movimento e conteúdo contraditórios.

Há uma separação forçada entre o trabalhar -esfera da produção- e o morar -esfera da re-produção-, através da despossessão do trabalhador das condições de vida, até o ponto em que ele (trabalhador) constrói inúmeras casas mas permanece sem-teto. Mas será que os trabalhadores/moradores entendem de maneira lúcida, ou externalizam esse  entendimento em forma de pauta ou bandeira de luta em suas organizações? Ou, antes ainda, estão eles organizados?

Depois de lançadas estas questões, caberia então, investigar uma forma de organização ligada diretamente às reivindicações pela moradia (esfera da re-produção) e outra organização diretamente ligada às reivindicações do trabalho (esfera da produção) já que não existe uma organização que unifique as duas reivindicações. Por isso nos colocamos a discutir as Associações de Moradores[7] de Presidente Prudente enquanto uma organização identificada na esfera da re-produção e os Sindicatos dos Trabalhadores de Presidente Prudente enquanto uma organização identificada na esfera da produção.

A práxis das associações de moradores

A territorialidade das Associações de Moradores de Presidente Prudente é delimitada pelo bairro. A atuação das associações, seus objetivos, projetos e reivindicações não ultrapassam o limite do bairro, ou, metaforicamente, podemos dizer ainda que, na verdade, enquanto concepção geral de luta, não conseguem ir além das quatro paredes. O "emparedamento" começa, por exemplo, no fato de que, em geral, não há identificação de seus problemas com os problemas vivenciados em outros bairros e tampouco há a compreensão clara de que um mesmo processo engendra bairros que convivem, muitas vezes "eternamente", em condições de moradia e urbanidade precários e bairros que têm as mais otimizadas condições infra-estruturais (assim como outros locais, serviços e infra-estruturas que nem todos têm acesso pleno: shoppings-centers, ensino superior, hospitais de alto padrão, verticalização, condomínios fechados que privatizam espaço público, a cidade programada para que predomine a tirania do automóvel em detrimento do pedestre). E, portanto, não se luta pelo direito à cidade, pelos atributos de urbano que ela tem, mas apenas por uma parcela desta cidade.

São 41 associações de moradores[8], que formam um cinturão periférico. A grande maioria dos bairros é de alta e média exclusão social, já no "miolo" da malha urbana, onde estão as áreas de inclusão não tem sequer uma associação. Podemos inferir logo de início, que esta é uma sinalização de que esses bairros periféricos são os que têm mais reivindicações a fazer.

Em geral, as Associações de Moradores de Presidente Prudente têm reivindicações que refletem as condições de exclusão da maior parte destes bairros, sendo que em sua maioria estão situados em áreas de máxima exclusão social. Equipamentos e infra-estrutura urbana básicos compõem os principais elementos requeridos.

Fica claro que o estabelecimento comum de bandeiras de luta que unifiquem estas entidades entre si e com outras entidades para além de suas reivindicações específicas, é inexistente. A articulação destas simplesmente não está colocada como uma necessidade premente. Nem mesmo as ações, a luta dos Movimentos Populares por moradia das grandes cidades são alvo de interesse enquanto projeto político, muito menos as ações de outras entidades com bandeiras de luta diversas, como o Movimento Sindical ou os Movimentos Sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra - MST, ou as experiências mais destacas de luta por moradia popular em outros países. Não se percebe qualquer convergência entre estas lutas. O cenário global não está em pauta, tanto que nem mesmo estão filiadas a Federações, Centrais ou qualquer outra agremiação.

As associações entrevistadas não demonstraram uma carga de envolvimento com o processo de luta por moradia existente outrora[9], isso mesmo em bairros onde havia áreas de resistência ou implantadas para receber famílias deslocadas de núcleos de favelas.

Pode-se perceber que o grau de acatamento da legalidade vigente em relação à sua luta é absoluto. Não se coloca em pauta práticas que possam extrapolar ou questionar a legalidade, de certa maneira, até mesmo porque os objetivos que estão colocados não exigem isto. A ocupação de prédios por parte dos Movimentos Urbanos das capitais, ou a ocupação de terras pelos Movimentos Rurais chegam a ser reconhecidas como legítimas, mas não como práticas a serem incorporadas.

Diante de tudo isto, foi possível perceber que não há uma elaboração aprimorada de táticas e estratégias próprias de enfrentamento com o poder público e outras instituições. Na verdade, percebemos um quase que absoluto peleguismo das associações ou mesmo a predominância de uma inércia geral frente a dificuldades na relação com o poder público. O assistencialismo reinante na atual gestão pública municipal, principalmente no que se refere ao poder executivo, é um incentivo tanto para a inércia quanto para o peleguismo.

Podemos ainda relacionar este quadro com a falta de expressão e representatividade das associações de moradores. A escassa participação e envolvimento da comunidade do bairro com as associações foram expressas pelos próprios presidentes das entidades.

As questões mais amplas como a fome, a saúde, a educação, o desemprego e a desigualdade social no país, não fazem parte de sua escala de atuação. São questões do âmbito dos sindicatos, todavia, para serem resolvidas pelos governos estadual e federal. Essa concepção denota a crença no Estado.

Assim, uma primeira conclusão que podemos apontar é que a ausência de articulação, cooperação e solidariedade (não do assistencialismo, paternalismo que em geral imperam no comunitarismo) entre as associações/bairros revela o total individualismo, ensimesmamento a que estão submetidas e coloca fora do horizonte dessas "comunidades" um projeto coletivo, emancipatório, ou que ultrapasse o imediatismo das reivindicações que não conseguem ir além das quatro paredes. Ou mesmo se ainda nos mantemos numa linha imediatista, podemos perceber que a práxis atomizada deixa de resolver até mesmo a carência do teto para morar e mais, reproduz os mecanismos que perpetuam a inclusão precária em que estão submetidos.

A fragmentação territorial dos sindicatos dos trabalhadores

O mundo do trabalho tem passado por profundas transformações tanto no que respeita à materialidade, quanto aos aspectos da subjetividade. As condições de emprego e salário sofrem mudanças que estão gerando intensa precarização do mundo do trabalho. O aumento monumental do exército industrial de reserva, do número de desempregados é uma decorrência objetiva deste processo, assim como, a captura da subjetividade do trabalhador de acordo com os imperativos da lógica do sistema produtor de mercadorias que vem convertendo a concorrência e a busca da produtividade num processo destrutivo. Daí, a crescente fragilidade do movimento sindical em diversos países, incluindo o Brasil (ALVES, 2000; ANTUNES, 2000; BIHR, 1998; SANTOS, A. 2001; ARAÚJO, A. 2002; DIEESE, 2002).

Um ponto de partida para identificarmos os processos que levam a esta dinâmica, pode ser a cisão dos sindicatos por meio da sua fragmentação territorial e corporativa[10]. A Carta Sindical dita uma longa sub-divisão das categorias profissionais. Um exemplo é o que constatamos na execução do trabalho de campo que, uma só empresa pode ter seus funcionários, que trabalham lado a lado, organizados internamente em pelo menos 4 sindicatos diferentes.

A Carta dita também as bases territoriais, que seguem a divisão político-administrativa do Estado, que os sindicatos devem ter. Um dos aspectos que pudemos apreender nas entrevistas aplicadas nos sindicatos de Presidente Prudente é que esta divisão oficialmente imposta, quando não tomada como algo dado e inexorável, muitas vezes ainda é vista como um facilitador e potencializador do sindicato, pois angariaria o interesse dos trabalhadores pelo sindicato para que "seus" problemas, "suas" reivindicações mais imediatas fossem atendidas.

Embora o conseqüente enfraquecimento do movimento sindical com o corporativismo[11] seja por vezes reconhecido, o "bicho papão" que impede e afasta a idéia da construção de um movimento sindical ofensivo e orgânico é a eminente ameaça do desemprego. Este é o principal instrumento do controle social exercido pelo capital[12].

Fragilizados, a maior parte dos Sindicatos de Presidente Prudente apresentam a campanha salarial como a principal bandeira de luta. A agenda política praticamente limita-se às negociações na data-base de cada categoria. Além da questão salarial, o outro ponto principal da agenda da maior parte dos sindicatos é a manutenção de direitos trabalhistas já conquistados através da Consolidação da Legislação Trabalhista - CLT ou de negociação direta com as empresas como cesta básica, café da manhã, folgas no final do ano. Em alguns sindicatos há algum esforço para que a campanha salarial seja coletiva. Todavia, em geral, a noção de coletividade não ultrapassa a questão salarial.

Percebemos que as questões que condizem à vida do trabalhador fora do local de trabalho como saúde, educação e moradia, compreendidas como questões macroeconômicas, têm uma relevância paralela, ou seja, em geral, não têm rebatimento como pauta prioritária da maior parte dos sindicatos.

Na relação com o Estado, principalmente enquanto poder público municipal, há uma declarada crença neste revelada no lançamento e apoio de candidatos próprios a cargos políticos com a justificativa de que é preciso fazer parte do governo para garantir as reivindicações dos seus trabalhadores. A preocupação com as eleições estaduais e federais também está presente para alguns sindicatos, principalmente para os que são da oposição, pois estes acreditam que através de uma gestão governamental diferenciada se estará mudando a sociedade, o que a luta direta com o patrão somente não permite.

Pudemos perceber que alguns sindicalistas apostam na "solução de mercado" até mesmo para suas "conquistas"[13], pois consideram que a flexibilização dos direitos trabalhistas ou enfim, toda a política neoliberal que vem sendo implementada façam parte de um processo inexorável, um "caminho sem volta".

Quanto a filiação e articulação dos sindicatos com Federações e Centrais sentimos que há uma evidente fragilidade nessas relações. Na verdade, a dificuldade se inicia no distanciamento existente entre liderança e base e se reflete no que poderia ser uma relação de cadeia entre os primeiros. O próprio Conselho Intersindical de Presidente Prudente revela que internamente às Federações são entendidas apenas como um canal de informação sobre a conjuntura estadual, mas não como um canal que poderia propiciar uma articulação entre as entidades sindicais.

E não é muito diferente a questão da articulação dos sindicatos com outras entidades ou Movimentos Sociais. Ou seja, não há a busca da construção de um projeto político comum, não há o reconhecimento da possibilidade da construção de bandeiras de luta comum. Se nem os sindicatos e os trabalhadores, conseguem superar entre si as especificidades requerer aspectos extra-mundo do trabalho é uma realidade mais que eventual.

Assim, enquanto o capital, com sua estrutura totalizante busca garantir a sua hegemonia reorganizando-se para retomar o seu patamar de acumulação e o seu projeto de dominação, os trabalhadores se vêem e se entendem nos limites da "legitimação jurídico-política do processo produtivo capitalista" (THOMAZ JÚNIOR, 2002a, p. 248).

Neste cenário, pensar a articulação orgânica entre as lutas de "fora" e de "dentro" do trabalho é, no máximo, apontada como uma necessidade reconhecida, mas ainda sem nenhuma prática concreta.  Já a luta "para além do capital" é considerada demasiada utópica para romper os complexos e "reais" processos sociais e, sobretudo, políticos e econômicos atuais.

É neste contexto que, como muito, se reconhece que os aspectos diretamente ligados ao trabalho repercutem no conjunto dos aspectos ligados à re-produção, isto é, ao viver, ao morar e vice-versa, sendo que este segundo, reconhecido com mais dificuldade ainda ou simplesmente não reconhecido - quem sabe até mesmo por alguns marxistas ortodoxos, já que nos referimos não só à prática de luta dos sindicatos, mas também às análises teóricas a respeito.

E se ao discursar há certo reconhecimento (em geral restrito às lideranças) das repercussões mútuas entre o trabalhar e o viver, os desdobramentos territoriais disto praticamente ainda não são explorados.

Trabalho e moradia: dinâmica na estrutura societal atual

Vivenciamos a transição da base da sociedade capitalista, prioritariamente, da indústria para a centralidade financeira que altera a forma e o processo da acumulação do capital. Mas a "Economia-Mundo", como denominam autores como Wallerstein (1987), é conseguida paralelamente a uma hegemonia política e cultural. Tais metamorfoses conformam novas territorialidades em tensão (GONÇALVES, C. 2002) de onde podemos apreender novas relações de poder, novas formas de objetivação e subjetivação (alienação, estranhamento), novas representações dos seres sociais em todas as suas dimensões, tanto dentro como fora do trabalho.

Atentar-se para a construção de novas representações sociais diante das transformações hodiernas, permite preocupar-se com as transformações ocorridas, ou em vias de ocorrer, nos movimentos, organizações e lutas sociais.

Desta maneira, as transformações ocorridas com a globalização, em suas diferentes dimensões e com a mundialização do capital têm produzido repercussões no contexto das demandas gerais da sociedade (ALVES, 2001). Assim, a exclusão ou inclusão precária em relação à moradia, é uma das conseqüências objetivas destas transformações e que por isso, não pode ser compreendida isoladamente uma vez que um sem-teto é concomitantemente precarizado nos âmbitos da saúde, da alimentação, do trabalho, da qualidade ambiental, do lazer, dos meios de transporte, etc. Portanto, é a partir da compreensão da intensificação da precarização do conjunto das condições sociais de existência, que surge o exercício teórico de estreitamento da discussão da moradia com o mundo do trabalho. E para apreender o processo de precarização do conjunto das condições sociais de existência, não se pode desconsiderar as conseqüências provindas da reestruturação produtiva que, no Brasil se deu, a partir do governo Collor, nos anos 90, através da política neoliberal que impulsionou maior integração do capitalismo brasileiro à mundialização do capital.

Além dos aspectos objetivos citados, a subjetividade social é também atingida a partir de um processo contraditório e simultâneo pautado na lógica fragmentadora e ao mesmo tempo homogeneizante do capital, onde se reproduz, uma sociabilidade ou, um modo de vida apropriado às imposições do capital. Esta padronização da sociedade exprime a fetichização da mercadoria, (ou ainda a fetichização societal, isto é, a sociedade de massa que tem como elemento integrador o consumo) e estrutura-se sob condições da normalização e da normatização dos comportamentos e práticas sociais impostos pelo metabolismo do capital.

Ao mesmo tempo se produz uma dessocialização que dissolve as relações comunitárias, relaxa o vínculo social e fragmenta as negociações coletivas nesta crescente dificuldade em agregar interesses político-ideológicos (BIHR, 1998). Harvey nos acrescenta que "a luta de classes se fragmenta com excessiva facilidade em um sem-fim de interesses comunitários fragmentados geograficamente, facilmente cooptados pelo poder burguês ou explorados pelos mecanismos da penetração do mercado neoliberal"(HARVEY, 1999, p.63). Este processo homogenizador/fragmentador e suas conseqüências para a práxis social é o que Bihr (1998) identifica como sendo a crise da sociabilidade.

É importante ressaltar que ao tratar da vida dentro e fora do trabalho em seus aspectos objetivos e subjetivos estamos levando em consideração todo o conjunto da organização do modo de vida capitalista, pois estamos colocando em pauta as transformações gerais que afetaram a sociedade em seu conjunto sob a influência crescente das relações sociais capitalistas.

Reestruturação produtiva do capital e crise do sindicalismo no Brasil

A partir da perspectiva de constituição de uma nova ofensiva do capital na produção, iniciada na década de 80 e fortemente impulsionada na década de 90, G. Alves (2000) analisa a crise do sindicalismo no Brasil que para ele tem como características principais não só "a perda da representatividade sindical, a esclerose organizacional e a crescente dificuldade em agregar interesses, mas, também, e principalmente, a debilitação político-ideológica da perspectiva de classe" (p. 11-12). Isto é, a crise do sindicalismo reflete a incapacidade das estratégias sindicais diante das novas condições de acumulação capitalista, da mundialização do capital e dos seus desdobramentos objetivos e subjetivos na classe trabalhadora (THOMAZ JÚNIOR, 2002b e ANTUNES, 1991 e 1993).

Todas estas metamorfoses nas regras da acumulação do capital devem ser entendidas enquanto uma experiência histórico-geográfica, que constituem, portanto, novas configurações de poder, novas territorialidades, não só porque o ser social é indissociável do estar e o território é a condição de existência material da sociedade, mas também, uma vez que

[a] acumulação do capital sempre foi um assunto geográfico. Sem as possibilidades inerentes à expansão geográfica, a reorganização espacial e o desenvolvimento geográfico desigual, há muito tempo o capitalismo teria deixado de funcionar como sistema político-econômico. Esse perpétuo recurso a um "remédio espacial" às contradições internas do capitalismo (muito destacavelmente as que aparecem como sobre-acumulação de capital dentro de uma área geográfica particular), combinado com a inserção desigual dos diversos territórios e formações sociais dentro do mercado mundial capitalista, criou uma geografia histórica global da acumulação do capital cujo caráter se tem que entender bem. (HARVEY, 1999, p.  49, tradução nossa)

Assim, a crise do taylorismo e do fordismo é identificada como a expressão fenomênica da crise estrutural do capital que se reorganiza no seu sistema ideológico e político de dominação. Esta resposta do capital para sua crise, isto é, a adoção do toyotismo e suas formas de acumulação flexível, de gestão organizacional e de avanço tecnológico, tem repercussões diretas para o trabalho, até porque cumpre o papel de ser uma ofensiva do capital para recuperar a sua hegemonia, o que significa controlar as lutas sociais (o conflito). São então criadas novas formas de intensificação do trabalho, sendo que Antunes (2000) pontua as seguintes: desregulamentação dos direitos do trabalho; aumento da fragmentação no interior da classe trabalhadora; precarização e terceirização da força humana que trabalha; e destruição do sindicalismo de classe e sua conversão num sindicalismo dócil, propositivo, de empresa (ANTUNES, 2000, p. 52-53). Ocorre hoje, uma redução do proletariado industrial (tradicional) concomitante ao aumento do "novo proletariado" (os terceirizados, trabalhadores temporários e subcontratados) e toda a horda de trabalhadores que se inserem crescentemente na informalização, e o contingente expressivo de desempregados.

É com a debilitação (fragmentação) subjetiva da classe que se desenvolve as estratégias sindicais neocorporativas. Agora, a própria "disposição intelectual-afetiva" do trabalhador "é constituída para cooperar com a lógica de valorização do capital" e não mais apenas o "fazer" e o "saber" operários são capturados (ALVES, 2000, p. 54). Os imperativos da concorrência se explicitam nas reações corporativas dos sindicatos e além da burocratização sindical, pode-se assinalar que o sindicalismo vive limites histórico-ontológicos que é a sua crise estrutural e não conjuntural. O que coloca, em escala de importância, a práxis política e ideológica da classe acima da práxis sindical.

Vindo de uma modernização hipertardia no Brasil, a reestruturação produtiva iniciada nos anos 80, tem as seguintes determinações: 1) a crise do capitalismo industrial, que tem a dívida externa como sua maior expressão - ocorre um "choque de competitividade" nas principais indústrias do país; 2) a ascensão do "novo sindicalismo" de caráter classista e de combatividade; 3) a implantação das novas estratégias das corporações transnacionais que implicaram a adoção (restrita e seletiva) de novos padrões organizacionais-tecnológicos, inspirados no toyotismo.

As inovações tecnológicas, introduzidas pela reestruturação produtiva[14], não são percebidas pelos trabalhadores como mecanismos desenvolvidos para aumentar a exploração do trabalho e eliminar focos potenciais de resistência coletiva. E neste sentido, a lógica do processo de precarização do trabalho e exclusão social, ficam como efeito aparentemente neutro da inovação tecnológica e não como provenientes da luta de classes.

A debilitação objetiva das estratégias sindicais "obreiristas" não conseguem ir além do espaço econômico-corporativo. A nova ofensiva do capital, com sua produção destrutiva, garante "a manipulação da subjetividade afetivo-intelectual da força de trabalho" (ALVES, 2000, p. 351). Há uma crescente dificuldade em organizar a classe que está fragmentada e debilitada. E isto não só no plano objetivo-material, mas no subjetivo-ideológico.

Em última instância, a negação da exploração pressupõe a negação do "sujeito" da exploração: o capital. O que não quer dizer que o movimento de negação do capital possa ocorrer tão-somente valendo-se da luta sindical - o que seria assumir um viés "obreirista". Na verdade, a luta sindical constitui um dos elos decisivos do movimento (e da luta) de classe, capazes de instaurar, a partir da produção, uma nova sociabilidade além da do capital. (ALVES, 2000, p. 324, grifo nosso)

Então, acreditamos não só que o movimento de negação do capital não tem que ocorrer somente na luta sindical, na esfera da produção, como queremos tomar como pressuposto que o movimento anticapitalista deva ocorrer por meio de uma unificação orgânica entre as mobilizações e movimentos sociais como um todo, o que significa dizer que deve ocorrer uma imbricação entre os movimentos que se identificam como de base social definida na esfera da produção e os movimentos de base social definida na esfera da re-produção, ou mesmo a constituição de movimentos que conjuguem as duas esferas. Até mesmo porque, as mutações societais que acabamos de descrever afetam não só o mundo do trabalho, mas igualmente o mundo fora do trabalho, o conjunto da organização do modo de vida capitalista. Ora, não é possível segmentar o ser social. A subjetividade do ser social como um todo é afetada neste processo e não apenas sua parte trabalhador.

Concluímos então, que as novas territorialidades constituídas na conformação das atuais regras da acumulação do capital expressam, sobretudo, a mudança de um controle social limitado ao mundo fabril para um controle que se espalha por todas as dimensões sociais.

Repensando a re-produção das relações de produção

A problemática da moradia sempre esteve relacionada, nos textos literários e científicos, com o processo de industrialização. As grandes cidades industriais viviam o problema do "inchaço urbano" e suas "condições de vida espoliativas". A título de exemplo, autores como Evers, Mller-Platenberg e Spessast (1982;1987) e Kowarick (1979 e 2000), tratam da "industrialização periférica" na América Latina, ou ainda, da "metrópole do subdesenvolvimento industrializado" como um processo causador da "deterioração das condições reprodutivas", ou da "espoliação urbana", ou ainda, da crescente "pauperização das classes trabalhadoras" devido à diminuição do emprego, à redução do salário real e à concentração da renda, assim como à intensificação das migrações internas (campo-cidade) que produziam a "inchação" ou o "crescimento incontrolável" das grandes cidades.

A redução drástica das possibilidades de gastos estatais no campo do "bem-estar social" com o aumento da dívida externa e a expansão das ditaduras militares se somam às causas que resultaram na "pauperização da massa trabalhadora" na América Latina, ou seja, da população que não consegue "suprir as necessidades históricas de reprodução através da venda de sua força de trabalho no mercado (...) [em] dimensões jamais atingidas antes do início do processo de industrialização" (EVERS, MLLER-PLATENBERG e SPESSAST, 1987, p.7).

Neste sentido (e ampliando a referência para além dos estudiosos citados), chega-se até mesmo a interpretar que a satisfação/solução da questão da moradia está no acesso aos bens de consumo que "qualificam os sujeitos da ação social" (RUSCHEINSKY, 1999, p.164). A aquisição da casa própria, o planejamento e/ou políticas públicas estatais seriam a redenção da questão. Todavia, há algumas observações a serem feitas sobre tais análises.

Um primeiro aspecto é que a problemática da moradia não se reduz às grandes cidades industrializadas. Há muito, as favelas, os cortiços e os moradores de rua são também uma realidade nas cidades médias não industrializadas. O que denota a complexidade e amplitude da lógica de valorização do capital e gestão capitalista do espaço.

Mas o aspecto fundamental a ser destacado, é que ao objetivarmos realizar uma ponte que evidencie a imbricação da questão da moradia com o mundo do trabalho, nosso viés não é necessariamente o processo de industrialização ou mesmo a consolidação de um complexo industrial no país. Ou seja, não se trata de compreender o processo de industrialização e a questão da moradia como causa-efeito. Nossos pressupostos são as transformações societais atuais e suas conseqüências para o mundo do trabalho, ou ainda, as transformações no mundo do trabalho e suas repercussões para as relações sociais como um todo e que, logicamente, inclui os aspectos da re-produção da força de trabalho e como parte disto, a questão da moradia.

Na verdade, interessa-nos mais refletir sobre a questão da moradia no contexto da dominação do trabalho pelo capital, como relação básica para a extração da mais-valia que, senão assim, não poderia ser extraída e teria como conseqüência máxima, o desaparecimento da acumulação (HARVEY, 1982).

Ao discutir a dominação do trabalho pelo capital, os processos de alienação e estranhamento podem ser desnudados e nos darem as bases para compreendermos a fragmentação da práxis social: é a consideração destes aspectos o diferencial em comparação às análises "tradicionais"[15]. Neste sentido, as seguintes perguntas são colocadas em pauta: de que maneira os problemas e as lutas urbanas, elementos pertencentes à esfera da re-produção, estão imbricadas com a dominação do trabalho pelo capital, isto é, com as questões diretamente ligadas à produção?  Ou por que as lutas travadas no espaço urbano devem ser vistas por dentro desta relação e não como lutas independentes?

O primeiro ponto a ser considerado é que a moradia é um dos elementos necessários à re-produção da força de trabalho, mas o capitalista transpõe isto ao trabalhador deixando de se responsabilizar pelo provimento da habitação.

Por meio do trabalho não pago, o capitalista deixa de responsabilizar-se pela moradia e com isto amplia sua extração de mais-valia sobrecarregando o trabalhador. Quando ocorre a autoconstrução, por exemplo, há um alongamento da jornada de trabalho que irá repercutir na acumulação do capital, uma vez que permite o pagamento de salários mais baixos. Trata-se, então, de voltar concomitantemente a atenção para a dominação do trabalho pelo capital, relação básica para a extração da mais-valia, como apontamos acima.  Ou seja, vemos que, de fato, a moradia é um elemento fundamental para a re-produção do capital, mas compreendê-la requer que se considere e entenda todo o ciclo do capital: produção e re-produção.

O segundo ponto, que na verdade se intersecciona com o primeiro e nos ajuda a explicá-lo melhor, é a separação entre o "caracol e sua concha" - a despossessão do trabalhador assalariado das condições de vida, a separação e alienação dos meios de produção de que trata Marx em A ideologia alemã,que vigem desde os primórdios do capitalismo. A dicotomia da separação entre o local de trabalho e o local de re-produção e consumo (efetivada pelo capitalismo industrial através da reorganização do trabalho e do advento do sistema fabril que força esta separação) oculta a fonte do verdadeiro conflito (capital x trabalho), amenizando as contradições sociais por meio da fetichização que transporta o conflito para a esfera do mercado. Na verdade, tal separação tem seus primórdios quando da instauração do trabalho assalariado pelo capital e da promoção da despossessão do trabalhador assalariado das condições de vida, isto é, de seus meios de produção.

Para Harvey (1982, p. 8), que considera a dicotomia entre o viver e o trabalhar "uma divisão artificial imposta pelo sistema capitalista (...) a separação dos locais de trabalhar e de viver significa que a luta do trabalhador para controlar as condições de sua própria existência divide-se em duas lutas independentes."Acrescentamos que, com isto, o mercado (a esfera da re-produção/consumo) ao ganhar a dimensão de esfera analítica independente, dissimula a verdadeira fonte de tensão: o conflito capital x trabalho. Desta "leitura", desdobram múltiplas análises como as que vêem na falta de acesso de grande parte dos trabalhadores à moradia e ao próprio direito à cidade, um problema que se restringe meramente à incapacidade potencial de renda para tanto.

Também tem a mesma origem, a crença de que a solução para o déficit habitacional (sem contar que em si tal noção é uma falácia, pois o problema da moradia não está no desequilíbrio entre oferta e demanda) é solucionada através da produção capitalista de unidades habitacionais, ou ainda, a crença nas promessas do urbanismo moderno que não deixa de ter como objetivo a maximização do lucro, a valorização capitalista do espaço urbano, e que, conseqüentemente, intensifica a exclusão social. Para Lefebvre (1999), pensar uma solução para a problemática urbana não é pensar "um crescimento organizado (planejado) das forças produtivas!".

Em outra tendência analítica freqüente, costuma-se abordar a problemática da moradia descrevendo-se todo o quadro de precariedade e exclusão "dos benefícios do desenvolvimento urbano" como extorsões dos elementos socialmente necessários para a re-produção dos trabalhadores que aguçam a situação de exploração do trabalho ou mesmo do desemprego. Tem atenção especial neste tipo de análise a "mediatização" do Estado[16], que cumpre o papel de regular os padrões de re-produção urbana, melhorando-os ou piorando-os de acordo com o que os moradores consigam obter do poder público. Esses processos irão variar de acordo com a conjuntura política e "podem ou não estar associados às conquistas que o movimento operário ou sindical obtenha na esfera das relações de trabalho" (KOWARICK, 2000, p. 23).

Reconhece-se que a espoliação urbana é decorrente do processo de acumulação do capital, todavia a questão fundamental é restringida à "conquista dos elementos básicos para a sobrevivência nas cidades", ou melhor, à capacidade de negociação "dos vários grupos e camadas sociais" junto ao Estado, na conquista destes. O campo de conflito permanece sendo unilateralmente a esfera da re-produção/consumo, apesar de reconhecida a íntima ligação com a acumulação do capital, tanto que, para esta abordagem, tal processo pode ou não estar associado às conquistas do mundo do trabalho, já que o capital não está identificado como um dos "adversários"reais nesta dinâmica. E isto revela outra dicotomia das lutas, ao menos das que estamos estudando, no caso, lutas pela moradia e sindical: o Estado tem sido sempre tomado como o adversário do movimento popular pela moradia, enquanto o capital o adversário do movimento sindical. Esta perspectiva acaba por desconsiderar que o sistema de metabolismo do capital subordina todas as relações sociais, inclusive as de re-produção. E, levando às últimas conseqüências, esta perspectiva pode neutralizar Estado e capital como se não se compusessem na representação de uma determinada classe social e como se ambos não reagissem sobre os diferentes momentos sociais (produção e re-produção).

O tratamento unilateral da questão da moradia como questão restrita à re-produção, faz com que os elementos da esfera das relações de trabalho fiquem de fora da relação de luta direta: ainda que os trabalhadores assalariados, autônomos ou informais, ou desempregados sejam também, ao mesmo tempo, os moradores precarizados, no campo da luta estes sujeitos não se cruzam mesmo que o foco de análise seja as Vilas Operárias[17]. Ou seja, a questão da moradia é entendida no âmbito dos bens de consumo urbano.

E ainda se faz necessário enfatizar que a intervenção do Estado está direcionada para a maximização da realização do capital em escala ampliada, gerando prejuízo aos trabalhadores. Caso contrário, na maior parte das vezes, se aposta na confusa questão da cidadania, que sem os devidos cuidados, pode torna-se, na verdade, um culto à chamada sociedade democrática (ANTUNES: 2000): um verdadeiro "pisar em falso" na questão.

A nossa proposta é, então, ultrapassar a unilateralidade da esfera da re-produção enquanto dimensão analítica da questão da moradia. Mas ao mesmo tempo em que queremos trazer para a discussão elementos da esfera da produção, trabalhando a necessidade de se pensar a imbricação desses dois momentos sociais, também queremos fazer alguns apontamentos que nos propiciem revalorizar/repensar a esfera da re-produção onde os processos são muito mais que mera repetição da esfera da produção. É neste sentido que direcionamos o item a seguir.

A questão da moradia e a re-produção das relações de produção

Lefebvre (1973) problematiza o conceito (e realidade, como ele mesmo adverte) de re-produção das relações sociais de produção. Segundo o autor, um duplo terrorismo perturbou a elaboração e dialetizaçãodo conceito, a saber: o terrorismo da direita estrutural-funcionalista e o esquerdismo anarquisante. Daí já extraímos a primeira indicação do porque este conceito foi simplificado e utilizado equivocadamente nas análises.

Henri Lefebvre (1973, p. 6) expõe que "se o conceito de "re-produção das relações de produção" for verdadeiramente um conceito (e, como conceito, tiver a sua verdade), então, não nos dará apenas um fio condutor, um instrumento intelectual para descrição e análise crítica do "real" ", mas também um alcance global e sintético (que não se trata das sínteses clássicas). Não designa nem uma metáfora, nem uma determinação. Designa sim, "um processo complexo que arrasta consigo contradições e não só as repete, as re-duplica, mas também as desloca, as modifica, as amplifica" (1973, p. 6).

Um aspecto fundamental desta discussão para Lefebvre (1973), e o que aqui queremos enfatizar, é que se trata não da re-produção dos meios de produção[18], mas da re-produção das relações sociais de produção[19], ou, ainda como explica o autor, se trata, noutros termos, da "capacidade do capitalismo para se manter passados os seus momentos críticos" (p.79).

É com tais pressupostos que entendemos a nova ofensiva do capital, a sua reorganização pós-auge dos movimentos sociais, pós-crise/momento crítico; uma ofensiva para recuperar sua hegemonia ou controlar as lutas sociais, tal como tratado no capítulo dois. Ou seja, esta nova ofensiva é justamente a reorganização do capitalismo para se manter depois de um momento crítico.

Como apontou Lefebvre, as relações sociais capitalistas se reproduzem não em um processo de pura repetição, re-duplicação, mas sob novas bases. Daí a vida urbana também se modifica. A cooptação da subjetividade é talvez, o elemento principal do que é este novo. Já vimos que o mundo do trabalho introduz sua lógica na esfera da vida, do cotidiano. Da mesma maneira ou, na verdade, talvez como nunca, a esfera da re-produção (que não é apenas repetição da esfera da produção, e tem potencialidade transformadora), também influencia no mundo do trabalho, modificando-o, transformando-o.

Então, ao "olharmos" para a questão da moradia não podemos pensá-la como a expressão do problema da re-produção da força de trabalho, apenas. Não pode ser uma análise unilateral da esfera da re-produção dos meios de produção, ou melhor, não pode ser uma descrição demográfica, ou da produção material, ou do consumo somente (como nas análises tradicionais).

As experiências do espaço da vida cotidiana e suas expressões no mundo do trabalho

Com a reestruturação produtiva, é a subjetividade do trabalhador que deve ser organizada e dominada. Com este objetivo, o capital hoje utiliza a estratégia de trazer aspectos, experiências do cotidiano para as relações de trabalho e, desta maneira, a apreensão da subjetividade do trabalhador se amplia. Abaixo listamos alguns destes exemplos em que o capital utiliza, em seu projeto (porque na verdade, o objetivo é garantir a produtividade e a competitividade capitalista), as virtudes de comprometimento, confiança, solidariedade, cooperação, criatividade e ajuda mútua, constituídas e vivenciadas no cotidiano, para a subsunção da subjetividade do trabalhador à sua lógica:

-   As redes de cooperação política onde os novos produtores devem ser capazes de comunicar e de intervir no trabalho de equipe;

-   Os modelos "participativos" de gestão da produção implantados com os CCQs (Círculos de Controle de Qualidade);

-   A participação nos lucros e resultados (PLR) das empresas[20];

-    A "cultura de empresa", ou seja, a forma como o trabalhador se sente responsável direto pelo desenvolvimento da empresa.

-    A educação, a saúde e o lazer, também são aspectos da esfera da vida/re-produção que o capital se empenha em apropriar em beneficio da sua acumulação:

-   No campo da educação: os cursos de formação continuada de capacitação, qualificação e requalificação para o mercado de trabalho; a apropriação do conhecimento técnico-científico através das parcerias entre as empresas, os órgãos de pesquisa e fomento e as universidades - empresas junior, fundações, etc.;

-   Na saúde: a aplicação da ergonomia, pois a organização do trabalho deve ser a mais metódica possível a fim de que a relação entre homem e máquina seja perfeitamente regrada para que se possa aproveitar ao máximo o tempo de trabalho;

-   No lazer: os produtos e as mercadorias culturais - indústria musical, de cinema, de jogos; o lazer (consumo) padronizado dos shopping centers; os dias em que as empresas "abrem as portas" para os trabalhadores junto à família poderem desfrutar de diversões no espaço da fábrica e até participarem de sorteios dos bens que eles mesmos produzem (carros, geladeiras, etc.).

A seguir, apresentamos algumas experiências concretas que têm características completamente contrárias às anteriores. São experiências em que algumas dimensões da esfera da re-produção são capazes de incutir certas mudanças na produção, mas uma produção que se diz alternativa, ou seja, são dimensões da esfera da re-produção que, de certa maneira, transformam a esfera da produção. Experiências que nos estimula a refletir sobre a potencialidade transformadora da esfera da re-produção. Este exercício nos permite pensar se há ou não novas perspectivas que anunciam uma outra práxis social que não a fragmentada e fetichizada que vimos conferindo nos casos dos Sindicatos dos Trabalhadores e das Associações de Moradores de Presidente Prudente.

São exemplos de experiências que, em geral, se auto-declaram, como construtoras de um projeto alternativo, mas que, na verdade, variam, por exemplo, em relação à opção de incluírem-se ou não na economia de mercado, na dependência ou independência institucional, na articulação ou não com outras entidades, etc., ou seja, no projeto e rumo político tomado.

Vamos aos exemplos:

·                    Assentamento Anita Garibaldi/Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)[21]: o Movimento associa a luta pelo trabalho com a luta pela moradia como instrumento de formação política. Busca ter uma prática política independente da via institucional, partidária e governamental e defende a ruptura com o atual sistema. A tática utilizada é a ocupação (acampamento). O Assentamento Anita Garibaldi (organizado em maio/2001, localizado em Guarulhos/SP, com 2000 famílias) é uma das experiências deste Movimento no país. Possui uma proposta diferente  de organização do assentamento, o Rururbano[22], que é uma saída criada para a subsistência imediata das famílias; a idéia rompe com os limites impostos pela divisão administrativa de centro-periferia, ultrapassa a separação cidade-campo. Trabalham com as famílias em núcleos que têm como objetivo a criação de uma cooperativa mista que atenda desde a produção à prestação de serviços, sem ser uma política inclusiva: não é do tipo de incubadora do tipo da economia solidária, desta do Paul Singer, uma vez que nós somos pela ruptura (...). Isso tudo...visa a sobrevivência, mais ou menos racionalizada (defende uma liderança em entrevista à revista Crítica marxista, n.14, p. 146). A comunidade é organizada através de uma certa ruptura com a forma de política representativa e possui um projeto de urbanização do assentamento inovador.

·                    Conjunto Palmeiras/Banco Palmas: Com 30 mil moradores, o Conjunto Palmeiras, uma favela localizada na periferia de Fortaleza/Ceará, é resultado de uma ocupação de terras. A comunidade morava, inicialmente, na beira-mar, mas teve de abandonar a região por causa da expansão imobiliária. Quando chegaram, o local era um grande pântano. Ao longo dos anos, em regime de mutirão, foram construindo o bairro. O Banco de Palmas, criado em 1998, é uma experiência desenvolvida pela Associação de Moradores com o objetivo de garantir micro-créditos para a produção e o consumo locais, a juros baixos, sem exigência de consultas cadastrais, comprovação de renda ou fiador. O banco oferece quatro modalidades de crédito: para a profissão (voltado para pequenos negócios), para o consumo (financiamento para compra), o Palma Casa (para pequenas reformas em moradias) e o crédito para mulheres em situação de risco (é a Incubadora Feminina, um projeto de segurança alimentar com o objetivo de inserir socialmente mulheres em situação de risco pessoal e social). O Banco Palmas utiliza um cartão de crédito próprio, aceito exclusivamente pelo comércio local; criou empresas como a Palma Fashion (comércio de vestuário) e a Palmalimp (de material de limpeza), e a Palmart (confecção de artesanato); e criou também a Escola de Socioeconomia Solidária (PalmaTech), cujo objetivo central é oferecer capacitação gerencial e profissional, na perspectiva da Socioeconomia Solidária, desenvolver formas de sensibilização para a cultura da solidariedade e difundir a metodologia e os produtos criados pelo Banco em sua estratégia de combate à pobreza com o desenvolvimento local. Existe ainda um Laboratório de Agricultura Urbana.O Conjunto também possui uma moeda própria (que não é indexada a nenhuma outra, o que define o valor do Palmares, como é chamada, é a hora trabalhada e os insumos para fabricação de determinada mercadoria), que é empregada nas reuniões quinzenais do Clube de Trocas Solidárias[23].

·                     Federación Uruguaya de Cooperativas de Vivienda por Ayuda Mutua - FUCVAM: a Federação é constituída por mais de 300 cooperativas de base, em distintas etapas de desenvolvimento, com presença em praticamente todas as cidades do país. Em finais de janeiro de 1998, estavam integradas à FUCVAM aproximadamente 16.000 famílias de salários considerados baixos e médios para o padrão do país (entre 400 e 900 dólares mensais), representativas de um amplo segmento de trabalhadores das mais diversas origens. A princípio as cooperativas estavam constituídas majoritariamente por setores operários industriais, trabalhadores do setor de serviços e empregados públicos com alto índice de sindicalização. Mas cada vez mais surgem cooperativas integradas majoritariamente por trabalhadores do chamado setor informal da economia. A FUCVAM tem três áreas de ação: No plano gremial, atua no sentido de solucionar o problema habitacional dos trabalhadores a partir de uma perspectiva integral, não se limitando à produção de moradias, mas dando lugar à elaboração de propostas e mobilização em torno das reivindicações gremiais (acesso à terra, canais de financiamento, condições de amortização) e sempre na perspectiva de pensar a solução da moradia no contexto de reivindicações por uma superior qualidade de vida dos trabalhadores em geral (daí sua unidade e ação coletiva junto à outras forças sociais). No plano social, o aspecto básico das cooperativas agrupadas é a participação das famílias na solução coletiva da problemática habitacional (trabalho solidário na construção das moradias, administração autogestionária das obras e convivência mediante programas de desenvolvimento social e comunitário dos complexos habitacionais). No plano educativo desenvolve programas orientados pela metodologia da Educação Popular. A propriedade da moradia é coletiva, ou seja, o sócio da cooperativa é um usuário, o que garante a concepção da moradia como um bem social e não como mercadoria [24].

As três experiências que relatamos associam, cada uma a sua maneira, moradia e trabalho. São experiências, que de certa forma, tentam reivindicar mais que a casa em si ou a simples regularização da terra urbana que ocuparam. Têm a compreensão de que não é possível ignorar a questão do desemprego e que, portanto, é preciso incorporar em suas organizações a garantia da subsistência através do trabalho. No caso do MTST e da FUCVAM, fazem da proposta de produção uma via para a formação política, de conscientização da necessidade de se ampliar o conjunto das condições de existência dos trabalhadores. Já a experiência do Conjunto Palmeira é um projeto que reproduz os esquemas do mercado ainda que busquem fortalecer a solidariedade dentro da comunidade.

Além destas, poderíamos citar ainda experiências como a dos trabalhadores argentinos que unificaram vários setores em sua luta, inclusive desempregados, e trouxeram a luta da fábrica para o bairro[25]; a Universidade Popular coordenada pelas Mães da Praça de Maio[26]; a Farmácia Viva e a luta contra os transgênicos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra[27]; as chamadas redes de consumidores responsáveis, onde a produção está determinada/condicionada pelos consumidores, isto é, consumidores e produtores estão integrados, através da produção e consumo solidários[28]; os projetos editoriais alternativos como o proyecto editorial Traficantes de Sueños de Madri/Espanha que realizam a edição e distribuição de materiais por meios próprios e com o objetivo maior de difundir experiência e conhecimentos que estejam firmados em um pensamento crítico diante das concepções dominantes, o "pensamento único"[29]; as emissoras de rádios livres, comunitárias e culturais[30]; as ocupações de fábricas que passam a ficar sob o controle dos trabalhadores como alternativa ao fechamento das empresas e garantia do emprego na Argentina[31]; etc.

Poderíamos ainda estar citando mais um sem número de diferentes experiências. Mas nos interessa mais ressaltar que estas experiências, em geral, transformam dimensões constituídas no cotidiano, na esfera da re-produção, como a cultura e o lazer (os projetos editorias, as rádios livres), a educação (Universidade Popular das Mães da Praça de Maio), a solidariedade (cooperativas mistas de produção e serviços, economias populares e/ou solidárias), a saúde (ervas medicinais, luta contra os transgênicos) para aplicá-las à produção. E aí, os resultados são diversos. Vimos que há desde experiências que têm como princípio ser anti-capitalista, em detrimento das experiências que são reformistas. A experiência do Assentamento Anita Garibaldi, a luta contra os transgênicos do MST, que se a princípio pode ser definida como uma luta ética, este movimento respalda tal reivindicação com a luta contra o capitalismo, por exemplo, estão mais próximas de serem efetivamente contra-hegemônicas, de terem princípios não-capitalistas, do que as experiências de Economia Solidária ou de constituição de um Banco local.

Essas experiências, umas mais outras menos, tendem a constituir-se a partir de novos referenciais. As experiências do Assentamento Anita Garibaldi do MTST, do Conjunto Palmeira e da FUCVAM partem da questão da moradia e, a partir dela, tentam dar um passo além da predominância do imediato como objetivo de suas organizações.

Considerações finais

A prática dos sindicatos dos trabalhadores e das associações de moradores de Presidente Prudente nos demonstrou que ambas as entidades têm uma práxis fragmentada e que nem uma e nem outra isoladas, separadas são capazes de levar em frente uma luta que aponte para a emancipação. E não só pelas dificuldades e limitações destas entidades em particular. Falar de uma luta contra-hegemônica, não é falar apenas da contestação e reapropriação do poder da classe dominante sobre as forças produtivas, como fez o movimento operário, mas é falar do poder sobre o conjunto das condições sociais de existência.

Os pressupostos economicistas que restringiram a luta do proletariado à apenas melhores condições de exploração de sua força de trabalho precisam ser superados por uma luta contra o conjunto da dominação capitalista, que se dá tanto dentro como fora do trabalho. Trata-se da superação do modo de vida capitalista e construção de um modo de vida autêntico (BIHR, 1998). E isto não pode ser alcançado por uma práxis social regida por uma separação rígida entre mundo do trabalho e da produção e mundo fora do trabalho, ou mundo da re-produção.

Neste sentido, se um dos grandes desafios dos trabalhadores hoje é articular as lutas "fora" do mundo do trabalho com as lutas "dentro" do trabalho, como vimos argumentando, somente esta articulação não garante uma luta para além do capital[32]. Ou seja, é necessário articular as lutas visando a superação do capital.

Se esses são os grandes desafios dos trabalhadores hoje, debruçar sobre a questão da moradia, tanto no que respeita às abordagens teóricas, quanto à pratica de luta, exige, necessariamente, pensá-las para além de quatro paredes. Nossa tentativa foi realizar este exercício. Isto é, tomar como ponto de partida, como foco central a questão da moradia, entendida a partir da Geografia do Trabalho, dos arcabouços teóricos que nos permitissem ampliar o entendimento da nossa temática, compreendendo-a atravessada pelo mundo do trabalho, mas, da mesma maneira, um mundo do trabalho situado para além do chão da fábrica.

E então, pensar o para além de quatro paredes e o para além do chão da fábrica fundamentado no para além do capital.
 

Notas

[1] Este texto é uma versão resumida da dissertação de Mestrado intitulada "A questão da moradia para além de quatro paredes: uma reflexão sobre a fragmentação dos momentos sociais da produção e da re-produção em Presidente Prudente/SP", desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia UNESP/Presidente Prudente, sob a orientação do Professor Antonio Thomaz Júnior, e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP.

 
[2] Este texto é uma versão resumida da dissertação de Mestrado intitulada "A questão da moradia para além de quatro paredes: uma reflexão sobre a fragmentação dos momentos sociais da produção e da re-produção em Presidente Prudente/SP", desenvolvida junto ao Programa de Pós-graduação em Geografia da Faculdade de Ciências e Tecnologia UNESP/Presidente Prudente, sob a orientação do Professor Antonio Thomaz Júnior, e financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP.
 
[3] Cf. KOSIK, 1976.
 
[4] Sobre estes conceitos em Marx ver: RANIERI, 1991.
 
[5] Para maiores detalhes cf.: Ikuta, 2003, onde estes dados são apresentados em quadros e mapas (capítulo 1 da nossa dissertação de mestrado).
 
[6] Não acreditamos ser a simples inclusão dos trabalhadores (versus a atual exclusão) no sistema, no mercado capitalista a solução para a subsunção, numa postura de crença no Estado. Se adotamos aqui o uso das noções inclusão/exclusão social, é porque fazemos referência às noções e sistematizações do SIMESPP na elaboração do mapeamento em questão.
 
[7] Neste sentido, se de um lado, hoje não há em Presidente Prudente movimentos sociais de luta pela moradia para enunciar suas reivindicações, do outro, existem as associações de moradores - conhecidas também como associações de bairro (e há uma ausência muito significativa de estudos sobre elas).
 
[8] No texto original da dissertação de mestrado (Ikuta, 2003), apresentamos um mapa que cruza a localização das associações de moradores com os setores de exclusão/inclusão social de Presidente Prudente (o mapa da exclusão/inclusão social tem como referência o trabalho do SIMESPP/FCT-UNESP/PMPP, 2000).
 
[9] Desde a década de 60, iniciou-se em Presidente Prudente um processo de ocupação de áreas públicas. Em 1988 eram 66 áreas de favelas, com 736 unidades habitacionais, correspondentes a um total de 3.353 habitantes. Entre 1989 1992, vivenciou-se o auge de um processo conflituoso entre o poder público municipal e o então Movimento de luta pela Moradia. A intervenção pública, mediada pela confrontação com o Movimento, significou a intensificação ou no máximo a manutenção das precariedades nas condições de existência dessas famílias.
 
[10] Para uma abordagem teórica sobre a fragmentação territorial dos sindicatos cf. Thomaz Júnior (1998).
 
[11] ARAUJO, A. (2002) organiza toda uma obra a respeito do corporativismo.
 
[12] Para uma leitura aprofundada sobre a necessidade do controle social, ver: MÉSZÁROS (1987).
 
[13] Para mais detalhes sobre as implicações objetivas e subjetivas para os trabalhadores da resposta do capital à sua crise e a recuperação de sua hegemonia, ver Ikuta, 2003 (principalmente sub-item 1.2.2 do capítulo 1 e as reflexões do capítulo 2).
 
[14] Tentativa de superação da crise estrutural do capital através do aumento da composição orgânica do capital, e conseqüente aumento da taxa de mais-valia.
 
[15] Denominamos aqui de análises tradicionais as que sempre trataram a questão da moradia consagrando a fragmentação dos momentos sociais da produção e da re-produção, e que portanto, não colocam em pauta a dominação do trabalho pelo capital como aspecto fundamental para entender a dialética do processo social, ou seja, a sua totalidade.
 
[16] Sobre o papel do Estado, ver AMMANN (1991).
 
[17] Todavia, para BLAY (1985), as vilas operárias são um importante elemento mediador entre a venda da força de trabalho e o preço pago por esta força e como tal, um caminho para entender a complexidade do papel da casa nas relações de produção.
 
[18] Os meios de produção, representados pelas forças produtivas, são os próprios trabalhadores e os seus instrumentos de trabalho (LEFEBVRE, 1973, p. 49).
 
[19] Segundo BOTTOMORE (1988, p. 157), "As relações de produção são constituídas pela propriedade econômica das forças produtivas. No capitalismo, a mais fundamental dessas relações é a propriedade que a burguesia tem dos meios de produção, ao passo que o proletariado possui apenas a sua força de trabalho. A propriedade econômica é diferente da propriedade jurídica, pois está referida ao controle das forças produtivas."
 
[20] Medida regulamentada no Brasil em dezembro de 1994, pela edição da Medida Provisória 794/94, a partir da qual a organização sindical e as relações trabalhistas sofreram mudanças em suas características. A maioria dos acordos está vinculada ao cumprimento de metas.
 
[21] Para mais detalhes cf. O assentamento Anita Garibaldi. Crítica marxista. São Paulo: Boitempo, n. 14. p. 134 - 149. Entrevista; e <www.mtst.org>
 
[22] O assentamento rururbano é uma proposta de organização do território com o objetivo de formar uma comunidade de resistência e de luta com uma nova forma de convivência social no urbano. Tem como características: 1) Assentamentos localizados entre o perímetro urbano e o rural de maneira que não se fixem tão distantes dos centros urbanos para não perder acesso à infra-estrutura da cidade; 2) Organização em núcleos dos trabalhadores, distribuídos por setores de trabalho (educação, saúde, cultura, etc.); 3) Espaço para produção agrícola de subsistência e de hortas medicinais com o propósito de gerar trabalho; 4) Área livre para uso social com barracões coletivos (farmácia, escola, secretaria, galpão para atividades culturais, etc.). (Cf. <www.mtst.org>)
 
[23] Mais detalhes ver: O desafio de transformar o inabitável. Revista Sebrae. Disponível em: <http://200.252.248.103/sites/revistassebrae/07/temadecapa_05.htm> Acesso em: 20/06/2003; Socioeconomia solidária: transformando as relações de produção e consumo. La insignia. Disponível em: <www.lainsignia.org/2002/mayo/econ_060.htm> Acesso em: 20/06/2003; MELO, J. O banco de palmas. Disponível em: <www.flem.org.br/cadernosflem/Artigos/Cadernos5/Cadernos5-BancoPalmas.pdf> Acesso em: 20/06/2003.
 
[24]Cf. <www.chasque.net/fucvam/fucvam1.htm> e Chavez (1990).
 
[25] Comentamos sobre esta experiência no final do capítulo dois. Cf. CECEÑA apud GONÇALVES (2002).
 
[26] Ver: <www.madres.org>
 
[27] Sobre a Farmácia Viva, experiência de produção de remédios fitoterápicos das mulheres assentadas em Itapeva/SP Cf. LERRER In: <www.pt.org.br/san/farmaciavivamst.doc> e sobre os transgênicos, ver: PINHEIRO (1999) e GORGEN (2000).
 
[28] Ver, por exemplo: MANCE (1998 e 2000).
 
[29] Ver: <www.altediciones.com/b.htm>.
 
[30] Para experiências como esta na Espanha ver <www.geocities.com/CapitolHill/2838/contacto.html>.
 
[31] Ver: <www.erqi.hpg.ig.com.br/jornal/17/controlobrero.htm>; <www.erqi.hpg.ig.com.br/jornal/17/petras.htm>
 [32] Sobre o significado de para além do capital cf.: MÉSZÁROS, 2002, p. 1064 - 1066.

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Ficha bibliográfica:

IKUTA, F.; JUNIOR, A. A questão da moradia para além da re-produção social. Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2005, vol. IX, núm. 194 (99). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-194-99.htm> [ISSN: 1138-9788]
 


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