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Geo Crítica
Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. IX, núm. 202, 1 de diciembre de 2005

APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO PÚBLICO PELO COMÉRCIO AMBULANTE: FORTALEZA-CEARÁ-BRASIL EM EVIDÊNCIA (1975 A 1995)

Eustógio Wanderley Correia Dantas
Departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará-Brasil
edantas@ufc.br

Recibido: 21 de abril de 2005. Devuelto para revisión: 21 de julio de 2005. Aceptado: 10 de cotubre de 2005.

Resumo

Fundado no entendimento da relação cidade-urbano e Estado-espaço, o presente trabalho empreende análise do processo de ocupação do Centro de Fortaleza-Ceará-Brasil pelo comércio ambulante, no período de 1975 a 1995. Abarcando escala espaço-temporal acima, vislumbra-se a ação do Estado no disciplinamento e controle da apropriação privada do espaço público pelo comércio ambulante, consoante políticas de modernização e de revitalização da zona central pela municipalidade.

Palavras chaves: comércio ambulante, modernização, revitalização, zona central.

Abstract

Based on the comprehension of the relationship between city-urban and State-space, the present paper analysis the process of occupation of Fortaleza City (Capital of Ceará, Northeastern Brazil) down-town by  informal commerce between the years of 1975/1995. Working with this temporal-spatial scale, we discuss the action of the State in the organization and control of private appropriation of public space by informal workers, following political interventions of modernization and requalification of the this urban historical central area by municipal government.

 Key words:  informal commerce, modernization, requalification.

Resumen

Establecido en la comprensíon de la relación ciudad-urbano y el Estado-espacio, el actual trabajo emprende el análisis del proceso de la ocupación del centro de la cuidade de Fortaleza, provincia de Ceará-Brasil por el comercio callejero, en el período entre 1975 y 1995.  En esa escala espaciotemporal se ha vislumbrado la acción del Estado en el disciplinamento y control de la apropiación privada del espacio público para el comercio callejero, de acuerdo con políticas de la modernización y de la revitalização de la zona central por la munipalidad.

Palabras clave: comercio callejero, modernización, revitalización, centro.

Considerações Iniciais

A presença do comércio ambulante está ligada à vida das cidades. Trabalhos de pintores e literatas fazem menção a seu delineamento nas ruas, calçadas e praças de todas as cidades do mundo e, no caso em evidência, no Brasil.

Em seus quadros Debret documenta a venda feita pelos escravos de porta em porta das casas do Rio de Janeiro no século XIX, portando aves, leite, frutas, carne defumada, pão-de-ló, lingüiça, sonhos, café torrado, refrescos, cadeiras, cestos e ainda prestando serviços de barbeador e carregador.

Aluísio de Azevedo, em trecho do O Cortiço, descreve ocupação promovida nesta cidade em 1890.

"... um vai e vem de mercadores. Apareceram os tabuleiros de carne fresca e outros de tripas e fatos de boi. Vieram os ruidosos mascates com suas latas de quinquilharias, caixas  de candeeiros... seu fornecimento  de caçarolas e chocolateiras de folhas de flandres. Cada vendedor tinha seu modo especial de apregoar (suas mercadorias)" (Azevedo, 1973).

Ao considerar trabalho de Adolfo Caminha e de João Nogueira, o quadro evidenciado em Fortaleza não é diferente.

Em trecho do romance A Normalista, Adolfo Caminha descreve o comércio ambulante nas ruas de Fortaleza em torno de 1870.

"Lá fora recomeçava a labuta cotidiana, a creada puxava água de cacimba, o cargueiro d'água potável enchia os potes, cegos cantavam na rua uma lenga-lenga massante, pedindo esmola numa voz chorada, vendedores ambulantes ofereciam cajus ... havia um ruído de cidade grande que desperta" (CAMINHA, 1973).

Em suas crônicas, João Nogueira (1980) relata existência deste comércio no século XIX: a) negras de tabuleiro comercializando na Feira Velha (Largo da Carolina) após remanejamento do mercado público em virtude de solicitação dos inquilinos do citado mercado à Câmara Municipal em 20 de Junho de 1848 e que afirma estarem sendo prejudicados pela concorrência com esse “comércio ilegal”; b) comerciante ambulante estabelecido na rua do Rosário, caminho obrigatório da Feira Nova (Praça do Ferreira) à Feira Velha, em "uma casinha de madeira sobre rodas, na qual vendia toda sorte de quinquilharias".

As negras com seus tabuleiros, o comerciante ambulante com sua casinha de madeira e os vendedores de caju, com os frutos suspensos sobre os ombros a percorrer as ruas da cidade, lembram os equipamentos e características de parcela do comércio ambulante hodierno. Sua presença no mercado público, na Feira Velha e nas ruas do Centro, representam, também, tipo de uso específico presente na cidade e cuja materialização dá-se na paisagem urbana, aproveitando e gerando formas e fluxos  de consumidores que provocam conflitos em relação a outros usos, notadamente o característico dos comerciantes estabelecidos.

Através destes breves relatos tem-se o registro da presença do comércio ambulante em Fortaleza, fazendo parte e construindo o drama cotidiano desta cidade com suas cores, cheiros e sons característicos. Guardando as semelhanças notadas, convém ressaltar que esta atividade passa por modificações quantitativas (aumento do número de envolvidos e da área ocupada) articuladas a modificações qualitativas que levaram à alteração de seu atributo de ilegalidade e mobilidade - percebidas nos anos 1930 e cujo ápice dar-se-á no pós 1970.

Sobre o Comércio Ambulante

Embora a temática relativa à ocupação da cidade pelo comércio ambulante seja tratada por diversos pesquisadores, promove-se um "mergulho de fôlego" em algumas contribuições pautadas na dimensão espacial. As contribuições de Souza (1984), Barros (1987) e Costa (1989), ao tratarem do comércio ambulante em Recife, Campina Grande e São Paulo, respectivamente, servirão a esse propósito. Ademais é relevante o trabalho de Santos (1979), quando, ao tratar do comércio ambulante, enfatiza a necessidade de consideração das características do processo de modernização dos países subdesenvolvidos e principalmente do tratamento da cidade como condição para compreender, também, a reprodução da atividade considerada.

O indicativo de Santos que será acrescido aos estudos de caso acima citados, serão confrontados com as características que o comércio ambulante vai adquirindo no Centro da Cidade de Fortaleza. Este contraponto poderá levar ao entendimento do processo de constituição do comércio ambulante no Centro, podendo chegar a transpor os limites de um estudo de caso e servir, também, para a reflexão em torno da realidade que é vivenciada em outras cidades do Brasil e que começa a pontuar ainda que timidamente noutros paises.

A reflexão em torno das razões e papel do comércio ambulante, iniciar-se-á com o resgate do trabalho de Braudel (1985), quando analisa a venda  ambulante na Europa dos séculos XIV ao século XVIII. Obra primordial e rica em detalhes capazes de fazer com que o leitor se insurja às tentativas de considerar o comércio ambulante como sobrevivência da atividade relacionada ao mercador medieval e a visões niilistas que consideram a atividade do comércio ambulante fadada ao fim.

No que se refere à tentativa de comparação entre o comércio ambulante e o mercador medieval, convém lembrar que o desenvolvimento da atividade dos mercadores da sociedade medieval, embora exercendo uma venda marcadamente ambulante na época, significou conforme o autor comentado, um "alargamento pioneiro, conquista de um mercado". Portanto, pode-se afirmar que em seu cerne estava posto o gérmen do devir da história da humanidade, consubstanciado num processo que culminaria na transformação da sociedade feudal e sua estrutura. Por conseguinte, tratava-se de um elemento importante nesse período de revolução, ao viabilizar a conquista dos mercados, dado importantíssimo na consolidação da sociedade capitalista européia.

Para Braudel (1985), a venda ambulante hodierna anda a reboque, pois

"os ambulante ou bufarinheiros são mercadores, geralmente miseráveis, que "transportam ao pescoço" ou simplesmente às costas, mercadorias modestíssimas. No entanto não deixam de constituir relativamente às trocas uma massa de manobra apreciável. Preenchem nas próprias cidades, e mais ainda nas vilas e nas aldeias, os vazios das redes vulgares de abastecimento".

Para o autor é ai onde reside a diferença entre a venda ambulante hodierna e a atividade desenvolvida pelos mercadores da Idade Média. A segunda, é pioneira, e a primeira sobrevive graças a existência de vazios nas redes de  abastecimento.

Costa (1989) incorre no equívoco apontado por Braudel ao fazer uma analogia entre o comércio ambulante hodierno (a quem denomina de mercador ambulante de hoje) e os mercadores da Idade Média, sem apreender suas diferenças. Tal comparação é feita por acreditar ser tanto o vendedor ambulante, quanto os mercadores medievais, estigmatizados de adjetivos como corrupto, ladrão e contrabandista e embora funcione como uma "válvula de escape" ao desemprego, ainda conserva a imagem de ilegalidade e da apropriação de algo alheio, além da característica de deslocar-se à procura de local onde a concentração de possíveis compradores possa levar à obtenção de ganhos. Para a autora, "o espírito farejante desses mercadores permanece presente nos dias de hoje, determinando a implantação do comércio ambulante nas áreas urbanas de maior afluência. Além disso, o sentido autônomo valoriza as 'habilidades' individuais, por sua vez, uma qualidade essencial no mercador medieval", bem como, a da busca da liberdade na cidade, "do fazer a sorte e ser dono do seu próprio destino", a exemplo do feito pelos mercadores medievais. 

Já no que se refere às visões niilistas, Braudel (1985), baseando-se na característica de que a venda ambulante aproveita-se e beneficia-se dos vazios das "redes vulgares de abastecimento", adverte a respeito da tentativa de afirmar-se geralmente, que "a vida exuberante da venda ambulante desaparece por si própria logo que um país atinge certo grau de desenvolvimento. Para o citado, se tal afirmativa fosse verdadeira a venda ambulante na Inglaterra e França teriam desaparecido, respectivamente, nos séculos XVIII e XIX. Todavia pelo menos a primeira obteve recrudescimento no século XIX, "nos arredores das cidades industriais mal abastecidas pelos circuitos normais de distribuição".

Embora se tratando de um estudo baseado na realidade européia, suas proposições reduzem a falácias as argumentações geradas nos países subdesenvolvidos e que trabalham na essência com a mesma perspectiva que e criticada severamente por Braudel. Esta perspectiva analítica, baseada no grau de desenvolvimento econômico dos países, desencadeará toda uma discussão em torno da diferenciação existente entre o terciário dos países desenvolvidos e dos países subdesenvolvidos nos dias de hoje. Tal diferenciação dar-se-ia com a existência do terciário moderno nos países desenvolvidos e do terciário arcaico nos países subdesenvolvidos, considerados respectivamente, como resultado direto da modernização tecnológica e ligado às formas de relações herdadas do passado.

Nestes termos, considera-se o terciário denominado de arcaico como empecilho ao desenvolvimento. A superação deste entrave consubstanciar-se-ia quando o dito terciário moderno suplantasse o terciário arcaico, a ponto do que se convencionou chamar de teoria do dualismo estrutural ou tecnológica servir, conforme Santos (1979), para impressionar  "(...) os espíritos sábios, que encontravam na fórmula uma explicação confortável e atraente do subdesenvolvimento e da pobreza".

Importante torna-se, nas considerações de Braudel (1985), a demonstração da incoerência dos estudos comparativos e niilistas, entretanto resta uma indagação: sua análise, elaborada para entender a realidade européia, pode adequar-se à realidade dos países subdesenvolvidos e, especificamente, à brasileira? No que se refere à tentativa de relacionar a venda ambulante ao mercador medieval, torna-se importante salientar que no caso do Brasil, tal tentativa ainda é mais absurda, pois sua articulação à economia capitalista vai dar-se no período correspondente ao capitalismo comercial e toda e qualquer atividade criada, na então colônia, era atrelada aos anseios do capital, não tendo sido o feudalismo difundido mundialmente como o capitalismo após o advento das grandes navegações. Portanto, inconcebível é falar-se de transição ou da existência do feudalismo e ainda por cima da herança deixada pelo mercador medieval. Bem mais interessante e coerente teria sido fazer essa analogia baseando-se, no caso do Brasil, na figura do Mascate e dos Escravos. Os Mascates eram os responsáveis pelo fornecimento de tecidos, linhas, lenços e etc a Fazendas no interior e os Escravos, retratados de forma majestosa pelo artista Debret em meados do século XIX no Rio de Janeiro, eram os responsáveis pela maior parte do comércio de comestíveis feito na porta das casas.

 Esse dado, relativo às especificidades da consolidação do capitalismo nos países subdesenvolvidos e, especificamente no Brasil, aponta tanto para a necessidade de tratamento do processo de inserção dos países subdesenvolvidos na economia mundial, quanto para o entendimento das características que o desenvolvimento do capital vai tomar, destruindo, criando e recriando relações não tipicamente capitalistas. Conseqüentemente, urge considerar esse processo a partir do que se convencionou chamar de lei do desenvolvimento desigual, que tornará possível compreender o porquê da reprodução da atividade do comércio ambulante nos países em vias de desenvolvimento.

Não se pode assumir o pressuposto da explicação do comércio ambulante nos acima a partir dos "vazios nas redes vulgares de abastecimento", pois a consolidação e ampliação do capitalismo dão-se de uma forma diferenciada. Não considerar as especificidades do desenvolvimento do capitalismo nos países em vias de desenvolvimento, significa assumir uma análise comparativa entre realidades diferenciadas, que mascara o processo de desenvolvimento desigual do capital no nível mundial. É nestes termos, que Kowarick (1972), pautando-se na lei do desenvolvimento desigual e combinado, fala da articulação entre "(...) várias modalidades produtivas que correspondem a tempos históricos desiguais" e Oliveira (1977), quando critica o que chama de razão dualista da economia brasileira, fala da existência do trabalho autônomo como mecanismo particular de acumulação. 

Souza (1984) é quem considera esse aspecto ao analisar o comércio ambulante de confecções em Recife, dando uma contribuição importante no sentido de compreender o desenvolvimento deste tipo de atividade segundo essa especificidade do desenvolvimento do capital. Sua explicação baseia-se na tese de que o capital para produzir mercadorias não necessita exclusivamente do trabalho assalariado. Baseando-se nesta perspectiva, o autor vai falar do trabalho autônomo como complementar da economia, ao participar da produção de valores de troca (artesanato), da incorporação de valores de uso a certos produtos (nos transportes e comércio) e da prestação de serviços especializados (nas profissões liberais).

Tanto Souza (1984) quanto Kowarick (1972) e Oliveira (1977) apontam para o entendimento do processo de assimilação e recriação de relações não tipicamente capitalistas, com fins de reprodução do capital através da necessidade da produção e circulação de mercadorias, rompendo, portanto, com as análises niilistas do processo de expansão do capital.

Embora a análise do processo de criação e recriação de relações não tipicamente capitalistas seja um pressuposto para o entendimento do processo de reprodução do comércio ambulante, não se pode esquecer do lembrete de Santos (1978), quando afirma que essas atividades contêm especificidades que englobam "(...) diferentes tipos de comércio e da produção de bens manufaturados de capital não intensivo, constituída em grande parte de artesanato e também de uma gama de serviços não modernos".

Pode-se afirmar que no caso do Brasil e por extensão dos países em vias de desenvolvimento, tal atividade está ligada à tentativa de criação de uma demanda solvável e à tentativa de estabilização social. Nestes termos, aponta-se a necessidade de apreensão do significado e papel do comércio ambulante ao: 1. Criar uma demanda solvável, quando fornece produtos por menores preços e, por conseguinte, tornando-os acessíveis a uma camada maior de consumidores - com maior intensidade os consumidores das classes menos abastadas e que não teriam condições de consumir esses produtos no  comércio estabelecido - e insere aqueles que desenvolvem a atividade do comércio ambulante na sociedade de consumo ; 2. Funcionar como fator de estabilização social, quando a inserção na atividade do comércio ambulante é reforçada pela ideologia da ascensão social pelo consumo e pela ideologia de ascensão social pelo trabalho autônomo.

Tal interpretação tornou-se possível pautando-se nos pressupostos de Lipietz (1988). Entretanto, sua ótica de análise reduz-se a questões relativas às atividades do "terciário moderno", dado que levou à necessidade de reinterpretação de seus postulados ao caso do comércio ambulante nos países em vias de desenvolvimento e especificamente no Brasil.

No caso dos paises desenvolvidos, a criação da demanda solvável dá-se com a adoção de políticas de geração de empregos e destinação de bons salários à classe trabalhadora do terciário moderno, políticas estas que são  capazes de absorver a produção em massa. No caso dos países em vias de desenvolvimento, ao ser adotado o fordismo  periférico, busca-se a realização da mercadoria com o aproveitamento de uma demanda solvável existente nos paises desenvolvidos e, portanto, fora do país. Este processo de modernização adotado baseia-se na utilização de mão-de-obra barata, que vai determinar o baixo poder aquisitivo da maioria da população brasileira. Daí a importância do comércio ambulante no fornecimento de produtos às classes de menor poder aquisitivo, que não podem consumir no comércio estabelecido dado os preços altos, bem como, o da inserção dos que trabalham no comércio ambulante na sociedade de consumo.

No que se refere ao fator de estabilização social pode-se distinguir duas formas características: uma inerente aos países desenvolvidos e uma outra inerente aos países em vias de desenvolvimento. Nos países desenvolvidos, tal fator está atrelado ao estatuto do trabalho não-manual, externando o alcançar oportunidades sociais e de consumo a partir da criação de empregos no “terciário moderno". Nos países em vias de desenvolvimento, antes de falar do alcançar oportunidades, a inserção no comércio ambulante externa nada mais que a falta de oportunidades noutras atividades, devido o processo de modernização implementado na indústria ser poupador de mão-de-obra e, conseqüentemente, gerador do subemprego e do desemprego.

Em relação à viabilização da realização da mercadoria a partir da criação de uma demanda solvável, Santos (1979) deixa claro que o crescimento da atividade comercial no que denomina de circuito inferior da economia é responsável pela realização da mercadoria, em parte proveniente do circuito superior e do próprio circuito inferior, sendo somente a partir do pequeno comércio que parcela da população dos países em vias de desenvolvimento pode ter acesso a determinados bens e serviços. Para o autor, esses vendedores de rua constituem "(...) o nível inferior da pulverização do comércio, o último elo de intermediários entre os importadores, industriais, atacadistas e o consumidor", Seria, por um lado, resposta e produto da pobreza e, por outro lado, resposta à necessidade de reprodução do comércio e da fabricação do circuito superior da economia.

Embora se concorde com essa consideração, não se pode desconsiderar que há também a possibilidade de inserção daqueles que desenvolvem a atividade do comércio ambulante na sociedade de consumo, enquanto consumidores de bens materiais e imateriais. Por conseguinte, entende-se o comércio ambulante como viabilizador da realização da mercadoria, por garantir a possibilidade de consumo de determinados produtos, principalmente às classes de menor poder aquisitivo, e  inserir aqueles que trabalham nessa atividade na sociedade de consumo, criando, conseqüentemente, uma demanda solvável.

O poder realizar-se enquanto consumidor, comumente pode levar a uma situação aparente de satisfação, e é justamente a partir desse dado que pode ser apreendido o fator de estabilização social. O realizar-se enquanto consumidor fez com que o ideal de realização do ser humano deixasse de se ligar ao trabalho e se voltasse para o ato de consumir. Quem vai personificar este ideal é a classe média, dado que a coloca com um “status" superior em relação à classe trabalhadora (assalariada), pois, segundo Lefebvre (1972), a transformação da ideologia da produção e do sentido da atividade criadora em ideologia do consumo, fez com que "o proletariado deixasse de crer intensamente na dignidade do trabalho e do trabalhador".

Conseqüentemente, acredita-se que no caso do comércio ambulante não é somente o estatuto do trabalho não-manual, o delineador do fator de estabilização social. A ideologia da ascensão social tem um peso razoável, por  tratar-se da condição de ser do trabalhador autônomo. Esta tese é expressa por Prandi (1977), que a identifica e define "pelo alcançar de oportunidades sociais e por níveis razoáveis de consumo".

Além de buscar ascender socialmente como forma de garantir níveis razoáveis de consumo, os comerciantes ambulantes inserem-se nesta atividade na  expectativa de tornarem-se pequenos, médios ou até grandes comerciantes. A busca da ascensão social através do exercício da atividade do comércio ambulante está posta, e Soto (1987), ao afirmar que "(...) o comércio ambulante é um longo caminho rumo à empresa e à propriedade privada", expressa essa ideologia da ascensão social pelo trabalho.

Portanto, ao adotar como referencial pequenos comerciantes que ascenderam socialmente, a ideologia da ascensão social pelo consumo e a ideologia da ascensão social pelo trabalho (através do exercício da atividade do comércio ambulante), pode prestar-se como um fator de estabilização, a partir do momento que aponta ideologicamente à possibilidade de ascensão social. Propositadamente trabalha-se com um discurso homogeneizador ao deixar de lado aqueles ambulantes que se inserem nessa atividade perseguindo, unicamente, a garantia da sobrevivência.

Em termos ideológicos está posto o alcançar oportunidades através do comércio ambulante como fator de estabilização social. Entretanto, não se pode deixar de apreender outro fator que leva à busca de empregos nesta atividade. Antes mesmo do alcançar oportunidades é o não ter oportunidades em outras atividades que leva parcela da população economicamente ativa, a se inserir em atividades como a do comércio ambulante, indústria de fundo de quintal e serviços "não modernos".

Esta mesma afirmação pode ser utilizada para relativizar a tese apresentada por Barros (1987) e que coloca a atividade do pequeno comércio como uma alternativa de reprodução trazida pelas populações trabalhadoras e que se transforma num novo contexto espacial na cidade. Barros faz ressalvas ao tratamento do comércio ambulante enquanto simples instrumento de acumulação do capital, pois considera ocorrer no processo migratório das populações trabalhadoras a condução de formas "(...) de reprodução que se devem retransformar em novo contexto espacial". Seria a identificação de um valor cultural trazido pelo migrante e readaptado na cidade sob a forma de inclinação para o pequeno comércio. O autor adota essa postura ao basear-se em trabalhos, como o de Lopes (1960), que versa sobre o ajustamento do migrante rural nordestino à condição operário-urbana em São Paulo e perceber

"a inclinação para as atividades comerciais, que se nota tanto nos que vêm da lavoura como nos que moravam em pequenas cidades(...), sendo (...) parte de um padrão de independência econômica difundida no Brasil (...), principalmente no Nordeste, esse valor cultural de trabalhar por conta própria, ser independente, valer-se da própria iniciativa e não se subordinar diretamente a ninguém".

Entretanto, não se pode deixar de explicitar, conforme feito anteriormente, o caráter da modernização implementada nos países em vias de desenvolvimento, cujo  processo é por "natureza" poupador de mão-de-obra. Hoffmann (1972) enfatiza essa característica no caso do Brasil ao comparar a participação do emprego no secundário e constatar ser a economia brasileira aquela que possui menor participação da indústria na geração de empregos. O apontamento à tendência de ampliação do emprego no terciário dá-se como expressão do processo de modernização do setor secundário nos países em vias de desenvolvimento que, por ser poupador de mão-de-obra, gera o subemprego e o desemprego. Aponta-se, além do alto índice de desemprego, a importância do setor informal da economia no processo de reprodução social do trabalho.

Pode-se afirmar inicialmente, que o comércio ambulante é um resultado do processo desigual de reprodução do capital, capital que vai incorporar esta atividade ao processo de acumulação, devido a mesma viabilizar a realização da mercadoria, ao criar condições para a inserção de dado segmento da sociedade a sociedade de consumo e prestar-se como fator de estabilização social, nos termos aqui propostos.

Torna-se imprescindível analisar as determinantes econômicas, ideológicas e culturais do comércio ambulante. Entretanto convém lembrar que esta atividade não vai desenvolver-se simplesmente sobre o espaço. Ela é determinante desse espaço e por ele é determinada. Daí Santos (1979) tratar da elaboração de uma teoria sobre o espaço, como mais uma condição para entender o desenvolvimento e a existência de dois subsistemas na economia urbana dos países em vias de desenvolvimento, ou seja, do circuito inferior e do circuito superior da economia.

Sobre a teoria do espaço e da urbanização nos países em vias de desenvolvimento, Santos (1979), remete à característica de transformação não-maciça, devido a historia espacial seletiva, que leva o autor a trabalhar com a tese da existência de dois subsistemas - denominados de circuito superior e circuito inferior - que são resultantes da difusão de inovações (informação e consumo) em diferentes níveis quantitativos e qualitativos. Significaria dizer que a revolução no domínio do consumo geraria novas formas de produção e de comércio pautadas numa deformação da estrutura do consumo nos países em vias de desenvolvimento, a ponto de ter-se a constituição do circuito superior que "(...) é o resultado direto da modernização tecnológica. Consiste nas atividades criadas em função dos progressos tecnológicos e das pessoas que se beneficiam dele (...)" e, do circuito inferior que "(...) é igualmente um resultado da mesma modernização, mas um resultado indireto que se dirige aos indivíduos que só se beneficiam parcialmente ou não se beneficiam dos progressos técnicos recentes e das atividades a eles ligadas".

Com o apontamento da existência e da articulação entre os dois circuitos da economia - sendo o circuito inferior dependente do circuito superior -, a perspectiva niilista, também é superada por Santos ao explicitar o processo de modernização nos países em vias de desenvolvimento, como responsável direto pela incorporação das pessoas no mercado de trabalho efetivo e exclusão de parcela significativa que irá compor os inseridos em subemprego e os desempregados.

Para Lima (1987), tal aspecto explicaria a sobrevivência do pequeno comércio, pondo em "xeque" a proposição feita por Castells (s/d), segundo a qual

"a desconcentração geográfica da função comercial não faz mais do que exprimir o nível de implantação, a desaparição do pequeno comércio, substituído por cadeias de grandes armazéns com especialização técnica, social e espacial da gestão e da venda, estandardização dos produtos e partilha proporcional dos espaços de influência no que toca à distribuição".

Embora se concorde que Castells, ao estudar o centro urbano, faz considerações a respeito do processo de especialização funcional resultante da desconcentração geográfica da função comercial, a qual será a determinante da desaparição do pequeno comércio nas áreas centrais, não dá para deixar de  frisar que em seu trabalho, quando fala da desconcentração da função comercial levando ao fim do pequeno comércio, está se referindo a características presentes e marcantes na realidade européia. Dado que não inviabiliza em tese as suas proposições, mas que infelizmente não coadunam com a realidade dos países em vias de desenvolvimento.

É ai onde reside o maior problema da análise do citado autor para o presente trabalho: o não tratamento das especificidades existentes nas grandes cidades dos países em vias de desenvolvimento, quer dizer, do processo de urbanização dependente que vai caracterizar a constituição da estrutura urbana e da conseqüente articulação com o(s) centro(s).

Para Santos (1979) a existência dos dois circuitos da economia inviabiliza a utilização de noções como a da teoria dos lugares centrais, pois não é possível  identificar um único limiar ao admitir que "a economia da cidade é formada por dois subsistemas estreitamente associados a dois setores da população. Isto parece tanto mais difícil, pois que, de um lado, os dois subsistemas se comunicam por intermédio das classes médias, ou seja, da parte da população capaz de consumir freqüentemente ou ocasionalmente nos dois e, de outro lado, os dois circuitos econômicos têm  interações”.

Na estrutura urbana há a materialização dessa transformação, ao perceber-se a importância do circuito inferior na proporção inversa do nível funcional das cidades, sendo a influência territorial das aglomerações urbanas divididas entre os dois sistemas de uma forma articulada, ou seja, cada cidade possui duas zonas de influência de dimensões diferenciadas, encontrando o circuito inferior uma situação inversa à situação do circuito superior, pois é nas cidades locais onde sua área de influência é maior. Daí Santos (1979) afirmar não ser a teoria dos lugares centrais, conforme proposta, aplicável à realidade dos países em vias de desenvolvimento.

Dados como o da assimilação e recriação de relações não tipicamente  capitalistas, que são regidas principalmente pelo fato de se organizarem segundo interesses externos e de sua materialização na estrutura urbana, expressa na articulação do que Santos (1979) chama dos dois circuitos da economia urbana dos países em vias de desenvolvimento, são imprescindíveis no entendimento da reprodução, no espaço, de atividades como a do comércio ambulante.

Quem trabalha nesta perspectiva é Barros (1987), ao analisar a atividade do comércio ambulante, em Campina Grande, como resultado da estruturação da rede urbana nacional, que direciona os fluxos migratórios às cidades. Este contingente populacional, devido às características do processo de industrialização implementada, vai ocupar-se em atividades como a do pequeno comércio.

Entretanto, Santos (1991) ao enveredar mais recentemente na análise daquilo que chama de flexibilidade tropical, vai além dessa perspectiva de análise, superando-se e superando a Barros, ao propor a necessidade de consideração da cidade. A consideração da cidade composta por temporalidades diferenciadas - como local onde se dá a materialização, por um lado, das novas formas da economia e, por outro lado, a continuidade das velhas formas da economia -, viabilizará, segundo o autor, a apreensão da consolidação das atividades hegemônicas e hegemonizadas como determinante e resultado do próprio meio ambiente construído que "se diferencia pela carga maior de ciência, tecnologia e informação". A partir desse desdobramento, Santos (1994) deixa de trabalhar com a articulação entre os dois circuitos da economia e sua espacialidade e vai aprofundar sua análise na tentativa de entendimento da cidade dos países em vias de desenvolvimento, as quais

"são, por um lado, rígidas na sua vocação internacional e, por outro, são dotadas de flexibilidade, graças a um meio ambiente construído que permite a atuação de todos os tipos de capital, e, desse modo, admite a presença de todos os tipos de trabalhos".

Ainda quanto ao tratamento da cidade como expressão de temporalidades diferenciadas, mas enfatizando a cidade como texto não-verbal que é apropriado pelo usuário, Costa (1989), quando estuda o comércio ambulante em São Paulo, esboça a categoria de "espaço bolha" para denotar, a partir de determinados eventos que ocorrem na cidade, a geração de um espaço que é recriado momentaneamente e "onde se instalam formas específicas de comércio ambulante (...), apoiado em equipamentos não projetados de produção artesanal ou semi-industrializada, fornecedor de objetos, comidas e bebidas que determinam um novo espaço e um novo uso, expresso em linguagem característica e organizado segundo regras próprias".

Para a autora a criação dessa linguagem característica é um dado do desenvolvimento desigual e fragmentado da cidade. Ao se manifestar de várias maneiras - "(...) repassando mercadorias refugadas das industrias ou fabricadas em oficinas de 'fundo de quintal', oferece artigos produzidos artesanalmente ou simplesmente constitui uma rede de distribuição de produtos industrializados", o comércio ambulante atuaria como tradutor entre repertórios e universos ideológicos diferenciados, trazendo, "(...) a partir da própria mercadoria veiculada, a informação ideológica do consumo dominante inacessível a determinada fração da sociedade", que transforma momentaneamente as características físicas e possibilidades de uso do espaço.

O direcionamento da discussão à necessidade de uma reflexão sobre a cidade no período atual, como forma de compreender a implantação e persistência de dados tipos de uso na cidade - seja via "flexibilidade tropical", seja via compreensão da cidade como texto não-verbal - é imprescindível, entretanto, embora consigam explicar porque dadas atividades conseguem reproduzir-se em dados lugares, as duas teorias não nos indicam porque elas necessariamente vão desenvolver-se naqueles lugares e não noutros, e nem vão apreender as transformações pelas quais passam. Caso queira-se compreender o porquê do desenvolvimento da atividade do comércio ambulante na área central, torna-se necessário o entendimento do processo de constituição da cidade no contexto urbano, através da história do espaço - permeada pelo entendimento do processo de transformação do lúdico, do local do encontro e da festa, no lócus do consumo e, por último, no consumo  do próprio local como imagem.

Tal procedimento baseia-se na compreensão da constituição da sociedade urbana, que se generaliza e "designa uma realidade em formação, em parte real e em parte virtual" (Lefebvre, 1976). Tal constituição expressará uma nova caracterização da cidade, a qual segundo Lefebvre, deixa de ser obra, uma criação humana que tem a ver com as exigências ética e estética de dado grupo, para tornar-se produto, resultado da materialização do trabalho humano que se insere na lógica da acumulação do capital e cujo crescimento quantitativo - pautado na industrialização, que produz a generalização das relações mediadas pela mercadoria - leva a um fenômeno qualitativo que se traduz na problemática urbana, adquirindo, portanto, a urbanização "maior Importância que sua causa inicial: a industrialização".

Todo esse movimento, que vai ter como cerne o urbano enquanto modo de vida, está inserido no processo de definição e redefinição da centralidade no tempo, a qual vai ter como substrato o processo de explosão-implosão da cidade. Explosão-implosão, que no caso de Fortaleza, vai implicar na hierarquização entre os vários bairros da cidade, dando-se a especialização funcional do Centro, através de sua transformação em área predominantemente comercial, lócus privilegiado de consumo e, em dadas circunstâncias, do encontro das classes de menor poder aquisitivo da sociedade fortalezense.

A questão da centralidade, presente em qualquer cidade marcada pelo centro, aponta a relevante importância do indicativo lançado por Castells (s/d), quando fala da necessidade de reflexão em torno do centro urbano. Centro que expressa "(...) um certo tipo de ocupação do espaço, um conjunto de atividades, de funções e grupos sociais localizado num lugar de características mais ou menos específicas"  e resulta da relação com o conjunto da estrutura urbana e de um modelo de relação cidade/sociedade, regido pela economia de mercado. Daí falar do centro urbano como produto, "(...) expressão manifesta das formas sociais em ação e da estrutura de sua dinâmica interna(...).

Não é sem propósito que Castells (s/d) enfatiza o centro enquanto elemento presente na estrutura urbana o que assegurará o "(...) intercâmbio entre os diversos elementos funcionais que integram a cidade (...)", a partir do delineamento dos usos na cidade que podem ser apreendidos através das "(...) significações do espaço segundo a sua forma de utilização, tipo de apropriação e características da expansão urbana(...)".

Mas, não só significações, pois, conforme Lefebvre (1978), o entendimento de tal problemática perpassaria pela compreensão da utilização do espaço enquanto instrumento privilegiado das ações do Estado, que denota sua homogeneização, por ser “(...) erguido do mundo da mercadoria onde tudo é equivalente, e erguido também do estatal onde tudo é controlado" e, sua quebra, representada na fragmentação e pulverização do espaço pelos interesses dos usuários, comerciantes e especuladores imobiliários, dentre outros. É neste espaço homogêneo-quebrado, que Lefebvre (1978) aponta a tendência do Estado sobrepor-se ao caráter caótico do espaço produzido pelos interesses privados, “(...) segundo uma racional idade do idêntico, do repetitivo que permite introduzir nos cantos os mais remotos, a presença estatal, controle e fiscalização".

Os projetos de urbanização adotados explicitariam esta razão ordenadora do Estado na tentativa de normatização do espaço, conforme um modelo de cidade que procura levar a uma “(...) vida cotidiana programada e idealizada pelo consumo manipulado" (LEFEBVRE, 1978).

Nestes termos, pode-se entender a articulação entre os projetos de urbanização adotados e o processo de ocupação da área central de Fortaleza pelo comércio ambulante, como resultado da oposição intervenção estatal interesses privados. Tal oposição, em última instância, justificaria e explicaria a expansão ou retração da área ocupada pelo comércio ambulante, dentro da tendência  posta à sua fixação, ao apresentar-se na paisagem urbana o comércio ambulante fixado, como resultado do processo de intervenção das gestões municipais no espaço público do Centro da Cidade de Fortaleza.

Nuanças do Comércio Ambulante em Fortaleza

A alteração nas formas de uso da cidade de Fortaleza permitem o entendimento do comércio ambulante hodierno e a representatividade que ele adquire no final do século XX. Este processo denota articulação entre as diversas partes da cidade e o Centro, perdendo o segundo sua hegemonia em relação às áreas nobres (principalmente Aldeota) (Figura 1), após ter seu uso redefinido com a inserção de "novos usuários" que geram um conflito inter e intra-usos.

 

Figura 1

 

Estes conflitos suscitam a intervenção do Estado, com o conseqüente estabelecimento do espaço da circulação, através do planejamento urbano que visa a regulamentação, com fixação progressiva dos ambulantes no Centro e “imposição’’ de racionalidade que se contrapõe aos interesses privados (locais, individuais, de classe...) e elege o espaço como instrumento privilegiado (Lefebvre, 1978). No caso do Centro de Fortaleza, os interesses privados relacionam-se aos anseios de dois grupos: o dos empresários do terciário e o dos comerciantes ambulantes.

No primeiro grupo encontramos comerciantes atacadistas, comerciantes varejistas e empresários ligados a atividades turísticas. Os comerciantes atacadistas beneficiam-se com o exercício da atividade do comércio ambulante por se tratar de consumidor de seus produtos. A maioria dos comerciantes varejistas, e que têm o Clube dos Diretores Lojistas de Fortaleza como depositário de seus interesses, questiona o tipo de uso do espaço público implementado pelo comércio ambulante, opondo-se ao desenvolvimento desta atividade no Centro em virtude da concorrência considerada desleal, do "enfeiamento da cidade" e da dificuldade criada ao fluxo de pedestres nas ruas. Os empresários ligados a atividades turísticas também questionam esse tipo de uso por considerá-lo responsável pela deterioração do patrimônio histórico do Centro.

No segundo grupo, evidenciamos tipologia que resulta: a) da posse ou não de ponto numa determinada parcela do espaço público: neste caso os que não são donos de pontos só poderão exercer suas atividades caso o comprem, aluguem ou trabalhem para o proprietário; b) da situação de regularização ou não perante a prefeitura: este dado conduz à criação da categoria de comerciantes ambulantes cadastrados e não-cadastrados, sendo os primeiros aqueles que têm direito a permanecer no centro; c) da propriedade ou não dos produtos comercializados:  neste caso apresenta-se distinção entre comerciantes ambulantes fornecedores (proprietários dos produtos) e comissionados (recebendo na venda do produto fornecido o equivalente a 20% do volume negociado); d) de natureza dúbia: os quengueiros, ambulantes não-cadastrados e nem comissionados que percebem, ao substituir os ambulantes cadastrados, o equivalente à especulação sobre o preço real dos produtos.

Os empresários do terciário e os comerciantes ambulantes denotam expectativas locais e diferenciadas quanto ao uso do espaço público. O comércio ambulante representa este processo ao ocupar os logradouros públicos, visando sua reprodução enquanto atividade e dos que nela se inserem. Fortalece-se tipo de uso fundamentado em forma de apropriação privada do espaço público, daí a divisão do Centro de Fortaleza em parcelas, em pontos, visando o estabelecimento de relações mediadas pela mercadoria e suscitando conflitos com os empresários do terciário.

A intervenção da Prefeitura Municipal de Fortaleza (PMF) dá-se redefinindo o uso do espaço público, com conseqüente regulamentação das áreas de uso para o comércio ambulante no Centro (Figura 2). Tal tentativa não se dá de forma homogênea, apontando quadro diferenciado de atuação das administrações públicas na prefeitura.

 

Figura 2

 

No caso de Fortaleza, pode-se perceber claramente esta diferenciação ao trabalhar-se com dois grandes mo(vi)mentos: o de modernização e o de revitalização. O primeiro mo(vi)mento, versará sobre as tentativas do poder público municipal em modernizar o Centro, com a construção de calçadões, reformas de praças e incentivo à reforma das fachadas das lojas existentes segundo um design avançado. Tal intento exprime um processo de incorporação das formas antigas existentes a um novo padrão de acumulação, como resultado da concorrência empreendida por áreas mais modernas, sendo o Shopping Center a expressão máxima. O segundo mo(vi)mento, cuidará das tentativas da Prefeitura em retomar a hegemonia da área central, implementando políticas de urbanização que tentam diferenciar esta área em relação às outras áreas de consumo, trabalhando para isto, com a reconstrução do passado glorioso do Centro através de intervenções no nível da forma. Ao contrário do momento anterior, ao invés de escamotear as formas antigas, passa-se à tentativa de reconstituição do Centro segundo seu passado áureo. Para isso são reformadas as praças e é lançado um apelo aos lojistas no sentido de adotarem a mesma postura no que se refere às fachadas das lojas.  Trata-se do momento da construção de simulacros capazes de transcender o Centro como objeto de consumo: imagem do Centro Histórico.

Fala-se de onda para retratar a dinâmica desses mo(vi)mentos que vão e voltam, adquirindo em dados períodos hegemonia de um em relação ao outro. Considerando tal característica se remete: à primeira onda, registrada no final dos anos 1970 e início dos anos 1980; a um período de transição, correspondendo ao interstício entre início e final dos anos 1980; à segunda onda, percebida do final dos anos 1980 até 1995. Tal divisão viabilizará apreender o processo de ampliação ou redução da área ocupada pelo comércio ambulante e a modificação das suas características quanto à legalidade, mobilidade e às formas de apropriação do espaço público.

A Primeira Onda: Movimento de Modernização do Centro (1975-1982)

Enfatiza-se o tratamento da questão relativa ao comércio ambulante no Centro após os anos 1970, por perceber que, entre os anos 1930-1960, a Prefeitura dava atenção ao comércio ambulante, quase que exclusivamente, através da adoção de medidas meramente repressivas e disciplinadoras, pautadas em questões relativas à higiene e ao trânsito no Centro.

Quando se fala de medidas meramente repressivas e disciplinadoras, pretende-se guardar as dimensões dessa problemática. Nesse período, Fortaleza, embora explodida, continua monocêntrica e é no Centro onde se concentram as atividades hegemônicas, daí falar-se do comércio ambulante como estorvo ao desenvolvimento comercial.

Entretanto, convém ressaltar a atitude pioneira ocorrida em 1959, e que se deu devido a reclamações feitas em relação ao aumento do número de comerciantes ambulantes no Centro. Para Jucá (1993),

"os comerciantes ambulantes encontravam-se mesmo ao lado de luxuosos magazines. Na rua Floriano Peixoto, no trecho entre Castro Silva e rua Pará, os locais de venda de miudezas se multiplicavam, dificultando o tráfego na Guilherme Rocha. Até as ruas São Paulo e General Sampaio eram ocupadas. Na praça da Estação [...] havia pequenos restaurantes considerados imundos".

Esta situação, sem precedentes para a época, levou o então Prefeito Cordeiro Neto a adotar política de deslocamento do comércio ambulante para a antiga Estação dos Bondes, em Joaquim Távora. Em atitude singular, viabilizou a retirada dos ambulantes da área central para alojá-los num mercado de cinco galpões em vias de construção. Tal prática, “comemorada pelos jornais, quando afirmavam que a população conseguira as áreas do Centro livres para o seu trânsito” (Jucá, 1993), foi efêmera (algumas semanas) em virtude da variável distância impossibilitar permanência de citados comerciantes no Joaquim Távora. Por tratar-se de atividade nutrida exclusivamente do fluxo contínuo e maciço de pedestres, não foi de se estranhar seu retorno ao Centro, apesar das pressões contrárias e da continuidade da utilização da violência pelo rapa (Guarda Municipal).

A problemática relativa à apropriação do espaço público pelo comércio ambulante só vai tomar maior peso, quando se consolidam novos centros - a cidade torna-se policêntrica - e o tratamento dado a tal atividade passa a ocupar espaço relevante nas políticas de urbanização implementadas. Somente a partir do final dos anos 1970, serão adotadas políticas de urbanização relacionadas ao uso do espaço público e visando implementar medidas que promovam o controle, disciplinamento e ordenamento do comércio ambulante.  São exemplo desse intento: o Projeto Novo Centro, executado na gestão  Evandro Aires de Moura e continuado na gestão Luis Marques e;  o Projeto de Modernização do Centro de Fortaleza, executado na administração de Lúcio Alcântara.

a) Projeto Novo Centro

Implementado inicialmente na gestão de Evandro Aires de Moura (17/03/1975 a 05/04/1978), o Projeto Novo Centro buscou, ao tratar da construção de condições materiais e garantidoras da intensificação e melhoria do fluxo de pedestres em detrimento do fluxo de automóveis e/ou da presença do comércio ambulante, transformar o Centro em ‘’locus’’ de passagem de pedestres.

Como expressão máxima dos objetivos desse projeto temos a construção das ruas-jardins e a consubstanciação de um sistema de transporte coletivo no Centro. A construção das ruas-jardins  (calçadões nas ruas Guilherme Rocha e Liberato Barroso, no trecho compreendido entre as ruas Major Facundo e General Sampaio – Figura 3) visa a ampliação da área dos pedestres e impedimento do exercício do comércio ambulante. Reflexo da pressão do Clube de Diretores Lojistas de Fortaleza (CDL - For), o projeto estava permeado pela preocupação destes comerciantes em relação à perda de uma camada de consumidores (da classe de maior poder aquisitivo) e à concorrência com o comércio ambulante. A solução buscada foi, ao providenciar alterações ao nível da forma, a de atrair estes consumidores e expulsar os comerciantes ambulantes. Defendia-se, com isso, a idéia da ocorrência de uma descaracterização do Centro (atribuída pela Prefeitura às modificações implementadas pelo automóvel e pelo comércio ambulante), considerada responsável pela evasão dos consumidores supra citados. A implantação de um sistema de transporte coletivo no Centro se dava como tentativa de amenização da dificuldade e do desconforto que o fluxo de automóveis causava ao deslocamento de pedestres no Centro. A opção automóvel foi questionada no Centro, dando-se, com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a implantação do Plano de Ação denominado Estudo de Transportes Urbanos da Região Metropolitana de Fortaleza (ETURB/For). Tal estudo, ao priorizar o transporte coletivo, buscou resolver a questão relativa à consolidação de um espaço livre para a circulação dos pedestres em detrimento ao espaço do veículo individual.

 

Figura 3

 

A construção das ruas-jardins e o estabelecimento de terminais de ônibus fizeram do centro uma área com predominância de fluxo para pedestres, e é este tipo de fluxo uma das condições para a expansão do comércio ambulante. Na administração de Evandro Aires de Moura, tentou-se de todas as formas reverter esse quadro. Para tanto o Departamento de Vigilância do Município procurou a partir da fiscalização "evitar que os passos dos transeuntes, no seu ir-e-vir das compras, sejam obstacularizados, agora não mais pelos automóveis, mas simplesmente pelos mercadores de bugigangas" (Jornal O Povo, 28/11/76).

No entanto, o que ocorreu foi a ampliação da área de ocupação do comércio ambulante. Se até a segunda metade de 1976, restringia-se "às ruas Guilherme Rocha, Liberato Barroso e praças José de Alencar, da Sé e da Estação" (Jornal O Povo, 29/09/76), a partir de então vamos encontrá-lo nas ruas Solon Pinheiro, Senador Pompeu, Barão do Rio Branco, Major Facundo, General Sampaio e 24 de maio, além das praças do Ferreira e dos Leões (Figura 4).

 

Figura 4

 

Embora a Prefeitura decretasse, na época, uma guerra aos comerciantes ambulantes, a continuidade e ampliação da referida atividade no Centro deveu-se à adoção de uma série de estratégias que visavam burlar a fiscalização. Depoimentos de comerciantes ambulantes apontam estas estratégias. Para os citados comerciantes, a ocupação dos logradouros públicos nos domingos e feriados e das ruas-jardins no horário do almoço, quer dizer, quando do encerramento do expediente dos Guardas Municipais (vulgo rapa), tinha que ser feita, pois tal estratégia era a única que permitia vender na porta das lojas e nos quarteirões mais movimentados. Em suma, preferiam ficar nesse conflito com a fiscalização, a serem transferidos, como se tentou fazer com aqueles que comercializavam frutas (proposta de transferência para Mercados Públicos). São estratégias que expressavam a resistência dos estimados 700 a 800 comerciantes ambulantes (Jornal O Povo, em 25/03/77) à tentativa de normatização de seu comércio desde a inauguração do Projeto Novo Centro.

Com os parcos resultados do Projeto Novo Centro, o Clube de Diretores Lojistas (CDL) continua a insistir em apontá-lo como "ponto de partida para a limpeza do centro, para o seu descongestionamento e humanização" (Jornal O Povo, em 14/04/77). De acordo com a citada entidade, os comerciantes ambulantes ‘’deturpam o aspecto visual da cidade, com um amontoado de bugigangas, tabuleiros e mesas mal dispostas, prejudicando assim não só a beleza das ruas centrais, como o movimento de pessoas que por ali trafegam (...)’’, e exercem “concorrência com as lojas que se sentem prejudicadas pela presença constante do ambulante nas suas calçadas, o que muitas vezes afasta a freguesia’’ (Jornal O Povo, 30/11/78). São estas as argumentações que levam a citada entidade a pressionar o Prefeito Luis Marques (06/04/1978 à 15/03/1979).

Como evidenciado acima, a pressão do Clube de Diretores Lojistas insere-se em questões relativas à deterioração do Centro, ao fluxo de transeuntes e da concorrência a eles imposta pelo comércio ambulante. No entanto, convém ressaltar que não corresponde a interesses da totalidade dos empresários. Ela expressa tão somente os interesses de parcela dos comerciantes varejistas e de empresários ligados à atividade turística. Existiam aqueles favoráveis à permanência do comércio ambulante, por se tratarem de seus compradores e, com o pagamento de uma taxa, permitia-se até sua permanência defronte das lojas.

A contradição existente entre os empresários, juntamente com as estratégias de resistência adotadas pelo comércio ambulante (idênticas às da gestão anterior), contribuíram para a ampliação da área ocupada pelo comércio ambulante, o qual passou a abarcar as ruas Solon Pinheiro, Guilherme Rocha, Liberato Barroso, Senador Pompeu, Barão do Rio Branco, Major Facundo, General Sampaio, 24 de Maio e as praças José de Alencar, da Sé, da Estação, do Ferreira, dos Leões e Coração de Jesus (Figura 4).

Por conseguinte, a Prefeitura Municipal de Fortaleza procurou controlar esse processo de apropriação do espaço público através do recadastramento dos já quase 2000 comerciantes ambulantes (dado fornecido pelo Departamento de Vigilância do Município, in : Jornal O Povo, 05/12/78) e objetivando deslocá-los para o novo Calçadão da General Bezerril - entre as ruas São Paulo e Praça dos Voluntários.

Mas a fixação não surtiu o efeito esperado, continuando o comércio ambulante a ocupar áreas consideradas impróprias pela Prefeitura, dado que levou  a administração Lúcio Alcântara  (16/03/1979  a 13/05/1982) a debruçar-se, também, sobre a problemática relativa à apropriação privada do espaço público quando na adoção do Projeto de Modernização do Centro de Fortaleza.

b) Projeto de Modernização do Centro de  Fortaleza.

Para tratar da questão relativa ao uso do espaço público este projeto de modernização pretendia promover a “modificação do visual das principais ruas, visando fornecer ao consumidor uma opção de compras no Centro da cidade, com o conforto necessário e que atualmente inexiste naquela área’’ (Jornal O Povo, 18/12/81). O referido implementou-se através de projetos que visavam a adequação das formas herdadas do passado a um novo uso. Falava-se, portanto, na necessidade de desobstrução do Centro. Desobstrução que  significava intervenção quanto ao uso do espaço público, atendendo, principalmente, às expectativas dos empresários do terciário que viam nessa intervenção a possibilidade de “diminuir o desconforto das compras no Centro, em vista da concorrência dos shopping’’ (Jornal O Povo, 07/02/82).

Representou uma forma encontrada pela Prefeitura, para tentar equacionar a preocupação do Clube de Diretores Lojistas (CDL-For) em relação à perda de camada de consumidores - classe alta e média alta, principalmente. Nestes termos, modernizar significou a tentativa de atrair esses consumidores, através da criação de uma infra-estrutura capaz de fazer com que o Centro passasse a competir com as áreas consideradas nobres. Para tanto, a Prefeitura tentou dar um ar de modernidade ao Centro, a partir da reforma de praças e reestruturação do fluxo de transporte (principalmente o coletivo) e os empresários do terciário intensificaram a reforma de suas lojas, com a modificação das fachadas para um ‘’design mais moderno’’, graças à colocação de lajotas, armações de alumínio, luminárias, vitrines e etc.

Portanto, a presença do comércio ambulante esboça um tipo de uso do espaço público que representava uma oposição ao modelo de cidade idealizada. Para tanto, a Prefeitura tentou inserir este comércio nesta lógica, com a ampliação da área permitida ao desenvolvimento de suas atividades e com a intensificação da fiscalização nas áreas consideradas impróprias. Se na gestão Lúcio Alcântara ocorreu essa ampliação da área permitida com a inclusão das ruas Solon Pinheiro, Guilherme Rocha, General Sampaio e, até final de 1981, da rua 24 de Maio, além das praças José de Alencar, da Estação e do Ferreira (Figura 4), não se pode esquecer que foi também nesta gestão que se deu a adoção de uma política de fiscalização ostensiva, obtida graças a atuação conjunta dos guardas da Polícia Militar e do rapa, das 6:00h às 18:30h.

Este tipo de atuação resultou no impedimento de comercialização para os ambulantes não-cadastrados e de permanência de qualquer um deles no quadrilátero compreendido entre as ruas Floriano Peixoto, Pedro Pereira, São Paulo e General Sampaio. Mas, independente da proibição ou não do exercício do comércio ambulante em determinada rua ou praça, os comerciantes ambulantes não-cadastrados continuavam a ocupar as áreas com maior concentração de transeuntes e/ou onde não havia forte atuação do rapa. Portanto, a fiscalização nas áreas consideradas impróprias promoveu indiretamente a ocupação de outras áreas como o Beco da Poeira e a Praça da Estação quando do impedimento de comercialização no quadrilátero citado, bem como, a rua 24 de Maio quando da proibição de comercialização na praça José de Alencar após sua reforma (1979). As áreas não permitidas ao comércio ambulante (ruas e praças, com terminais de ônibus, principalmente) e que contavam com a fiscalização ostensiva, foram ocupadas a partir da adoção de uma série de estratégias de resistência, pautadas na capacidade de intensa mobilidade intra-urbana que lhes caracterizava. Esta intensa mobilidade dá-se graças à utilização de equipamentos conduzíveis com facilidade (caixotes, carrinhos de mão, cruzetas...) e transporte de mercadorias em pequena quantidade, dado que viabiliza a ocupação das áreas proibidas nos dias e horários fora do expediente da fiscalização, bem como nos domingos e feriados, quando não subornavam os guardas do rapa para fazerem ‘’vista grossa’’ à sua presença.

A intenção de permanecer foi tamanha, que os comerciantes ambulantes chegaram mais uma vez a refutar a possibilidade de transferência para mercados públicos, ratificando-se o poder da centralidade com a caracterização do Centro como área concentradora de consumidores em potencial para o exercício desta atividade.  Ademais, também contavam com o aval de comerciantes estabelecidos que trabalhavam no atacado e comerciantes varejistas que tinham, de alguma forma, seu comércio relacionado ao fluxo de consumidores do comércio  ambulante e/ou alugavam um canto na porta da loja para o ambulante vender seus produtos. Também tinham o apoio dos comerciantes ambulantes bem sucedidos, denominados de fornecedores por fornecerem mercadorias para os comerciantes ambulantes comissionados - que ganham por comissão -, sem que estes tivessem de dispor de capital para se inserir no comércio ambulante.

Somando-se a isso se consubstanciavam condições materiais para o estabelecimento do comércio ambulante com as reformas das praças visando sua transformação e consolidação como terminais de ônibus.

Contraditoriamente, a Prefeitura Municipal de Fortaleza, ao tentar facilitar a circulação no Centro como condição para aumentar sua capacidade de atração em relação aos outros bairros da cidade criou condições para o crescimento e desenvolvimento do comércio ambulante nestas áreas e ruas adjacentes.

Esta política concentradora do fluxo do transporte coletivo acabou gerando a ampliação da área ocupada pelo comércio ambulante. Se até 1982, somente eram ocupadas as ruas Solon Pinheiro, Guilherme Rocha, Liberato Barroso, Senador Pompeu, Barão do Rio Branco, Major Facundo, General Sampaio, 24 de Maio, General Bezerril e as praças José de Alencar, da Sé, da Estação, do Ferreira, dos Leões e Coração de Jesus, na administração de Lúcio Alcântara incorporam-se as ruas Pedro I, Pedro Pereira, Floriano Peixoto, São Paulo, a avenida Tristão Gonçalves, a Galeria Pedro Jorge, o ‘’Beco da Poeira’’ e as praças da Lagoinha e dos Voluntários (Figura 4).

A questão colocada, para as gestões posteriores, foi a da necessidade de resolução desta problemática, ou seja, da ampliação do número dos comerciantes ambulantes e da área ocupada por eles.

Período de Transição: a Ordem é Repressão e/ou Convivência - 1982 a 1986

O período de transição caracterizou-se pela não adoção de projetos de urbanização voltados para a normatização do uso do espaço público pelo comércio ambulante. Nele, embora ocorressem discussões relacionadas à necessidade de implantação de políticas de modernização e/ ou revitalização, ocorria o convívio ou a repressão pura e simples do comércio ambulante. É expressão deste momento, o tipo de intervenção executada nas gestões de José Aragão, César Cals Neto e Barros Pinho.

Os comerciantes ambulantes, estimados em mais de 5.000 (dado fornecido pela Secretaria de Serviços Urbanos ao Jornal O Povo, 24/12/82), continuavam a ocupar na gestão de José Aragão (14/05/1982 a 16/03/1983) áreas consideradas impróprias pela Prefeitura.

A atuação do Poder Municipal se dava no sentido de inviabilizar esta apropriação privada do espaço público, com fiscalização exercida pela Guarda Municipal (vulgo rapa). Somente aos 1.500 comerciantes ambulantes cadastrados era permitida a permanência restando aos demais (3.500) sair do Centro ou permanecer sob o risco de ter sua mercadoria apreendida pelo Departamento de Vigilância do Município. A adoção da Operação Camelô e da Operação Varredura, em 12/1982 e 01/1983, respectivamente, assim como a tentativa de relocação dos comerciantes ambulantes para o calçadão da General Bezerril, resultaram da intenção da Prefeitura em evitar que o número e a área do comércio ambulante aumentasse.

Essa postura resultou, por um lado, da pressão do Clube de Diretores Lojistas, ao passar ao Prefeito, memorial exigindo "o retorno do Centro da cidade às suas condições normais de uso pela população", ou seja, espaço de circulação de pedestres  e, por outro lado, da pressão dos 1.000 comerciantes ambulantes postados em frente à Prefeitura (28/01/83), exigindo providências em relação ao exercício de suas atividades, fato determinante da aprovação da continuidade das atividades daqueles que passassem pelo cadastramento.

Esta intervenção, visando a normatização e a regularização do comércio ambulante, criou uma outra gama de conflitos na área considerada. Conflitos estes, originados da resistência dos camelôs já cadastrados em receberem mais ambulantes nas áreas consideradas próprias. O conflito ocorrido entre o comerciante ambulante cadastrado e o comerciante ambulante não-cadastrado começa a tomar corpo neste momento.

A luta pela garantia de um pedaço do espaço público no Centro, gerou a cisão entre os comerciantes ambulantes. Tudo devido o temor de perder privilégios adquiridos e/ou ter a concorrência aumentada com a chegada de mais ambulantes nas áreas consideradas próprias ao exercício dessa atividade.

Além das cisões, esse conflito também foi o determinante da atuação continuada e constante dos comerciantes ambulantes em áreas menos concorridas e com grande fluxo de transeuntes, quando da não presença do rapa. Ademais, faziam-no também, graças ao suborno dos Guardas Municipais ou fugindo de sua fiscalização devido à mobilidade intra-urbana acentuada que os caracterizava.

Conseqüentemente, com a política de organização e disciplinamento do comércio ambulante no Centro, não houve a ampliação da área ocupada, continuando os comerciantes ambulantes nas ruas Solon Pinheiro, Guilherme Rocha, Liberato Barroso, Senador Pompeu, Barão do Rio Branco, Major Facundo, General Sampaio, 24 de Maio, Pedro I, Pedro Pereira, Floriano Peixoto, São Paulo e General Bezerril, a galeria Pedro Jorge, o ‘’Beco da Poeira’’ e as praças José de Alencar, da Sé, da Estação, do Ferreira, dos Voluntários, da Lagoinha, e Coração de Jesus (Figura 4).

Embora a ampliação da área tenha sido contida em relação ao período anterior, na gestão que se segue, César Cals Neto (17/03/1983 a 31/05/1985), fala-se da ampliação do número de comerciantes no Centro e da necessidade de intervenção do Poder Municipal no sentido de coibir tal atividade.

Caso comparem-se os dados apresentados pela Secretaria de Serviços Urbanos e pelo Departamento de Vigilância Municipal em torno do número de comerciantes ambulantes existentes no Centro, constata-se uma imprecisão. Se até 1983 a Secretaria afirmava existir mais de 5.000 comerciantes ambulantes no Centro, o Departamento apresentava, neste período, uma cifra menor: da existência de 4.500 comerciantes ambulantes exercendo suas atividades na área central, dentre os quais, somente 2.500 cadastrados (dados fornecidos pelo Departamento de Vigilância do Município ao Jornal O Povo, 26/08/84).

Apresentava-se a seguinte questão: como falar de aumento no número dos comerciantes ambulantes, se de fato havia, segundo os dados, uma diminuição - de mais de 5.000 para 4.500 comerciantes ambulantes? Embora os dados apresentados apontassem à diminuição do número de comerciantes ambulantes a exercerem suas atividades no Centro, não havia a ocorrência de uma diminuição real do número de comerciantes ambulantes. Inclusive o período relativo à gestão de César Cals Neto, caracterizou-se pela intensificação desta atividade na área central. 

Mas, não houve somente mudanças quantitativas, ocorreram também mudanças qualitativas. O comércio ambulante, outrora móvel, começou a fixar-se. Não só enquanto resultado da atuação da Prefeitura Municipal de Fortaleza, mas também devido à autoconstrução de barracas nos logradouros público do Centro - notadamente nas praças com terminais de ônibus. Segundo a Prefeitura Municipal de Fortaleza, o que ocorria era a construção de barracas pelos comerciantes ambulantes que haviam obtido a concessão de permissão para comercialização.

A modificação no uso do espaço público, a partir da apropriação do espaço público nos moldes acima, foi uma das determinantes da intervenção da Prefeitura. Segundo pronunciamento do Secretário de Imprensa, o ‘’lema da prefeitura é manter a cidade limpa, pelo menos em condições para que se use as praças, coisa que vinha sendo impossível de ser feita devido a enxurrada de camelôs que praticamente impossibilitam o trânsito dos pedestres’’ (Jornal O Povo, 12/02/85). A higiene no Centro e a obstrução ao fluxo de pedestre, foram as questões levantadas pela Prefeitura para dar sustentação à intervenção.

À redução da existência do comércio ambulante nos logradouros públicos a um caso de polícia, acrescenta-se a perspectiva higienista, ao ser afirmado pelo Secretário de Saúde do Município, Efrem Lustosa da Costa, “que a saúde da população e o aspecto higiênico da cidade são pontos que devem ser levados em consideração’’ (Jornal O Povo, 12/01/84). Portanto, não é de se estranhar a participação intensa, nesse período, da Secretária de Saúde do Município, no que se refere às questões relativas ao uso do espaço público pelo comércio.

Esta postura servia à expectativa da gestão municipal em garantir o espaço da circulação. Entretanto, ao não conseguí-lo, na totalidade, deu margem à adoção de práticas, por parte dos lojistas, no sentido de impedir a apropriação privada do espaço público pelo comércio ambulante. Tratava-se da criação dos condomínios, ou melhor, grupo de lojistas que se reuniam em dado quarteirão com o objetivo de impedir o exercício do comércio ambulante, a partir da preservação do espaço da circulação. Para tanto, destinavam uma taxa (cada lojista) que seria utilizada na manutenção dos calçadões e não muito raro na complementação dos ganhos dos fiscais do rapa.

Perfazendo um total de três condomínios no Centro (na rua Liberato Barroso, entre as ruas General Sampaio e Senador Pompeu; na rua Guilherme Rocha, entre as ruas Barão do Rio Branco e Major Facundo; na rua Perboyre e Silva – Figura 3), nestes quarteirões não havia a presença dos comerciantes ambulantes, a não ser nos horários fora da jornada de trabalho do rapa. A iniciativa privada mostrou-se eficaz, contribuindo por sua vez, para o agravamento dos conflitos violentos existentes entre o rapa e os comerciantes ambulantes.

A luta contrária à tentativa de remoção do comércio ambulante das áreas consideradas impróprias se deu com a realização de uma passeata dos comerciantes ambulantes até o Gabinete do Prefeito. Contando com a adesão de políticos e da sociedade, exigiam a regularização de suas atividades e a garantia de espaço próprio para a comercialização de seus produtos. Os comerciantes ambulantes, que outrora se caracterizavam pela intensa mobilidade, com essa exigência, incorporavam a intenção normatizadora da Prefeitura Municipal de Fortaleza como estratégia de sobrevivência no Centro, o que levou ao freamento da fiscalização ostensiva e violenta do rapa; à criação de uma nova área para o comércio ambulante na praça Valdemar Falcão e ao lançamento de bases de discussão para construção do Centro dos Comerciantes Ambulantes na área designada "Beco da Poeira".

Embora o empenho da administração César Cals tenha se voltado para a tentativa erradicação do comércio ambulante no Centro, a luta pela regularização garantiu o retorno dos ambulantes às áreas ‘’limpas’’. À área ocupada na gestão de José Aragão, temos acrescidas no Governo de César Cals, as ruas Conde D'Eu, Sena Madureira e Castro e Silva, além das praças Cristo Redentor e Valdemar Falcão (Figura 4).

Com a cassação do mandato de César Cals Neto, pelo então governador Gonzaga Mota, assume Barros Pinho (01/06/1985 a 31/12/1985), cuja atuação caracterizou-se pela adoção  de uma política de convivência com o comércio ambulante.

Ao invés de tentar inviabilizar a apropriação privada do espaço público pelo comércio ambulante, Barros Pinho, nestes seis meses de governo, forneceu licenças para comercialização e até para instalação de infra-estrutura (água, energia elétrica...) nas barracas autoconstruídas nos logradouros públicos. A única limitação posta, era a relativa àqueles que não conseguiam a indicação de políticos.

A atuação clientelista de convivência, fez com que ocorresse a ampliação da área ocupada por barracas autoconstruídas nas praças. Fato que denotou a fragmentação de parcela substancial do espaço público entre os comerciantes ambulantes, a ponto de muitos passarem a viver com a construção e venda imediata dos pontos comerciais para ambulantes ou construíam e simplesmente alugavam. Com o advento da especulação no espaço público - aluguel e venda de pontos -, à mobilidade acentuada que caracterizava a atividade do comércio ambulante, deu-se lugar à fixidez. Fixidez que expressou, com grande força, a hierarquização entre comerciantes ambulantes proprietários e não-proprietários de pontos, dado que em última instância irá definir o acesso ao espaço público.

O resultado obtido nestas gestões fugiu às intenções iniciais do projeto de modernização idealizado para o Centro. Com a construção das ruas jardins e do sistema de transporte coletivo voltados à amenização de questões relativas à infra-estrutura, e com a modificação das fachadas das lojas, através da incorporação de um design moderno,  o que vai ocorrer, a partir dos anos 1970, é tão somente o enfraquecimento acentuado da atração do Centro em relação aos usuários e consumidores das classe de maior poder aquisitivo. Essas modificações, no nível da forma, não foram suficientemente capazes de redefinir a centralidade do Centro. A urbanização da área, a partir da implantação de um sistema de transporte coletivo sobre uma estrutura viária radiocêntrica, viabilizou o deslocamento de pessoas dos bairros da periferia de Fortaleza pelo e para o Centro e não a esperada ampliação do atrativo da área central após sua modernização.

A ocupação do espaço público pelo comércio ambulante expressa o fracasso da intenção de retomada da hegemonia da área central de Fortaleza. Embora o projeto de modernização tentasse alterar o perfil de seus usuários, o Centro continua a ser freqüentado, predominantemente, pelas classes de menor poder aquisitivo, tanto por ser local de passagem e de consumo, quanto local de encontro e por vezes da festa. Isto  leva a repensar-se, nas administrações que se seguem, a política de modernização através da incorporação de uma política de revitalização do Centro.

A Segunda Onda: Revitalizar é a Ordem (1986-1995)

Neste período, a intervenção da Prefeitura Municipal de Fortaleza dá-se, também, no sentido de restabelecer a ordem, a partir da normatização do espaço. A diferença é que a  tentativa de normatização do Centro, deixa de voltar-se somente à garantia  das relações de troca - com a transformação do Centro em lócus privilegiado de consumo - e procura criar possibilidades para o seu consumo enquanto imagem.

Com isso, tenta-se passar não só a idéia do conforto para as compras, mas, a partir da reconstituição do conjunto arquitetônico do Centro, o desenvolvimento da idéia do Centro Histórico como elemento de diferenciação desta área em relação a outras áreas de consumo. Esta tentativa de transformação do Centro em lócus de consumo que também passa a ser consumido como imagem, pôs em voga uma série de intervenções por parte das gestões municipais no que tange à apropriação privada do espaço público pelo comércio ambulante. Trata-se do Programa de Disciplinamento e Saneamento das Praças e Passeios do Centro de Fortaleza (PRODSA), executado na gestão Maria Luiza e do Projeto de Ordenação do Comércio Ambulante - zona central, pensado e iniciado na gestão Ciro Gomes e continuado nas gestões Juraci Magalhães e Antônio Cambraia.

a) Programa de  Disciplinamento  e  Saneamento das Praças e  Passeios do Centro de Fortaleza

Na gestão de Maria Luiza Fontenelle (01/01/1986 a 31/12/1988), o Programa de Disciplinamento e Saneamento das Praças e Passeios do Centro de Fortaleza (PRODSA) foi elaborado considerando a presença do comerciante ambulante, que perfazia neste período, um total de 8.000 (informação fornecida pela Secretaria de Serviços Urbanos ao Jornal O Povo, 24/03/86).

Nesta gestão, promove-se campanha de divulgação visando convencer os comerciantes ambulantes dos benefícios que obteriam com a regularização de sua atividade e aceitação das propostas de ordenamento preconizadas. Para tanto, foi criada a Coordenação do Comércio Ambulante - fazendo parte da Secretária de Serviços Urbanos - que, juntamente com outros órgãos públicos, adotava ações de enfrentamento em três perspectivas: a) remanejamento - deslocamento dos feirantes (comerciantes ambulantes que comercializavam com produtos alimentícios) para feiras e mercados públicos, bem como para áreas a serem criadas exclusivamente para o comércio ambulante do Centro; b) dimensionamento - limitação do número de comerciantes ambulantes por área; c) disciplinamento - regularização desta atividade a partir da aplicação do Código de Posturas do Município de Fortaleza.

Segundo o discurso presente nesta gestão, partia-se para a reconquista do Centro da Cidade de Fortaleza, ao eliminar problemas como: o da ‘’degradação ambiental’’ dos logradouros públicos; o da especulação com o espaço público e o do congestionamento nos terminais de ônibus das praças do Centro. A reconquista do Centro, nos termos aqui propostos, tratava-se da tentativa de modificação do uso do espaço público, fato que podemos apreender nos projetos de urbanização executados[i]. O interessante é que todos esses projetos de urbanização, que têm como questão de fundo a normatização do uso do espaço público pelo comércio ambulante, contavam com o apoio da Associação dos Profissionais Vendedores Ambulantes do Ceará (APROVACE). O Presidente desta associação assumia a postura da Prefeitura como sua e, ao mesmo tempo, o Poder Municipal fortalecia a citada associação ao exigir a filiação como condição à alocação em espaços permitidos à comercialização.

A busca da legalização através do cadastramento foi tão acentuada, que a associação dos ambulantes não media esforços para a legitimação da atividade perante os órgãos públicos. A perspectiva de legalização da atividade tornou atraente aos comerciantes ambulantes o projeto de normatização do uso do espaço público no Centro, segundo uma postura formalista e funcionalista de cidade, haja vista, garantir e fornecer um local fixo e destinado ao exercício desta atividade.

A resultante dessa estratégia foi a possibilidade de adoção de uma política de intervenção pontual que leva à criação de áreas para o comércio ambulante na praça dos Leões e no Beco da Poeira; à proibição do comércio ambulante nas praças da Estação, da Lagoinha e José de Alencar, como resultado da interdição na primeira e reforma das outras duas e à retirada de grande parte das barracas auto-construídas, restando delas, somente, nas praças Coração de Jesus e da Escola Normal.

A partir dessa política pontual, constituiu-se uma hierarquização pautada na legalidade e que torna predominante a hierarquia entre ambulantes cadastrados e não-cadastrados, tendo os primeiros o direito a usufruir de parcela do solo urbano que lhes é destinada e os demais, caso não se desloquem para pontos em mercados e feiras livres da periferia, não poderiam comercializar no Centro.

No entanto, a legalização pautada na fixação, longe de resolver a problemática da apropriação privada do espaço público pelo comércio ambulante, trazia dificuldades relativas à realização da mercadoria. A título de exemplo, temos os comerciantes ambulantes lotados no Centro dos Comerciantes Ambulantes - antigo ‘’Beco da Poeira’’. Estes ambulantes, devido a queda nas vendas, passaram  a ocupar a praça José de Alencar sob o pretexto de que lá iriam conseguir os mesmos ganhos obtidos nos pontos anteriores.

Além de problemas relativos à realização da mercadoria, esta prática da Prefeitura expressa o outro lado da moeda, a tentativa do Poder Municipal em dificultar a apropriação privada do espaço público pelo comércio ambulante. Se havia esta limitação ao uso do espaço público, por que os comerciantes ambulantes cadastrados, representados por sua associação, aceitavam a fixação? Aceitavam-na, como estratégia que visava a permanência e reprodução de sua atividade no Centro, ficando assim livres da atuação do rapa, ao  garantir parcela do solo urbano para o desenvolvimento de suas atividades. Ademais, com o disciplinamento e ordenamento, não teriam a concorrência aumentada com a ocupação das áreas públicas por outros comerciantes ambulantes, notadamente os não-cadastrados.

Embora contando com esse apoio, a intervenção da Prefeitura não consegue inviabilizar a continuidade da comercialização de produtos em áreas não permitidas. Contribuía para isto a adoção de estratégias de resistência capazes de burlar a fiscalização e pautadas na capacidade de intensa mobilidade que passava a caracterizar,  principalmente, os comerciantes ambulantes não-cadastrados. A mobilidade intensa era conseguida graças à utilização de equipamentos de trabalho leves e com pouca quantidade de mercadoria   facilitadores do deslocamento a qualquer momento, seja fugindo dos fiscais, quando informados de sua aproximação por uma rede de informação, seja ocupando as áreas fora da jornada de trabalho dos fiscais - antes das 7h, na hora do almoço e após as 18 h - e retirando-se imediatamente após o reinicio da fiscalização. A estes dados acrescentava-se ainda, o suborno da fiscalização.

As dificuldades postas à realização da atividade do comércio ambulante no Centro e a sua não incorporação total à política de fixação, fez com que ambulantes continuassem na área compreendida pelas ruas Solon Pinheiro, Guilherme Rocha, Liberato Barroso, Senador Pompeu, Barão do Rio Branco, Major Facundo, General Sampaio, 24 de Maio, Pedro I, Pedro Pereira, Floriano Peixoto, São Paulo, Conde D'Eu, Sena Madureira, General Bezerril e Castro e Silva; das praças José de Alencar, da Sé, da Estação, do Ferreira, Coração de Jesus, da Lagoinha, da Escola Normal, Valdemar Falcão, do Fórum, Paula Pessoa (mercado); da avenida Tristão Gonçalves, bem como, do Estacionamento dos Correios, Galeria Pedro Jorge e Centro dos Comerciantes Ambulantes (Figura 5).

 

Figura 5

 

Na administração Maria Luiza deram-se os primeiros passos no sentido de  normatizar o uso do espaço público segundo uma política de revitalização. Dai as reformas, segundo padrões arquitetônicos que remontam ao Centro de outrora, das praças da Lagoinha e José de Alencar e a tentativa de descentralização dos terminais de ônibus sitos nas praças. Entretanto, não conseguiu atingir um dos intuitos basilares da proposta de revitalização, ou seja, o disciplinamento e ordenamento do comércio ambulante na totalidade, fato que leva a se adotar, na gestão de Ciro Gomes, o Projeto de Ordenação Espacial do Comércio Ambulante - zona central.

b) Projeto de Ordenação Espacial do Comércio Ambulante - zona central.

Elaborado na gestão de Ciro Gomes (01/01/89 a 01/04/90), o Projeto de Ordenação Espacial do Comércio Ambulante- zona central, visava  acabar com o "desordenamento" do comércio ambulante, provocado pelo acúmulo considerado excessivo de  comerciantes  ambulantes  em  determinadas áreas e pela existência de tipos de comércios que afirmavam serem  incompatíveis com o local. Daí conter uma proposta de macrozoneamento, estabelecendo o número máximo de ambulantes por área, sendo o excedente deslocado para feiras e mercados públicos em bairros periféricos (Figura 6).

 

Figura 6

 

Tendo como pretexto o resgate da área central para a população, buscava inviabilizar  a forma de uso dos comerciantes ambulantes, ao  adotar medidas de caráter repressivo, através da atuação dos fiscais da Secretária de Serviços Urbanos, em ação conjunta com o Batalhão de Choque da Polícia Militar. Tratava-se de uma tentativa de erradicação do comércio ambulante em determinadas áreas do Centro. Para isto, iniciou-se uma redistribuição forçada e violenta dos comerciantes ambulantes cadastrados,  redistribuição que foi feita por área e por produto a ser comercializado.

Esta prática ratificou, através da atuação dos fiscais e da Polícia Militar, a dificuldade à apropriação privada do espaço público, tendo sido as barracas, que ainda restavam nas praças da Sé, da Estação, do Ferreira, da Lagoinha, do Coração de Jesus, dos Voluntários, da Escola Normal, do Passeio Público, dos Leões e nas ruas Barão do Rio Branco e Sena Madureira, retiradas. Seus proprietários deveriam ser remanejados para mercados públicos, para bairros periféricos ou para o Centro dos Comerciantes Ambulantes, quando se tratava de comerciante ambulante cadastrado (Figura 7).

 

Figura 7

 

Reforça-se com essa prática, em níveis nunca dantes encontrados, uma hierarquização entre comerciantes ambulantes cadastrados e não-cadastrados. Esta hierarquização continua a ser aceita e defendida pela associação dos ambulantes, a qual deixa de lado os anseios dos ambulantes não-cadastrados, ao continuar incorporando a política de disciplinamento e ordenamento implantada pela Prefeitura, o que denotou a abdicação da possibilidade de apropriação do espaço público, a partir do momento que se admite só poder exercer a atividade do comércio ambulante em áreas públicas permitidas pelo Poder Municipal.

Como resultado, a paisagem urbana da área central foi substancialmente alterada, devido à relocação de comerciantes ambulantes para áreas "menos congestionadas" e o recadastramento daqueles que permaneceram na área, aceitando as normas determinadas pelo Departamento do Comércio Ambulante: uso de equipamentos padronizados, de bata, permanência nos locais indicados (aceitação da fixação) e no caso dos ambulantes itinerantes, sem baixar a mercadoria.

Todavia existiam comerciantes ambulantes não inseridos nessa lógica. Em trabalho de campo constatou-se a presença de comerciantes não-cadastrados a comercializarem em áreas impróprias, devido a adoção de estratégias de resistência que visavam burlar a fiscalização. Dentre eles, alguns conseguiam permanecer no Centro graças a intensa mobilidade intra-urbana que facilitava a fuga quando da aproximação da fiscalização. A única diferença em relação às administrações anteriores é que com as proporções que atingia a normatização do espaço público, esses comerciantes eram exceção à regra.

Nas proximidades da praça do Fórum, constatou-se a presença de comerciantes ambulantes que alugaram o terreno em área de um antigo estacionamento,  após reforma  feita pelo proprietário. No presente momento só encontramos este tipo de ocupação na praça citada, haja vista a encontrada na rua São José ter sido fechada devido sua localização dificultar o acesso dos clientes e contar com pequeno fluxo de transeuntes. A intenção deles era a de adquirirem caráter de legalidade com seu estabelecimento em área particular, colocando-se fora da perspectiva posta pelo Projeto de Ordenação Espacial do Comércio Ambulante - zona central, e que versa unicamente em relação à apropriação do espaço público.

Ademais, existiam comerciantes ambulantes cadastrados que continuavam a ocupar áreas consideradas impróprias pela Prefeitura. Tratavam-se de comerciantes ambulantes estabelecidos no Centro dos Comerciantes Ambulantes que a buscavam aumentar o ganho diário através da ocupação da praça José de Alencar e da rua 24 de Maio, seja burlando a fiscalização ou fora do horário de trabalho dos fiscais - antes das 7 h, na hora do almoço e a partir das 18h. Embora tenham ponto fixo, a ocupação destas áreas dava-se devido serem concentradoras de um grande fluxo de transeuntes, consumidores em potencial que poderiam ampliar a margem de ganho diário destes comerciantes.

Essa normatização do uso do espaço público, a partir do Projeto de Ordenação Espacial do Comércio Ambulante- zona central, que é iniciada na gestão Ciro Gomes, é continuada na gestão Juraci Magalhães (02/04/90 a 31/12/92). 

A política de intervenção, adotada nesta gestão, dava continuidade ao Projeto de Ordenação Espacial do Comércio Ambulante-zona central, portanto, não é de estranhar a manutenção da repressão violenta em torno da apropriação privada do espaço público pelo comércio ambulante. Constatações dessa leitura podem ser feitas a partir da ocorrência de vários incidentes que continuavam a ocorrer na Praça José de Alencar, envolvendo comerciantes ambulantes, fiscais, guardas da Polícia Militar e, em alguns momentos, os transeuntes. A violência em relação ao comércio ambulante é tão acentuada que se registrou em 07/03/94 a realização de missa de solidariedade na Praça José de Alencar, em protesto à violência ocorrida na intervenção dos fiscais e dos Guardas da Polícia Militar. Missa organizada pelos comerciantes ambulantes do Centro, comunidades eclesiais de base, partidos políticos de esquerda e algumas entidades de classe,  que buscava sensibilizar a sociedade e a Prefeitura quanto à violenta intervenção policial. No entanto, não surtiu os efeitos esperados, continuando a Prefeitura a agir segundo os mesmos pressupostos.

É na administração de Juraci Magalhães que este projeto toma maior força, ao ponto de ter sido restrita a permanência no Centro aos comerciantes ambulantes cadastrados. A situação atingiu proporções tamanhas, que os considerados 8.000 comerciantes ambulantes existentes na área central de Fortaleza, na gestão de Maria Luiza, foram reduzidos a aproximados 3.380 (dado fornecido pela Secretaria de Serviços Urbanos ao Jornal O Povo, 09/10/91), sendo considerados e tratados nesta gestão, somente os 2.483 comerciantes ambulantes cadastrados (número proposto no Quadro 1).

Quadro 1. Número dos comerciantes ambulantes existentes,  proposto , excedente e vaga criada
Ruas e Praças
Existente
Proposto
Excedente
Vaga criada
Ruas e Praças
existente
Proposto
Excedente
Vaga criada
Sena Madureira
24
12
12
Senador Pompeu
127
62
65
Governador   Sampaio
20
00
20
General Sampaio
213
63
150
General Bezerril
448
354
94
24 de Maio
159
51
108
Conde D’Eu
66
45
21
Tristão Gonçalves
77
35
42
Perboyre e Silva
06
12
-
06
Imperador
12
23
11
Solon Pinheiro
141
00
141
Largo da Assembléia
47
10
37
Travessa Sobral
75
00
75
P. General Tibúrcio
18
06
12
Travessa Crato
14
08
06
P. do Ferreira
51
59
-
08
Trav.  Morada  Nova
34
27
07
P. José de Alencar
138
62
76
Pedro Borges
26
22
04
P. da  Estação
21
55
-
34
Assunção
08
08
00
P. dos Voluntários
21
20
01
Guilherme Rocha
153
50
103
P. Coração de Jesus
118
80
38
Liberato Barroso
86
24
62
P. Valdemar Falcão
164
115
49
Pedro Pereira
56
51
05
P. da Sé
05
16
-
11
Pedro I
54
48
06
P.  da Lagoinha
25
34
-
09
Senador Alencar
36
38
-
02
P. do  Carmo
13
26
00
13
São Paulo
38
41
-
03
P. da  Escola Normal
31
14
17
Castro e Silva
35
38
-
03
P. Clóvis Beviláqua
04
15
-
11
Floriano Peixoto
112
50
62
Galeria Viçosa
03
-
03
Major Facundo
103
58
45
Feirão Popular
275
408
-
133
Barão  do  Rio  Branco
177
75
102
Centro Comercial
146
354
-
208
Pça.  Merc.  Paula   Pessoa
00
14
-
14
SUB-TOTAL(2)
1.668
1.508
609
427
SUB-TOTAL(1)
1.712
975
765
28
TOTAL(ST1+ST2)
3.380
2.483
1.374
455
  Fonte: Proposta de Ordenação Espacial do Comércio Ambulante - Zona Central SSU/PMF, 1989.

 

Quando se analisa tais dados percebe-se que o intento da Prefeitura  era o de reduzir o número de comerciantes ambulantes existentes na área central, através da priorização do tratamento aos comerciantes ambulantes cadastrados: denominados de número proposto e que foram redistribuídos por área e produto nas ruas do Centro (as consideradas próprias pela Prefeitura), no Feirão Popular e no Centro dos Pequenos Negócios do Vendedor Ambulante.

Com o desdobramento de tal política de normatização do espaço público a área ocupada pelo comércio ambulante foi reduzida. Áreas que há muitos anos eram marcadas pela presença do comércio ambulante, com seus equipamentos característicos, deixaram de existir com a relocação. Como exemplo tem-se a praça Valdemar Falcão e o calçadão da rua General Bezerril (Figura 8).

 

Figura 8

 

Novo, nesse processo de relocação, eram as condições postas à transferência dos comerciantes ambulantes para o Centro dos Pequenos Negócios do Vendedor Ambulante, após  sua reforma - com a construção de boxes com premoldados. A transferência só dar-se-ia caso : a) não fossem comerciantes de produtos alimentícios, daí relocar seus antigos ‘’proprietários’’ para área ao lado e que denominou-se Feirão Popular; b) mediante o pagamento de prestações, referentes à construção do box pela construtora Metro, à APROVACE (Associação dos Profissionais Vendedores Ambulantes do Ceará).

Essa prática demonstra que a inserção da associação dos ambulantes, não se deu somente como resultado de sua cooptação à razão racionalizadora da Prefeitura Municipal de Fortaleza, mas, enquanto anseios de uma associação que  representava, com  maior  ênfase,  os comerciantes cadastrados, notadamente aqueles que dispunham de melhores condições financeiras e que, na sua maioria, encontravam-se no calçadão da rua General Bezerril. Portanto, pode-se afirmar ter sido esta transferência para o Centro de Pequenos Negócios do Vendedor Ambulante, expressão do poderio e anseios dos comerciantes ambulantes bem sucedidos.

Aos comerciantes ambulantes não-cadastrados restava, como condição para sua reprodução: a) deslocamento para mercados públicos e feiras livres na periferia, conforme indicação do Departamento do Comércio Ambulante; b) permanência na área sob o risco de ter sua mercadoria apreendida pela fiscalização; c) estabelecimento nas colunas das portas de entrada das lojas, em comum acordo com seus proprietários. Esta estratégia, na maioria das vezes, só era possível com o pagamento de uma taxa de permanência ao dono da loja, fato que em contrapartida inviabilizava a intervenção da Prefeitura, por criar problemas atinentes à competência da Secretária à qual estava vinculado o Departamento do Comércio Ambulante e que  tratava somente de questões atinentes ao uso do espaço público; d) ocupação de áreas, no Centro, onde não dava-se a fiscalização ostensiva do Departamento  do Comércio  Ambulante e que  dispunha de um fluxo considerável de  transeuntes, notadamente calçadas nas proximidades dos Bancos do Estado do Ceará (BEC), na rua Bárbara de Alencar e da Caixa Econômica Federal, na avenida Pessoa Anta em dias de pagamento; e) ocupação de áreas na periferia que dispunham de considerável fluxo de pessoas, como entrada de fábricas e hospitais.

O não cadastramento desses ambulantes não consistiu numa posição contraria à política de disciplinamento e ordenamento do comércio ambulante que foi praticada pela Prefeitura. A não incorporação destes mais de 5.000 comerciantes ambulantes ao citado projeto de ordenação espacial apresenta-se como forma de reduzir e impedir a ampliação da área ocupada por esta atividade. Para tanto, investiu-se na fiscalização repressiva e na desestruturação da rede de depósito de mercadorias: locais que guardavam as mercadorias dos comerciantes ambulantes, principalmente os não cadastrados, mediante pagamento de taxa diária. Foram descobertos por técnicos do Departamento de Vigilância Sanitária, oito depósitos desta natureza nas ruas 24 de Maio (2), Guilherme Rocha (2), Liberato Barroso (2) e Travessa do Patrocínio (2) (Jornal O Povo, 10/10/91).

Todo esse processo de exclusão e inclusão do comércio ambulante no Centro foi a base de sustentação para o desenvolvimento de projetos de urbanização pautados num modelo de cidade funcionalista e formalista. Na administração de Juraci Magalhães não será diferente, por dá-se nela o início da implantação do projeto intitulado: Projeto Shopping Centro. Financiando em 2/3 (dois terços) pelo Clube dos Diretores Lojistas, tal projeto visava, segundo seus idealizadores, resgatar as tradições históricas do Centro, a partir de uma estratégia de revitalização, que além de reparar as deficiências do Centro da cidade em termos de infra-estrutura, visa oferecer aos consumidores um conjunto aproximado ao disponível nos Shopping Center. As especificidades do Centro, relacionadas à sua tradição histórica que está presente no conjunto arquitetônico encontrado, foram, e ainda continuam a ser, o achado utilizado para atrair consumidores que se utilizavam e utilizam de outras áreas da estirpe dos "Shopping Center".

Embora a gestão de Maria Luíza apontasse também, à tendência de revitalização com a reforma de praças como a da Lagoinha e José de Alencar e, na gestão de Ciro Gomes, tenham sido lançadas bases para implantação desse tipo de projeto a partir da tentativa de normatização de espaço público, foi na gestão de Juraci Magalhães, onde as condições objetivas para a constituição do Centro enquanto imagem a ser consumida foram postas.

Inserindo-se nesta perspectiva, tivemos as reformas dos calçadões das praças do Ferreira, do Passeio Público e dos Leões, bem como a reconstituição de todo conjunto arquitetônico vinculado ao exercício do poder que nela se encontra. Os lojistas, por sua vez, pensavam na reconstituição das fachadas antigas dos seus estabelecimentos comerciais.

Explica-se, mais uma vez, a tentativa de atrair os consumidores da classe alta e média alta, que satisfaziam suas necessidades materiais e imateriais no Centro, além do atrativo lançado aos turistas. Atrativo resultante das especificidades do Centro quanto à sua tradição histórica. É nesta perspectiva que a gestão de Antônio Cambraia (01/11/93 a 1995), passa a intervir na área central, sendo o Projeto de Ordenação Espacial do Comércio Ambulante - zona central e o Projeto Shopping Centro continuados sob os mesmos moldes.

No que se refere ao comércio ambulante, a Prefeitura continua fiscalizando a área central no sentido de impedir o acesso dos comerciantes ambulantes às áreas consideradas por eles como impróprias a este tipo de uso. A ocupação da praça José de Alencar nos horários em que não há fiscalização e a continuidade da venda de produtos por comerciantes ambulantes não-cadastrados, postados nas portas das lojas - como ocorre na rua Guilherme Rocha -, são expressão do embate dos comerciantes ambulantes ao projeto de normatização do espaço público, embora representem um número pequeno se comparado aos comerciantes ambulantes cadastrados (em torno de 700 comerciantes ambulantes não-cadastrados, conforme fiscais do Departamento do Comércio Ambulante).

A redução do número de comerciantes ambulantes não-cadastrados a permanecer no Centro resulta da eficácia da estratégia de fiscalização implementada pelo Departamento do Comércio Ambulante. Expressão desta redução é a diminuição das apreensões de mercadorias. Para não ficar somente em retórica, pode-se apreender esta "intensificação da fiscalização" a partir de uma comparação matemática do número aproximado de quarteirões e de fiscais do Departamento do Comércio Ambulante. Ter-se-á 100 quarteirões para 200 fiscais, equivalendo proporcionalmente a um quarteirão para cada dois fiscais. Portanto, número mais do que suficiente para disciplinar o comércio ambulante no Centro e, conseqüentemente, atender a esta condição básica para continuidade da implantação do Projeto Shopping Centro.

Conseqüentemente, no que tange ao Projeto citado, tem-se a adoção de projetos de urbanização complementares, visando a descentralização dos terminais de ônibus, além de pensarem até na "reabitação do Centro". A descentralização dos terminais de ônibus é buscada com o início da implantação do Sistema Integrado de Ônibus. Com a construção de terminais de ônibus em  bairros como  Papicú, Messejana, Parangaba, Antônio Bezerra e Posto Carioca, e sua interligação através das  Linhas Circulares, inicia-se a  substituição do sistema de transporte coletivo baseado em estrutura viária radiocêntrica. O objetivo de  tal sistema é o de amenizar a situação do Centro enquanto área de transbordo de passageiros. A intenção de reabitar o Centro passa, também, pela problemática relativa à destinação social pretendida. Para tanto, lança-se mão de propostas de repovoamento de área próxima ao Poço da Draga, visando gerar fluxo de pessoas - novos moradores - para utilizarem-se da infra-estrutura existente na área central.

Na perspectiva de redefinição do uso do solo urbano no Centro, os empresários, além de apoiarem e financiarem o Projeto Shopping Centro, começam a instalar infra-estrutura de comércio e serviço para o atendimento de uma clientela  diferente daquela que é hegemônica no Centro.  A Mac Donald (lancheteria), O Boticário (perfumaria) e as lojas de confecções com grife famosa como: Packway, Oboé e Bunnys, estabelecendo-se no Centro, representam pois, a instalação dessa infra-estrutura de comércio e serviços para uma clientela da classe média e quiçá da classe  média-alta, alta e  dos turistas. As  duas  últimas lojas incorporam a tal ponto o projeto de revitalização que reconstituem a fachada dos prédios onde exercem suas atividades.

A chamada revitalização quer reinserir os consumidores citados ao cotiadiano do Centro. Este fato é entendido pelo poder municipal e defensores desse projeto - empresários e comerciantes ambulantes cadastrados -, como dado que levará à melhoria no uso do espaço público do Centro da cidade de Fortaleza.

Os projetos de revitalização, adotadas nestas duas últimas gestões, conseguem normatizar a níveis nunca vistos o comércio ambulante. Há a diminuição do número de comerciantes ambulantes no Centro e redução da área por eles ocupada, fundando-se a hegemonia do comércio ambulante fixado. A ampliação do Centro de Pequenos Negócios (concluída em 1995) e o remanejamento temporário dos comerciantes ambulantes do Feirão Popular para a praça José de Alencar enquanto se constrói, naquele local, um mercado público para comercializarem é um exemplo da priorização desta prática.

O comércio ambulante fixado, via de regra, é o resultado da inserção do comércio ambulante ao modelo de cidade baseado no formalismo e no funcionalismo. O desenvolvimento de sua atividade passa a ser admitido pelo Poder Municipal ao não trazer, como outrora, problemas ao livre fluxo de transeuntes que se deslocam pelas ruas e praças do Centro. Demonstra-se, através desta intervenção, a priorização do espaço da circulação, o qual leva à mudança de natureza do comércio ambulante, tanto no que se refere à situação de ilegalidade, quanto à forma de apropriação do solo urbano do Centro.

Com o cadastramento e fixação a legalidade está posta, existindo somente algumas exceções a esta regra: os comerciantes ambulantes não-cadastrados e, portanto, fora dessa política da Prefeitura.

Com a criação de áreas construídas para o exercício do comércio ambulante, aponta-se o direcionamento da ocupação do espaço público pelo comércio ambulante no Centro segundo diretrizes da Prefeitura e a assimilação da política de fixação por particulares que passam a alugar terrenos no Centro para os comerciantes ambulantes não-cadastrados, denotando-se a passagem de uma apropriação privada do espaço público, para uma apropriação privada, via aluguel, de espaço privado.

Considerações Finais

Resultado do processo de normatização do espaço público o que a fixação do comércio ambulante representa? O fim do comércio ambulante ou uma estratégia de resistência adotada pelos envolvidos nesta atividade, visando sua reprodução? A perda de mobilidade com a fixação de parte substancial do comércio ambulante, juntamente com a modificação da denominação do Centro dos Comerciantes Ambulantes para Centro de Pequenos Negócios - na gestão Juraci Magalhães -, pode servir de argumentação poderosa para anunciar o seu fim, ao significar a incorporação do ideal de dados comerciantes ambulantes em identificarem-se enquanto pequenos comerciantes. No entanto, existem outros que aceitam a fixação, mas nos momentos próprios deslocam parte de seus produtos para comercializar em pontos melhores, adotando uma perspectiva de aceitação da ordem estabelecida como estratégia capaz de garantir o deslocamento quando possível. Seria o que Chauí (1984) denomina de conformismo e resistência, por ser mais interessante considerá-lo ambíguo "(...) capaz de conformismo ao resistir, capaz de resistência ao se conformar. Ambigüidade que o determina radicalmente como lógica  e prática que se desenvolvem sob a dominação". Ambigüidade, nestes termos, que não seria carente de um sentido rigoroso, mas constituída de dimensões simultâneas.

As alterações na paisagem urbana apontam essas modificações. Paisagem urbana não atrelada à concepção tradicional de paisagem que se reduz à aparência, ao perceptível, à realidade dada e sobre o qual se deve intuir. Para Carlos (1992), a paisagem urbana é humana, histórica e social, que existe e se justifica pelo trabalho da sociedade. Logo materialização do trabalho humano que vai expressar um determinado momento do desenvolvimento das forças produtivas. Portanto, pode-se concluir que a paisagem está prenhe de construções com tempos históricos diferenciados e que não vivem sem conflito. Este conflito que resulta dos tipos de uso atinentes às formas, também vai externar o ‘’movimento escondido na forma’’.

Neste trabalho adotou-se esta perspectiva, ao apontar, quando se atentava à análise do espaço construído, os contrastes entre os tipos e diversidade de uso do espaço público, bem como o movimento da vida, ao apreender o processo de constituição da cidade moderna que aponta à sua transformação em lócus de consumo e de seu consumo enquanto imagem, portanto, gerador de fluxos e refluxos de pessoas na área central - fluxos e refluxos determinantes e determinados da atividade do comércio ambulante.

A modificação de suas características pode ser apreendida quando se analisa a materialização das formas e dos fluxos encontrados na área central de Fortaleza. Surgem formas criadas pela Prefeitura, para o exercício do comércio ambulante e formas construídas por particulares que as alugam para os comerciantes ambulantes, além da substituição de uma distribuição espacial do comércio ambulante concentrada nos cruzamentos das ruas e nos terminais de ônibus, por uma distribuição simétrica destes comerciantes no Centro. Também há a alteração na diversidade de cores e tons resultante da diversidade de materiais utilizados na construção das barracas e tabuleiros  -  papelão, madeira, chapas de ferro, plásticos ...  -  e da indumentária utilizada  pelos comerciantes ambulantes, levando à predominância do cinza do box pré-moldado (de alvenaria), do verde da barraca padronizada de madeira, do prata dos carrinhos de lanche (lataria) e principalmente  do amarelo, verde e branco  das batas utilizadas pelos comerciantes ambulantes cadastrados.

A presença dessas novas formas são o sustentáculo do facilitamento do fluxo de transeuntes na área central, os quais não  têm mais, como outrora, de compartilhar e disputar as  calçadas e praças com o comércio ambulante.

Ademais, não se pode esquecer do controle exercido pela Prefeitura em relação ao número de comerciantes a estabelecerem-se no Centro. Se nos anos 1980 falava-se em 5.000-10.000 comerciantes ambulantes na área central, atualmente só são admitidos e aceitos 2.483. Ao traçar-se um paralelo entre o andar no Centro nos anos 1980 e o andar no Centro nos anos 90 ter-se-á a expressão dessa modificação. Nos anos 1980, o transeunte no seu ir e vir deparava-se a todo momento com os comerciantes ambulantes e seus equipamentos, tendo muitas vezes de modificar seu trajeto.  Por conta disto, o comércio ambulante era  percebido e sentido através de suas formas, cores e sons, que poderiam  causar satisfação ou indignação aos usuários da área central. Já nos anos 1990, esse quadro modifica-se, e o comércio ambulante não é facilmente percebido e sentido no Centro, devido a disciplinarização e ordenamento posto em prática pela Prefeitura. Aos desavisados e não interessados na busca desse comércio, pode-se ter até a leve impressão da sua não existência, devido não se deparar mais, como antigamente,  com os comerciantes ambulantes e seus equipamentos, sendo suas formas, cores e sons menos visíveis aos não interessados ou desconhecedores do processo de normatização ocorrido no Centro.

Entretanto, a normatização não implica no controle total do tipo de uso característico do exercício do comércio ambulante. Existem comerciantes ambulantes que continuam a ocupar áreas consideradas impróprias pela Prefeitura, graças a adoção de uma série de estratégias capazes de burlar a fiscalização ostensiva. São os comerciantes ambulantes que expõem seus produtos nas colunas das portas de entrada de determinadas lojas (pagando ao proprietário para isso) e determinados comerciantes ambulantes cadastrados e os comerciantes ambulantes não-cadastrados que, se aproveitando dos “furos” na fiscalização, ocupam áreas ditas impróprias pela Prefeitura, nos horários fora da jornada de trabalho dos fiscais.

Notas

[i]  Dentre os projetos supracitados, Dantas (1990) enumera: a) Projeto Artesanato  (1986); b) Projeto S.O.S. Fortaleza - refazendo  a cidade (1987); c) Projeto de Recuperação da praça José  de  Alencar -  conquistando  o  coração da   cidade (1987); d) Projeto  de  Recuperação da Praça da  Lagoinha  (1988); e) Projeto de Recuperação  da  Praça da Estação (1988); f) Projeto  de  Reordenamento  das ruas  Barão  do  Rio  Branco, Major  Facundo  e  Floriano  Peixoto  (1988).

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Ficha bibliográfica:
DANTAS, E. W. C. Apropiação do espaço público pelo comércio ambulante: Fortaleza-Ceará-Brasil em evidência (1975 a 1995).
Geo Crítica / Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de diciembre de 2005, vol. IX, núm. 202. <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-202.htm> [ISSN: 1138-9788]

 
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