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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. X, núm. 205, 15 de enero de 2006
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]


ESTRUTURAS DA TERRITORIALIDADE CATÓLICA NO BRASIL

Sylvio Fausto Gil Filho
Departamento de Geografia da Universidade Federal do Paraná
faustogil@ufpr.br

Recibido: 7 de abril de 2005. Devuelto para revisión: 9 de junio de 2005. Aceptado: 6 de octubre de 2005.


Estruturas da territorialidade católica no Brasil (Resumo)

Este ensaio, sob o títuloEstruturas da Territorialidade Católica no Brasil” foi construído a partir da análise de que a Igreja Católica Romana mantém estratégias de expansão e preservação que são capitaneadas por determinadas estruturas da territorialidade do sagrado. A presença da Igreja Católica em realidades cada vez mais urbanas e cosmopolitas demonstra vários arranjos institucionais na manutenção da hegemonia territorial do sagrado diante do processo de secularização e da diversidade de identidades religiosas não-católicas. A cidade brasileira hodierna é a realização de um mundo secularizado que outrora fora eminentemente eclesiástico. Muito embora a secularização do território das práticas sociais sejam evidentes os espaços de representação do sagrado e as práticas religiosas permeiam a dinâmica social da cidade. Neste sentido, a secularização é muito mais o processo de perda da autoridade eclesiástica sobre a cultura contemporânea do que propriamente um desterro do sagrado. Relacionamos o plano discursivo com a interpretação simbólica da prática espacial da Igreja galvanizada pelas relações de poder.

Palavras-Chaves: religião, territorialidade, Igreja católica.


Structures of catholic territoriality in Brazil (Abstract)

This essay, under the title "Structures of Catholic Territoriality in Brazil" was built on the premise that the Roman Catholic Church maintains expansion and preservation strategies which are led by certain structures of the territoriality of the sacred. The presence of the Catholic Church in gradually more urban and cosmopolitan realities demonstrates several institutional arrangements in the maintenance of the territorial hegemony of the sacred before the secularization process and the diversity of no-Catholic religious identities. The present Brazilian city is the realization of a secularized world which once was eminently ecclesiastical. Although, the secularization of the territory of social practices is evident, the spaces of the representation of the sacred and the religious practices are among the social dynamics of the city. In this sense, the secularization is much more the process of loss of the ecclesiastical authority in the contemporaneous culture than a proper exile of the sacred. We relate the discursive plan with the symbolic interpretation of the spatial practice of the Church which is galvanized by the relationships of power.

Key Words: religion, territoriality, Catholic Church.

A presença da Igreja Católica em realidades cada vez mais urbanas e cosmopolitas, nas últimas três décadas, demonstra vários arranjos institucionais na manutenção da hegemonia territorial do sagrado diante do processo de secularização e da diversidade de identidades religiosas não-católicas[1].

A cidade brasileira hodierna é a realização de um mundo secularizado[2] que outrora fora eminentemente eclesiástico. Muito embora a secularização do território e a laicização das práticas sociais sejam evidentes os espaços de representação do sagrado e as práticas religiosas permeiam a dinâmica social da cidade. Neste sentido, a secularização é muito mais o processo de perda da autoridade eclesiástica sobre a cultura contemporânea do que propriamente um desterro do sagrado. Como lembra Esposito (1996, p.17-19), o processo de modernização e urbanização provoca rupturas no tecido social e traumas culturais. O desenvolvimento dos países do hemisfério sul fundamentados na laicização e ocidentalização progressivas da sociedade, principalmente em contextos urbanos, considera a religião um fator político-social anacrônico. Contudo, a grande segregação econômica e social urbana no fim do século XX beneficiou muito mais as elites. Neste bojo da materialidade social, a secularização das instituições e dos afazeres administrativos encontrou barreiras consideráveis quando transportada para a instância cultural dos costumes. De qualquer modo, a década de 1990 representou, especialmente no meio urbano, o clímax de um processo de reavivamento do sentimento religioso, principalmente em contextos de injustiça social ou desenraizamento cultural e religioso.

A Igreja Católica tradicionalmente caracterizou o processo de secularização como um indício de perigo para os seus interesses. No entanto, a exortação apostólica Evangelii Nuntiandi de 1975 (§ 55 e 56) relativiza a secularização como sendo mais uma autonomia em relação à religião do que uma negação da dimensão religiosa.

Ao se referir aos não-crentes, o documento representa a incredulidade como uma faceta específica da modernidade. Utiliza-se de uma distinção sutil entre secularismo e secularização. No que tange ao segundo termo, considera-o como legítimo e compatível com os ditames da e da religião, como sugere o Concílio Vaticano II. Quanto ao secularismo, coloca-o, sobre a base tipicamente atéia e que de forma militante nega a legitimidade de Deus, sendo desenraizadora da identidade cristã.

Sob este ponto de vista, a realidade urbana contemporânea seria intrinsecamente palco privilegiado da secularidade. Contudo, esta assertiva não pode ser tomada de modo absoluto e universal. As especificidades regionais modificam a maneira como a territorialidade do sagrado se estrutura.

O caso brasileiro deve ser examinado com cautela devido as característica da religiosidade popular, que de certo modo manteve uma identidade cristã em um meio social cada vez mais racionalizado e hedonista. Este obstáculo ao censo normativo da Igreja impulsionou a estratégia de uma nova inculturação[3] do Cristianismo nos ambientes urbanos, como referido no documento do Episcopado Latino-americano de Sto. Domingo:  “Realizar uma pastoral urbanamente inculturada com relação à catequese, à liturgia, e à organização da Igreja. A Igreja deverá inculturar o Evangelho na cidade e no homem urbano, discernir seus valores e antivalores; captar sua linguagem e seus símbolos. O processo de inculturação abrange o anúncio, a assimilação e a reexpressão da .” (Sto. Domingo - IV Conferência do Episcopado Latino-americano, 1992, § 256)

O espaço urbano contemporâneo, sob a ótica da articulação de territorialidades do sagrado, caracteriza-se por uma maior densidade de espaços de representação expressos primordialmente pelo templo e pelo santuário. O templo representa o marco do espaço construído e redimensionado simbolicamente através da presença do sagrado.

O sagrado representa a separação e o caráter de inviolabilidade. Ante o sagrado, como representação, o homem religioso exercita os ditames da e o clero exerce o poder da investidura sacra. A fim de garantir o caráter sacro, fonte do poder simbólico, as religiões normatizam a manipulação e o acesso ao espaço sagrado.

No Judaísmo, o sagrado se relaciona ao culto de Javé e sua presença na lei, ligado ao lugar de permanência simbólica do templo em Jerusalém. No Islã, relaciona-se aos locais consagrados pela presença divina e suas manifestações através do Profeta Muhammad[4], como a Kaaba em Meca, ou a circunscrição territorial de Medina na Arábia Saudita, a mesquita de Al-Aqsa em Jerusalém e a tumba de Abraão em Hebron, na Palestina. Na Fé Bahá’í[5] as encostas do monte Carmelo, em Haifa, com a presença dos jardins suspensos em patamares até o Santuário do Báb, e Bahjí, nos arredores de Akká, onde se encontra o túmulo de Bahá’u’lláh, são lugares sagrados por excelência. No Cristianismo Católico, o sentimento do sagrado é expresso no simbolismo da “encarnação divina de Jesus Cristo” e seu ato sacrificial, representados no sacramento da comunhão. A Igreja, como local de reunião, reserva a idéia de reunião e memória. Os santuários são expressões de peregrinação popular na busca de reunião com o sagrado também através da manifestação de fenômenos sobrenaturais, os “milagres”, podendo estes ser reconhecidos institucionalmente e ou popularmente.

A Igreja é um termo ambivalente ao mesmo tempo em que de sua raiz lingüística do latim ecclesia significa “o lugar de assembléia”, também representa a comunidade reunida. Estas duas conotações revelam uma dinâmica interessante para o estudo da Igreja como lugar e comunidade. Na lembrança de Tuan (1983), o espaço é indiferenciado e mais abstrato; quando o conhecemos melhor e o dotamos de valor afetivo, torna-se lugar. Numa segunda correlação, a lembrança de que quando tornamos algo não-familiar em algo familiar, fazemo-lo como representação social; quando dotamos um espaço de familiaridade e sentido, transformamo-lo em lugar.

A Igreja é tanto lugar sagrado quanto identidade social. Enquanto lugar é a materialidade do sagrado, e, como identidade social é seu conteúdo per si. Tanto materialidade como conteúdo são amalgamados pelas relações de poder. A Igreja, como ser institucional, apropria-se tanto do lugar quanto dos seus atores sociais. Em uma primeira instância, altera o lugar em território, e em uma segunda instância submete os atores sociais à hierarquia de clero e leigos, com pertença religiosa definida.

A Igreja, como materialidade simbólica, é a realização de um ato de impregnar de significados o espaço de forma monumental. Sob esta ótica, o edifício da Igreja é eixo simbólico que congrega o espaço construído, os atores sociais e a atuação dos mesmos na hierarquia institucional. Neste sentido, é uma propriedade deste espaço monumental a imbricação de três valores solidários baseados em Grabar (1988, p. 27-31):

(i)  O espiritual, que congrega os significados místicos e éticos atávicos da religião que simbolicamente se refletem em forma, imagem e prática social.

(ii)  O cultural, que emerge das práticas sociais e dos costumes em torno deste espaço, conferindo o seu caráter de representação. Remete a consciência do seu passado e situação regional.

(iii)  O estético, que é a forma de expressão e imagem inspirada em valores religiosos e que possuem uma diversidade devido ao contexto histórico do lugar.

Definido o ponto focal da Igreja enquanto lugar há a necessidade de discutir o seu âmbito. O âmbito, ou campo de ação, é uma dimensão do espaço de representação. O âmbito é limitado pela escala e, portanto revela a dimensão de atração simbólica que a Igreja exerce. Esta estrutura se cristaliza na prática religiosa comunitária e em uma base territorial reconhecida.

A partir deste contexto, a Igreja Católica Romana no Brasil estabeleceu estruturas reconhecíveis na paisagem. Estas estruturas revelam a consolidação em diferentes temporalidades das ações de poder da Igreja.

O Concílio Vaticano II (1962-1965) revela características da territorialidade da Igreja Católica nas décadas finais do século XX. O mundo, após a segunda grande guerra, tornara-se mais ideologizado, onde um dualismo reinante enfraquecia as bases da autoridade e, por que não dizer, a legitimidade moral da Igreja Católica Romana. A representação monárquica dos papas do século XIX e da primeira metade do século XX é caracterizada por uma separação em relação às bases da Igreja e muitas vezes mais preocupados com o poder temporal do que com objetivos espirituais.

A ascensão ao poder de Angelo Giuseppe Roncali, que assumiu o papado em 1958 com o nome de João XXIII marca uma digressão do modelo de Igreja para uma nova adaptação ao contexto mundial. O rearranjo de autoridade que acontecia nas nações do mundo também se apresentava na Igreja. Neste iminente quadro, em 1962, abre-se o Concílio Vaticano II, que, a posteriori, é encaminhado pelo papa Paulo VI, que de certo modo representa o contramovimento do carisma de seu antecessor.

Diante das transformações históricas nas relações sociais da época, as expectativas conciliares tendem a uma redefinição de postura da Igreja. Abre-se um projeto de Igreja que tenta recuperar o caráter missionário, em muito perdido, e configurar uma renovada representação de autoridade em relação aos católicos, em princípio, e aos cristãos não-católicos, e o reconhecimento de outras religiões fora do âmbito cristão. Tal representação possui um caráter de um lado restaurador e de outro transformador. Esta dialética perpassa a configuração da territorialidade católica hodierna.

Ainda como um projeto inacabado, o Concílio Vaticano II sofre uma releitura no Brasil por parte dos bispos. Emblematicamente fortalece uma representação social da Igreja por parte do episcopado nacional consubstanciado pela Conferencia Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Almeja-se um engajamento maior, da Igreja no Brasil em relação aos problemas sociais e políticos do país. Este engajamento maior reforçado pelas declarações de Medellín (1968) e Puebla (1979), desloca a prática eclesial regional para uma representação de Igreja específica, latino-americana. De certo modo este discurso é conflitante com a representação dominante de Igreja expressada pela Romana mais eurocêntrica. A diversidade da estruturação da territorialidade católica está muito referenciada pelas práticas eclesiais regionais e seu tensionamento com a representação universal da Igreja.

um espaço de representação forjado na realidade latino-americana próprio deste contexto regional, todavia articulado a uma realidade também global. Esta dinâmica nos indica a possibilidade de redefinição regionalizada da instituição Igreja Católica, tanto em sua escala nacional como em suas relações com a Romana. O processo de expansão das estruturas tradicionais de poder da Igreja no Brasil se verificava na multiplicação de dioceses e paróquias nas décadas 1950-1960.

Também a política de João XXIII estimulava uma renovação catequética do ensino e missão católicos, um reforço do rito e vida sacramental e um reforço de leigos na ação eclesial junto ao estímulo de expansão de sacerdotes e religiosos. Era basicamente um reforço aos fundamentos da Igreja para que sua participação social não sofresse os desvios do secularismo. De certo modo estas perspectivas se fazem presentes a partir da década de 1970. A emergência da teologia da Libertação e sua censura posterior marcam sobremaneira a forma como o poder eclesial no Brasil se redefine na administração de João Paulo II.

No campo das relações do poder católico com poderes de outras religiões de matriz cristã, emerge o discurso católico do ecumenismo e todas as repercussões advindas de suas tensões fronteiriças. A natureza hegemônica do discurso católico do ecumenismo e do diálogo inter-religioso marca uma possível nova configuração da territorialidade católica a partir da década de 1980, e mais intensamente na década de 1990.

Estruturas da territorialidade católica

As estruturas da territorialidade católica correspondem ao locus da ação institucional, da gestão e da apropriação do sagrado no que tange à sociedade como um todo. Convém asseverar que estas estruturas, muito embora se cristalizem na materialidade social, na sua dinâmica, são produtos da própria diacronia do caráter missionário da Igreja.

Sendo assim, este produto perceptível, reveste-se de atributos próprios da sacralidade ao mesmo tempo em que os territorializa.

Dois grupos de estruturas da territorialidade católica são discerníveis:

1.  As estruturas da territorialidade de base caracterizadas pela interação social entre a população e a Igreja através do clero.

2. As estruturas da territorialidade católica derivadas, representadas por estruturas de hierarquia e/ou escala atinentes à macroestrutura administrativa da Igreja.

No primeiro grupo podemos identificar quatro estruturas de base na territorialidade católica:

(i) As paróquias, que são as estruturas principais da organização pastoral, possuem uma dimensão social e corresponde a materialidade da ação evangelizadora. Correspondem à territorialidade materializada e legitimada pela ação do poder institucional sob forma de território. É nas paróquias que reside a dinâmica social da igreja e seu propósito final. Ou seja, é a escala local onde todas as realidades da ação institucional católica veiculadas pelo discurso encontram sua realização. Não queremos afirmar com isto que o discurso hierarquizado do clero reveste-se de verdade para todos os membros da comunidade, mas, que a materialidade se expressa localmente. É nas paróquias que o discurso católico institucional torna-se reconhecível e pleno de significados.

(ii)   Em segundo lugar, sob o ponto de vista da Igreja, a escola como palco da formação evangelizadora corresponde a uma estrutura básica da identidade católica, sendo aparelho de difusão evangelizadora da Igreja.

(iii)  Os hospitais e instituições beneficentes, que correspondem à ação social da Igreja, à legitimação do discurso da caridade e à construção da representação social da Igreja.

(iv)  A quarta estrutura, não menos importante, é representada pelas hierofania católicas institucionalizadas. A institucionalização dos lugares sagrados e de peregrinação reconhecidos pela religiosidade popular é uma característica peculiar da territorialidade católica.

No segundo grupo corresponde às estruturas derivadas que representam escalas de hierarquia em gestão político-administrativa e formação do clero a saber:

(i) Dioceses, que correspondem a circunscrições eclesiásticas sob jurisdição de um Bispo. Esta entidade territorial sob autoridade episcopal é, de formação, uma prerrogativa papal desde o século XVIII. A autoridade do Bispo designado muitas vezes é reservada a determinadas classes de residentes do território. Caso a autoridade esteja sob o mando de um Arcebispo, a circunscrição eclesiástica passa a ser denominada arquidiocese, que não representa de fato uma estrutura diferenciada da territorialidade católica, mas propriamente uma classe de circunscrição eclesiástica. Entretanto, o poder do Arcebispo é distintivo. Geralmente várias dioceses podem estar sob o mando de um Arcebispo Metropolitano. Além destas, são consideradas circunscrições eclesiásticas de menor freqüência territorial as Prelazias, Abadias Territoriais, Ordinariato militar, Eparquias e Exarcados para ritos orientais.

(ii)   A Província Eclesiástica, por sua vez, refere-se a uma articulação de dioceses vizinhas sob direção de um Metropolitaque é o Arcebispo da diocese que  governa; esse ofício está anexo à episcopal determinada ou aprovada pelo Romano Pontífice.” (0435§0). Muito embora seja uma instância territorial específica, na prática o Metropolita tem um papel suplementar. Sob o ponto de vista do Codex Iuris Canonici, promulgado em 1983, ele não pode intervir diretamente nas Dioceses subordinadas, a não ser em casos muito específicos. O Codex atual prevê que “(...) cada diocese e outras Igrejas particulares existentes dentro do território de alguma província eclesiástica sejam adscritas a essa província eclesiástica” (0431§2).

(iii) A Conferência do Episcopado Nacional e Continental corresponde a uma  Instituição Eclesial que reúne os Bispos que exercem um ministério pastoral no país ou continente. Este nível de gestão nacional ou continental caracteriza-se por uma estrutura de territorialidade derivada, que no caso brasileiro tem tido cada vez  mais um papel político destacado.

(iv)  Institutos Teológicos, Seminários, Casas de Formação do Clero religioso e secular correspondem a estruturas de formação do clero e também ao locus do desenvolvimento do pensamento religioso formal.

Cada uma destas estruturas representa diferentes aspectos do decorrer das três últimas décadas.

A territorialidade católica se constitui na articulação das estruturas de base com as estruturas derivadas e sua colagem no cotidiano da sociedade, através da ação de um clero especializado detentor da legitimidade e do exercício do poder da Igreja.

Tomando como referencia o Codex Iuris Canonici, diagnosticamos uma hierarquia de poder das estruturas da territorialidade católica. Diferencialmente da classificação em categorias funcionais e da hierarquia oficial do clero, a hierarquia de instâncias de poder pressupõe a relação de situação de seus agentes institucionais sob determinada base territorial. (figura 1)

Figura 1. Instâncias de poder da territorialidade católica
Fonte: GIL FILHO (2001) adaptação baseada no Codex Iuris Canonici (1983)

Cabe lembrar que as estruturas de poder da Igreja apresentam um mundo particular dentro do próprio mundo, onde se desencadeia um consenso normativo do sagrado, elaborado e reelaborado pelos especialistas da religião. Este consenso do símbolo e do rito, que são expressões de uma identidade coletiva, pouco a pouco cede seu lugar à dinâmica do discurso religioso interpretado por uma semântica do sagrado.

De acordo com o atual Codex Iuris Canonici, a disposição hierárquica das estruturas da territorialidade católica revelam uma lógica assentada principalmente na estrutura derivada da Diocese onde o Bispo exerce seu legado.

No antigo Codex Iuris Canonici, anterior ao Concílio Vaticano II, havia uma ênfase territorial na definição de Diocese. No atual Codex, promulgado pelo Papa João Paulo II em 1983, esse destaque é substituído pela relação entre o Bispo e a comunidade dos fiéis, sendo o caráter territorial apenas formal.

A diocese é uma porção do povo de Deus confiada ao pastoreio do Bispo com a cooperação do presbitério, de modo tal que, unindo-se ela a seu pastor e, pelo Evangelho e pela Eucaristia, reunida por ele no Espírito Santo, constitua uma Igreja particular, na qual está verdadeiramente presente e operante a Igreja de Cristo una, santa, católica e apostólica. (Codex Iuris Canonici  0369§0)

“Por via de regra, a porção do povo de Deus, que constitui uma diocese ou outra Igreja particular, seja delimitada por determinado território, de modo a compreender todos os fiéis que nesse território habitam. (Codex Iuris Canonici - 0372§1)

Esta mudança semântica de uma noção mais territorial para uma mais pessoal e social revela, entre outros aspectos, o caráter mais conservador que o conceito de território demonstra. Todavia, não podemos pensar em território sem ter em mente as relações de poder que lhe são peculiares, no caso, entre a pessoa do Bispo Diocesano e o corpo de crentes.

Toda diocese ou outra Igreja particular seja dividida em partes distintas ou paróquias.” (Codex Iuris Canonici 0374§1). As Paróquias como estruturas territoriais remontam ao século V, mas disseminaram-se em larga escala no século XIII.

Identidade católica no Brasil

No Brasil, há um grande incremento no processo de reestruturação das paróquias, que é um traço característico do movimento da Reforma do Catolicismo que se apresenta de modo particular no final do século XIX e início do século XX.

A Reforma do Catolicismo caracterizou-se como um movimento amplo no seio da Igreja, cuja direção foi estruturada a partir das decisões do concílio de Trento no século XVI. Como comenta Venard (1990, p. 347), “... o concílio de Trento é um produto da reforma católica, mais do que seu criador; e muitas das realizações posteriores, que acabaram marcando o catolicismo moderno, não foram tanto aplicações dos decretos conciliares quanto inovações criativas.”

Na realidade brasileira, o conflito entre a Igreja e o Estado na segunda metade do século XIX remete ao reforço institucional da Igreja. Este processo toma por base o modelo de romanização de inspiração Tridentina e do Vaticano I. Podemos dizer que, na medida em que a instituição Igreja se afasta do Estado, aproxima-se cada vez mais da Sé Romana. O fortalecimento desses laços tem sua realização na paróquia territorial. A paróquia, que como estrutura revelava um crescente desgaste, vê-se revitalizada. Entretanto, há um traço característico importante: o fortalecimento da paróquia é a faceta aparente das novas relações de poder que se estabelecem, como, a institucionalização da religiosidade popular e das organizações religiosas leigas. Neste contexto, a paróquia é a base de sustentação desta nova territorialidade. A Reforma Católica e a Restauração Católica[6] consolidam já no início do século XX um ordenamento progressivo da hierarquia clerical e suas relações com o corpo de fiéis. A despeito das resistências por parte do clero tradicional, esta nova lógica se impõe. As Constituições das Províncias Meridionais de 1915, por exemplo, apresenta em boa parte dos seus artigos uma normatização exaustiva da vida do clero e o radicalizam no contexto paroquial. Marchi (1998, p. 61) identifica neste processo de romanização do catolicismo uma estratégia de desarticulação da liderança leiga da religião.

Uma clericalização crescente dos centros de peregrinação transfere a liderança leiga para o clero organizado. Esta nova realidade tem suas implicações territoriais: a institucionalização dos Santuários populares transforma o espaço sagrado em território sagrado legitimado, a religiosidade católica popular é articulada a uma nova territorialidade.

A Restauração Católica sob o pontificado de Pio XI capitaliza as estratégias políticas em uma nova representação social, expandindo o seu papel religioso em escala global. No Brasil, a Igreja articula o seu projeto de hegemonia religiosa. A base deste projeto se evidencia em uma rede de influências dos Institutos Religiosos e na articulação do discurso restaurador, através das estruturas da territorialidade católicas, como as paróquias e as escolas, e do uso da comunicação social.

A nova textura do Catolicismo do Brasil, sob a égide da Restauração Católica, paulatinamente substituiu a lógica religiosa popular por uma nova lógica de caráter clerical. Novos instrumentos de devoção foram introduzidos, novos santos, novas práticas, e houve a transformação da paróquia em um espaço de poder galvanizado pelo discurso restaurador. As firmes bases de sustentação da hierarquia estabeleceram as novas relações de poder que consubstanciam o domínio da Igreja no Brasil até o fim do século XX.

De fato, a identidade católica no Brasil na segunda metade do século XX, muito embora possua raízes profundas na história do país, revela uma relativização ligada à diversidade de práticas religiosas e à intensificação do fenômeno de novos sincretismos religiosos. O número de pessoas de origem católica que mudam a sua relação de pertença tem crescido principalmente nas realidades urbanas. Entretanto, a mobilidade religiosa permanece significativa no âmbito do Cristianismo, na direção da Igreja Católica para Igrejas Cristãs não-católicas (gráfico 1). No espectro das Igrejas Cristãs não-católicas, a mobilidade é significativa devido à intensa fragmentação de denominações cristãs.

Lembrando os pressupostos conceituais sobre identidade religiosa, não se considera uma ruptura significativa da territorialidade católica a migração de seus seguidores para outras Igrejas cristãs não-católicas. A base de sustentação simbólica das Igrejas Cristãs não-católicas é a própria Igreja Católica, em acordo ou desacordo. Há, por assim dizer, uma dialética entre a territorialidade católica a as territorialidades cristãs não-católicas. Esta relação diacrônica proporciona uma estruturação sincrônica de vários patamares de equilíbrio espaço-territorial.

Gráfico 1. Proporção da pertença religiosa no brasil (1950-2000).
Fonte: IBGE -1950-2000

Dois campos de relação se transformam a partir do esgotamento do processo de Restauração e Reforma Católica na década de 1930:

§   a relação da Diocese com a Cúria Romana;

§  a relação da Diocese ou Igreja Local com a Paróquia.

Com a estruturação da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), em 1952, e o Conselho do Episcopado latino-americano (CELAM) nas décadas de 1950 e 1960, o enfoque é puramente voltado à hierarquia, e a herança do movimento de Restauração começa a se redefinir. Um efeito evidente da Reforma Católica fora o processo de apropriação da religiosidade popular e um fortalecimento da hierarquia. A nova feição da Igreja tem como fiel da balança o Concílio Vaticano II.

Um discurso voltado às bases populares redefine o papel da Igreja no país. Todavia, as relações de poder que cristalizaram a hierarquia da Igreja e fortaleceram os agentes clericais não se alteraram sensivelmente, mas os seus papéis sim.

A Igreja se volta mais aos fundamentos da prática religiosa como a liturgia, o apoio ao diálogo ecumênico e o incremento da atividade missionária. A instância produto deste processo foi a comunidade eclesial de base. Como representação social a comunidade eclesial de base (CEB) se mostra como expressão maior do discurso catequético. As CEBs tornam-se bases de apoio missionário e fazem, muito embora com certa autonomia em relação às paróquias, uma ponte entre os fiéis e a hierarquia da Igreja.

Em uma primeira apreensão, as CEBs correspondiam a um desmembramento das paróquias. Todavia, em uma análise mais atenta, tratava-se de um espaço de representação estruturado a partir de uma leitura específica dos ditames do Concílio Vaticano II. Este espaço correspondia a realidades rurais assim como as realidades urbanas mais complexas. As CEBs demonstraram ser valiosas inclusive no aumento de leigos que se envolviam em um trabalho mais efetivo na Igreja, assim como no aumento de candidatos ao clero religioso e secular. Sob o ponto de vista da territorialidade de base da Paróquia, as CEBs redimensionaram a eficácia do trabalho missionário e a manutenção dos fiéis.

Nacionalmente a CNBB passa pouco a pouco a ter um papel importante na representação da Igreja no país. Muito embora alguns membros do clero apresentem uma liderança carismática no discurso da Igreja, evidencia-se um fortalecimento do discurso institucional da CNBB. A opção preferencial pelos pobres, parte do discurso que capitania a Igreja brasileira pós Medellín, fundamenta-se numa volta à consciência da realidade brasileira e num certo desencantamento com as elites. O papel dos pobres na representação social da Igreja reveste-se de um caráter escatológico, buscando uma justificativa ontológica no discurso fundador.

Segundo Servus Mariae (1994, p. 37):           

A volta (conversão) à Fonte e a volta à realidade conduziram progressivamente os responsáveis pela ação pastoral neste país a tomar uma consciência mais viva de três dimensões, que caracterizam a posição dos pobres no mistério do Reino de Deus:

(i)   A evangelização dos pobres é fundamental à missão da Igreja e é sinal do Reino de Deus;

(ii)  Os pobres constituem uma presença privilegiada do mistério de Cristo;

(iii)  A atitude de pobreza é essencial ao acolhimento do Reino.

A base de sustentação teológica da questão da pobreza no discurso da Igreja repercutiu em um fortalecimento de sua territorialidade em escala nacional. O redirecionamento da ação planejada da Igreja no país, liderada pela CNBB, promoveu um reestruturação da territorialidade católica.

Esta reestruturação perpassou o diagnóstico da religiosidade popular. As diretrizes gerais de ação pastoral definidas pela CNBB de 1966 a 1970 não sofreram grandes alterações após o Concílio Vaticano II. As mesmas foram reeditadas no período de 1970-1974, com algumas adaptações. De 1975 a 1978 definiram-se áreas prioritárias do trabalho pastoral da Igreja mais sintonizadas com as reflexões do Concílio Vaticano II. O diagnóstico sobre a situação do catolicismo no país revelava a manutenção de uma minoria praticante e uma imensa maioria à margem da hierarquia da Igreja em uma fragmentação de cultos particulares, muitos alimentados pela própria política teológica da Igreja no culto aos santos. De certo modo, a pulverização do culto apresentava duas facetas contraditórias: de um lado sustentava o domínio do imaginário popular católico no país, e de outro fugia ao controle institucional.

"No país ainda predominantemente católico, a religiosidade popular continua viva e se multiplicam suas manifestações. Uma análise do próprio catolicismo revela a existência — ao lado de uma importante minoria praticante, cuja vivência religiosa se inspira no Evangelho e especialmente na prática sacramental — de uma maioria de fiéis cujas devoções e práticas religiosas não estão bastante integradas na comunidade eclesial e obedecem predominantemente a uma relação individual com o sagrado (Deus, os santos)..." (CNBB, 1999,§ 1.2.1)

O significante crescimento vegetativo da população experimentado pelo Brasil na década de 1970 apresentava um desafio com relação à manutenção do controle eclesial das massas, principalmente as dificuldades no enquadramento da religiosidade popular e conseqüente cooptação de alguns cultos que se multiplicavam no meio urbano. No final da década, se fazia sentir o impacto de movimentos evangélicos não-católicos, principalmente de caráter pentecostal. O controle da territorialidade católica passava por uma necessidade de adequação a estas novas realidades gestadas na década de 1970 e que atingiram um apogeu na década de 1990.

No bojo do processo de assimilação das diretrizes do Concílio Vaticano II a Igreja no Brasil experimentava uma crise vocacional representada por uma estagnação na expansão do clero secular e, em menor impacto, do clero religioso. Segundo os dados da CNBB, havia na década de 1960 uma relação de uma média de seis mil e duzentos habitantes por sacerdote, que em 1978 crescem para uma média de dez mil habitantes por padre. É sintomático a CNBB considerar, naquele momento, a pressão demográfica mais significativa do que a fragmentação do Cristianismo. Este último tornar-se-ia uma preocupação mais relevante na década de 1990.

O pluralismo religioso torna-se mais significativo nos grandes centros urbanos e em sociedade mais cosmopolitas. Religiões orientais e vários movimentos de caráter esotérico e mágico permeiam as práticas religiosas urbanas, muito embora as conseqüências diretas da fragmentação do Cristianismo sejam uma tendência ainda subestimada.

Outra frente importante na década de 1970 foi o processo de secularização, que de certo modo tornou-se um ponto de apoio ideológico de sustentação de movimentos sociais e políticos. Quando este processo adquire nuanças mais radicais assume uma postura anticlerical. A perda crescente do controle clerical sobre boa parte da religiosidade popular e da mobilidade de identidade religiosa é indicada no discurso da CNBB (1975) como um quadro sintomático da própria modernização e urbanização.

"Uma forte secularização, contudo, marca as atitudes de alguns grupos sociais urbanos e certas faixas da juventude, ao menos no sentido de que uma série de comportamentos, antes "regulados" por uma ética cristã são hoje totalmente desvencilhados de uma referência à Igreja institucional e mesmo a valores transcendentes. Com relação a esses grupos, o fenômeno da secularização se reveste de aspectos de um verdadeiro secularismo enquanto fechamento a qualquer referência ao Absoluto transcendente na vida humana.

Junto com a urbanização, também o fenômeno da secularização, com todas as suas ambigüidades, aumentou sua influência, embora sem se alastrar ainda a massas importantes da população. Em certo sentido, a secularização atingiu também a sociedade brasileira em geral, uma vez que as grandes decisões a respeito da vida política, social e econômica, com profundas repercussões sobre o perfil cultural da nação, são tomadas sem levar em conta formas de influência ou de opinião da Igreja,..." ( CNBB, 1999, §1.2.3)

O choque entre a instituição Igreja e as características da modernidade tardia no Brasil revelam, no que tange à identidade cultural, a incompatibilidade de estruturas tradicionais e os processos modernos mais flexíveis.

Na interpretação de Giddens (1990, p. 44-46), os símbolos em uma sociedade tradicional são venerados por acumularem as práticas ancestrais. Fazem uma ponte imagética entre o passado e o presente. Em contrapartida, a modernidade força uma atitude reflexiva da vida através de constante reexame de suas práticas diante das informações recebidas.

Desta forma, a modernidade tardia tem sua base no modo de vida urbano que passa a ser hegemônico no Brasil a partir da década de 1970. Nas décadas de 1980 e 1990 os impactos das relações de caráter global redimensionam a escala de mudanças da identidade cultural, produzindo uma ambivalência entre o local e o global. A Igreja passa a sentir esses processos no seu âmbito de atuação social, tendo que modificar o seu discurso e reestruturar a suas estratégias de ação.

Territorialidade católica no Brasil

As circunscrições eclesiásticas da Igreja Católica no Brasil, passam por um processo de segmentação mais intensa a partir das décadas de 1960 e 1970 (gráfico 02). A segmentação das circunscrições eclesiásticas acompanha, assim, o crescimento vegetativo da população brasileira e o processo de urbanização que demanda um melhor controle territorial. Essa tendência começa a decair a partir de 1975, mantendo o padrão até 1999. Muito embora tenha crescido o número de dioceses, há uma certa estabilidade do número de arquidioceses. A despeito das questões políticas internas, que não é ambição deste trabalho analisar, a política de segmentação territorial repercute em um maior controle dos fiéis e uma maior participação da hierarquia na interação com a sociedade brasileira.

Sob o ponto de vista da representação social, o modo de vida urbano, mais secular, escamoteia o controle religioso. No meio rural, mais conservador, a Igreja enfrenta a dicotomia entre assumir o discurso da “opção pelos pobres” e romper com sua própria história de relações profundas com as elites agrárias. O contexto mune uma convergência do discurso da territorialidade católica urbana próxima a intervenção direta dos bispos e um mundo rural perpassado por uma indomável religiosidade popular e com injustiças socais quase atávicas.

Gráfico 2. Evolução das categorias territoriais das circunscrições eclesiáticas no Brasil (1900-1999).
Fonte: CERIS, Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais, 1999

Outro aspecto de notável valor trata da renovação dos atores clericais. A crise vocacional é ditada, entre outros fatores, pelo rompimento de tradições familiares e pela decadência de status da carreira clerical. No que tange às vocações para a vida sacerdotal, na década de 1970 há uma queda significativa no número de vocações sacerdotais, com uma ligeira recuperação nas décadas de 1980 e 1990. O incremento vocacional nessas décadas não significa necessariamente a consumação da carreira clerical. Outrossim, o crescimento vegetativo da população católica é muito maior, o que mantém um déficit insuperável.

Muito embora as perspectivas de uma vida religiosa não sejam mais tão atrativas como eram antes do avanço de padrões da modernidade e da cosmopolização urbana, a realidade regional brasileira não sente essa desagregação da catolicidade muito vista na Europa Ocidental. Os sintomas da crise vocacional da década de 1970, com reverberações até a década de 1990, possuem um caráter institucional marcante. A religiosidade popular continua crescente e, a despeito do crescimento de outras denominações cristãs e religiões não-cristãs, a busca pelo sagrado se faz através de uma catolicidade cultural que permeia hegemonicamente a sociedade brasileira.

A participação efetiva na vida religiosa demonstra uma expansão da participação de mulheres e uma estagnação da participação de homens. A vida secular torna-se mais atrativa, o que justifica o numero irrisório daqueles que se dedicam à vida contemplativa. Os Institutos religiosos femininos e masculinos e as sociedades de vida apostólica praticamente se mantêm estáveis entre os anos 1970 e 1990, com um crescimento relativo baixo (gráfico 03). A carreira de vida religiosa masculina não-sacerdotal é muitas vezes vista em caráter secundário diante da vida propriamente sacerdotal. Embora os Institutos religiosos sejam expressões da territorialidade católica no Brasil, têm experimentado a partir da década 1970 uma relativização em seus nichos de atuação. Muitos dos trabalhos sociais sustentados pelas religiosas passaram para a iniciativa laica. O Estado assumiu boa parte das ações sociais que até os anos 1960 eram quase exclusivamente cuidados por religiosas. As iniciativas de algumas ordens religiosas ligadas a educação passaram por momentos de crise, mas na década de 1980 começaram a experimentar a lógica da empresa capitalista e a participação no mercado efetivo da educação de caráter privado. Estas atitudes capitalizaram sensivelmente ordens religiosas, sacerdotais ou não.

O trabalho social de natureza mais assistencial e caritativa e as várias áreas educacionais do ensino infantil e fundamental têm como atores principais irmãs confessas, cujo número é muito mais expressivo do que o de irmãos.

A própria lógica do trabalho feminino na Igreja explica em parte esta divisão do trabalho. As áreas de mais status e rentáveis estão nas mãos de ordens masculinas.

Gráfico 3. Institutos religiosos e sociedades de vida apostólica masculinas e femininas no  Brasil (1970 -1999).
Fonte: CERIS, Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais, 1999.

O contigente feminino sustenta as iniciativas sociais da Igreja. Embora o número de religiosos tenha decaído o contigente de religiosas mantém um índice de crescimento significativo. (gráfico 4).

No que tange ao clero secular e a toda territorialidade baseada em um sistema tradicional, há uma crise profunda a parir da década de 1960. Muitos seminários foram fechados no Brasil, e houve um abandono por parte do clero secular e religioso.

A CNBB tenta, em 1969, recuperar o fôlego diante da crise de vocações, inclusive sugerindo à Santa a ordenação para o ministério de casados, muito embora esta opção tenha sido rechaçada por Roma. Contudo, esta crise não é apenas de caráter vocacional, mas de um modelo tradicional romanizado, fundamentado muito mais na hierarquia eclesiástica do que nos fiéis. A marginalização do trabalho leigo e a desconfiança em relação aos sacerdotes que optaram pelo casamento desprezaram uma nova perspectiva de reestruturação do trabalho de evangelização.

Gráfico 4. Irmãs e irmãos professos em institutos religiosos e sociedades de vida apostólica no Brasil (1970 – 1999).
Fonte: CERIS, Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais, 1999.

Dom Valfredo Tepe, um dos delegados da CNBB no Sínodo de 1990, comenta:

“No curso da história, a Igreja soube com prudência e coragem proceder à reestruturação de seus quadros ministeriais. Esta prudência e esta coragem são hoje exigidas especialmente pelas Igrejas do Terceiro Mundo, que, com freqüência, não se sentem respeitadas nas próprias situações pastorais, sendo enquadradas nos modelos característicos das Igrejas do Primeiro Mundo. Nestas, há ainda um número suficiente de bispos e de sacerdotes para satisfazer as exigências pastorais das comunidades. Nas Igrejas do Terceiro Mundo não é assim!” ( apud Beozzo, 1996, p.215)

Caracterizando o Brasil, afirma:

“No Brasil, há paróquias de cinqüenta mil e até cem mil habitantes. Há párocos que celebram todos os domingos cinco e até mais missas para satisfazer, de algum modo, as numerosas comunidades da própria área. Trabalham sob estresse e se sentem frustrados porque não conseguem, de forma adequada, assistir pastoralmente as próprias comunidades”. ( apud Beozzo, 1996, p.215-216)

Apresenta a necessidade de uma reestruturação da ação pastoral:

“É o momento histórico de pensar numa reestruturação do serviço pastoral. Ela poderia delinear-se na ótica da situação do Brasil, da seguinte forma: os atuais párocos poderiam ser considerados “vigários episcopais”, assumindo assim mais ainda um ministério da síntese, da coordenação e animação, e deixando de ser simples celebrantes de missas multiplicadas. Ao mesmo tempo, desenvolver-se-ia uma multiplicidade de novos ministérios nas comunidades menores, que constituem a realidade da paróquia. Dever-se-ia estudar de modo sério, sem medo de tabus, a necessidade e possibilidade de ordenar presidentes da Eucaristia para numerosas comunidades, os “viri probi” presentes e atuantes nelas”. ( apud Beozzo, 1996, p.215-216)

Enseja a necessidade de uma análise da situação:

“Esse estudo torna-se necessário por motivos pastorais, dado que nãoprevisões humanas de que nas próximas gerações surjam vocações suficientes, autenticamente celibatárias, para o serviço pastoral de tantas comunidades eclesiais, que estão em perigo de cair na situação das seitas, a partir do momento em que não é celebrada a Eucaristia, ápice e fonte da vida eclesial”. ( apud Beozzo, 1996, p.216)

O diagnóstico de Dom Valfredo Tepe apresenta alguns pontos interessantes para análise:

§   A continuidade da crise vocacional no enfrentamento do crescimento vegetativo da população e a expansão de outras denominações cristãs principalmente de caráter pentecostal.

§  A dicotomia das relações entre as Igrejas dos países ricos do norte e a dos países pobres do sul. De certo modo, as dificuldades de visão sobre os países do sul por parte dos atores sociais do norte, comuns nas relações internacionais do mundo secular, refletem-se nas relações institucionais da Igreja.

§   A flexibilização das exigências ao magistério para suprir a demanda simbólica da atividade pastoral.

§  A eucaristia como o símbolo mater de identidade religiosa do corpo de fiéis com a hierarquia da Igreja. A sintonia simbólica entre os fiéis e a Igreja se faz na realização deste sacramento.

Uma gama de tensões entre a Igreja do hemisfério sul e a Santa começou a ficar mais aguda. A visão da Santa está imbuída demais do contexto europeu e possui dificuldades em introjetar o contexto dos países pobres do sul. São duas representações da Igreja diferentes que estão refletidas no discurso da CNBB e da Santa . De certo modo a dinâmica da ação eclesial vive em uma dialética entre a Igreja Local e a Igreja Universal. O malogro da perspectiva hierárquica e as necessidades dos diversos contextos histórico-sociais revelam as nuanças das tensões de relações.

Se existe uma territorialidade universal da Igreja a partir da Santa , esta não se reflete nas Igrejas regionais. A base de sustentação do poder é múltipla. Esta base tanto está calcada na apropriação de um discurso fundador que remete à hierarquia, como está por demais assentada sobre os fiéis e seu número. Na lembrança do constructo teórico da territorialidade do sagrado pode-se interpretar esta malha de relações norteadas por uma gama de qualitativos do poder que tencionam a estruturação da territorialidade católica especificamente.

A Santa representa o poder religioso calcado na hierarquia e no fideicomisso do sagrado baseado no discurso fundador. O clero como ator social exerce o poder temporal nas relações com a sociedade e com os fiéis. A despeito dos carismas entre várias personas na hierarquia eclesiástica há uma temporalidade inerente às suas ações. Todavia, é no âmbito do poder mítico e simbólico que os aspectos de continuidade da Igreja se realizam. Quem atribui este poder são os fiéis na sua prática religiosa cotidiana da tradição e da missão escatológica[7]. Através da apropriação do poder simbólico, a instituição Igreja perpetua a sua existência e permanência na história.

A trajetória da Igreja também é uma história escatológica. No sentido estrito diferencia-se do mito, pois este e aquela perfazem dois discursos diferentes. No que tange ao mito ele se volta ao passado e deste modo é descrito. A visão escatológica tende ao futuro e à visão de profecia. Quando ambos se articulam, perfazem a idéia “de uma criação entendida como primeiro ato de libertação”, e, de outro lado, “uma libertação como ato criador”. (Le Goff, 1996, p. 331). No Cristianismo, a perspectiva escatológica reveste de sentido a história e confere a ela um aparente domínio do tempo. Sob este prisma, a Igreja transita em uma expectativa escatológica, que de fato é uma representação da manutenção de seu próprio passado ou um retorno mítico às origens, tanto é que a expectativa escatológica da transformação do mundo não prescinde de uma Igreja forte, hierárquica e instrumentalizadora deste processo.

A dinâmica do poder da hierarquia da Igreja, vis a vis com a premência do controle territorial como espaço de representação do discurso religioso, revela outro aspecto além do espaço monumental do edifício Igreja. O contingente de presbíteros e à fragmentação territorial das paróquias correspondem à lógica do controle dos fiéis e a expressão da articulação da instituição Igreja e suas bases de sustentação popular.

Por motivos evidentes, o exercício do poder por parte do clero se realiza na base da dicotomia material/espiritual. Esta base, na lembrança de Bourdieu (1997 p. 157-158), no que tange ao pólo espiritual freqüentemente é considerada como fora do âmbito da ciência. Por esta razão, este aspecto se torna sempre desafiador. Sob esta ótica, o autor constrói uma teoria geral das “oferendasdentro de uma economia religiosa. A presente análise, muito embora reconheça a dimensão das práticas econômicas fundamentais da empresa religiosa, considera como base de sustentação simbólica do poder da Igreja o corpo de sacerdotes, pois estes detêm a legitimidade da manipulação dos bens e o monopólio do discurso religioso. É o corpo de sacerdotes, como atores institucionais, que se apropria dos bens sagrados e realiza a territorialidade católica.

Assim, o controle religioso se assenta nas práticas do corpo sacerdotal, e por essa razão uma crise vocacional na Igreja também é uma crise de poder.

A territorialidade católica no Brasil pós Concílio Vaticano II, embora vislumbre uma flexibilização representada pelas CEBs, ressente-se da carência de presbíteros diocesanos para atender à fragmentação territorial.

O déficit entre o número de paróquias e o número de presbíteros diocesanos praticamente se normaliza em meados da década 1990. Na mesma década há uma retomada do crescimento do número de presbíteros diocesanos rompendo a estagnação das décadas anteriores. No entanto, os presbíteros ligados aos Institutos apresentam uma tendência de queda quase à estagnação(gráfico 5).

Gráfico 5.  Evolução do número de paróquias e presbíteros Brasil (1970-1999).
Fonte: CERIS, Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais, 1999.

Todavia, a relação entre o número de habitantes por presbítero apresenta também uma tendência de estagnação nas últimas três décadas. É claro que os limites desta estatística em escala nacional escamoteiam as discrepâncias regionais, mas não invalidam o diagnóstico de crise de contigente dos atores clericais. ( gráfico 6).

Gráfico 6. Relação de habitantes por  presbítero Brasil (1970-1999).
Fonte: CERIS, Centro de Estatística Religiosa e Investigações Sociais, 1999.

O aumento do número de habitantes por presbítero revela a manutenção de um déficit que era significativo na década de 1970 e que a partir de 1985 se mantêm, até a década de 1990. Muito embora a relação demonstrada represente as dificuldades da Igreja Católica no aumento do seu quadro clerical, este porém é um pressuposto que deve ser relativizado pela mobilidade da identidade religiosa e o processo de secularização que a partir da década de 1980 acentua-se no país. O contigente de católicos, a despeito do crescimento vegetativo da população, apresenta um declínio acentuado. (gráfico 01). Esta nuança corre o risco de esvaziamento dos significados absolutos para a presente análise. Entretanto, um quadro de tendências revela-se verdadeiro. A estatística do CERIS parte do pressuposto de que o Brasil seria um país católico, o que justifica a análise do ponto de vista hegemônico. Sendo a religião católica um ato fundador no Brasil, permanece na literatura especializada a reprodução deste ponto de vista.

Em muito as novas diretrizes do Concílio Vaticano II insuflaram uma nova interpretação da Igreja no Brasil, mas as transformações no quadro dos atores institucionais sofreram com as barreiras estruturais da hierarquia, e as relações entre clero e leigos oscilaram em um primeiro momento e depois penderam para o controle hierárquico. Parafraseando o discurso institucional, podemos inferir que se de um lado o povo se faz Igreja, de outro o clero define a Igreja para o povo.

O Brasil católico é uma representação construída ontologicamente. Sob este viés o estudo da territorialidade católica significa também a verificação das projeções concretas e simbólicas desta afirmação. A arquitetura institucional da Igreja também faz parte desta representação, e o seu discurso a revela constantemente.

Na segunda metade do século XIX, segundo Marchi (1998, p. 56):

“A leitura dos textos oficias revela um esforço em construir um discurso recorrente, no qual se reitera a idéia do Brasil como um país essencialmente católico. Seria possível dizer que esta recorrência constitui-se um verdadeiromito’ . Um esforço inútil, pois qualquer análise mais atenta reconhecerá a identidade do Brasil europeu, nascido e criado sob os signos do catolicismo. Ao longo dos quase 500 anos dessa presença européia, a religião católica impregnou todas as instâncias da sociedade”.

O mesmo autor comenta que se a religiosidade foi uma constante no cotidiano do povo brasileiro, o mesmo não ocorreu em relação à catolicidade. Sendo a catolicidade um manifestação específica da religiosidade, a forma institucional que ela impõe nem sempre foi uma constante no devir do povo brasileiro.

Na década de 1990, o Brasil representava uma ampla maioria que assumia a identidade católica. Sob o ponto de vista regional, o Nordeste brasileiro destacava-se com uma ampla maioria do contingente de católicos atávicos. No entanto, no Centro-Sul e em Rondônia o impacto dos movimentos pentecostais, principalmente nos meios urbanos, demonstrou o relativismo desta hegemonia. O contexto hegemônico da identidade católica tende a manter, pelas vias da tradição, uma massa de seguidores não praticantes de um lado, e, de outro, uma religiosidade popular marginal nem sempre afeta aos ditames da liturgia. A comparação com os movimentos pentecostais e neopentecostais se deve à grande visibilidade dos mesmos a partir da década de 1980. Isso revela as tensões fronteiriças entre a territorialidade hegemônica da Igreja Católica Romana e o avanço territorial desses movimentos. (Figuras 02 e 03)

A CNBB, em documentos referentes as Diretrizes Gerais da Ação Pastoral da Igreja no Brasil de 1983 a 1986, delineava um estratégia de defesa do avanço proselitista de alguns movimentos religiosos. No mesmo documento, a preocupação com a unidade interna da Igreja revela um dilema entre as tensões externas de migração de católicos para outras denominações religiosas e os conflitos de ordem ideológica no interior da Igreja.

Figura 2. Concentração de católicos romanos no Brasil, 2000.
Fonte: Ibge 2000 apud Jacob, C. R.; Hees, D. R..; Waniez, P.& Brustlein, V., 2003.

 

Figura 3. Concentração de pentecostais no Brasil, 2000.
Fonte: Ibge 2000 apud Jacob, C. R.; Hees, D. R.; Waniez, P.& Brustlein, V., 2003.

A CNBB reapresenta a unidade, assumindo a estratégia do ecumenismo católico.

“Na realidade, se anunciando o Evangelho ela se apresenta vulnerada por querelas doutrinais, polarizações ideológicas ou condenações recíprocas, como não haveriam de se sentir perturbados, desorientados e mesmo escandalizados aqueles aos quais ela dirige sua pregação? Mas a busca da unidade, por amor à missão evangelizadora, se estende mais além, através de um sincero esforço ecumênico. Na realidade, a divisão entre os cristãos não afeta apenas o cristianismo. Afeta o mundo, pois se constitui obstáculo à sua evangelização. A falta de unidade entre os cristãos rouba ao mundo o sinal mais rico e forte da credibilidade do Evangelho”. (CNBB, 1999, Diretrizes Gerais da Ação Pastoral da Igreja no Brasil de 1983-1986,§ 21)

Também diagnostica as transformações sociais no Brasil, e passa a demonstrar o impacto da pluralidade religiosa na forma de atuação da Igreja no país.

“Verificam-se igualmente transformações importantes na vivência religiosa do povo. O proselitismo das seitas, cada vez mais numerosas, o envolvimento do sincretismo religioso e a tentação de variadas formas de materialismo representam um desafio e um questionamento à ação pastoral da Igreja. Por outro lado, o atual processo de renovação da Igreja tem contribuído significativamente para o crescimento da consciência comunitária da e de suas implicações sociais e políticas”. (CNBB, 1999, Diretrizes Gerais da Ação Pastoral da Igreja no Brasil de 1983-1986, § 24)

O discurso da CNBB reitera a posição da Igreja hegemônica no Brasil em relação aos outros grupos religiosos reduzidos ao conceito de “seitas[8]. Os grupos pentecostais e neopentecostais representam o perfil que mais se coaduna ao proselitismo agressivo e ao apelo às massas de tradição católica.

No documento Diretrizes Gerais da Ação Pastoral da Igreja no Brasil de 1987/1990, a questão externa relativa às fronteiras da territorialidade católica adquire uma nova semântica, direcionada também ao diálogo inter-religioso e ao enfrentamento do processo de secularização. A representação da Igreja no Brasil da denominada “opção pelos pobres” é redimensionada para o discurso da “evangelização”. A parte inicial do documento faz uma reflexão sobre o delineamento deste novo discurso.

“Tendo assimilado o espírito e as orientações do Concílio sob a chave de leitura de Medellín (1968), dos Sínodos sobre Justiça no Mundo (1971), sobre a Evangelização (1974), com a Exortação Apostólica de Paulo VI "Evangelii Nuntiandi" (1975) e também do Sínodo da Catequese (1977) e do Documento de Puebla (1979), a CNBB na Assembléia de 1979 reelaborou o Objetivo Geral da Ação Pastoral da Igreja no Brasil. O texto aprovado então diz que este objetivo geral é Evangelizar a sociedade brasileira em transformação, a partir da opção pelos pobres, pela libertação integral do homem, numa crescente participação e comunhão, visando a construção de uma sociedade fraterna, anunciando assim no Reino definitivo”. (CNBB, 1999, Diretrizes Gerais da Ação Pastoral da Igreja no Brasil de 1987/1990 § 04-07)

O deslocamento do discurso da CNBB manifesta, entre outros aspectos, uma adequação ao contexto do pluralismo religioso do início da década de 1990 e uma relativização do foco anterior, de caráter muito mais relacionado à prática social e política. Neste contexto, o ato de “evangelizar” retoma todo um caráter místico e escatológico anuviado anteriormente.

As transformações do discurso da CNBB na década de 1990 demostram um resgate das referências mais tradicionais da Igreja Católica. A dinâmica de atuação da Igreja Católica recupera um palco eminentemente religioso, permeado de tensões fronteiriças. Esta realidade, no Brasil, tende a um conflito em processo de intensificação, na medida direta em que o apelo pentecostal responde aos anseios mais imediatos da população. Sob este ponto de vista, o neopentecostalismo não é mais uma referência estranha à cultura religiosa do Brasil; trata-se de uma recriação, de uma nova representação da religiosidade popular. O neopentecostalismo, com sua dinâmica proselitista, com sua resposta mágica à dura realidade social e psicológica da população, revigora de súbito um misticismo simples, atávico e freqüentemente eficiente.

Considerações finais

O presente ensaio  partiu da percepção das transformações da hegemonia católica no Brasil pós-Concílio Vaticano II (1962-1965), através do discurso oficial da Igreja e de suas formas de apropriação material e simbólica na constituição de determinada territorialidade do sagrado.

A Igreja Católica Romana circunscrita pelos limites estabelecidos pelo discurso institucional realiza a manipulação da sua própria expressão concreta através da ação dos atores sociais em sua representação de poder. O clero é a equipe articulada que mediante o discurso de poder constitui um consenso operacional da expressão religiosa da Igreja. A interação entre a hierarquia da Igreja e os crentes se dá de forma tácita a partir de uma convenção, mantida não só no rito como também no cotidiano.

O último quartel o século XX demonstra uma crise da representação dominante da Igreja Católica Romana e sua reestruturação no Brasil. A conjuntura secularizante da base de sustentação da Sé Romana na Europa e a retração no espírito missionário da Igreja, em outras partes do mundo contabilizaram uma certa estagnação do domínio simbólico da Igreja em especial nos países de maioria católica. Com efeito, o pluralismo religioso dos grandes centros urbanos cunhou uma nova realidade no Brasil, baseada em um crescente questionamento do mito do Brasil católico. A emergência de movimentos religiosos pentecostais e neopentecostais, em primeira instância, representaram nas décadas de 1980 e 1990 um impacto considerável na forma pela qual a religiosidade popular redefiniu sua identidade religiosa.

Em conseqüência desta nova trama, reconfigura-se o espaço de representação da Igreja Católica Romana no Brasil. A manutenção de um catolicismo de fachada de católicos não-praticantes é uma das facetas deste processo. Entretanto, mais além deste quadro está toda uma prática social destoante do discurso da moral, uma das bases do poder simbólico da Igreja que coloca cada vez mais em questão a colagem do discurso institucional no cotidiano dos crentes.

Deste modo, o quadro analítico revelou as seguintes considerações:

(i)  O discurso hierárquico da Igreja, a partir do Concílio Vaticano II, foi sensivelmente redimensionado sendo que seus impactos regionais tardios constituíram temporalidades diferenciadas. Existe uma dialética entre o discurso do ecumenismo e o reforço da primazia da Igreja como detentora da única verdade religiosa.

(ii)  O discurso católico institucional pós-Concílio Vaticano II assume como estratégia de enfrentamento da pluralidade religiosa o ecumenismo católico e o diálogo inter-religioso.

(iii)   A territorialidade católica no Brasil sofreu uma transformação nas décadas de 1970 e 1980 e representou uma ruptura em relação ao discurso de caráter mais eurocêntrico da Santa Sé.

(iv)   A fragmentação territorial da Igreja no Brasil pós-Concílio Vaticano II, através da multiplicação das dioceses e paróquias de modo contraditório, evidenciou o esvaziamento do poder regional dos bispos e explicitou a escassez de sacerdotes. De outro lado, este processo reforça que a ação estratégica que caracteriza a territorialidade católica está muito mais centrada em um monopólio do poder religioso por parte do clero, em contraposição ao acesso e à socialização leiga do espaço sagrado, próprios da religiosidade popular do Brasil.

(v)  A relativização, nos anos 1990, do monopólio do sagrado representado pela hegemonia do catolicismo no Brasil estabelece uma situação de crise da identidade católica. Haja visto o discurso da Conferência Episcopal de Sto. Domingo (1992) sobre a necessidade de reconversão das massas populares e dos católicos não-praticantes.

(vi)  A reestruturação da territorialidade católica, de caráter hegemônico, redefine as fronteiras da territorialidade de outras religiões.

Fica evidente que, considerando os limites da abordagem escolhida, a territorialidade católica é atravessada por uma crise refundadora na segunda metade do século XX. No Brasil das décadas de 1970 e 1980 constitui-se um sistema de práticas institucionais de certo modo autônomas em relação ao pensamento dominante da Igreja.

Os anos da década de 1990 representam, no campo da religião, a fixação do paradigma do pluralismo religioso e, neste bojo, uma implacável fragmentação do Cristianismo. Entre outros aspectos, a individuação da prática religiosa é diretamente proporcional ao enfraquecimento do controle institucional. A reforma protestante, como protótipo da modernidade, reapresenta também no século XX, freqüentemente, os mais profundos questionamentos estruturais à Igreja Católica Romana. O pentecostalismo e o neopentecostalismo são facetas representativas deste processo de fracionamento do rito e da fragmentação religiosa. Por outro lado, dialeticamente articulada ao processo anterior está a emergência do diálogo inter-religioso além do âmbito estritamente do ecumenismo cristão. Deste modo, podemos inferir que esta dinâmica contraditória poderá nas próximas décadas representar o salto qualitativo necessário a um novo patamar de desenvolvimento nas relações entre religião e sociedade engendrando novas territorialidades.

 

Notas

[1]  Baseado em comunicação apresentada na Conferência do Rio de Janeiro - International Geographical Union - Commission on The Cultural Geography - Historical Dimensions of The Relationship Between Space and Culture. Rio de Janeiro: 2003.

[2] Secular no sentido de não-eclesiástico. Sob a ótica da Igreja, os afazeres do mundo são em tese profanos, neste sentido não se contrapõe a religião. Todavia cada vez mais os afazeres mundanos estão nas mãos dos leigos o que relativiza o poder eclesiástico.

[3] Inculturação é um logismo utilizado, em documentos da Igreja, no sentido de tornar um discurso em prática cultural específica.

[4] Preferimos usar o nome do Profeta a partir da transliteração adotada pelos orientalistas ingleses do árabe Muhammad, em vez de ‘Maomé’, como foi incorporado ao português, Segundo S. V. Mamede apud J. P. Machado (Alcorão. Português. Alcorão. tradução José Pedro Machado. Lisboa: Junta de Investigações Científicas Ultramar, 1979) "em português, além da forma ‘Muhâmade’, que até na pronúncia, corresponde ao árabe Muhammad existe uma outra, também usual, mas não para fins religiosos – ‘Mafoma’ - que se lê nos mais antigos textos da língua portuguesa, e certamente corresponde ao que diziam na Idade Média os crentes do Islão no Andaluz, antes e depois do rei D. Afonso Henriques, que reconheceu o seu culto e privilégios em foral. Esta última forma tem origem na vocalização que se espalhara em alguns países Árabes, com a lição Mahommad, que os clássicos do idioma arábico procuravam corrigir, mas que explica certas formas hoje desusadas como "Mafomede" e "Mafamede", e o turco Mahomet, que passou ao francês (italiano: Maometto), e que se "aportuguesou", entre nós, por ‘Maomé’, sem necessidade..." Assim, tentamos nos afastar de certos preconceitos ancestrais incorporados na cultura cristã ocidental.

[5] Religião nascida na Pérsia em 1844, fundada por Mírzá Husayn ‘Ali Nurí (1817-1892), conhecido como Bahá'u'lláh ("A Glória de Deus"). Em 1844, Siyyid 'Ali-Muhammad (1819-1850), conhecido como o Báb ("O Portal"), proclamou uma nova Revelação Divina, dando origem à Bábí. Em 1863, em Bagdá, no Iraque, Bahá'u'lláh proclamou ser o Prometido pelo Báb e pelas religiões do passado. Afirmou ser o Portador de uma Mensagem Divina destinada a estabelecer a unidade mundial, fundando a Bahá’í. Sofreu aprisionamento, tortura e exílios durante 40 anos, até ser aprisionado definitivamente em ’Akká, na Terra Santa. (Assembléia espiritual nacional dos bahá’ís do Brasil, Bahá’í Verbetes e Errata. Porto Alegre: Dp. Bahá’í de Informação Pública, 1982.)

[6] Segundo Diel, P. F. (1997, p. 147), “ Uma característica que distingue os dois movimentos, da reforma e da restauração, é que o primeiro está mais voltado para o interior da Igreja e desenvolve uma visão negativa do mundo. no período da restauração, além do forte crescimento institucional, a Igreja vive um processo acelerado da massificação de sua ação pastoral.”

[7] Escatologia, do grego eschatos (último), refere-se a doutrina dos fins dos tempos. Prognostica o destino final do homem. Se contrapõe a uma idéia cíclica da história de eterna repetição através da visão de um movimento em direção a uma realização profética. (Ferguson, S. B. et al, 1988, p.228-231). O emprego do termo no texto coloca a escatologia como representação.

[8] O sentido de seita no texto revela o caráter de um grupo de dissidentes de uma comunhão principal. No senso comum, a classificação de um grupo religioso como seita reserva quase sempre um tom pejorativo.

 

Referências bibliográficas

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Ficha bibliográfica:
GIL FILHO, S. F. Estruturas da territorialidade católica no Brasil.
Scripta Nova. Revista electrónica de geografía y ciencias sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 15 de enero de 2006, vol. X, núm. 205. <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-205.htm> [ISSN: 1138-9788]

 
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