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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.

ISSN: 1138-9788.

Depósito Legal: B. 21.741-98

Vol. X, núm. 218 (22), 1 de agosto de 2006

A GEOPOLÍTICA DAS FRONTEIRAS INTERNAS NA CONSTITUIÇÃO DO TERRITÓRIO:
O CASO DA CRIAÇÃO DE NOVOS MUNICÍPIOS NA REGIÃO CENTRO-OESTE
DO BRASIL DURANTE O REGIME MILITAR[1]

Márcio Antonio Cataia

Depto de Geografia
Instituto de Geociências / Unicamp



A geopolítica das fronteiras internas na constituição do território: o caso da criação de novos municípios na região Centro-Oeste do brasil durante o regime militar (Resumo)

Para superar os constrangimentos de um território ainda não integrado, formado por regiões de economias mais ligadas ao exterior que aos outros subespaços nacionais, o regime militar (1964-1985), emprega sua geopolítica de integração nacional. A manobra de integração consistiu em apropriar política e economicamente a hinterland a partir do Brasil atlântico. A conseqüente integração econômica do território, com a difusão dos capitais e das pessoas, foi fortemente condicionada pela organização política da malha municipal. No auge da centralização do poder no Brasil, a região Centro-Oeste foi autorizada a criar novos municípios, produzindo dessa forma condições políticas locais para a apropriação econômica do espaço. Assim, a constituição do espaço econômico, na região e período aqui considerados, foi uma conseqüência ou complemento do espaço da política.


Palavras-chave: território; fronteiras internas; municípios; políticas territoriais



La geopolítica de las fronteras internas en la constitución del territorio: el caso de la creación de nuevos municipios en la región Centro-Oeste de Brasil durante el régimen militar. (Resumen)

Para superar la incomodidad de un territorio aún no integrado, formado por regiones de economías más vinculadas al exterior que a los demás subespacios nacionales, el régimen militar (1964-1985), emplea su geopolítica de integración nacional. La maniobra de integración consistió en apropiar en forma política y económica la hinterlândia a partir del Brasil atlántico. La integración económica resultante del territorio, con la difusión de los capitales y de las personas, estuvo fuertemente condicionada por la organización política de la malla municipal. En el auge de la centralización del poder en Brasil, la región Centro-Oeste fue autorizada a crear nuevos municipios, produciendo de esa forma condiciones políticas locales para la apropiación económica del espacio. Así, la constitución del espacio económico, en la región y período que aquí se consideran, fue una consecuencia o complemento del espacio de la política.

Palabras clave:territorio; fronteras internas; municipios; políticas territoriales.


The geopolitics of internal frontiers in the formation of territory: the case of the creation of new municipalities in the Brazilian Midwest region during the military regime (Abstract)

To overcome the embarrassments of a territory not yet integrated, formed by regions of economies more closely related with foreign countries than with other national subspaces, the military regime (1964-1985) employs its national integration geopolitics. The integration maneuver consisted of appropriating the hinterland politically and economically from Atlantic Brazil. The consequent economic integration of the territory, with the diffusion of capital cities and of people, was strongly conditioned by the political organization of the municipal network. At the peak of the centralization of power in Brazil, the Midwest region was authorized to create new municipalities, thus producing local political conditions for the economic appropriation of space. Accordingly, the formation of the economic space, in the region and period considered here, was a consequence or complement of the space of politics.

Key words: territory; internal frontiers; municipalities; territorial policies.



O município como espaço político

No Brasil, desde a Constituição de 1946, o município [2] é um ente da federação ao lado dos estados, do Distrito Federal e da União, sendo portanto pessoa jurídica de direito público, com autonomia e competência legislativa própria. As atribuições constitucionais dos municípios, herança de seu papel na integração do território brasileiro, e da vida de relações que impulsiona sua autonomia, fazem-no um espaço político e, portanto, um espaço de poder significativo na federação brasileira. O poder político não se exerce fora do espaço, e nem pode prescindir das fronteiras que, dividindo o espaço, delimitam os territórios onde ancora-se todo poder político-institucional.

Como espaço político o município já nasce relativamente autônomo no Brasil, não por direito delegado mas pela própria imposição do meio geográfico às normas. Durante todo Período Colonial, as Câmaras Municipais das Cidades e Vilas brasileiras possuíam enorme autonomia, chegando algumas delas a nomear e suspender Governadores e Capitães. Essa autonomia advinha da imposição do território colonial, onde grandes distâncias e dificuldades de comunicação (somente no início do séc. XVIII se tem notícia do correio de terra no Brasil), fizeram com que a fragmentação do poder nas Vilas e Cidades fosse o meio de administração e defesa da Colônia.

Por um lado, o relativo isolamento das Cidades e Vilas reforçava a estratégia de distanciamento com relação à Metrópole, tanto para exercitar a autonomia quanto o mandonismo locais. Outrossim, a atitude passiva da metrópole é compreendida pelo fato de seus interesses coincidirem com os daqueles que dominavam a política na colônia (os homens bons), pois implicavam em desbravar o território, afugentar aventureiros e ainda buscar riquezas. (Prado Júnior, 1966; Monbeig, 1985).

Com a independência do Brasil, as normas que passam a vigorar sobre Vilas e Cidades são as do Regimento das Cammaras Municipaes (atual Lei Orgânica dos Municípios), de 28 de outubro de 1828. Nele aparece Constitucionalmente pela primeira vez a palavra Município, até então a referência era a Cidades, Villas e Parochias. Com esse Regimento as Câmaras perdem parte de sua autonomia, subordinando-se aos Conselhos Gerais, aos Presidentes de Província e ao Governo Geral. À época este regime restritivo ficou conhecido como “Doutrina da Tutela”. Em 1834 são criadas as Assembléias Provinciais que passaram a ter autoridade sobre as Câmaras Municipais, sendo que em 1834, as Câmaras perdem o Poder Executivo, que passa a ser nomeado pelos Presidentes Provinciais (que correspondem aos atuais governadores dos estados).

Esse esforço normativo de centralização do poder esbarrava nas dificuldades de circulação pelo território. Com o transporte de cabotagem nas cidades litorâneas as ordens circulavam com mais facilidade, mas toda hinterlândia ainda vivia sob os auspícios de certa autonomia. A Estrada de Ferro Petrópolis (primeira ferrovia brasileira, no estado do Rio de Janeiro) data de 1854, tendo 14,5 Km de extensão e dependente de carvão importado. A instalação da rede telegráfica nacional inicia-se em 1852, tendo o desafio de estender cabos num território continental. Só em 1915 é que os trilhos da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil chegaram à cidade de Campo Grande (atual estado do Mato Grosso do Sul).

As regiões brasileiras eram mais solidárias às economias estrangeiras que aos subespaços nacionais. O relativo isolamento da hinterlândia, que perdurará por grande parte da história do Brasil, só vai ser rompido com a integração do território que se verificará no séc. XX. “É apenas após a segunda guerra mundial que a integração do território se torna viável, quando as estradas de ferro até então desconectadas na maior parte do país, são interligadas” (Santos, 1994), e constroem-se estradas de rodagem. Essa viabilidade de circulação pelo território estimulou sua maior ocupação política e econômica, tanto quanto propiciou maior circulação de informações e ordens, aproximando poder central e poderes locais. Por um lado essa nova dinâmica permitiu que os reclamos locais pudessem fazer eco nos centros dinâmicos da política e da economia, por outro lado possibilitou maior presença da União nos municípios. Essa maior aproximação tanto permitiu maior descentralização em função das lutas por autonomia, quanto autorizou maior centralização do poder. Nem mesmo a instituição do federalismo no Brasil conseguiu por fim ao jogo entre centralização e descentralização do poder, verificados na Colônia e no Império, justamente porque o território se impunha às normas.



Descentralização do poder: 1946 a 1964


É a Constituição de 1946 que formalmente possibilita maiores autonomias aos municípios, apesar de as Leis Orgânicas Municipais continuarem como prerrogativa dos estados federados (o que será modificado pela Constituição de 1988). Pela primeira vez o município passa ser um ente federativo, Prefeitos e Vereadores passam a ser eleitos pelo povo e são fixadas com clareza as atribuições municipais, fato essencial à autonomia. Certas limitações foram impostas a alguns municípios pela Constituição de 1946. A Carta previa que prefeitos de capitais e de estâncias hidrominerais poderiam ser nomeados. Já os prefeitos de Municípios com base ou porto militar de importância para a defesa nacional (dezoito Municípios foram considerados como de importância para a defesa externa, sendo nove em capitais de Estado) seriam nomeados. A Carta de 1946 também não previu Câmaras de Vereadores nos municípios de Territórios Federais[3] .


No entanto, a União ficou obrigada a repassar 10% do imposto de renda para os municípios, exceto as capitais. O estados ficaram obrigados a devolver aos municípios (exceto as capitais) 30% do excesso de sua arrecadação de impostos sobre o total das rendas locais de qualquer natureza (excluindo-se o imposto de exportação). União e estados podiam instituir novos impostos, desde que fosse obedecida a divisão de 20% para a União, 40% para os estados e 40% para os Municípios. Além desse sistema de transferências, o aumento na parcela da receita arrecadada também se deveu ao fato de os municípios poderem manipular as alíquotas de seus impostos, tendo competência tributária nos Impostos Predial e Territorial Urbano, de Licença, de Indústrias e Profissões, de Diversões Públicas e Assuntos de sua Competência.


As maiores autonomias garantidas aos municípios propiciaram um novo uso do território, com a ampliação de novas divisões político-administrativas. A esse respeito Santos (1996, p. 101-102), lembra que “a queda de Vargas e a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte desembocaram na Carta Magna de 1946, uma lei maior já em busca da modernidade, restauradora dos direitos dos Estados e amplificadora das prerrogativas municipais, agora amparadas por uma maior generosidade fiscal, com a redistribuição eqüitativa entre todos os municípios de uma parcela da arrecadação federal do imposto sobre a renda. É a esse estímulo que se deve a criação de centenas de novos municípios em todo território nacional. Era, também, um novo pacto territorial, fortalecedor da vida local, e que iria durar cerca de dezoito anos”.


Em 1946 o Brasil possuía 1.700 municípios, em 1950 passam a 1.890, e em 1963 já são 4.235. Em quatrocentos e quarenta e seis anos produzimos 1.700 municípios, em 18 anos, da Constituinte de 1946 até o golpe militar de 1964, outros 2.535 municípios foram criados. De 1946 a 1964, o menor crescimento do número de municípios foi registrado no estado do Rio de Janeiro (12%); em seis estados o crescimento ficou entre 38% e 91%; em todos os outros dezessete estados da federação o crescimento foi acima de 100%, destacando-se Santa Catarina (331%), Paraíba (309%), Goiás (289%), Ceará (283%), Rio Grande do Norte (261%), Paraná (243%) e Mato Grosso (189%). Só no estado de São Paulo, 41% dos municípios atualmente existentes foram criados nesse período. (IBGE, Divisão Territorial do Brasil, vários anos).


Essa “explosão” do número de municípios verificada depois de 1946 é o resultado não só das prerrogativas municipais, mas também uma normatização sobre um território onde desde o começo do século XX já havia uma importante redistribuição populacional[4] , decorrente de importante incremento demográfico, ainda que concentrado na vertente litorânea. Além do aumento do crescimento vegetativo e dos contingentes de imigrantes europeus que se dirigiam para o Brasil, já começava a se manifestar também o abandono do campo, com aumento do número de cidades e sua população.

Com grandes distâncias a serem vencidas e meios de transporte precários, a fundação de núcleos urbanos na hinterlândia condiciona a criação de poderes públicos, pois a vida cívica implica a presença da administração local na realização de tarefas de interesse geral. Tarefas que só o Estado tem legitimidade para realizar, como ações de regulação das tensões sociais e legislações de competência local, inclusive do campo.

Neste período, a expansão de frentes agrícolas pela hinterlândia, redistribuindo a população, decorreu de colonização espontânea, ou foi direcionada por companhias privadas de colonização, sendo mínima a intervenção governamental (Machado, 1995). Com a intenção de aumentar as receitas do estado e incrementar o afluxo de colonos, de 1951 a 1955 o governo do estado do Mato Grosso celebrou contratos para colonização (em glebas) com vinte empresas particulares. De acordo com Campos (1960), as glebas contratadas para colonização precisavam cumprir algumas obrigações antes de seu loteamento, como construir campos de pouso (aeródromos) e estradas que comunicassem a gleba com as povoações mais próximas, na tentativa de vencer seu isolamento. As obras de infra-estrutura ficavam por conta dos colonos e das empresas de colonização. Sem ajuda do governo do estado e distante das sedes municipais, o desmembramento municipal dava acesso aos recursos do governo federal.

Além do acesso aos recursos do governo federal, o que de certa maneira acaba por forçar uma redistribuição do orçamento nacional em função de uma nova organização do território, como enfatiza Di Méo (1991, p. 275), não basta ser núcleo urbano, “mesmo se a instância econômica própria a toda formação social fornece o impulso primeiro das fundações territoriais, ela requer quase simultaneamente, para assegurar sua organização e autorizar sua regulação, a intervenção de um poder político”.

Diferentemente da hinterlândia, o significativo aumento de municípios na vertente litorânea do território não se dá em função do isolamento que pede “proteção” do poder público, mas da maior fluidez do território em função da maior presença dos sistemas de engenharia, dos sistemas de transporte e de comunicações e da concentração industrial, promotora da aceleração da “urbanização de fachada”, que exigiu um novo sistema social organizador desse espaço. Quanto mais intensa for a divisão do trabalho numa área, mais cidades surgem e mais diferentes são umas das outras (Santos, 1994). À medida que a urbanização avança sobre o território, criam-se novas condições de trabalho, alargando o consumo dos serviços e complexificando a vida de relações e a administração do lugar. A transformação do núcleo urbano em município, produz um espaço político com poder de legislação sobre uma parcela do território, elemento fundamental de organização da vida econômica e social do lugar.

O território jurídico-político definido por Gottmann (1952), é bastante operacional para esta análise, como também o faz Raffestin (1993), quando adverte que de todas as funções que as fronteiras possuem, a única que nunca está ausente é a função legal, que delimita uma área onde vigora um conjunto de instituições jurídicas e normas que regulam a existência de uma sociedade política.

A produção das fronteiras municipais neste período abriu novos canais de comunicação entre os poderes locais, os estados (províncias) e a União. À medida que o território se integrava e as normas federais atingiam os lugares, as razões locais de produção das fronteiras permaneciam[5] , mas novas razões de caráter nacional davam sinais de existência. Tanto na hinterlândia quanto na fachada litorânea do território, tratou-se da manipulação de fronteiras (Cataia, 2001), para constituição de arenas de poder político em face de um novo uso do território que se impôs e pediu nova organização e regulação local.

Centralização do poder: 1964 a 1985

Apesar do significativo aumento do número de municípios entre 1946 e 1964, efetivando a presença do poder público nos lugares, Rodrigues (1947), preocupado com a presença do Governo Federal nas áreas interioranas do Brasil, propõe uma nova ocupação do território com base numa melhor dispersão ecumênica e uma nova divisão político-administrativa do interior do país. Rodrigues (idem), afirmava que as fronteiras internas do Brasil constituíam-se num “aleijão geográfico”, pois muitos municípios da hinterlândia possuíam dimensões superiores a muitos estados federados, o que dificultava sua racional administração. Ainda, nossa incapacidade de dividir a vasta hinterlandia seria traduzida pelo fato de possuirmos 17 Estados litorâneos e apenas 4 interioranos. Em outras palavras, tratava-se de mobilizar a população e o Estado para transformar o Brasil num país continental e não somente um país ocupado em sua borda atlântica. Para Rodrigues (idem), defensor da centralização do poder, só um governo de tipo unitário poderia promover a integração do território brasileiro.

Nesta interpretação geopolítica a fronteira entre os “dois brasis”, Atlântico e Interior, flutuava de um período a outro ao sabor dos ciclos econômicos, conseqüentemente era necessário uma solidariedade duradoura que fundasse a unidade do território nacional.

Para Couto e Silva[6] (2003), tratar-se-ia de fazer coincidir os espaços físico, demográfico, econômico e político, para tanto interpretou o território brasileiro a partir de quatro grandes linhas: a) um núcleo central, (“plataforma essencial ao futuro expansionismo para o interior”, idem, p. 281), o “triângulo de potência”, formado por São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte (no estado de Minas Gerais) que, no início dos anos 1960, se alargava em direção a Vitória (no estado do Espírito Santo) e a Brasília (DF), que serviria para articular o centro ao heartland central; b) uma “península” sulina, que corresponde à região Sul do Brasil; c) outra “península”, que corresponde à atual região Nordeste, e; d) a “ilha” amazônica ou heartland interior, correspondendo a grande parte da atual região Centro-Oeste e a totalidade da região Norte. Esse heartland é concebido como um grande deserto e futura área a ser articulada com o restante do território. É assim que o arquipélago brasileiro é interpretado do ponto de vista geopolítico.

Para Couto e Silva (apud Miyamoto, 1995), a decisão de interiorizar a economia devia ser uma decisão eminentemente política, que requeria ser complementada por uma diretriz que definisse, no plano do território, um esquema da grande manobra de integração territorial.

Com o golpe militar de 1964 e a conseqüente centralização do poder político no executivo federal o projeto geopolítico militar pôde ser colocado em prática. O Brasil “arquipélago”, ou seja, o território não-integrado, passa a ser o foco das políticas territoriais do Estado autoritário, que redesenhará o mapa político-econômico nacional. A Doutrina de Segurança Nacional e seus corolários, os Objetivos Nacionais Permanentes, fixam a integração do território como o objetivo maior dos militares. Ecumenização e integração territorial passam a ser o eixo estruturador do planejamento autoritário e centralizador.

A centralização do poder é traduzida na reforma tributária de 1965, que fez com que a parte da receita de impostos do governo federal se elevasse de 18,4% do Produto Interno Bruto em 1963, para 24,4% em 1966 e 26,3% em 1968. Aos municípios restaram dois impostos que tiveram suas importâncias de arrecadação reduzidas: o IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) e o ISS (Imposto Sobre Serviços).

A competência da maioria dos impostos ficou com a União, sendo que municípios e estados perderam o direito de alteração das alíquotas dos impostos de sua base territorial. Com a reforma tributária de 1965 é criado o Fundo de Participação dos Municípios (FPM) como forma de compensação pela centralização do poder, entretanto as alíquotas do FPM foram subordinadas aos critérios estabelecidos pelo governo federal. O governo militar põe fim a coexistência de três sistemas tributários relativamente autônomos – federal, estadual e municipal – instituídos pela Carta de 1946. A centralização era tamanha que até técnicos das Receitas estaduais eram nomeados pelo ministro da fazenda (Cardozo, 2004).

Em 1965 o governo federal edita o AI-2 (Ato Institucional nº 2) que autoriza o Presidente da República a decretar, em estado de sítio ou não, o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores. Em 1966 é editado o AI-3, que estabeleceu eleições indiretas para governadores e para prefeitos das capitais e cidades consideradas de “segurança nacional”; os prefeitos seriam nomeados pelo governador ou pelo presidente da República. A Constituição de 1967 defere para Lei Complementar Federal a competência sobre os requisitos mínimos para a criação de novos municípios, tirando do âmbito estadual o poder sobre a criação de novos municípios. Em 1968 é editado o AI-5, que dá ao executivo federal o poder de decretar recesso, tanto nas Assembléias legislativas quanto nas Câmaras Municipais. Em 1969, os prefeitos das capitais e das estâncias hidrominerais são nomeados pelos governadores com aprovação das Assembléias Legislativas. Os municípios declarados de segurança nacional tinham os prefeitos nomeados pela Presidência da República.

No final dos anos 1970, com o início da abertura política, mas mais especificamente 1985, com o fim do regime militar, aumentam as emancipações municipais até a Constituinte de 1988, chamada de Constituinte Municipalista, por que restauradora das autonomias municipais. Portanto, no que tange à imposição federal de políticas territoriais relativas às fronteiras municipais, pode-se reconhecer a existências de três subperíodos durante o regime militar.

No último subperíodo, de 1981 até o fim do regime militar (1985), foram criados 90 municípios em todo país, evidenciando certa fraqueza do governo federal em sustentar a centralização autoritária do poder. Salientamos que o nexo entre centralização do poder e criação de municípios não é unívoco, pois mesmo em períodos de centralização do poder novas fronteiras são produzidas, porém estas fronteiras, necessariamente não respondem por maior autonomia dos lugares[7] . De fato, centralização e autoritarismo não se confundem, pois historicamente, tanto em países de organização Federativa quanto Unitária, em questões “territoriais nacionais”, o Estado é centralizador.

O curto primeiro subperíodo, de 1964 a 1967 é marcado por uma política de certa maneira ambígua, já que muitos municípios foram extintos, mas muitos outros foram criados. O estado do Amazonas criou 212 municípios em 1963, mas em 1964 viu extintos 252 municípios. No estado do Ceará, em 1965, 161 municípios foram extintos. Em números totais, ao findar o ano de 1963 o Brasil possuía 4.235 municípios, ao findar 1965, são 3.957. No ano de 1964, 116 municípios foram instalados (38 na região Sul, 11 na região Nordeste, 3 no estado do Mato Grosso e 64 no estado de São Paulo); em 1965, são criados 7 municípios (4 no estado do Paraná, 1 no estado do Rio Grande do Sul e 2 no estado do Maranhão); em 1966, nenhum e em 1967, outros 12 são elevados à categoria de município (9 no estado do Paraná e 3 em Santa Catarina) (Vilas e Cidades do Brasil, 1998).

No primeiro subperíodo, observa-se um predomínio de criação de municípios no Centro-Sul do país, com algumas concentrações por estado. São os casos do norte do estado do Rio Grande do Sul e Oeste do estado do Paraná; no estado de São Paulo duas regiões destacam-se: o entorno da cidade de São Paulo espraiando-se em direção a Campinas e a região Noroeste (na fronteira com o Triângulo Mineiro).

O segundo subperíodo, que vai do final dos anos 1960 ao final dos anos 1970, nos interessa mais especialmente por revelar de maneira bastante clara o uso que o poder central fez das fronteiras municipais como um dos elementos de integração da região Centro-Oeste à economia nacional e internacional (ver figura 1). Nota-se que a criação de novos municípios concentra-se na região Centro-Oeste, objeto do projeto geopolítico.

Figura 1
Brasil – Instalação de municípios na década de 1970

Fonte: Vilas e Cidades. IBGE, 1998.


Não trataremos neste texto do desmembramento do estado do Mato Grosso em Mato Grosso (ao Norte) e Mato Grosso do Sul, mas este desmembramento estadual também mostra a importância que a manipulação das fronteiras internas desempenhou nas políticas territoriais praticadas para a integração nacional.

A manipulação das fronteiras é parte integrante das técnicas do poder. Neste subperíodo a malha política (entendida aqui como o conjunto das fronteiras político-administrativas num quadro de expansão dos sistemas de transporte e de comunicação) facilitou o exercício do poder central na medida em que a forma difunde ordens. A malha teve a função de transmitir as ordens do poder central aos lugares de maneira mais eficaz – porque a fronteira marca o limite que diferencia um espaço do outro, delimitando um quadro de ação –, de fazer circular a informação, tanto quanto possível, sem atritos.

Apropriação da região Centro-Oeste


A efetiva integração da totalidade do território brasileiro é inaugurada no pós-guerra. A inexistência de uma rede nacional de transportes e a fraca densidade populacional nas áreas interiores eram entraves ao crescimento econômico do país, que, sendo acelerado desde Getúlio Vargas, exigia novos mercados no Brasil e no exterior. A construção de Brasília, o asfaltamento e a implantação de novas rodovias interligando a nova capital federal a diferentes pontos do país, propiciaram uma melhor articulação da região Centro-Oeste com o restante do país. Mas a integração efetiva do Centro-Oeste à economia nacional e internacional, consolidou-se apenas nos anos 1970 com a implantação de projetos de desenvolvimento regional e de programas especiais que redundaram em melhoria relativa das infra-estruturas de transporte, comunicação e energia, criando as condições para a expansão da agricultura moderna em bases empresariais.

A fraqueza de rugosidades (Santos, 1994) e a força do Estado com políticas de financiamento e créditos subsidiados na frente pioneira da região Centro-Oeste serviram como poderosos estímulos à implantação da agricultura comercial, com destaque para as commodities agrícolas. É nesse contexto do pós-guerra, mas mais especificamente a partir dos anos 1970, que o capital nacional e transnacional “coloniza” o Centro-Oeste brasileiro.

O lento processo que franqueava a região Centro-Oeste à ocupação vem desde o Brasil Colônia, recebe novo impulso com a “marcha para o Oeste” de Getúlio Vargas, mas são os militares que aceleram sua conquista. Os objetivos eram econômicos, mas sobretudo eram geopolíticos, com o lema de “integrar (o arquipélago) para não entregar (a supostas nações gananciosas)” (Martins, 1997; Ianni, 1987; Godfrey, 1988). Políticas estatais para a ocupação da região não é algo novo, todavia o que foi novo nesse período foi o uso de recursos técnicos modernos, articulados com o capital privado nacional e transnacional, e a colonização da região articulada a um projeto amplo de integração do território (Machado, 1995). Para a consecução do plano de integração do território, o Estado lança mão de um “tripé” em cujos vértices encontram-se a técnica (com o uso das mais novas tecnologias aplicadas à produção e sua circulação), créditos e subsídios e os grandes capitais.

Créditos, subsídios e grandes capitais

Os estímulos econômicos, com créditos e subsídios, vertebraram-se em diversos programas, dentre os quais destaca-se o Polocentro (Programa de desenvolvimento dos cerrados) que visou o desenvolvimento de pesquisa e experimentação, de extensão rural, de infra-estrutura e de produção e comercialização de insumos básicos à agropecuária. Com linhas de crédito para os empreendimentos empresariais (para as médias e grandes propriedades), aprovou de 1975 a 1982, cerca de 2.400 projetos, com créditos de aproximadamente US$ 467 milhões, dos quais 94,1% foram investidos no Centro-Oeste. O Proterra (Programa de distribuição de terra e desenvolvimento agroindustrial), dirigiu-se ao centro-norte e leste do estado do Mato Grosso, financiando projetos de colonização. Entre 1967 e 1986, foram implantados 108 projetos em 2,9 milhões de hectares. Além desses dois programas outros ainda foram destinados ao Centro-Oeste, como o Prodepan (Programas especiais de desenvolvimento do pantanal), o Prodegran (Programas especiais de desenvolvimento da Grande Dourados), o Polonoroeste (Programa integrado de desenvolvimento do Noroeste do Brasil, ao longo da rodovia Cuiabá-Porto Velho, a BR 364) (Galindo & Santos, 1995; Machado, 1995).

O governo federal concedeu às grandes empresas incentivos fiscais que possibilitava um desconto de 50% do imposto de renda aos empreendimentos da empresa situados fora da região Centro-Oeste, ou seja, nas suas sedes. A condição para tanto era a de que esse dinheiro fosse depositado no Banco da Amazônia (Banco federal) e após a aprovação do projeto de investimento pelo governo, fosse constituir 75% do capital da nova empresa. Com os instrumentos fiscais administrados pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), do final da década de 1960 até 1985, foram aprovados 626 projetos, sendo 215 no estado do Mato Grosso e 53 em Goiás, cujo tamanho médio das propriedades era de cerca de 21 mil hectares, em alguns casos ultrapassando o tamanho de 100 mil hectares. Essa modalidade de incentivo assegurava rentabilidade aos investimentos e ainda liberava capitais para serem aplicados em novas tecnologias agrícolas. (Martins, 1997; Galindo & Santos, 1995).

Em 1965 é criado o Sistema Nacional de Crédito Rural, destinado, em sua concepção original, ao financiamento das atividades rurais. Já nos anos 1970 o crédito de custeio foi a modalidade de financiamento mais aplicada na agricultura, sendo que a maior parte desta verba foi destinada à compra de insumos industriais, tratores e outros equipamentos agrícolas, favorecendo claramente o processo de modernização do campo brasileiro[8] e indicando a integração subordinada da região à São Paulo (Cano, 1985). Os créditos concedidos pelo Polocentro eram ainda mais atrativos, em função das condições de prazo e juros, que aqueles do Sistema Nacional de Crédito Rural (Silva, 2002).

A modernização do campo organizou um sistema de produção intensivo, com destaque para a cultura do milho e posteriormente da soja. Do plantio à colheita, passando pelas operações de pulverização, fertilização e tratos culturais, a produção foi sendo motorizada. O consumo produtivo do campo aumenta: em 1970 a região Centro-Oeste contava com 6.554 tratores, em 1975 passa a 29.032, para em 1980 perfazer um total de 63.391 tratores. Em média, entraram no Centro-Oeste 15,5 tratores por dia durante uma década (Censo Agropecuário, vários anos, IBGE). Este sistema conferiu uma alta produtividade ao trabalho, permitindo a um número reduzido de trabalhadores operar centenas de hectares, com necessidades pontuais de contratação de trabalhadores temporários.

À modernização do campo[9] , que acelerou o êxodo rural, correspondeu a modernização das cidades, pois estas tiveram de atender à crescente diversificação de produtos e serviços. O consumo produtivo do campo se “localiza” na cidade: agências bancárias para viabilizar as operações de crédito; revendas especializadas de máquinas, equipamentos e tratores; casas de revenda de fertilizantes e agrotóxicos; hotéis e redes hoteleiras para abrigar os negociantes e técnicos em viagens. A expansão das classes médias, já que as cidades passam a abrigar especialistas, também é uma promotora da diversificação dos serviços com saúde, educação e lazer.

A magnitude do capital que se deslocou para o Centro-Oeste a partir da década de 1970, foi outro elemento de destaque. Corrêa (1987), lembra que o discurso oficial, ao falar da integração nacional, ocupação de vazios e desenvolvimento, estava ideologicamente justificando a incorporação capitalista desses espaços, daí o autor chamar esses espaços de “fronteira do capital”. Monbeig (1985), lembra que industriais, banqueiros e grandes negociantes de São Paulo associaram seus capitais para iniciar a exploração agropecuária da região Centro-Oeste em imensas propriedades. Ao lado das empresas nacionais as multinacionais também participaram do processo.


Sob o pretexto de ocupar os campos vazios da região os militares propõem uma modalidade de atividade econômica que dispensa mão-de-obra do campo, o que consciente ou inconscientemente reforçou a urbanização corporativa e segregadora, conseqüentemente exigiu maior presença do Estado para regular os atritos sociais e a administração local (como regularização de cadastros, saneamento, educação, etc). As novas cidades passaram a concentrar o comércio e os serviços – com funções e estruturas internas diretamente ligadas ao campo –, mas também se tornaram centros políticos (nas sedes de municípios) da frente pioneira.

Circulação e urbanização

Como não há integração sem circulação, a ação do Estado sobre a região Centro-Oeste deu-se a partir de uma velha orientação geopolítica, qual seja, a de que os grandes impérios econômicos ou políticos, em todos os tempos, traduziram-se e expressaram-se pela rede de estradas. É Brunhes (1962[1956], p. 136) quem diz que “sempre que um poder procura instalar-se em uma região nova, traça e constrói aí uma estrada“. A circulação projetou na região não só o poder do Estado, mas também o poder do comércio mundial de commodities agrícolas.


As vias de circulação ou eixos estruturais de penetração no Centro-Oeste traçados pelo governo federal foram primordiais. Como destaca Machado (1995), as frentes pioneiras, depois do golpe militar, deixaram de ser espontâneas vinculando-se a um padrão espacial estreitamente articulado com os sistemas de transporte. Em 1970, apesar das rodovias federais representarem 7,5 % (Geografia do Brasil, 1977) do total regional centro-oestino, elas eram fundamentais pois se constituíam na base do sistema rodoviário regional e também nas artérias de integração com o restante do país. Foram três os principais eixos estruturais de articulação regional: rodovia Belém-Brasília (BR 010), rodovia Cuiabá-Santarém (BR 163) e Cuiabá-Porto Velho (BR 364). A essas três rodovias federais juntavam-se as rodovias que, partindo de São Paulo, capilarizavam a parte Sul da região Centro-Oeste.

Oficialmente, Minter (Ministério do Interior) e Sudeco (Superintendência de Desenvolvimento da Região Centro-Oeste), classificaram os transportes rodoviários em “sistema de penetração”, formado pelas rodovias federais longitudinais, “sistema de apoio”, formado pelas rodovias transversais e diagonais, que muitas vezes entrecruzam com as primeiras e “sistema alimentar”. Este sistema compunha-se das rodovias estaduais e vicinais, que deveriam permitir o fluxo de mercadorias das áreas produtoras às áreas consumidoras (Abreu, 2001). Apesar desse sistema projetado, a precariedade do sistema de transportes era razoável. No caso do estado do Mato Grosso (Tabela 1), que viria a se tornar o maior produtor de soja do país, dos 6.228 Km de rodovias federais existentes em 1970, somente 553 Km eram asfaltados; dos 10.505 Km de rodovias estaduais somente 25 Km eram asfaltados, sendo que os municípios só conheciam 5 Km asfaltados.


Tabela 1
Mato Grosso – Malha rodoviária
Malha
Anos
Aumento (em %)
1957
1970
1970/1957
Municipal
11.383 Km
38.294 Km
236%
Estadual
9.051 Km
10.505 Km
16%
Federal
3.470 Km
6.228 Km
79%
Total
23.904 Km
55.251 Km
131%

Fonte: Geografia do Brasil - Região Centro-Oeste. IBGE, 1977

Como o modelo de ecumenização da região se deu ao longo dos eixos federais estruturadores do sistema de movimento, a capilaridade do território centro-oestino foi complementada pelas estradas estaduais e municipais. O crescimento de 236% das estradas municipais é um importante indicador do peso que as “vicinais” passaram a ter para a integração regional e também para escoar a produção das fazendas que não se localizavam na margem de um eixo estruturador, já que a economia regional foi produzida para mercados extra-regionais[10] .

Uma nova distribuição das funções produtivas regionais começa a se instalar a partir da maior densidade rodoviária, aprofundando a divisão social e territorial do trabalho com a conseqüente especialização regional. A expansão do sistema de movimento terrestre articula-se à expansão da urbanização impulsionada pela moderna agricultura. Em 1960 ao longo da rodovia Belém-Brasília existiam 10 cidades e povoados, em 1970 eles chegam a 120. No mesmo período, excluindo-se as cidades de Brasília, Anápolis e Belém, o número de habitantes na zona de influência dessa rodovia saltou de 100.000 habitantes para 2 milhões de habitantes (Geografia do Brasil, 1977). De acordo com Coy (1998), as empresas de colonização venderam, até 1987, mais de 3 milhões de hectares, correspondendo a 18.000 parcelas individuais, sendo que a maioria dos projetos de colonização particular concentrou-se na área de influência da rodovia Cuiabá-Santarém.

Este foi o caso do município de Sinop. Em 1972 a Colonizadora Sinop (Sociedade Imobiliária do Noroeste do Paraná), financiada pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (Sudam), Banco do Brasil e Proterra, estabeleceu o projeto agrícola da Gleba Celeste nas margens da BR 163. Os financiamentos abrangeram todas as etapas do projeto, desde a demarcação dos lotes rurais e urbanos passando pelos mapeamentos e infra-estrutura como as estradas vicinais (Oliveira, 1988). A gleba, com um total de seiscentos mil hectares de terras, foi dividida em quatro núcleos urbanos, que serviam como articuladores dos serviços necessários às atividades agrícolas, foram eles, Vera, Santa Carmen, Cláudia e Sinop. Em 1979 o núcleo urbano Sinop é elevado à categoria de município. Na década de 1980 o município de Sinop é subdividido em outros três municípios, Vera, Cláudia, e Marcelândia. Na década de 1990 é novamente subdividido em mais cinco municípios, Santa Carmen, Nova Ubiratã, Feliz Natal, Planalto da Serra e União do Sul. Um único projeto agrícola, originou nove municípios na área de influência da rodovia Cuiabá-Santarém (BR 163).

As colônias agrícolas implantadas por migrantes gaúchos e paranaenses nos chapadões dos cerrados, escondiam na sua unidade cultural, uma estratégia de autonomização política singular (colônias enquanto futuras sedes de municípios) (Lavinas, 1987). De fato, essa fronteira agrícola já nasce urbana (Becker, 2004). Entre as décadas de 1950 e 1970 as taxas de urbanização cresceram progressivamente, tendo sido acompanhadas pelo aumento do número de municípios. Destaca-se o acelerado índice de urbanização da região Centro-Oeste que na década de 1970 apresenta a segunda posição no Brasil (Tabela 2).

Tabela 2
Brasil - Taxa de urbanização (%) e número absoluto de municípios por região
Regiões
1950
1960
1970
Urbanização (em %)
Nº de municípios
Urbanização (em %)
Nº de municípios
Urbanização (em %)
Nº de municípios
Norte
31
99
37,8
120
45,1
143
Nordeste
26
609
34,2
903
41,8
1.376
Sudeste
48
845
57,3
1.085
72,7
1.410
Sul
30
224
37,5
414
44,3
717
Centro-Oeste
24
112
35,0
244
48,0
306

Fonte: IBGE, Censo Demográfico (vários anos), Divisão Territorial (vários anos).

De fato, o processo de urbanização não se constitui em fenômeno divorciado das atividades agrícolas. Campo e cidade não são realidades antagônicas, por isso Pierre George (apud Geiger, 1963, p. 70) lembra que “a oposição radical entre sociedade de agrupamentos urbanos e sociedades sem cidades, é mais um conceito que a expressão de uma realidade.” Geiger (1963), destaca que no primeiro quartel do século XX em regiões de economia agrária, como o Norte do Paraná e o Oeste paulista, houve uma intensa organização da rede urbana, com a instalação nas cidades de indústrias de beneficiamento dos produtos agrícolas locais e atividades comerciais onde os agricultores se abasteciam. Monbeig (1998[1952]), demonstrou como a modernização dos meios de circulação, ativados pela economia do café no interior do estado de São Paulo, promoveram a fundação de cidades. A modernização agrícola associa-se à urbanização porque as cidades surgem para servir essa atividade.

A expansão do consumo da saúde, da educação, do lazer, é paralela ao consumo de eletrodomésticos, de viagens, de idéias, de informações; tudo isso amplia o fenômeno da urbanização, com a criação de novas formas de consumo no mundo agrícola. O modo de vida urbano, baseado na sociedade do consumo encontra e cria as condições necessárias à sua proliferação no território brasileiro.

Mas as bases econômicas do território são exigentes em regulação política. Acompanhando todo esse processo de modernização econômica e urbana, o território conhece uma maior divisão político-administrativa[11] . A criação de novos municípios constitui um elemento de base política essencial à regulação da atividade econômica, pois ela aprofunda disparidades sociais criando atritos que só podem ser amenizados pelo Estado, única instituição que tem a legitimidade da violência.

Becker (1990), ao considerar a ocupação e urbanização da “fronteira”, destaca sua complexidade a partir da interação entre duas malhas, que se apropriando do espaço, definiram novos territórios. A malha “técnico-política” foi constituída pelos territórios apropriados e geridos diretamente pelo aparelho de Estado que, em conflito com a métrica e o espaço efetivamente ocupados, produziu uma nova divisão territorial. A malha “sócio-política” foi constituída pelos grupos sociais que concretamente se instalaram na fronteira e, dependendo de seu potencial político, institucionalizou sua métrica político-administrativa, originando novas unidades da federação, núcleos urbanos, distritos, municípios e até estados. Essa ferramenta analítica produziu uma tipologia bastante profícua de “sub-regiões”, que apresentam particularidades que não se reproduzem no nível regional quanto às razões da criação de novos municípios.

De fato, a articulação entre as ordens extra-regionais, tanto Estatais quanto empresariais (nacionais e internacionais), que se pretenderam homogeneizantes, e as diversas ordens locais intra-regionais, produziram distintas combinações que se precipitaram em diversas razões locais para as emancipações municipais. Contudo a autorização para a criação de um novo ente federativo estava hierarquizada neste período de centralização do poder. A autorização provinha do executivo estadual, que por sua vez era nomeado pelo executivo federal. Portanto, quer seja para impor suas ordens, quer seja para articular-se a poderes regionais e locais – como foi o caso daqueles que no começo dos anos 1980 articularam-se para desmembrar o estado de Goiás –, a manipulação das fronteiras internas respondeu muito bem às políticas territoriais do governo federal.

Considerações finais


Até as décadas de 1930 e 1940 predominavam no Brasil “estradas econômicas”, que tinham a função de ligar os pontos de produção aos pontos de exportação no “arquipélago” brasileiro. Os meios de circulação não capilarizavam o território para que o espaço político, das políticas estatais, correspondesse ao território nacional. Após a 2ª guerra mundial as “estradas políticas” serviram para integrar o território e organiza-lo segundo uma nova solidariedade entre as regiões. Os eixos estruturadores da integração do território brasileiro, constituíram-se numa armadura política do território, propiciando uma corrente de relação entre as regiões.

As “estradas políticas”, que fundam a unidade de um Estado, passam a formar a partir da 2ª guerra mundial um sistema. A transformação das redes isoladas de estradas em um sistema nacional possibilitou ao Estado mais fácil emprego dos recursos à sua disposição. Por meio desse sistema, os elementos constitutivos do espaço puderam ser agrupados e serviram mais eficazmente à centralização do poder. Por meio das estradas políticas uma melhor ecumenização do território foi colocada em marcha, bem como a urbanização do território é acelerada com a fundação de novas cidades em todo território nacional, especificamente nas regiões ainda não totalmente integradas.


Esse nexo entre circulação e iconografia foi notado por Gottmann (1952). A circulação (criadora de mudanças) é dividida em duas ordens: a) uma ordem política, representada pelo deslocamento de homens, exércitos e idéias, e; b) uma ordem econômica, representada pelo deslocamento de mercadorias, técnicas, capitais e mercados. A iconografia define-se como uma força de autodefesa, de uma política estabelecida em cada lugar, jogando o papel de cimento entre os membros de um lugar, e destes com seu território. As iconografias se desenvolvem a partir de “carrefours” cuja existência é devida à circulação e que, inversamente, a “unificação do espaço” produzida pela iconografia facilita a circulação. No Brasil os municípios criaram as condições para a circulação no interior de vastas áreas.

Os municípios, interpretados como territórios políticos – porque possuem fronteiras claramente delimitadas, que definem a existência de entidades jurídicas executivas, legislativas e tributárias –, fazem parte de um sistema de poder orientado para a organização do território. Fazendo parte de um sistema territorial de poder, a divisão municipal articula-se às outras divisões que também lhe conferem sentido, qual seja, as divisões estaduais e regionais. Por isso, indicamos a importância do surgimento de novos municípios segundo os projetos direcionados a uma região, e dentro desta, a um estado mais especificamente.

O aspecto geográfico do projeto de integração nacional residiu na consideração voluntária dos constrangimentos espaciais, e a manipulação das fronteiras municipais, fundando novos territórios políticos, foi elemento de destaque, junto dos sistemas técnicas e normas financeiras, para a consecução do projeto nacional.

O projeto de integração do território teve no Estado um agente econômico direto, (i) mobilizando capitais para investimentos, que de outra maneira teriam lenta maturação na hinterlândia; (ii) financiando e subsidiando gastos com programas privados de colonização e apropriação da região Centro-Oeste; (iii) regulando os conflitos sociais, econômicos e políticos surgidos da rápida apropriação do Centro-Oeste. Em suma, a geopolítica Estatal foi o elemento que cimentou o pacto federativo necessário à integração do território brasileiro durante o regime militar.


Notas

[1] Este texto é resultado parcial de pesquisa que vem sendo realizada com apoio do CNPq.

[2] No Brasil o município é a menor unidade político-administrativa do Estado.

[3] Um Território Federal corresponde a uma circunscrição territorial, conjugando um determinado número de municípios, e onde vigora as leis do governo federal, sem a existência de uma autonomia estadual.

[4] A construção da capital Brasília, atraindo migrantes nordestinos, contribuiu sobremaneira para que no período de 1946 a 1964 Goiás apresentasse um crescimento do número de municípios da ordem de 289%.

[5] São inúmeras as razões de ordem política local para a criação de novos municípios. Estas situações são analisadas pela geopolítica com o conceito de guerrymanderismo. Neste texto não escolhemos uma situação local para análise, mas uma região no contexto de integração nacional.

[6] Influente geopolítico e ideólogo do regime militar, em junho de 1964, dois meses depois do golpe militar, o General Golbery do Couto e Silva foi nomeado Chefe do Serviço Nacional de Informacional; de 1974 (com o Presidente Ernesto Geisel) a 1981 (com o Presidente João Batista de Figueiredo), foi Chefe do Gabinete Civil da Presidência da República.

[7] Não é nossa intenção discutir a existência da democracia face à descentralização do poder, mas talvez a Constituinte de 1988 não tenha avaliado com maior acuidade o significado no Brasil do “mandonismo local”, tão bem estudado por Victor Nunes Leal (Coronelismo, Enxada e Voto). De fato, descentralização política não significa democracia. Para tanto pode-se consultar: COSTA, Wanderley Messias da. Centralização e gestão democrática do território: uma oposição?. Em Becker, B., Miranda, M., Bartholo Jr., R.S., Egler, C., (ed.). Tecnologia e gestão do território. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ. 1988.

[8] Em 1969, 46% das verbas do Sistema Nacional de Crédito Rural foi destinado ao custeio; em 1980 esse número chega a 56% (Silva, 2002).

[9] Para Ianni (1987), o que singulariza a política econômica inaugurada em 1964 é o fato dela substituir a ideologia do desenvolvimento pela ideologia da modernização. Até então o desenvolvimentismo orientava-se no sentido de dinamizar as forças produtivas; implicava a independência política e, em certa medida, a autonomia econômica. Já a ideologia da modernização denota um esforço destinado a refinar o status quo e a facilitar os processos de concentração e centralização do capital, basicamente alinhados com a liderança norte-americana na geopolítica da guerra-fria.

[10] Entre os anos de 1964 e 1971 as estradas vicinais responderam por 89,15% da expansão da rede rodoviária nacional, e 85,67% entre 1971 e 1981 (Xavier, 1997).

[11] Abreu (2001), lembra que a criação de muitos municípios surgidos de projetos de colonização – majoritariamente aqueles que receberam incentivos do Polocentro e Polamazônia –, constituíram-se em possibilidades de lucros imobiliários, pois após a aprovação do projeto e a instalação de algumas edificações emancipava-se a área, transferindo para o Poder Público o compromisso com a implantação de novas infra-estruturas e serviços assumidos pelas empresas. Isto justificaria muitos recursos gastos pela Sudeco (Superintendência de Desenvolvimento da Região Centro-Oeste), com subprogramas de desenvolvimento urbano.

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