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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. 
ISSN: 1138-9788. 
Depósito Legal: B. 21.741-98 
Vol. XI, núm. 245 (21), 1 de agosto de 2007
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

Número extraordinario dedicado al IX Coloquio de Geocritica

A RELEVÂNCIA DAS FRONTEIRAS NO PERÍODO ATUAL: unificaÇÃo tÉcnica e compartimentaÇÃo polÍtica dos territÓrios[1]

Márcio Cataia
Departamento de Geografia
Instituto de Geociências - Unicamp
cataia@ige.unicamp.br


A relevância das fronteiras no período atual: unificação técnica e compartimentação política dos territórios (Resumo)

O texto interroga a ideologia do “fim das fronteiras políticas”, surgida no início da década de 1980, procurando distinguir a fronteira como zona e a fronteira como linha, classicamente formuladas pela geografia. Com base nesta indicação, trata das formas gerais da divisão dos territórios políticos surgidos com o Estado territorial: a reflexão é orientada a partir de uma das concreções do espaço geográfico, a categoria território. A análise acontece pela discussão sobre a inserção do território brasileiro no mundo da globalização, sendo registrado que a unificação técnica do mundo não implica em sua união política. Empiricamente o texto constata que quanto maior é a unificação técnica do mundo, maior é sua compartimentação com a relevância das fronteiras internacionais.

Palavras-chave: território; fronteiras; compartimentação do espaço.


The relevance of borders today: the technical unification and political compartmentalization of territories (Abstract)

The text explores the ideology of the “end of political borders,” which emerged at the start of the 1980s, seeking to distinguish the border as a zone from the border as a line, based on that classically formulated by geography. Based on this indication, it discusses the general forms of division of political territories that emerged with the territorial State: the reflection revolves around one of the concretions of geographic space, the territorial category. The analysis is based on the discussion of the insertion of Brazilian territory in the world of globalization, registering that the technical unification of the world does not necessary mean its political union. Empirically, the text ascertains that the bigger the technical unification of the world, the larger its compartmentalization with relevance to international borders.

Keywords: territory; borders; space compartmentalization. 



La relevancia de las fronteras en el periodo actual: unificación técnica y compartimentación política de los territorios (Resumen)

El texto interroga la ideología del “fin de las fronteras políticas”, surgida al inicio de la década de 80, buscando distinguir la frontera como zona y la frontera como línea, clásicamente formuladas por la geografía. Con base en esta indicación trata a respecto de las formas generales de la división de los territorios políticos surgidos con el Estado territorial: la reflexión es orientada a partir de una de las concreciones del espacio geográfico, la categoría territorio. El análisis acontece por la discusión sobre la inserción del territorio brasileño en el mundo de la globalización, registrándose que la unificación técnica del mundo no significa su unión política. Empíricamente el texto constata que cuanto mayor es la unificación técnica del mundo, mayor es su compartimentación con la relevancia de las fronteras internacionales.

Palabras clave: territorio; fronteras; compartimentación del espacio. 


Ao surgirem os modernos Estados territoriais já herdaram um espaço interior compartimentado, porquanto preexistia aos territórios nacionais uma divisão espacial do trabalho e uma divisão política do território. Com o desenvolvimento do capitalismo a divisão do mundo em territórios nacionais se sedimenta, e é com base nesta estrutura que as sociedades politicamente se enquadram. Neste quadro as fronteiras têm o papel de limites demarcadores dos distintos projetos sociopolíticos.

Hoje, em face à globalização, a compartimentação do espaço mundial revela duas facetas contraditórias e solidárias. Por um lado, as fronteiras devem delimitar com clareza o território nacional que consagra à sociedade que nele vive seu abrigo, este é o princípio da soberania internacional, mas por outro lado a economia transnacionalizada opera fluxos financeiros e normativos que atravessam as fronteiras, promovendo um enfraquecimento de suas funções destinadas à proteção. As oportunidades de fluidez oferecidas pelo meio técnico-científico e informacional (Santos, 1996) – as revoluções nos transportes e nas comunicações ilustram sobejamente esse processo –, possibilitaram a unificação técnica do planeta, mas paradoxalmente, desde o seu surgimento, esse meio geográfico testemunha sua maior compartimentação. Nesta Era da velocidade, de encurtamento das distâncias geométricas, os territórios nacionais padecem, em distintos graus, das influências de um mundo que efetivamente se globaliza, mas é a partir deles que se efetivam as relações interestatais, é na sua estrutura que se fundam quadros legais de legitimação do poder e reconhecimento das soberanias.

Nesse contexto duas razões são confrontadas, uma global, representada pelas grandes corporações e organismos transnacionais, e outra local (Santos, 1996). Ordens e normas globais atingem os lugares reorganizando a vida de relações a partir de parâmetros sem referência com o meio local. Mas, em seu processo de difusão, a dinâmica espacial da globalização não se reduz à integração passiva das partes, pois os fluxos não são só financeiros – tendentes à homogeneização –, mas também migratórios (inclusive turísticos), informacionais e culturais – tendentes à diferenciação –, o que promove a valorização da diferença e a descoberta de que a organização interna das sociedades se revela decisiva nas dinâmicas globais.

De fato, há lugares ameaçados de estandardização, de perda de substância, no entanto os efeitos das interações são múltiplos e complexos, é por isso nenhum resultado é dado de antemão. As interações são enredadas em campos de forças fluidos, onde os atores interiores não são desprovidos de meios de ação e onde os atores exteriores estão longe de ter pleno poder de manipulação de todas as variáveis em jogo. Além das hegemonias, distinguíveis entre nações, organismos internacionais e empresas (Ianni, 2004), a globalização representa a possibilidade de começarmos a divisar com maior nitidez uma “chorodiversidade” mundial.

Essa “chorodiversidade”, nunca é demais repetir, é fruto do trabalho vivo realizando-se sobre o trabalho morto. Mas, o trabalho morto que se impõe sobre o trabalho vivo, não é matéria inerte, uma vez que as infra-estruturas territoriais construídas sob a égide do Estado nacional são elementos ativos da produtividade dos lugares. Por isso, nosso argumento é o de que os compartimentos[2] políticos do espaço, com a relevância das fronteiras, mantém-se, apesar de a globalização ter produzido uma história mundial única, como obstáculos à tendência de homogeneização do espaço.


Formas gerais da compartimentação do espaço

As compartimentações do espaço estruturam-se a partir das divisões sociais e territoriais do trabalho[3] e das divisões políticas. Assim, argumentamos que as duas divisões (do trabalho e política), em conjunto e reciprocamente, são elementos funcionais da expansão do capital, tanto nos territórios nacionais quanto no mundo.

De acordo com Smith (1988), três escalas são funcionalizadas pelo capital, ao mesmo tempo em que a ele impõem restrições: a escala urbana, a escala do Estado-nação e a escala global. A escala global corresponde à universalização do trabalho assalariado, onde o capital exige as mesmas condições de exploração para que possa existir e se reproduzir. A escala do Estado-nação é o refúgio e o fundamento da universalização do capital. Quando o conjunto dos capitais nacionais é ameaçado pela economia mundial, o Estado os defende com o uso de barreiras alfandegárias, tributárias, sanitárias, embargos comerciais e até o uso dos tanques de guerra. Já a escala urbana, origina-se da divisão entre cidade e campo. Com o desenvolvimento da cidade capitalista, há uma diferenciação sistemática entre o local de trabalho e o local de residência, entre a produção e a reprodução. A escala global é a escala da “igualização”, enquanto que a escala urbana é a escala da “diferenciação”. É nesta escala que o capital tira vantagens com relação às diferenças de salários, impostos, infra-estruturas, legislações ambientais, etc. Daí a diferenciação interna ao Estado-nação ser necessária e funcional ao capital.

Apesar de Smith (1988) não analisar o papel das fronteiras internas na “diferenciação” do espaço, porque não se constituem propriamente numa escala, é fundamental destacar que num país de organização política federativa como o Brasil, as diferentes legislações (tributárias, fiscais, ambientais, etc) só existem porque as fronteiras internas circunscrevem espaços políticos com poder para legiferar.

Outro argumento refere-se à seletividade de expansão do capital produtivo stricto senso. Como é de sua lógica, o capital procura os lugares que proporcionam maiores lucros: força de trabalho mais barata; menores impostos; leis ambientais mais flexíveis; sindicatos mais fracos; legislações trabalhistas e fiscais mais dóceis; equipamentos públicos apropriados; boa infra-estrutura de circulação e de comunicação, etc. É assim que o capital se aproveita da contingência de um espaço já construído para aprofundar as desigualdades e as diferenciações socioterritoriais, que por sua vez são o motor de novas compartimentações territoriais.

Uma terceira variável, eminentemente política, também se impõe. É impossível para uma única autoridade política administrar os territórios, sobretudo os de grande extensão. Raffestin (1993) lembra que sem partições o poder não tem referência e estrutura, e dessa forma não sabe como exercer suas coerções. No famoso axioma “dividir para reinar” encontra-se essa preocupação com as partições do poder, não só com referência às suas estruturas sociais, mas também com referência às suas estruturas territoriais. O exercício do poder implica sempre na manipulação da oposição entre continuidade e descontinuidade. O guerrymandering, técnica que consiste em recortar circunscrições eleitorais em função de interesses circunstanciais, retrata o jogo do poder que, criando e recriando constantemente limites[4], sustenta os jogos do poder.

Num país como o Brasil, onde os municípios também produzem leis, a manipulação dos recortes político-administrativos é uma tentação constante para os grupos que pretendem acessar os instrumentos político-constitucionais do poder.

Uma quarta variável diz respeito às duas faces da mobilidade, o transporte (de materialidades) e a circulação (de informações). Como não há integridade territorial sem circulação e transporte, a ação do Estado sobre seu território orienta-se a partir de uma antiga concepção geopolítica, a de que os grandes impérios econômicos ou políticos, em todos os tempos, traduziram-se e expressaram-se por suas redes. Brunhes (1962[1956]) afirma que o poder sempre traça e constrói estradas quando se instala em uma nova região e Ratzel (1987[1897]) declara que as estradas oxigenam o território. As questões estratégicas da mobilidade projetam sobre os territórios o poder do Estado. As redes de transporte são os vetores por onde as populações podem se estabelecer em localidades novas ou de difícil acesso e, portanto de delicado controle político. É banal dizer que os Estados preocupam-se com os "vazios demográficos”.

Assim, levar populações para locais de menor densidade traz consigo a necessidade de novas divisões no território para a instituição de novos poderes locais, inclusive para a administração da vida de relações que se estabelece. As autonomias locais também nascem desse processo. Estes aspectos são próprios de uma política eminentemente estatal, geopolítica.

Mas, há mobilidades que não são promovidas pelo Estado, não são geopolíticas, mas pelas empresas, tendo portanto um fundamento mais geoeconômico. A realização de investimentos empresariais tem na localização da população um de seus trunfos, talvez o mais fundamental. Tendo interesse primordial em possuir mão-de-obra qualificada onde fazem os investimentos, as empresas são responsáveis hoje por boa parte da distribuição populacional.

Segundo Raffestin (1993), boa parte das migrações internas nos países capitalistas ocidentais tem sua razão de ser nos investimentos das empresas, ou melhor, nas estratégias das empresas que determinam os movimentos.

No caso do Brasil as estratégias empresariais contam com o apoio do Estado. É comum encontrarmos poderes locais e regionais que praticam a guerra fiscal, inclusive fazendo propaganda de tal estratégia para atração das empresas, todavia os mesmos poderes públicos que viabilizam seu território para as empresas, protestam contra o aumento populacional havido em função da presença da empresa.

Uma quinta variável de nossa argumentação é guiada pela análise de Foucault (1993) sobre as redes de poder. Para Foucault (idem) uma das lições que se tira do Livro II de Marx é que não existe poder no singular, mas muitos poderes ou formas de dominação. São sempre formas locais e regionais de poder. Possuem sua própria modalidade de funcionamento e são todas formas heterogêneas de poder.

Ou seja, o poder não se exerce territorialmente só de cima para baixo, dos altos escalões territoriais para baixo, mas a estrutura do poder baseia-se também no poder que emana dos escalões inferiores. A configuração do poder na Confederação Helvética e na conformação da primeira federação do mundo, os EUA, obedeceram ao princípio do poder que também emana de baixo para cima.

Por fim, destacamos uma posição menos empírica e mais filosófica da imposição dos limites. Segundo Ortega y Gasset (1960), além dos limites e sua reprodução fazerem parte das atividades humanas, é constitutivo do homem sentir-se em um mundo regionalizado, onde cada coisa e cada homem devem pertencem a distintas regiões, a distintos “mundos”. Não se trata de interpretações imaginárias com as quais a mente do homem reage em função de sua perspectiva e localização, mas trata-se de algo que é constitucional ao homem.

Toda relação depende da delimitação de um campo, onde se realizam as relações e onde elas se chocam com os limites traçados do campo. Desde que o homem surgiu defrontamo-nos cotidianamente com a noção de limite, sem que nunca, apesar da sua evolução, a noção de limite tenha desaparecido.

Não há por que se admirar, pois o limite é um sinal ou, mais exatamente, um sistema sêmico utilizado pelas coletividades para marcar o território: o da ação imediata ou o da ação diferenciada (Raffestin, 1993:165).

As fronteiras políticas são formas assumidas pelos limites que, cristalizadas no território, são a expressão da relação que o homem mantém com os outros homens por meio do território. A fronteira política é um dos tipos de limites impostos às atividades humanas[5].

As compartimentações do espaço encontram sua explicação em variáveis culturais, sociais, econômicas e espaciais, e, da fertilização cruzada destas variáveis, o que torna o tema bastante complexo. Neste texto, privilegiamos a análise das compartimentações produzidas a partir da divisão social e territorial do trabalho, promotora das especializações produtivas com a fundação de quadros de referência regional, e da divisão política que impulsiona a fundação de novos poderes político-administrativos.


Unificação técnica e compartimentação política do território

O caráter autônomo da informação se consolida no atual período. Antes do aparecimento da telegrafia, da radiotelegrafia, do telefone e, mais recentemente dos satélites, eram os homens e os objetos que tinham a propriedade de transportar a informação, mas com o controle técnico e científico das ondas eletromagnéticas a informação adquiriu um novo status, o de ser transportada independentemente dos fluxos materiais.

A partir do final do século XIX e começo do século XX, as técnicas aplicadas à transmissão da informação promoveram a dissociação entre a rede de circulação de homens e bens e a rede de transmissão de informações, ainda que homens e bens continuem a portar e transmitir informações (Raffestin, 1993).

A difusão dos tradicionais sistemas de comunicação já havia propiciado a autonomia da informação, mas ainda não era possível conectar qualquer ponto do planeta em tempo real. No pós-guerra, mas mais especificamente a partir da década de 1970, as NTCI’s (Novas Tecnologias da Comunicação e da Informação), apoiadas na telemática (telecomunicações + informática) e capitaneadas em escala planetária pelos satélites, propiciaram tecnicamente a interconexão dos sistemas de telecomunicações.

O período que emerge dessa revolução informacional[6] promove o encurtamento das distâncias físicas e o surgimento do “tempo real”. SANTOS (1996) considera a “convergência dos momentos” como um dos atributos do atual período, ou seja, a possibilidade de uso imediato das informações em qualquer parte do planeta. Os eventos, antes restritos a pedaços do globo e difundidos num tempo lento, passam a capilarizar todo planeta num mesmo momento, produzindo, pela primeira vez, uma empiricização do tempo e uma história única.

Os mesmos eventos que atuam como solventes de antigas ordens, também são catalisadores de uma nova ordem (Barraclough, 1976). As variáveis explicativas das antigas ordens deixam de reinar neste “momento” de transição, sem que as variáveis em ascensão tenham se mostrado em sua totalidade, daí a gestação neste período/crise, de discursos que, absolutizando as técnicas, pregam o fim das fronteiras. De fato, as fronteiras não são barreiras à unificação telecomunicacional do mundo, mas isto não significa a federação política do mundo, nem mesmo a coabitação solidária das diferentes partes de um território nacional. Velocidade e compartimentos políticos são dois caracteres distintivos do período atual.

Em verdade, a circulação da informação também obedece a regras ditadas pelos compartimentos políticos. Em maio de 1999 o consórcio Europeu que administra o satélite TV-Eutelsat (Grã-Bretanha, Itália, França, Alemanha e Iugoslávia representada pela República Federal Sérvia), cortou as transmissões desse satélite para a Iugoslávia, criando um importante precedente em matéria de não-discriminação da informação obtida por esse meio. O principal meio de comunicação Sérvio foi destruído por alguns países europeus (Virilio, 2000). No conflito militar que se desenrolava, a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) possuía a desvantagem de desconhecer a configuração territorial[7] Sérvia, um saber local[8] evidentemente dominada pelos sérvios, o que impedia uma invasão militar imediata por terra. Assim, uma das estratégias da OTAN foi desmantelar o sistema de informações Sérvio, independentemente da natureza das mensagens que eram transmitidas por um satélite de TV.

A interdependência global dos lugares é patente no atual período, mas também o é a existência de centros de comando de redes de informação[9]. Antes da guerra, no vigor do acordo de “não-discriminação” da informação, o território iugoslavo era banhado pelas comunicações necessárias à sua vida social. No momento da guerra a fonte secou, os “velhos” Estados-territoriais fizeram valer sua força.

Portanto, além das fronteiras não terem perdido suas funções político-militares, delimitadoras de campos de forças[10], hoje elas ganham um novo atributo, que é o de também delimitarem campos informacionais, pois apesar de os satélites não conhecerem fronteiras, todos os sistemas de recepção e decodificação das informações obedecem a critérios territoriais, senão não seria possível a um único satélite, provedor de informações para cinco países, interromper o sistema de comunicação para um só território, como ocorreu no caso da Iugoslávia.

A ideologia da união do mundo, que fundamenta o discurso do fim das fronteiras, obnubila as novas hierarquias da divisão internacional do trabalho. A criação de novas fronteiras políticas evidencia o oposto daquilo que é pregado pelo discurso da globalização econômica: de um mundo aberto à circulação, às trocas; de um mundo em que as novas tecnologias de transporte, especialmente as de informação, eliminam as compartimentações territoriais. O que se verifica é que quanto mais satélites são colocados em órbita, mais fronteiras são produzidas – ainda que para serem atravessadas –, ou seja, à medida que aumenta a densidade técnica planetária, o mapa político do mundo fica mais sincopado.


Fronteira: zonas e linhas

As formas podem ser materiais ou imateriais. Um rio ou uma montanha quando usados como limites, são comumente chamados de fronteiras naturais. Já o entrecruzamento de latitudes e longitudes na delimitação dos territórios, faz com que a forma confunda-se com seu conteúdo técnico. Uma forma não elimina a outra, pois mesmo as fronteiras baseadas em marcos naturais, são alvo de demarcação tecnológica. Do ponto de vista formal (material ou imaterial) a fronteira pode ser uma zona ou uma linha, servindo a uma vasta tipologia[11].

A fronteira como linha é sempre mais absoluta, servindo como marco onde os Estados nacionais, segundo a intensidade de seus poderes, exercem a vigilância (sanitária, demográfica, ideológica, policial ou militar). Internamente as linhas delimitam as subunidades dos territórios nacionais quando estes já têm todo seu espaço apropriado (Cataia, 2001). A linha é um limite facilmente cartografável. Já a zona (menos a de guerra), é de difícil demarcação, flexível segundo os arranjos socioterritoriais dos campos de forças opostos.

Para Ratzel (1987[1897]), linhas e zonas são limites. As zonas representam a coisa real, enquanto que as linhas representam sua abstração. A linha pode ser desenhada, memorizada, medida e é estabelecida por uma decisão política, enquanto que a zona é por essência indeterminada e não dependente de decisões políticas para sua existência.

Tendencialmente, a zona de fronteira dá origem à linha de fronteira. Nesse sentido a fronteira como linha é o produto de um movimento, sempre transitório, justamente porque é histórico. Para Ratzel (1987[1897]), toda forma de vida que se propagou sobre a Terra, sempre tomou a forma de um domínio, dotado de uma posição, uma configuração e um tamanho, um espaço de propagação, cujos pontos extremos podem ser demarcados sobre uma linha que nomeamos de fronteira.

Considerando que um território faz fronteira com um ou mais territórios, Foucher (1991) assinala que as fronteiras são formadas por díades, termo que designa a fronteira comum a dois Estados contíguos. Uma fronteira internacional é formada por tantas díades quantos são os países limítrofes, ou em outras palavras, a díade refere-se a segmentos de fronteira. A fragmentação de um território, dando origem a um novo Estado, produz fronteiras internacionais e díades para aquele que se autonomizou, e novas díades para os territórios limítrofes. O século XX foi pródigo na criação de novos compartimentos: no início do século o mundo possuía aproximadamente cinqüenta territórios nacionais, hoje esse número passa dos duzentos. Assim, o surgimento de díades ou fronteiras também é função do tempo.

A forma é sempre datada, incorporando novas funções à medida que novas ações dotam a forma de novos conteúdos. As fronteiras não decorrem só do espaço, mas também do tempo: extensão e duração formam o conceito de limite. É o tempo que dá significado à forma, ou seja, mais importante que a forma das fronteiras é a sua formação. Sendo histórica, resulta de eleições, por isso afirmamos a inexistência de fronteiras naturais. As fronteiras, mesmo quando apoiadas em marcos naturais, são o resultado de eleições sociais e não de imposições naturais. De fato, nos albores da história, os elementos naturais condicionavam os homens e suas atividades, impondo-lhes barreiras físicas. Uma montanha, um deserto ou uma floresta podiam significar limites (zonais) à circulação, todavia o desenvolvimento técnico superou as barreiras naturais e, à medida que estas iam caindo uma a uma, erigiam-se outras barreiras, agora não mais naturais, mas políticas[12]. Quanto mais limites naturais foram rompidos e o mundo ecumenizado, mais limites políticos foram produzidos. Para George (197_, p. 147), “os limites naturais, quando autoritários, podem enquadrar diversas ‘agitações’, mas, quanto mais progridem as técnicas, mais propendem os limites imperiosos a ser transgredidos, não surgindo, nesse caso, o obstáculo senão como limiar nas despesas de exploração ou circulação”.

Para Vidal de la Blache (apud Ancel, 1938), “a civilização é a luta vitoriosa do homem contra os obstáculos que a natureza colocou diante dele; não há muralha nem fosso que não possam ser vencidos”.

Hoje, no mapa político do mundo, os obstáculos à livre circulação dos homens e das coisas são representados pelas fronteiras políticas, que in-formam onde é o dentro e o fora. A fronteira é uma das formas da informação.


A fronteira como informação

De acordo com Jameson (1985), o mecanismo operacional central da dialética, tanto hegeliana quanto marxista, é a contradição entre uma forma e seu conteúdo. Até Hegel o pensamento filosófico concebia o conteúdo como matéria, material inerte, passivo. A mudança de matéria para conteúdo permitiu ver a dinâmica da relação sujeito-objeto, ou em outras palavras, da indissociabilidade entre forma e conteúdo.

A forma-conteúdo (Santos, 1996), torna transparente o caráter informacional das fronteiras. A fronteira é uma concreção da vida social que se realiza por meio de sua cristalização. Dizer que a fronteira é informação significa dizer que ela porta uma ação social e que justamente por isso ela condiciona a sociedade que a criou.

A etimologia do vocábulo informação deriva da palavra informar, que significa colocar em forma, dar uma forma ou um aspecto, formar, criar. A informação pode ser compreendida como algo que é colocado em forma, colocado em ordem. A dispersão de letras sobre um papel nada significa se as letras não obedecerem a um sistema de classificação que dê sentido àquilo que está sendo ordenado, portanto a informação implica no ordenamento de elementos ou partes de um sistema mais amplo. A informação expressa a organização das partes de um sistema. Para Zeman (1970), a informação é, ao lado do espaço, do tempo e do movimento, outra forma fundamental da existência da matéria.

Do ponto de vista da organização dos territórios, não é a informação em si, medida em bits, que dá significado aos elementos do sistema de limites, mas o seu efetivo uso político, interessando aos estrategistas seu conteúdo e significado e não a quantidade de sinais. Para Morin (1993[1977]), La numeración en bits de las Tablas de la Ley, del Código Civil, de los pensamientos de Pascal, del Manifiesto Comunista no tiene sentido ni intrínseco ni comparativo.

Informações transmitidas por cabos ou por ondas eletromagnéticas não são do mesmo gênero daquelas que os homens portam, uma vez que cabos e ondas circulam com mensagens carentes de significação afetiva e emocional.

Para Raffestin (1993), a fronteira é uma informação lato senso indispensável a qualquer ação. Como informação, constitui-se numa dimensão que nunca está ausente, participando de todo projeto econômico, político ou social de um Estado. 

A fronteira é informação porque são os homens, as sociedades que lhe atribuem essa função. Delega-se às fronteiras o papel de informar – para controlar – ao conjunto da sociedade o que pertence e o que não pertence a um dado espaço. Autônomo ou soberano o espaço político sempre possui margens. Em verdade, o território nasce das estratégias de controle necessário à vida social, o que é outra maneira de exprimir a soberania. A observação de Latour (1996, p. 160-161) com relação aos obstáculos de rua, utilizados para diminuir a velocidade dos automóveis, também é válida para as fronteiras políticas:

“Pode-se considerar que esse obstáculo age com brutalidade /.../ acontece que o engenheiro das pontes e calçadas, os prefeitos e os pais de alunos decidiram usar a intermediação desses objetos técnicos para obter, justamente, comportamentos convenientes.”

Ao lembrar as diversas funções das fronteiras, Raffestin (1993) observa que a função legal nunca está ausente. De fato, as funções são a expressão da informacionalização das fronteiras. A fronteira sempre estará ali, ali onde pode a qualquer momento incorporar uma nova informação e transmiti-la, expressando uma ordem: dentro e fora, comunhão e excomunhão.

Por isso as fronteiras não se enfraquecem. As fronteiras podem ter deixado de expressar uma dada ordem, mas elas continuam ali, como um prático-inerte[13] (Santos, 1996; Moraes, 2000). Continuam no seu lugar esperando o momento adequado para expressar outras/novas ordens


Considerações finais

Em função do desenvolvimento das Novas Tecnologias da Comunicação e da Informação, que inegavelmente intensificou a integração planetária, alguns posicionamentos políticos mais extremados passaram a pregar a evanescência das fronteiras. Contrariando tal postura, que tem sido avessa a exames mais detidos dos problemas das compartimentações e fragmentações territoriais, argumentamos que o discurso sobre o fim das fronteiras baseia-se na suposta indissociabilidade entre circulação (transporte de matéria) e comunicação (transporte de informações).

Até o começo do século XX, quando as redes de circulação (homens e coisas) e de informação formavam uma só estrutura, as fronteiras podiam ser relativamente fechadas, pois o ritmo da informação e das coisas era dado pelo ritmo dos homens, porque só homens e coisas portavam informação, portanto fechar uma fronteira aos homens significava fechá-la também às informações. Hoje, quando se fala no fim das fronteiras não se considera que a informação e a comunicação podem circular por duas estruturas distintas. Uma fronteira pode não ter mais significado ou eficácia frente às ondas eletromagnéticas que povoam a atmosfera, sobretudo a serviço do sistema financeiro internacional, no entanto, ainda representam o dentro e o fora quando se trata das mercadorias, das pessoas e da política.

Foi Ratzel (1987[1897]) quem disse que não existem conflitos de fronteiras, mas conflitos socioterritoriais transformados pelos diplomatas em questões de fronteira. Igualmente, o discurso do fim das fronteiras desconsidera que as formas possuem conteúdo social. Os desenhos territoriais, firmados pelas fronteiras, são instrumentos de regulação social, pois in-formar o território também é governar (Santos, 1994). Como forma-conteúdo, toda questão de fronteira remete às construções históricas, tanto sociais quanto territoriais, por isso as fronteiras não acabaram, mas incorporaram o espírito de seu tempo.


Notas

[1] Este texto é resultado parcial de pesquisa que vem sendo realizada com apoio do CNPq.

[2] O termo “compartimento do espaço” para designar os territórios nacionais “Westphalianos” demarcados por fronteiras políticas é referido a Jean Gottmann (La Politique des États et Leur Géographie. Paris, Armand Colin 1952, e, “Géographie Politique”, in Encyclopedie de la Pléiade, Paris, Gallimard, 1966)

[3] André Roberto Martin (“As Fronteiras Internas e a ‘Questão Regional’ do Brasil”, tese de doutorado apresentada ao Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, 1993. Exemplar fotocopiado) afirma que as fronteiras internas têm a mesma importância para o Estado classista que as externas, servindo ao mesmo tempo como base e instrumento da divisão social e territorial do trabalho.

[4] Para Raffestin (1993), as fronteiras fazem parte de um sistema de limites.

[5] Como lembra Lia Osório Machado (“Limites, fronteiras, redes”. Em Strohaecker, T. M., Damiani, A., Schaffer, N. O., Bauth, N., Dutra, V. S., orgs. Fronteiras e Espaço Global. AGB-Porto Alegre: Porto Alegre, p. 41-49, 1998), limites e fronteiras não são sinônimos. Há limites que não tomam a feição de uma fronteira política, mas também condicionam as atividades sociais. Entretanto, estas formas de limites não são objeto de análise neste texto.

[6] Evidentemente não estamos afirmando que a Revolução Informacional reduz-se a feições técnicas. Todavia, para as dimensões e propósitos deste texto, destacamos um elemento da Revolução Informacional que é a autonomia da informação.

[7] A configuração territorial corresponde aos objetos naturais e artificiais, como florestas, montanhas, túneis, pontes, etc.

[8] Os norte-americanos sabem bem, porque aprenderam no Vietnã, o que significa o saber local no caso de uma guerra. O termo técnico militar é “conhecer o terreno”, e este é estratégico.

[9] De acordo com Boaventura de Sousa Santos (A gramática do Tempo. Para uma nova cultura política. São Paulo, Cortez, 2006), todos os endereços eletrônicos mundiais (IP –Internet Protocol) estão alocados em treze servidores, dez nos EUA, dois na Europa e um no Japão. Se estes servidores fossem desligados desapareceria a internet. Além disso, é uma empresa privada norte-americana (sem fins lucrativos), com sede em Los Angeles (ICANN – Internet Corporation for Assigned Names and Numbers) que, em articulação com o Departamento de Comércio dos EUA, gere todos os domínios atribuídos no mundo inteiro (ou seja, gere o cadastro da Internet mundial).

[10] O termo isóbaras políticas (Ancel, 1938), utilizado para designar as fronteiras, permanece bastante atual.

[11] Quanto às tipologias, pode-se consultar Ancel (1938), Ratzel (1987[1897]), Delgado de Carvalho (“Geografia das Fronteiras”. Revista Brasileira de Geografia, Ano I, 1939, Rio de Janeiro), Foucher (1991) e Cataia (2001).

[12] Para Camille Vallaux (Geografia Social. El suelo y el Estado. Madrid, Daniel Jorro Editor.1914), as fronteiras naturais corresponderiam à antiga noção de fronteira compreendida como espaço vazio, como espaço anecúmeno. Com relação aos Estados, as fronteiras artificiais seriam as verdadeiras fronteiras naturais porque conviriam à natureza e à maneira de ser das sociedades políticas.

[13] Santos (1996) e Moraes (2000) não se referiam às fronteiras quando trataram do “prático-inerte”, todavia este é um conceito que se refere à qualidade da inércia das formas, pois a qualidade da inércia – o prático-inerte sartriano – torna as fronteiras depositárias de valores e de projetos que por diferentes vias se hegemonizam na sociedade.


Bibliografia

ANCEL, Jacques. Géographie des Frontières. Paris: Gallimard, 1938.

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© Copyright Márcio Cataia, 2007
© Copyright Scripta Nova , 2007

Ficha bibliográfica:

CATAIA, Márcio.   A relevância das fronteiras no período atual: unificação técnica e compartimentação política dos territórios. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.   Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2007, vol. XI, núm. 245 (21). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-24521.htm> [ISSN: 1138-9788]


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