Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona.
ISSN: 1138-9788.
Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XI, núm. 245 (33), 1 de agosto de 2007
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]


Número extraordinario dedicado al IX Coloquio de Geocritica

A CIDADE COMO DIREITO

Arlete Moysés Rodrigues
Professora Livre-docente
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
amoyses@terra.com.br


A cidade como direito (Resumo)

O texto debate a utopia da cidade como direito, retomando a importância do espaço, da cidade real, da hipercarência social, das lutas de movimentos populares nacionais e internacionais. Analisa temas como utopia, heteropias, direito à cidade, direito à moradia, geografia crítica, desigualdades socioespaciais, produção do espaço; a "cidade como direito" que permite acesso universal a todos, se contrapõe ao neoliberalismo que quer a privatização de equipamentos públicos e políticas de atendimento setorial.

Palavras chaves: Cidade como direito, utopia, geografia urbana, movimentos sociais urbanos.


The city as a right (Abstract)

The text discuss the utopia of the city as a right, retakes the importance of the space, the real city, the superlative social lack, the struggles of national and international popular movements. Analize subjects as utopia, heteropies, the right to the city, the right to housing, critic geography, social-spatial inequalities, production of the space; the "city as a right" that allows an universal access to everybody, is opposed to the neoliberalism that aims to the privatization of public equipments and policies of sectorial attendance.

Keywords: City as a right, utopia, urban geography, urban social movements.


La ciudad como derecho (Resumen)

El texto discute la utopía de la ciudad como derecho, retoma la importancia del espacio, la ciudad real, la hipercarencia social, las luchas de movimientos populares nacionales e internacionales. Analiza temas como utopía, heteropías, el derecho a la ciudad, el derecho a habitación, geografía crítica, las desigualdades socioespaciales, la producción del espacio; la "ciudad como derecho" que permite el acceso universal a todos, se opone al neoliberalismo que desea el privatización de equipos públicos y las políticas de atención sectorial.

Palabras claves: Ciudad como derecho, utopía, geografía urbana, movimientos sociales urbanos.


Para analisar a utopia da “cidade como direito”, apontamos alguns pressupostos sobre utopia, heterotopias, topias, direito à cidade, cidade/urbano, movimentos sociais, desigualdades socioespaciais, cidade-mercadoria, com seus vários significantes, significados, conteúdos, definições, noções, conceitos, desigualdade sociais, econômicas, sócio-espaciais. O conhecimento cientifico é incompleto, inconcluso, o que segundo Morin (1996) é próprio da ciência. Destacamos, com fundamental, a incompletude da importância do espaço.

A utopia, desde o século XVI, tem tido diferentes compreensões[1]. Norberto Bobbio (1992) considera que a maior dificuldade está no próprio conteúdo de utopia. Para Marcuse as utopias e os ideais utópicos estão ultrapassados pois não há como alterar a pobreza, a miséria, apenas com palavras de intelectuais e com o avanço das forças produtivas. (Marcuse, 1969). Santos (1995) afirma que as utopias anteciparam, por séculos, os ideais e se tornaram “antiutopias”. A preocupação aqui é com o tempo presente, com o espaço vivido.

Utilizamos a “cidade como direito” em vez de “o direito à cidade” para evidenciar a importância do Espaço. A cidade como direito, da mesma forma que outros temas, tem vários significados e conteúdos, o que demonstra a complexidade do processo de urbanização, da produção do espaço, da reprodução ampliada do capital, das desigualdades sociais, econômicas e sócioespaciais.

A cidade como direto tem como base a vida real, o espaço concreto e o tempo presente. Ao contrário, no ideário da cidade ideal, o espaço e o tempo são abstrações. Reflete o pensamento de planejadores do Estado capitalista e do capital. Os problemas são considerados desvios do modelo, solucionáveis com novo tipo de planejamento e uso de novas tecnologias. Os avanços da tecnologia articulam formas e conteúdos da e na cidade, mas não “produzem” a cidade ideal, embora provoquem transformações na cidade real.

David Harvey assinala que os discursos da utopia da cidade como direito podem estar emaranhados com outros: “Resulta difícil desenamarañar los sucios discursos y prácticas que cada día a día afectam la vida urbana de los grandiosos significados metafóricos que tan libremente se entremezclan con emociones y creencias sobre la buena vida y forma urbana” (Harvey, 2003:184). Aponta, como idéias “semelhantes”, aparecem na utopia burguesa; na expansão suburbana; na ação de promotores imobiliários; de “renovação urbana”; de ampliação de áreas urbanas; da cidade espetáculo e dos grandes empreendimentos; a cidade-mercadoria; os conjuntos habitacionais para ‘pobres’ em periferias distantes que afastam os pobres e sua suposta violência.

A cidade como direito integra metas-narrativas, a complexidade do processo de urbanização, a atuação de agentes tipicamente capitalistas, do Estado em suas várias instâncias, da reprodução ampliada do capital, de movimentos que ocupam áreas produzindo também a cidade real, que se apresenta com desigualdades sociais, espaciais, econômicas e socioespaciais.

No período atual denominado de pós-moderno, predomina a micro-narrativa, entre os quais, nos estudos urbanos, destaca-se a cidade-mercadoria, o planejamento estratégico e temas que recebem “nomes próprios” como geografia da saúde, do turismo, geografia médica, do meio ambiente, do ambiente sustentável, de preservação de áreas históricas, de gestão de bacias, de hierarquização de cidades por tamanho e influência. O uso de novas tecnologias permite coletar, analisar novos dados, tentar definir áreas de “influência”, etc., porém é fundamental que não se transformem em novas armadilhas para ocultar a importância do espaço.

A cidade mercadoria não é trocável no “mercado como um objeto”. Não se transmite, em tese, a “propriedade da cidade em sua totalidade”. O que se vende são fragmentos de lugares, pólos de investimentos para capitalistas nacionais e estrangeiros com o objetivo de aumentarem lucros, rendas e juros. Os fragmentos de lugares para eventos, atividades turísticas e de investimento, visando à incorporação imobiliária de bairros nobres, de condomínios murados e, como totalidade, a cidade-mercadoria vende imagem de prefeitos como “gestores” capitalistas. Nas democracias eleitorais, simbolicamente um prefeito entrega ao novo a “chave da cidade”, mas não a “propriedade da cidade”.

A venda dos fragmentos da cidade-mercadoria pertence a “era do acesso” que facilita a concentração do poder econômico em corporações internacionais. Riffkin mostra como se altera a dinâmica do “mercado de trocas”, da troca de objetos concretos pelo acesso virtual, que “é regida por um conjunto totalmente novo de pressupostos de negócios (...). A mudança de regime de propriedade amplamente distribuída para um regime de acesso baseado em assegurar o uso limitado à curto prazo de ativos controlados por redes de fornecedores” (Rifkin, 2001:5 - grifos nossos).

A cidade mercadoria está entre as “trocas impossíveis”, como mostra Braudillard, quando a razão triunfante faz com que “nada proíbe o pensamento paradoxal de que é nosso pensamento que regula o mundo, contanto que se pense em primeiro lugar que é o mundo que nos pensa. Não é o homem que bebe o chá é o chá que me bebe; é o livro que me lê; a televisão que te assiste; é o objetivo que nos fixa; é o efeito que nos causa; é a língua que nos fala”. (2002:21).

A troca “impossível” da cidade–mercadoria realiza o prodígio de apagar ao mesmo tempo a cidade e sua imagem. É a cidade que nos define, que nos dá vida, que tem problemas, desordens, caos e crises. Porém, não realiza o prodígio de apagar a realidade vivida, de ocultar a cidade real, de fazer desaparecer a desigualdade socioespacial. Pelo contrário, a intensifica. Em Ribeirão Preto, São Paulo, por exemplo, a venda de ações de uma usina agita a incorporação imobiliária[2]. O capital atua sem limites territoriais e tempos definidos.

A importância do espaço implica em tentar compreender a complexidade do urbano e da cidade. Estudos realizados[3] apontam que Urbano é um conceito, pois qualifica um modo de vida que atinge a maioria da sociedade. As atividades urbanas extrapolam limites de idades como no agronegócio, nas atividades turísticas, nas áreas inundadas para produção de energia hidroelétrica, e muitas outras atividades. Cidade é uma definição. É a projeção da sociedade urbana num dado lugar, política e territorialmente demarcado, marcado e estabelecido. As cidades contêm delimitação espacial. Lugar de concentração da população urbana, produção, circulação e consumo de bens e serviços. A cidade é o centro da decisão política do urbano. O conceito de urbano compreende o espaço em sua complexidade. Como diz Lefebvre: “A cidade intensifica, organizando a exploração de toda a sociedade. Isto é dizer que ela não é o lugar passivo da produção ou da concentração dos capitais mas sim que o urbano intervém como tal na produção” (Lefebvre, 1999 p. 57).

O Direto à Cidade, título de uma das obras de Henry Lefebvre, é referencia fundamental para pensar o urbano e a cidade. Suas várias obras fundamentam a compreensão da produção, do consumo, da distribuição do espaço, da desigualdade da e na cidade. É uma referência para compreender a meta-narrativa (meta filosofia) do urbano, em suas múltiplas dimensões.

David Harvey, aborda temas que permitem compreender a reprodução ampliada do capital no urbano, a “(re)incorporação de territórios, de lugares” para a acumulação ampliada do capital e das novas formas de produção socioespaciais. A utopia espacial e a utopia de processo são destaques, em especial no livro “Espaço de Esperanças” (2003), que fornece pistas fundamentais para entender o processo de construção da utopia da “cidade como direito” e o movimento contraditório e conflitante da sociedade [4].

Boaventura Souza Santos, em várias de suas obras, aponta fragilidades da teoria crítica para construir a utopia da “cidade como direito’. Debate concepções da utopia, ortopia, heteropia, do movimento da sociedade e do espaço-tempo (mundial, doméstico, da produção e da cidadania). Afirma que: “uma das fraquezas da teoria crítica moderna foi não ter reconhecido que a razão crítica não pode ser a mesma que pensa, constrói e legitima aquilo que é criticável” (Santos, Boaventura 2000:324). Para a teoria crítica a utopia coloca no centro o que está nas margens, ou seja, a hipercarência. Assim, “a utopia é a metáfora de uma hipercarência formulada no nível que não pode ser satisfeita” (Idem:324).

O processo de urbanização, a globalização, as redefinições de apropriação e propriedade do capital e predomínio de corporações financeiras internacionais, acirram e aceleram a desigualdade socioespacial.

Recoloca-se, desse modo, a importância da meta filosofia, da meta-geografia, para descortinar a importância do espaço e da utopia da cidade como direito, compreendendo o processo de luta e a construção da utopia da cidade produzida por todos e que deverá ser universalmente apropriada. É um processo de evitar o silêncio dos problemas reais, de evitar uso de consensos forjados em nome de algo melhor.


Utopia da cidade como direito

As contradições, conflitos, apropriação e propriedade das terras, da cidade e das mercadorias, precisam ser compreendidas com a utilização de conceitos, definições e metodologias entender a utopia da “cidade como direto” com suas incertezas, problemáticas, caminhos e descaminhos, paradigmas, ordens, desordens, desigualdades, organização e participação social.

Tal utopia não tem metas quantitativas nem previsão de tempo para se realizar: utiliza o espaço urbano para qualificar um modo de vida. Seu fundamento é transformar a realidade do mundo vivido com os desafios da vida cotidiana, com a possibilidade de criar “uma nova cidade possível”.

A utopia, para Sousa Santos, é a “exploração de novas possibilidades e vontades humanas, por via da oposição da imaginação à necessidade do que existe, em nome de algo radicalmente melhor que a humanidade tem o direito de desejar e que vale pena lutar” (Santos,1995:323).

É fundamental, repetimos, dar fim ao “silêncio da hipercarência”, ao senso comum sem conteúdo que oculta a vida e a cidade real. A cidade como direito busca universalizar o que existe. Não é um mundo novo - deslocado do mundo real - a ser construído, mas é a expressão da hiperercarência que precisa desaparecer.

A utopia é duplamente relativa, diz Souza Santos: “Por um lado chama a atenção para o que não existe como (contra) parte integrada, mas silenciada do que existe. Pertence à época pelo modo como se aparta dela. Por outro lado, a utopia é sempre desigualmente utópica, na medida em que a imaginação do novo é composta em parte por novas combinações e novas escalas do que existe” (idem:323- grifos nossos).

A cidade ideal, objeto e objetivo do planejamento, “só faz sentido à medida que nada no mundo é como deveria ser (...). A modernidade é um estado de perpétua emergência de um futuro pré-planejado para o domínio do caos, é uma condição da produção compulsiva e viciada de projetos” (Baumam, 2005:40/41 - grifos no original). Utilizam-se planos, projetos setoriais, planejamento do uso do espaço, de atividades e de relações de sociabilidade. Sempre como deveria ser.

Na cidade ideal (no mundo como deveria ser), aparentemente não há conflitos, contradições e “problemas”. As crises “urbanas” são atribuídas ao aumento de população, ao “inchaço” urbano, que ocorrem sem a correspondente infra-estrutura, levando à ilegalidade e à aparente desordem. Para os defensores da cidade ideal, a violência é proveniente dos pobres e do lugar onde vivem. Silencia-se sobre a globalização econômica, as corporações multinacionais e o poder do tráfico de drogas e armas.

Um estudioso da violência das cidades afirma que: “quem mais sofre com a violência da cidade são os moradores de bairros mais pobres considerados como produtores da violência humana, segundo a crença de que a miséria torna o homem violento são, em realidade, suas maiores vitimas” (Pedrazzini 2006:19 – grifos nossos).

No discurso oficial e oficioso, a defesa da “segurança” propõe aumento da violência policial, implantação de pena de morte, redução da maioridade idade penal, entre outras. As políticas públicas visam eliminar os “inimigos” da ordem “social”, que são os que produzem a cidade real [5] Trata-se do “ultra-realismo” ou de um consenso forjado?

A realidade e a imaginação necessárias para construir um mundo melhor, não pode colidir com realismo do “habitus principiorum”, ou seja, “o hábito de proclamar princípios para não ter que viver segundo eles", como dizia São Thomaz de Aquino.

O “realismo” cria “consensos” sem conteúdo. Exemplos disso são a implantação de equipamentos coletivos como creches, que impõe a exploração da força de trabalho. Na mesma direção, a regularização fundiária de terras ocupadas coopta lideranças e torna predominante o valor de troca dos terrenos e casas regularizadas[6].

É impossível criar um mundo ideal na cidade real, com “realismos” e senso comum. O direito à cidade como bem coletivo, com acesso universal aos bens e serviços, constitui uma “revolta” contra a mercadoria terra, moradia e cidade, e a privatização dos equipamentos públicos[7]. É uma “revolta” contra o predomínio do valor de troca, uma luta pelo valor de uso da cidade e da propriedade.

É próprio da utopia nunca se concretizar. Porém, cada conquista, por menor que seja, abre novos campos, novas escalas de articulação de uma sociedade sempre em movimento[8]. A utopia da cidade como direito é construída pelos que “sobrevivem” na “ultracarência”.

O que faz mudar as sociedades é o excesso de problemas e um excesso de projetos irrealizáveis. “A consciência crítica é a consciência desse excesso. A sua aspiração utópica não reside em propor soluções desproporcionais aos problemas postos, mas antes na capacidade para formular problemas novos para os quais não existem soluções” (Santos, Boaventura 2000:36).

A análise geográfica ao explicitar a importância do espaço, a compreensão das formas de apropriação, de propriedade, de indução de urbanização pelo Estado e pelo capital, poderá contribuir para analisar a desigualdade socioespacial e principalmente construir paradigmas críticos como a meta filosofia e a meta geografia[9] compatíveis com a realidade.

O processo de globalização e hegemonia do neoliberalismo aumenta e acirra a desigualdade socioespacial e a hiper-carência. Entre as metas do neoliberalismo destacam-se as alterações das relações de trabalho, ou seja, a precarização destas, a privatização de equipamentos públicos, de infra-estruturas, dos meios de comunicação, etc. Tal privatização retira o não pagamento direto do consumo de “bens públicos”(Moraes, 2001). Tornar o que era público em domínio privado, com predomínio do valor de troca, implica na lógica da escolha individual, passando para o domínio privado os equipamentos e terras antes públicas. É o predomínio do valor de troca, como o exemplo a seguir:

“A Construtora e incorporadora paulista Tecnisa comprou por R$ 135 milhões, junto à Telefônica, um dos maiores terrenos privados disponíveis no mercado paulista. A área tem 244 mil metros quadrados (equivalente a mais de 30 campos de futebol como o do Estádio do Morumbi).O terreno localizado no bairro da Água Branca deve abrigar um grande conjunto residencial no modelo de condomínios-clube. A área, que pertencia à Telesp, foi incorporada pela Telefônica na privatização da estatal e vendida à vista. Telefônica e Tecnisa preferiram não se manifestar sobre a operação"[10].

O neoliberalismo tem a proposição de focalização de políticas para substituir o acesso universal. “O acesso universal faz com que os serviços sejam considerados direito sociais e bens públicos. O acesso seletivo permite definir mais limitadamente e discriminar o receptor dos benefícios” (Moraes, 2001:66). Muitos países submetidos, aos programas de ajuste neoliberal, têm suas políticas sociais praticamente reduzidas a “programas” de socorro a pobreza absoluta, para evitar “desordens e caos”.

A agenda neoliberal em setores como habitação, saúde, educação, transportes, saneamento, meio ambiente, entre outros, prevê a garantia de retorno do “investimento” e a securitização, tornando mais acentuada a hipercarência.

Os movimentos sociais urbanos que têm como pressuposto a cidade como direito coletivo são contrários ao projeto neoliberal de privatização de bens públicos e da focalização de políticas que com suas ações direcionadas delimitam o receptor do “benefício”, introduzindo a política pelo acesso seletivo.

A teoria crítica pode ser a consciência geográfica ao evidenciar a importância do espaço e das formas pelas quais se a sociedade se articula. Nesse sentido, é necessária a elaboração e sistematização de uma geografia critica radical. Temos que atentar para a importância do espaço em análises que utilizem métodos do materialismo histórico/dialético para a construção de uma geografia crítica.


A cidade como direito – A construção da Utopia

A seguir, apresentamos elementos de construção da utopia pelo direito à cidade e da elaboração da Carta Mundial Pelo Direito à Cidade, pelos movimentos sociais urbanos.

O final da década de 60 do século XX demarca maior visibilidade dos movimentos populares urbanos. Formam-se grupos, associações de favelas, de moradores de bairros periféricos e dos encortiçados que se dirigem ao poder local. As reivindicações destes grupos - diversos entre si - são aparentemente desiguais, porém na essência constituem-se como semelhantes e iguais.

Conquistas como iluminação pública, água potável, containeres para resíduos sólidos, creches, postos de saúde, postos policiais, financiamentos de habitação direta para os moradores, o direito de permanecer no lugar ocupado[11], apontam a semelhança das reivindicações. Algumas conquistas, por menores que pareçam, permitem a constituição de um “novo imaginário coletivo”. É fundamental considerar as condições objetivas e como são subjetivamente vividas (Sader, Eder 1988).

No final da década de 80, os movimentos populares brasileiros formam uma articulação nacional. Alguns municípios iniciam um processo de participação na distribuição dos recursos orçamentários (Orçamento Participativo), aprovam legislações para facilitar a posse da terra para moradia (apesar da ausência de regulamentação da função social da cidade e da propriedade, que só ocorre em 2001 – Estatuto da Cidade).

Na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (CNUMAD 92), o Fórum paralelo de ONGs e movimentos sociais elaboraram e assinaram diversos tratados, e os movimentos populares urbanos organizaram o “Tratado da Questão Urbana”, com alguns dos pressupostos da cidade como direito.

Na II Conferência dos Assentamentos Humanos (1996) os movimentos sociais participaram, embora como ouvintes, dos debates dos representantes das nações, indicando o reconhecimento, pela ONU, da sociedade organizada. A Agenda Habitat II, fruto da Conferência, estabelece o direito à moradia como direito humano. Representa, portanto, uma conquista dos movimentos internacionais. O direito à moradia não se confunde com o direito à cidade, porém, aponta o processo e ampliação das lutas sociais.

O reconhecimento do direito à moradia como direito humano incluiria o fim de despejos forçados mas que continuam a ocorrer em todos os lugares do mundo. Na Plataforma de Direitos Humanos das Nações Unidas criam-se as “Relatorias” pelo Direito Humano à Moradia Adequada (Plataforma DHESC), com uma rede internacional que denuncia, acompanha e procura soluções para por fim aos despejos forçados, com o objetivo de garantir o direito à moradia[12]. A Declaração Universal dos Direitos do Homem e as subseqüentes convenções e declarações, definem os “direitos individuais”, entre os quais o direito à moradia[13].

A utopia da cidade como direito quer o usufruto coletivo da e na cidade. O “valor”, para os seus defensores, é o valor de uso e pressupõe o acesso universal na apropriação e usufruto da cidade.A carta mundial pelo direito à cidade está sendo elaborada desde o primeiro Fórum Social Mundial:

O Direito à Cidade implica em enfatizar uma nova maneira de promoção, respeito, defesa, realização dos direitos civis, políticos, econômicos, sociais, culturais e ambientais garantidos nos instrumentos regionais e internacionais de direitos humanos (Carta Mundial pelo Direito à Cidade- 2006).

Os direitos individuais internacionais foram fundamentais para a consciência coletiva e propiciaram conquistas sociais. Porém, a agenda neoliberal atrela os direitos individuais ao “mercado”, o que significa destruição das conquistas: quanto mais “cidade” se produz, maior é o preço das mercadorias, provocando a expansão da segregação socioespacial. Mas, a cidade como direito, tem o pressuposto de direito coletivo, o predomínio do valor de uso da cidade.

“A luta pelo direito à cidade tem como objetivo tornar o valor de uso predominante sobre o valor de troca, construir o direito coletivo e da importância da política. O processo de mobilização internacional dos movimentos referenciando direitos individuais propõe a coletivização dos direitos com a Carta Mundial pelo Direito à Cidade” (Carta Mundial – 2006).

Os movimentos sociais se apropriam do avanço técnico computacional, formam redes internacionais que fortalecem o conhecimento da DiverCidades[14] e promovem a sua união, permitindo maior informação sobre o que ocorre no mundo.

Henrique Ortiz presidente HIC (Habitat International Coalization) afirma que a Carta Mundial pelo Direito à Cidade “é uma resposta social, um contraponto à cidade mercadoria. A luta pelo direito à cidade é a expressão do interesse coletivo. Por sua origem e significado social, a Carta Mundial do Direito à Cidade é, antes de tudo, um instrumento dirigido ao fortalecimento dos processos, reivindicações e lutas urbanas[15] (grifos nossos).

A luta pela cidade como direito é um germe da utopia espacial no tempo-espaço presente. É uma construção de utopia sócio-espacial que engloba o espaço, o tempo e o processo pelo qual se constitui.

A utopia, para Harvey,

“El resultado final de esta discusión de la pureza de cualquier utopismo de proceso inevitablemente se ve trastornada por su forma de espacialización. Exactamente de la misma forma que las materialidades de las utopías espaciales chocan con las particularidades de proceso temporal movilizado para producirlas, también el utopismo de proceso choca con los marcos espaciales y las particularidades de construcción de lugar necesarias para su materialização” (p.207).

O autor dá importantes elementos para analisar processos, espaço/tempo, fundamentais para compreender a cidade como direito.

A Carta Mundial é explícita ao afirmar a cidade como direito:“É um direito coletivo dos habitantes das cidades, em especial dos grupos vulneráveis e desfavorecidos, que lhes confere legitimidade de ação e organização, baseado em seus usos e costumes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito à livre autodeterminação e a um padrão de vida adequada.”.

Enquanto o neoliberalismo insiste na focalização de políticas, as lutas dos movimentos societários têm como pressuposto a universalização. A cidade como direito quer a predominância do valor de uso, o acesso universal aos bens produzidos, contrapondo-se à agenda neoliberal. A cidade como direito se realiza e se concretiza no espaço, no tempo real e não num futuro distante. A Carta Mundial explica porque o urbano e a cidade são o foco de análise:

“¿Por qué enfocada sólo a la ciudad? Este es el tema que ha despertado un mayor debate. En primer término porque el concepto de ciudad en algunas regiones del mundo se refiere al ámbito territorial formal donde viven las clases medias y altas y no al área obrera.

Ciudad, en varios países de Asia, significa rechazo a los asentamientos populares y procesos masivos de desalojo en nombre de la ‘ciudad’, por lo que los sectores sociales a quienes la Carta enfoca sus prioridades rechazan el término. Así, en algunos países la gente optaría mejor por conceptos como el derecho a la tierra o a la comunidad.

En países europeos totalmente urbanizados, el término ciudad no permite hacer distinciones. Surgen otros conceptos alternativos como comunidad y derecho a un lugar donde vivir. El primero hace sentido en inglés para referirse a la ciudad o a un pueblo pero no en castellano, donde se refiere a un colectivo que comparte propósitos comunes; nada más alejado de la complejidad y diversidad cultural y de intereses que caracterizan a las ciudades. El segundo no responde a la riqueza de contenidos y alcances del derecho a la ciudad, no expresa su carácter colectivo ni hace distinción alguna entre la ciudad y el campo. Un tercer concepto que circula en los debates es el de hábitat de derechos humanos (human rights habitat), término sin fuerza simbólica y movilizadora.

Esto nos lleva al centro del debate: ¿por qué limitar la Carta al ámbito urbano cuando hay países, principalmente en Asia y África, en los que el hábitat aún predominante es el rural? ¿Por qué hacerlo cuando en muchos lugares las mayores violaciones de derechos relativos al hábitat se dan en el campo?

Por otra parte, ¿no estaremos haciendo el juego a los grandes intereses que comandan el proceso de globalización económica en el mundo? Hoy estos intereses promueven la ciudad como “motor de desarrollo” y abren en su propio beneficio la competitividad entre ciudades, olvidándose de las comunidades campesinas e incluso pasando por encima de los gobiernos nacionales.

La ciudad, más que factor de impulso para el campo ha sido el centro desde el que se orquesta su devastación. En este sentido, limitar la Carta a la ciudad ¿no implica seguir fortaleciendo estos procesos? ¿No se estará contribuyendo además a fragmentar y confrontar los movimientos sociales de los pobres del campo y la ciudad?

Este debate ha llevado a acercarnos a los movimientos rurales como Vía Campesina, con el objetivo de que, sin negar la necesidad de contar con instrumentos específicos tanto para el campo como para la ciudad, se vea la forma de articularlos dentro de una estrategia compartida. Esto, además, permitirá enriquecer y fortalecer los procesos sociales que luchan contra la exclusión en ambos contextos.

Hay principios y líneas de acción, dirigidos a respetar la dignidad humana tanto en el campo como en la ciudad, que garantizan esa articulación, pero hay también especificidades que exigen instrumentos adecuados a cada necesidad y contexto.

Por otra parte, el derecho a la ciudad no se refiere a la ciudad como hoy la conocemos y padecemos sino a la otra ciudad posible, incluyente en todos los aspectos de la vida (económicos, sociales, culturales, políticos, espaciales); sustentable y responsable; espacio de la diversidad, la solidaridad y la convivencia; democrática, participativa, viva y creativa. Una ciudad que no crezca a costa de su entorno, del campo o de otras ciudades”

Apesar de que ninguém vive sem ocupar espaço[16], que as atividades sociais, econômicas, políticas e culturais se concretizarem espacialmente, o espaço tem sido ocultado exatamente pela sua importância.

O espaço é o meio privilegiado para explorar estratégias alternativas emancipatórias, como diz Lefebvre (1991).

Para Harvey, “Y si el espacio y el tiempo se contemplan como constructos sociales (implicando el rechazo de las teorías absolutas del espacio y el tiempo), entonces la producción de espacio y tiempo debe incorporarse al pensamiento utópico. Se trata de buscar, por lo tanto, lo que denominaré de ‘utopismo dialéctico’ “(Harvey, 2003).

A importância do espaço, de processos, de tempo/espaço, de utopias sócio-espaciais, de utopias de processo e de “utopismo dialético” é fundamental para afirmar a importância da meta-filosofia e da meta-geografia, com métodos de análise que não ocultem contradições e conflitos da produção do espaço. A importância do espaço e do território, portanto, é um elemento básico da utopia da cidade como direito. Do valor de Uso sobrepondo-se ao valor de troca. Da Geografia como uma ciência que permite compreender o espaço e não apenas explicar interações do capital.


Notas

[1] Em especial, o Dicionário de Política (Bobbio, Mettecci , Pasquino – 1992) .

[2] “A venda de 50,02% das ações da Usina Vale do Rosário trouxe mais fortunas para Ribeirão Preto (SP), que já vive uma euforia com o boom do açúcar e álcool No fim de fevereiro, 72 pessoas embolsaram R$ 850 milhões com a venda de seus papéis - cerca de 70% deles moram na cidade. ... O negócio agita a economia local. A construtora Habiarte Barc antecipou de julho para abril o lançamento de um prédio de alto padrão na avenida João Fiusa, "point" de novos-ricos da cidade. Nas concessionárias de luxo, aumentou a fila para comprar carros importados” Jornal o Valor –16/03/2007.

[3] Rodrigues, Arlete Moyses, 2004

[4] Muitos autores fundamentais não estão citados. Citamos os que são utilizados no texto.

[5] A produção e reprodução do espaço, do urbano, da cidade, produzida pelos chamados agentes tipicamente capitalistas e também pelos que ocupam terras para morar. Mesmo quando não consegue permanecer no lugar, produz espaço, altera a dimensão da cidade, do urbano, do lugar (Rodrigues, Arlete Moysés 1988).

[6] No Brasil, nas terras públicas ocupadas para moradia própria se aplica o direito real de uso, individual ou coletivo. Nas terras privadas o usucapião urbano.

[7] Guy Debord (2006) mostra como o valor de uso é o mais importante para os que necessitam sobreviver.

[8] Veja-se, Sader Eder 1988 e Rodrígues Arlete Moysés – 1988

[9] Sobre a meta-geografia, Carlos, Ana Fani – 2005.

[10]- Jornal o Valor Econômico 22/01/2007. Noticias de 26/03/2007 afirmam que o projeto em elaboração vai alterar a dinâmica do lugar .

[11] Alguns programas foram implementados na articulação de lutas entre associações técnicos de alguns setores da Prefeitura. As explicações têm como objetivo mostrar a importância do trabalho do geógrafo e de outros profissionais que destacam a melhoria de condição de vida como um fundamento do direito à cidade. Exemplos: Pro-Luz (com alteração de normas de posteamento); Pró-água com instalação de registro coletivos em favelas; suspensão de processos de deslocamento de famílias em áreas públicas, etc. Os argumentos decisivos utilizados pelos técnicos foram: vela provoca incêndio, água dissemina doenças, deslocamentos provocam desterritorialização.

[12] Relatoria Nacional do Direito à Moradia Adequada , Grupo de Especialistas em Despejos Forçados do Programa de Assentamentos Humanos das Nações Unidas – UN Habitat, Programa das Américas do COHRE - Centro pelo Direito à Moradia contra Despejos – forma parte da rede internacional

[13] Veja Harvey, D 2004

[14] Termo utilizado por Maura Veras

[15] Ortiz, Henrique 2006

[16] Rodrígues, Arlete Moisés, 1988-a

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© Copyright Arlete Moysés Rodrigues, 2007
© Copyright Scripta Nova , 2007

Ficha bibliográfica:

RODRIGUES, Arlete MOYSÉS. A cidade como direito. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2007, vol. XI, núm. 245 (33). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-24533.htm> [ISSN: 1138-9788]


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