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Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XII, núm. 270 (138), 1 de agosto de 2008
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]


A DEMOLIÇÃO E A CONSERVAÇÃO DAS ÁREAS CENTRAIS:
PLANOS, LEIS E TRANSFORMAÇÕES MORFOLÓGICAS NO RECIFE, BRASIL
 


Virgínia Pontual
Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada (CECI)
vp@elogica.com.br

Rosane Piccolo
Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada (CECI)
rosanepiccolo@yahoo.com.br

A demolição e a conservação das áreas centrais: planos, leis e transformações morfológicas no Recife, Brasil (Resumo)

A demolição e a conservação dos artefatos urbanos e arquitetônicos construídos pelos próprios homens é uma questão que perpassa e até hoje encontra-se presente na história de várias cidades ao redor do mundo. As passagens entre as cidades antiga, moderna e contemporânea mostram de formas distintas, a clara relação entre tais práticas, que foram além da polaridade existente entre ambas e caminharam paralelamente rumo a profundas modificações urbanas. A discussão empreendida neste artigo mescla as diversas contribuições teóricas no campo disciplinar do urbanismo e da geografia urbana, com algumas referências empíricas situadas no Brasil, especialmente na cidade do Recife, capital do estado de Pernambuco, e busca ampliar a compreensão destas transformações morfológicas em distintos tempos.

Palavras chave: Demolição, construção, transformações morfológicas.

Demolition and conservation of central areas: plans, laws and morphological transformations in Recife, Brazil (Abstract)

The demolition and the conservation of urban and architectural artefacts constructed by men is a question that is present until nowadays around the history of some cities of the world. The course between old, modern and contemporary cities shows in distinct forms, the clear relation between such practical that had been beyond the existing polarity between both, and walked route parallel to the deep urban transformations. The undertaken discussion ins this paper mixtures diverse theoretical contributions in the discipline field of urbanism and urban geography, with empirical references in Brazil, especially in the city of Recife, capital of the state of Pernambuco, and searchs to extend the understanding of these morphologic transformations in distinct times.

Key words: Demolition, construction, morphological transformations.

As mudanças nas práticas urbanísticas sofrem uma inflexão nos anos de 1970 no Brasil, sejam as relativas à construção de novos artefatos, seja a conservação daqueles já existentes. A reflexão proposta é a de que a ação de destruição do homem sobre os artefatos por ele construídos se constitui num ímpeto próprio ao ser humano e a conservação, uma reação, atitude racional e construída pelos intelectuais. Desse modo estabelece-se uma tensão entre as práticas urbanísticas relacionadas à destruição e à conservação dos artefatos, artefatos estes construídos e habitados pelo homem.

A reflexão está apresentada em três partes, a primeira trata das passagens entre as cidades antiga, moderna e contemporânea a partir de alguns autores que já refletiram sobre a destruição e a conservação de cidades, inclusive no âmbito da formação dos campos disciplinares do urbanismo e da geografia urbana. Embora a escrita esteja centrada em contribuições teóricas, as referências empíricas dos autores tratados reportam-se em grande parte a fatos situados nas áreas centrais de cidades. A perspectiva adotada está referenciada em dois pressupostos: o primeiro entende que mais que um diálogo entre esses dois campos disciplinares, existe uma significativa inter-relação, borrando-se os contornos e especificidades entre os mesmos. O segundo advoga que para tratar de fenômenos recentes precisa-se estudar o presente com suas diversas temporalidades.

A segunda parte da reflexão realiza um retorno temporal, apresentando uma narrativa de uma situação particular de destruição dos artefatos na área central da cidade do Recife, ocorrida nas primeiras décadas do século XX. A terceira enfoca as práticas urbanísticas na contemporaneidade, as concepções e suas expressões projetuais a partir das quais a destruição e a conservação adquirem outros formatos. Estas três partes colocam diferentes focos enriquecedores da reflexão proposta considerando que na atualidade os campos disciplinares do urbanismo e da geografia urbana estão a requerer um esforço de re-conceituação dos olhares.

A destruição e a conservação: a passagem da cidade antiga para a cidade moderna 

Calabi (2005) e Choay (2001) tratam das passagens da cidade antiga para a moderna mostrando os elementos materiais que edificam as cidades, as estradas, a praça, a casa e a infra-estrutura, como agregados físicos que são modificados pelas diferentes práticas no tempo, criando ordens urbanas em um movimento de rupturas e permanências. Para Calabi (2005), em grande monta, as transformações que marcaram esta passagem estavam suportadas no crescimento populacional, na industrialização e nos novos hábitos de morar com a gradativa separação entre casa e trabalho. Simultaneamente a estas mudanças verificou-se a formação de campos disciplinares com respectivos instrumentos e procedimentos, instaurando a ordem do moderno e do contemporâneo. Frente à instauração da ordem do moderno, Choay (2001, p. 179) formula a seguinte provocação:

“Contrapor as cidades do passado à cidade do presente não significa, no entanto, querer conservar as primeiras. A história das doutrinas do urbanismo e de suas aplicações concretas não se confunde, de modo algum, com a invenção do patrimônio urbano histórico e de sua proteção. As duas aventuras são, todavia, solidárias. Quer o urbanismo se empenhasse em destruir os conjuntos urbanos antigos, quer procurasse preservá-los, foi justamente tornando-se obstáculo ao livre desdobramento de novas modalidades de organização do espaço urbano que as formações antigas adquiriram sua identidade conceitual.”

Já a época das grandes invasões até o fim da Idade Média, os monumentos e edifícios públicos construídos pela colonização romana foram alvos de destruição, porém, razões de ordem econômica, conduziram a manutenção dos mesmos. A Igreja Católica ora condena tais artefatos por evocarem uma ordem pagã, ora os promovem em nome do respeito às letras e ao saber clássico, em nome das “humanidades”, segundo Choay (2001). Com o Papa Martinho V, sucedem-se as bulas pontificiais com a finalidade de proteger os edifícios antigos com medidas penais às destruições. Entretanto, os mesmos que se empenham a conservar Roma também promovem devastações em suas antiguidades. A passagem a seguir transcrita é particularmente instigante no argumento de Choay (2001, p. 59):

“Como explicar essa ambivalência? (...) Se assemelha a uma duplicidade (...) o discurso e proteção patrimonial se transformará na consciência tranqüila do demolidor e na justificação da demolição.”

A partir do século XVI o que importava era o registro e o conhecimento de objetos de arte antiga, com os antiquários. A permanência do objeto em si não era posta em questão, mas sim o registro da sua imagem. Segundo Choay (2001, p. 99) é com a Revolução Francesa (1789-1799), que ao lado das destruições de tudo o que representasse o antigo regime, foi criada a Comissão dos Monumentos. Desta forma, a conservação das obras de arte seria uma reação à destruição das mesmas e uma prática inovadora.

Calabi (2005) situa nos últimos anos dos oitocentos, o começo de iniciativas diversas, inclusive institucionais, que possibilitam a criação de sociedades de salvaguarda dos monumentos e dos sítios urbanos. A estética urbana ou a arte de construir a cidade não estava voltada apenas a dimensão artística, mas também para o desenvolvimento da necessidade da salvaguarda do decoro público, isto é a delimitação de uma esfera pública, explicita Calabi (2005, p. 138 e 139). As iniciativas ocorridas em lugares diversos estabelecendo olhares que se complementam ou excluem promovem pouco a pouco a compartimentação do conhecimento e o surgimento de uma nova profissão: a do conservacionista. Este profissional vem a questionar e se contrapor às destruições da cidade antiga tendo como suporte instituições e instrumentos técnicos que colocam a prática urbanística em um patamar coeso e sistemático.  

Porém, ainda no século XIX, a prática do urbanismo adquire também uma abordagem referendada nas ciências médicas. A cidade passa a ser entendida como um corpo doente para o qual eram necessárias medidas de salubridade e higiene para torná-la saudável. Um importante exemplo foram os relatórios produzidos por Edmund Chadwick, em 1948, na Inglaterra dando conta das péssimas condições habitacionais que possibilitaram as epidemias de cólera. Assim, em nome de um saber técnico, esses males advindos do crescimento demográfico e da industrialização ancoram as destruições que vão sendo realizadas. Para Calabi (2005, p. 124), sventrare ou desventramento, termo tomado de empréstimo do léxico médico, significa amputar o mal onde este se apresenta, assumindo a demolição e a reconstrução o mesmo sentido de saneamento. As concepções urbanísticas, referenciadas no saber médico e objetivadas em planos de melhoramentos e reformas, previam destruições que foram possíveis por meio da promulgação das leis de expropriação ou desapropriação por utilidade pública. Estas leis foram instituídas em diversos lugares, mas em datas bastante próximas. Na França, ela data de 13 de maio de 1841, na Inglaterra em 1842 e 1845, na Itália em 1865 e em Barcelona em 1879. Assim, só com estas leis e outras similares foi possível o mal ser cortado onde ele se apresentava. Muitos historiadores urbanos denominam esta prática de urbanismo demolidor, para construir uma cidade não só limpa e saudável, mas diferenciada tipologicamente da cidade antiga.

O modelo de intervenção huassmanniano (1853-1869), efetivado em Paris se torna um paradigma disseminando-se em toda Europa. Por outro lado, há que destacar a significativa contribuição de Ildefondo Cerdá cujo plano de Reforma de Barcelona (1855) previa não só a demolição das muralhas e a abertura de avenidas, mas a destruição de parte da cidade existente. Adotando a tese de Choay, por reação a estes paradigmas urbanísticos disseminam-se várias abordagens sobre a conservação das cidades existentes na França com Viollet-le-Duc (1814-1879), na Inglaterra com John Ruskin (1819-1900), na Áustria com Camillo Sitte (1843-1903) e Alois Riegl (1858-1905), na Itália com Camilo Boito (1836-1914).

Se para Choay (2001) a identidade conceitual da cidade antiga é possibilitada pela emergência de outra concepção de cidade para a qual a existente se tornou obstáculo ao livre desdobramento de novas modalidades de organização do espaço urbano. Para Calabi (2005) emergem olhares que vêem uma oposição temporal entre passado e presente, mas ela entende que não há uma oposição conceitual entre cidade antiga e moderna, essas são entendidas como objetos formal e epistemológico específicos, no interior de um processo de transformação inerente ao ambiente urbano. No âmbito da formação do urbanismo moderno diferenças podem ser especificadas entre a abordagem de Camillo Sitte com sua teoria sobre arte urbana, enfatizando a dimensão artística da cidade antiga e a de Haussmmann e Cerda, privilegiando a circulação dos elementos viários constitutivos da cidade. Objetivando essas diferenças em sínteses metafóricas, pode-se dizer que Sitte destaca na cidade antiga a praça a ser conservada em sua ambiência pitoresca, enquanto os outros dois colocam como elemento principal da cidade moderna a rua ou avenida, para cuja efetivação a demolição era uma ação inevitável. 

A atitude reativa conservacionista ganha outros contornos com a disseminação do urbanismo modernista. Esta prática ao evocar o princípio da tabula rasa destrói os artefatos urbanos e arquitetônicos que não representavam ou obstaculizassem o funcionamento do mundo máquina. O contributo do urbanismo modernista, relativo ao período do início do século XX até a década de 1950, não adquire mudança substantiva à discussão sobre a ação de destruição do homem sobre os artefatos por ele próprio construído. Isto é, as trajetórias institucionais, instrumentais e de formação de campos disciplinares operam como um contínuo: desde o século XIX, com Haussmann em Paris, Cerdá em Barcelona e com o aparecimento dos conservacionistas com as respectivas doutrinas e cartas patrimoniais, até que as críticas ao urbanismo modernista e a constatação da acanhada efetivação da tutela na salvaguarda da cidade antiga emergem. Em que pese os estudos científicos e experiências das instituições e dos profissionais em curso, está distante de existir bases de entendimentos unitários e universais.

O urbanismo demolidor no Recife e no Brasil: as intervenções propostas nos planos e nas leis urbanísticas

A partir das primeiras décadas do século XX, muitas cidades brasileiras foram marcadas por grandes e profundas transformações na sua estrutura urbana. O tratamento de problemas de circulação associados aos de salubridade surgidos no século XIX, mas que permaneciam, passaram a ser tratados em planos propondo intervenções como o alargamento e retificação de ruas.

Tais intervenções foram guiadas por planos e projetos, que na maior parte das cidades brasileiras, objetivaram promover a articulação entre bairros, o centro e a extensão das cidades, por meio de sistemas de vias e transportes, segundo assinala Leme (1999). Paralelamente a isso, foram organizados os órgãos para o planejamento urbano como parte da estrutura administrativa das administrações municipais. Reconhece-se assim, uma nova fase de afirmação do urbanismo junto às principais cidades brasileiras, empenhadas na maior parte dos casos, em modernizar-se.

Neste contexto, a abertura de largas e retilíneas avenidas era bastante recorrente na previsão dos planos urbanísticos desse período. Essas medidas eram responsáveis por grandes transformações morfológicas, já que demandavam a destruição de muitos edifícios, vias, e outros espaços públicos pré-existentes. As destruições necessitaram de dispositivos legais para serem efetivadas, na maioria das vezes expressos sob a forma de leis e decretos de desapropriação ou de expropriação. Similarmente ao ocorrido em países europeus foi instituída no Brasil a lei de desapropriação por utilidade pública em 26 de agosto de 1903.

Desse modo, as transformações verificadas em muitas cidades brasileiras caminharam lado a lado com a abertura de grandes avenidas e a conseqüente destruição da cidade antiga, viabilizada pelos citados dispositivos legais.

É interessante ilustrar os casos das transformações morfológicas sofridas pelas áreas centrais das cidades do Rio de Janeiro, Niterói, Porto Alegre, Salvador, São Paulo e Recife. No Rio de Janeiro podem ser observadas diversas medidas empreendidas desde a gestão do Prefeito Pereira Passos (1902-1906). Destacam-se a abertura da Avenida Central, a atual Rio Branco, da Rua Sete de Setembro entre a Praça XV e a Rua Uruguaiana (1904), o prolongamento da Rua Sete de Setembro até o Largo da Carioca (1905). Tais modificações viárias foram, anos mais tarde, acompanhadas das grandes obras do desmonte do Morro de Santo Antônio e do Morro do Castelo (1920-1922), que viriam a provocar uma das mais drásticas transformações do centro da cidade. Entretanto, uma das medidas que se constituiu em um marco neste processo pela grande modificação da fisionomia da cidade e pelo grande número de demolições necessárias, refere-se à abertura da Avenida Presidente Vargas, inaugurada em 1944. Estas medidas refletiram em maior ou menor intensidade, diversas preocupações, sejam elas de ordem estética, sanitária, habitacional, ou viária.

Em Niterói, destaca-se a abertura da Avenida Amaral Peixoto na década de 1940. Esta foi uma das medidas contidas no plano de remodelação e extensão que a cidade recebeu. Para tanto, foi necessária a desapropriação de aproximadamente 230 edifícios, viabilizada pela emissão do decreto-lei n° 53 de 13 de janeiro de 1942.

A cidade de Porto Alegre recebeu o Plano de Melhoramentos concebido por João Moreira Maciel, em 1914 e o Plano Diretor ou Plano de Urbanização de autoria de Arnaldo Gladosch, que se desenvolveu de 1938 a 1943, na primeira metade do século XX. No primeiro plano, a idéia central era a de alargar ruas, prolongá-las para as áreas de aterro e criar novas avenidas, com o intuito de descongestionar o tráfego. O segundo plano, desenvolvido no período do Estado Novo (1937-1945), consistiu na adoção de um plano de avenidas, aterro e urbanização da Praia das Bellas, e expansão da cidade. As propostas de intervenção contidas neste plano foram, em parte, efetivadas com a demolição da cidade antiga.

Em Salvador, as experiências urbanísticas modernas foram iniciadas com o projeto de modernização do porto (1906-1921), seguido da remodelação e ampliação do centro de negócios na Cidade Baixa e da abertura da Avenida Sete de Setembro na Cidade Alta, durante a primeira gestão do Governador J.J. Seabra (1912-1916). A abertura desta última via implicou na destruição total ou parcial de inúmeros edifícios antigos, incluindo a demolição da Igreja Matriz de São Pedro.

Na cidade de São Paulo, destaca-se o alargamento da Rua Líbero Badaró, que passaria dos tradicionais sete metros de largura, a dezoito. A idéia de realizar esta medida havia sido pensada desde 1906, entretanto, sua execução só se desenvolveu do ano de 1911 a 1914. Com o alargamento, muitas destruições foram necessárias, assim como as reedificações. As novas construções realizadas na Rua Líbero Badaró permitiram o estabelecimento de uma moderna e homogênea tipologia arquitetônica, que não teve equivalente em nenhuma outra parte da cidade, segundo Leme (1999).

De forma semelhante aos citados casos, o Recife também foi alvo de uma série de planos urbanísticos, que paralelamente às destruições necessárias e aos dispositivos legais que as autorizavam, foram responsáveis por profundas transformações então não verificadas nesta cidade.

Cabe notar que em paralelo a realização das propostas de intervenções e a efetivação das mesmas promovendo-se a demolição da cidade antiga e construindo-se a cidade moderna, surge o debate da necessidade de salvaguardar os exemplares representativos da identidade nacional de notável reconhecimento histórico e artístico.

A partir dos anos de 1920, várias propostas de criação de uma instituição que deveria salvaguardar os exemplares de notável reconhecimento histórico e artístico nacional passaram a ser realizadas, porém sem sucesso. Cabe destacar: a do então conservador de antiguidades clássicas do Museu Nacional, a que o Deputado Federal pernambucano Luiz Cedro apresenta na Câmara dos Deputados, em 1923, a do Deputado Federal mineiro Augusto de Lima,em 1924, e a do Deputado Federal mineiro Jair Lins, em 1925. Ações em âmbito estadual também são adotadas com a criação das Inspetorias Estaduais de Monumentos Nacionais, na Bahia, em 1927, e em Pernambuco, em 1928.

Porém, em 1934, o escritor Mário de Andrade, a pedido do Ministro de Educação e Saúde, Gustavo Capanema elabora um anteprojeto de proteção do patrimônio artístico nacional, propondo a criação do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Esta proposta é reformulada por Rodrigo Melo Franco de Andrade, sendo aprovada pelas instituições competentes a criação do SPHAN, em 1936. Neste mesmo ano esse serviço inicia a sua atuação que é consolidada com o estabelecimento do instituto do tombamento, Decreto-Lei nº25 de 10/11/1937, e do instrumento urbanístico do cone visibilidade, normatizando os procedimentos de tutela no Brasil, em 1937.

O grupo de intelectuais que compõe o SPHAN (atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - IPHAN) é o mesmo que participa da implantação da arquitetura e do urbanismo modernista, no Brasil, tais como: Carlos Drummond de Andrade, Afonso A. de Melo Franco, Prudente de Morais Neto, Rodrigo Melo Franco e Lúcio Costa. Desta forma os conservacionistas eram também modernistas no Brasil, não havendo disputas ou separação entre estas duas práticas urbanísticas e arquitetônicas.

A prática conservacionista considerava como representativo da cidade antiga e, portanto da identidade nacional, apenas os edifícios de estilo colonial e barroco. Assim, a cidade antiga podia ser demolida desde que estes exemplares ou monumentos históricos fossem preservados, e ao lado edificados exemplares de arquitetura moderna. Embora a aventura da institucionalização da salvaguarda dos valores artísticos e históricos não seja apenas uma reação às demolições em curso como está identificado para a Europa, há um paralelismo entre as demolições ocorridas nas cidades brasileiras, decorrentes das idéias do urbanismo demolidor e a criação da instituição de salvaguarda da cidade antiga.

As intervenções urbanísticas na área central do Recife: as destruições da cidade antiga e a construção da cidade moderna

Em meados do século XIX, o Recife passou a ser pensado em planos urbanísticos e a ser submetido a intervenções que modificaram a sua fisionomia. As falas de prefeitos, engenheiros, médicos, jornalistas dentre outros, expressas em exposições ou prestações de contas anuais, relatórios técnicos, editoriais e artigos de jornais, demonstram as modificações ocorridas. As práticas urbanísticas foram efetivadas em resposta aos males então presentes, em especial aquelas voltadas à circulação do ar, da luz, do sol, assim como do tráfego de veículos. Se os primeiros vestígios de pretensão de modificar a cidade antiga no Recife datam de meados do século XIX, é no século XX que as práticas urbanísticas relativas aos planos se intensificam.

Os primeiros foram os Planos de Melhoramentos e Reforma do Porto e do Bairro do Recife, e o Plano de Saneamento do Recife. Estes planos propunham a modernização portuária, a melhoria do acesso ao porto, além da abertura de três avenidas e o alargamento de ruas transversais, o que implicou em um número expressivo de destruições.

A abertura de grande avenidas, assim como a remodelação de centenas de quadras, apenas foi possível graças aos decretos de desapropriação que incidiram sobre esses territórios. No Bairro do Recife, foram desapropriados imóveis em quase toda sua área edificada, para construções de cais, abertura e alargamento de vias. Vários foram os decretos de desapropriação instituídos desde 1908.

Segundo Lubambo (1991), foram executadas mais de 480 desapropriações para as reformas do porto e do Bairro do Recife. Além disto, os prédios considerados “ruinosos” foram excluídos das indenizações, pois, se enquadrados na categoria insalubres pela Comissão de Saneamento a demolição era executada.

Iniciada a reforma do porto do Recife, foram demolidos a Igreja Matriz do Corpo Santo, com mais de 400 anos, alguns fortes datados do século XVII, as ruas estreitas e tortuosas, os sobrados e o casario de porta-e-janela, perdendo-se parte da cidade antiga do Recife. As três avenidas foram abertas e alargadas várias ruas transversais, iniciando-se a construção da cidade moderna no Recife.

Após as desapropriações e demolições, os terrenos foram sendo colocados à venda, em hasta pública. Os lotes mais bem localizados e valorizados foram vendidos e as construções iniciadas. Os usos permaneceram muito próximos aos de antes da reforma, voltados para o comércio exportador e importador, empresas financeiras e seguradoras, enquanto o uso residencial passou a representar apenas 40%. Porém, destaca Lubambo (1991) que a valorização ocorrida com os terrenos resultantes do novo parcelamento foi de mais de 400%, com a reapropriação imediata dos mesmos por empresas comerciais e financeiras nacionais e internacionais.

Anos após a reforma do bairro do Recife, na década de 1930, os bairros de Santo Antônio e São José passaram a ser objetos de intervenção, propalava-se predominantemente a falta de acessibilidade e a necessidade de desobstrução das vias para facilitar o deslocamento do tráfego de automóveis.

As respostas a esses problemas foram planos, cujas concepções expressavam a cidade como “artéria de circulação”. Os planos elaborados de reformas dos bairros centrais de Santo Antônio e São José e de expansão da cidade foram: os do engenheiro Domingos Ferreira, membro da Seção Técnica da Prefeitura do Recife (1926 e 1927), do arquiteto e urbanista Nestor de Figueiredo (1931), os da Cidade Comissão do Plano da Cidade (1934 e 1938), os do urbanista Atílio Corrêa Lima (1936), o do engenheiro e urbanista João Florense de Ulhôa Cintra (Diretor de Obras da Prefeitura de São Paulo, em 1943), além dos pareceres de Prestes Maia e Washington Azevedo. A existência de diversos planos foi decorrente da falta de consenso entre os urbanistas.

Com a vinda para o Recife do urbanista Nestor de Figueiredo, é criada a Comissão Consultiva do Plano da Cidade com respectivas subcomissões temáticas. Dentre elas, cabe destacar a de história, tradição e monumentos da cidade, integrada por membros do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano (IAHGPE), que estabeleceu uma classificação dos monumentos da cidade em duas categorias: os rigorosamente preservados e os que poderiam ser destruídos. Após a experiência de pequeno efeito da Inspetoria Estaduais de Monumentos Nacionais, em 1928, esta é a primeira vez que é estabelecida uma classificação do que devia ser conservado na cidade antiga do Recife. Esses conservacionistas, entretanto não eram nem arquitetos nem engenheiros, mas jornalistas.    

Como as polêmicas em torno das concepções de desenho das reformas contidas nos planos não cessaram o Prefeito Novaes Filho (1937-1945), referenda em 1938, a remodelação proposta pela Comissão do Plano da Cidade, passando a ser colocada em prática. Nessa proposta, as principais avenidas efetivadas foram a 10 de Novembro (atual Av. Guararapes) e a norte-sul (atual Av. Dantas Barreto). As quadras e lotes lindeiros às mesmas foram redesenhados, isto é, suas formas foram modificadas, tornando-se grandes e menos numerosas.

Um dos momentos de intensificação das demolições foi após a aprovação do plano da Comissão do Plano da Cidade, em 1938, tendo desaparecido 10 ruas e 3 travessas com suas respectivas edificações; assim como, a Igreja do Paraíso e a Santa Casa de Misericórdia.

Para os urbanistas e outros intelectuais do Recife, as necessidades citadinas que pediam mudanças estavam parcialmente atendidas, porém, outras idéias precisavam ser incorporadas. Apenas com as sugestões formuladas por Ulhôa Cintra este ciclo propositivo passou a ser efetivado com maior intensidade. As sugestões foram aprovadas por unanimidade pela Comissão do Plano da Cidade, embora as contribuições desse engenheiro possam ser consideradas a condensação dos planos de Figueiredo e de Corrêa Lima. Assim, esse plano começou a ser colocado em prática no ano de 1943.

Os planos concebidos até então figuravam uma cidade futura, bela e radiosa, denotando o fascínio exercido pelas correntes do modernismo na arquitetura e no urbanismo, em que a monumentalidade se interligava com os aspectos técnicos, práticos e funcionais, cujo resultado seria uma cidade moderna, ordenada e disciplinada, em oposição ao caos da cidade antiga.

A efetivação dos planos era viabilizada pela existência da lei de desapropriação, a exemplo do que está verificado para a Europa. Mesmo reconhecendo as facilidades propiciadas por essa lei, a busca por outra cidade advinda da destruição da antiga era tão evidente que os governantes a referendavam por outros meios de divulgação. Entre eles se destaca o álbum de fotografias intitulado “Alguns aspectos do trecho do bairro de Santo Antônio a ser demolido”,[1] assinado pelo Governado do Estado e Prefeitura do Recife, em 1927.

As demolições dos bairros do Recife, de Santo Antônio e São José, quebraram a lógica urbanística marcada pela alta compacidade da forma construída, pela densidade das edificações que conformavam quadras maciças e contínuas com sobrados magros e altos, pelo vazio dos pátios e largos que pontuavam o tecido urbano, entre os telhados dos sobrados e as altas torres das igrejas. Pode-se ainda dizer que quebraram a homogeneidade das quadras, das ruas estreitas formadas por segmentos, ora tortuosos, ora retos, com mudanças abruptas de direção e dos becos ainda mais estreitos.

As quadras e lotes ganharam novo formato e dimensão. Imponentes arranha-céus começam a ser construídos ao longo das avenidas. A cidade antiga foi assim sendo apagada e redesenhada dentro dos ideais do urbanismo moderno.

Na década de 1950, a abertura da Avenida Dantas Barreto simbolizava, ainda, progresso, e a arquitetura do período colonial, atraso e vergonha. Entretanto, no final de 1959, com a emergência da idéia de descentralização do tráfego associada ao custo das desapropriações, as demolições foram temporariamente suspensas. Se a idéia de descentralização exigiu um outro traçado que evitou a demolição do Pátio da Igreja de São Pedro, reafirmou a demolição da Igreja dos Martírios e de quadras no bairro de São José.

Com a primeira gestão do Prefeito Augusto Lucena (1964-1968), porém, as demolições para a abertura da avenida foram retomadas desde a Rua Estreita do Rosário até antigo acesso ao Pátio do Carmo, embora não se tenha verificado novos planos e decretos de desapropriação. A retomada da abertura dessa avenida como prioridade de governo, pode ser entendida como parte de um contexto de ditadura militar.

Em 1965, o antigo conjunto edificado do entorno do Pátio do Carmo foi destruído. Em 1966, as demolições prosseguiram do Pátio do Carmo até a Rua Tobias Barreto, com a demolição completa de ruas e quadras. A Rua Santa Tereza, assim como o início da Rua Coronel Suassuna ou Augusta, onde estava localizada a Igreja dos Martírios, também foi demolida.

A cidade antiga dá lugar às vastas áreas de circulação representadas por largas vias associadas à construção de edifícios verticalizados, conformando uma diferente relação formal entre o casario antigo e os edifícios novos; entre as estreitas ruas transversais e a larga avenida.

Cabe notar que a construção de outra tipologia edificada no centro foi possibilitada e incentivada pelas legislações urbanísticas aprovadas no transcurso dessas intervenções. O que foi demolido deu lugar a outras formas, conceitualmente modernas. O que não foi destruído permaneceu como o registro de uma cidade anterior à do presente, expressando outras normas de fazer cidades.

Se a atuação do SPHAN vem desde 1937, tendo tombado em 1938, várias das igrejas dos bairros de Santo Antônio e São José, só a partir de 1946 quando criado o distrito do Recife, foi iniciada uma atuação mais efetiva de proteção. A articulação da atuação do SPHAN com o governo municipal se estabeleceu lentamente. Constitui-se um marco nessa articulação a elaboração do Plano de Gabaritos dos bairros de Santo Antônio e São José, de 1965, estabelecendo zonas de maior ou menor número de pavimentos, em função da proteção da visibilidade das igrejas tombadas. Consolida-se assim a prática protecionista no Brasil, tornando-se nítida a existência conceitual das duas cidades – a antiga e a moderna.   

Em 1971, com o decreto promulgado pelo Prefeito Augusto Lucena em seu segundo governo (1971-1974), as demolições prolongaram-se até a Praça Sérgio Loreto. É importante colocar que estas demolições ganharam dimensões e ritmo só comparáveis com as ocorridas durante a implantação do plano da Comissão do Plano da Cidade (1938), e do decreto de desapropriação de 1941. Além de quadras inteiras foi demolida a Igreja dos Martírios, em 1973. A demolição desse templo religioso, em um tempo em que a prática protecionista estava consolidada, ao ser associada a uma ação de um regime ditatorial, tornou-se uma polêmica não apenas de cunho urbanístico, mas também de cunho político. Neste momento a prática protecionista se desprende da modernista, passando a ser nítida a existência de dois profissionais distintos.

Cabe ainda notar que o final dos anos de 1930 coincide com o Estado Novo, estando o Estado de Pernambuco governado por Agamenon Magalhães, e o Recife, pelo Prefeito Novaes Filho. E, que o período do Prefeito Augusto Lucena reporta-se ao regime militar implantado em 1964. Pode-se dizer que os dois períodos de intensificação do número e ritmo das demolições estiveram inseridos em um contexto político marcado por regimes ditatoriais.

A construção de largas avenidas sobrepondo-se à cidade dos séculos XVIII e XIX estava concluída. O antigo casario colonial, em especial os sobrados, foi substituído pelos altos e modernos edifícios implantados ao longo das Avenidas 10 de Novembro e Dantas Barreto. Estava edificada a cidade moderna e, ao lado, o conjunto edificado pré-existente não demolido permite identificar a cidade antiga. A identidade conceitual das práticas urbanísticas foi materializada e distinguida.

Práticas urbanísticas contemporâneas: marcos conceituais adequados?

A partir da década de 1970 as práticas urbanísticas passaram por revisões, cujos resultados estão apresentados em trabalhos acadêmicos e textos de urbanistas. Essa literatura mostra que há uma dicotomia quase rígida entre as evocações entusiastas dos urbanistas propositores dos projetos urbanos contemporâneos e as negativas dos intelectuais que criticam tais projetos. As primeiras propalam estas idéias como resposta aos limites de outras concepções do passado, em especial as relacionadas com o urbanismo modernista. Bohigas (2004) e Portas (2004) são urbanistas entusiastas dos projetos urbanos contemporâneos.

As evocações negativas reportam tais projetos ao modo atual de funcionamento do capitalismo. São referências de textos críticos: Harvey (2004 e 1993), Hall (1995), Choay (2004), Arantes (2000). Para as primeiras, a cidade é tanto um lugar concreto por se constituir de infra-estruturas viárias, praças ou monumentos, como abstrato por possibilitar a constituição de uma identidade coletiva. Para as segundas, os projetos urbanos contemporâneos buscam criar um lugar de trocas monetárias, de estereótipos de consumo vazio, desfazendo-se os laços entre a cidade concreta e as normas respectivas a certa concepção de mundo.       

O entendimento destas novas práticas pode se referenciar nas palavras de Bohigas (2004). Este urbanista tem propalado que os “planos gerais” já passaram para a história, pois não estavam mais dando conta do controle e das modificações da cidade. A partir desta crítica passa  a advogar a realização de “planos concretos” ou “operações”, segundo duas linhas de intervenções: a primeira de abrangência pontual e a segunda centrada nos espaços públicos.  

Dentre seus trabalhos, tem sido referenciado com ênfase “La villa Olímpica, Barcelona 92” (1991), realizado com participação de Josep Martorell, David Mackay e Albert Puigdomènech. Consta este trabalho não apenas de um projeto urbano, mas, sobretudo uma operação imobiliária composta de uma idéia de cidade acoplada a uma programação econômica e financeira. O sucesso está condicionado à gestão de uma sociedade com forma jurídica autônoma.

Deste modo evidenciam-se que as práticas urbanísticas tem se tornado uma operação imobiliária privada. De modo similar a Bohigas, Portas (2004, p. 223) afirma que desde os anos oitenta, os governos das cidades adotaram um planejamento mais agressivo. Esta “agressividad está dominada por el aprovechamiento o la creación de ‘oportunidades’ y ventajes comparativas. Lo que ocurre es que este concepto de oportunidad siempre ha sido un intruso potencial en el planeamiento clásico, en que todo lo no previsto es sospechoso de irracionalidad si no de irregularid”. 

O “urbanismo de oportunidades” está referenciado nas teorias de estratégias competitivas tendo como um dos principais expoentes Michael Porter, professor de administração de empresas da Harvard Business School e consultor de companhias privadas. Os obstáculos enfrentados pelas empresas em face à crescente competitividade do mercado mundial foi a motivação para Porter (1991) desenvolver conceitos e instrumentos analíticos de avaliação da posição competitiva. Este arcabouço estabelece norte para as ações das empresas, de modo a criar vantagens em termos de custo e diferenciação de produto. Um dos instrumentos chaves é o de cadeia de valores, por permitir identificar e separar atividades subjacentes executadas por uma empresa relativas às etapas de elaboração de projeto, de produção propriamente dita, de marketing e de distribuição do produto ou serviço e ao mesmo tempo examiná-las integradamente.

Porter não tratou apenas de vantagens competitivas de companhias privadas, mas também de cidades. Em seu artigo “The competitive advantage of the inner city” (1995), destaca a contínua e crescente deterioração das cidades americanas decorrentes da falta de empregos, do crescimento da pobreza, das drogas e do crime; assim como afirma que os programas de revitalização falharam, esgotando-se este modo de pensar a cidade. Outros programas devem ser pensados radicalmente diversos, a partir de uma estratégia econômica suportada no setor privado, na rentabilidade financeira e nas vantagens competitivas.

As idéias básicas contidas nos projetos urbanos contemporâneos referendados no “urbanismo de oportunidades” e nomeados por Venuti (1994) como “terceira geração urbanística”, por deixarem de ser um urbanismo de expansão urbana para um de transformação. Estas experiências concretizaram-se na América de Norte e na Europa, cujos resultados têm sido tratados criticamente por diversos autores no campo das humanidades, a exemplo de Hall (1995) e Harvey (1993 e 2004). A partir dos anos de 1990, os projetos urbanos da Vila Olímpica e do Fórum da Cultura, realizados em Barcelona, na Espanha, e do Parque Expo 98, em Lisboa, Portugal, parecem seguir a mesma diretriz.

Hall critica a exacerbação do aporte financeiro nos fazeres urbanísticos contemporâneos e a aplicação do conceito de “reutilização adaptável: recuperação e reciclagem de antigas estruturas físicas para novos usos” (HALL, 1995, p. 413). Mas acima de tudo destaca que o “declínio estrutural de todas as comunidades urbanas” traz de volta de modo potencializado “a ralé urbana”, inconformada e inamistosa por ter ficado de fora dos projetos urbanos.

As práticas contemporâneas em áreas centrais: outras polêmicas entre destruição e conservação     

A aplicação deste modelo de projetos urbanos torna-se mais polêmica quando estas idéias são aplicadas em áreas centrais históricas. Ao serem estas áreas institucionalizadas como patrimoniais ganham um sentido de coisa pública, por serem constituintes de uma sociedade. Portanto, a dimensão cultural deveria sobrepujar a econômica. Zancheti (2003) ao traçar um panorama da aplicação das idéias da conservação integrada entre 1970-1995 exemplifica projetos urbanísticos realizados em áreas históricas. As experiências efetivadas nos anos de 1960 e 1970, nomeadas de “reformistas”, têm como principais referências: Bolonha, Ferrara e Brescia, na Itália. Enquanto, as realizadas a partir dos anos de 1980 e ditas de “mercado” têm em Lowell, nos Estados Unidos, um exemplo. Embora Zancheti tenha se reportado a estes exemplos por serem considerados bem sucedidos fica claro que o modelo reformista está esgotado e que na atualidade predominam as experiências referenciadas no “urbanismo de oportunidades”. 

Deste modo há um redirecionamento ou uma suspensão de todo o campo doutrinário protecionista. Para Choay (2001, p. 211), os monumentos, conjuntos e sítios históricos passam de objeto de culto à indústria cultural: “Por sua vez, os monumentos e o patrimônio históricos adquirem dupla função – obras que propiciam saber e prazer, postas à disposição de todos; mas também produtos culturais, fabricados, empacotados e distribuídos para serem consumidos”.

As experiências levadas nos anos de 1970 apelidadas de “re” parecem terem se esgotado e banalizado. A experiência de Bolonha, adotada como modelo de prática protecionista, por efetivar uma proposta de recuperação do seu centro histórico para fins residenciais perde o impacto que teve inicialmente. Constata-se que as práticas aplicadas para os centros históricos das cidades enfatizam a função terciária, em especial de entretenimento e lazer. Para Calabi (2005) depois do início dos anos de 1980 as práticas protecionistas consistem em intenções, as normativas de tutela não estão sendo devidamente aplicadas e a realização de projetos urbanos se torna dependente de um contrato e de um fluxo financeiro.

Complementa este panorama de experiências de projetos urbanos contemporâneos em áreas centrais históricas, a do Bairro do Recife, em Pernambuco. Este bairro foi tombado a nível federal pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN, inicialmente SPHAN, como está antes referido), em 1998. No dossiê de tombamento está destacado como justificativa a rica diversidade de estilos arquitetônicos e padrões urbanos representativos das temporalidades de formação da cidade e, portanto, lugar de identidade dos pernambucanos. 

Na atualidade a configuração urbana do Bairro do Recife sobrepõe as experiências urbanísticas relativas aos quatro séculos de formação da cidade, referidas por muitos, como colonial, de traços holandeses e lusitanos e, por outros, de barroca e eclética. Nesta península convivem com o porto os fortes militares, os sobrados onde funcionam o comércio de importação e exportação, as modernas edificações sedes de bancos, as igrejas católicas e os serviços de consumo modernos em sobrados e edificações notáveis.

Os estudos urbanísticos não se ativeram aos de melhoramento efetivados nas primeiras décadas do século XX, referidos na segunda parte e que promoveram significativas destruições. A estes se seguiram outros planos e legislações que foram modificando a configuração urbanística do bairro[2].

Os projetos urbanos contemporâneos, iniciam-se com o Plano de Revitalização do Bairro do Recife e o projeto Cores da Cidade, ambos em 1993. Neste plano o enfoque econômico está privilegiado na relevância aos investimentos privados impulsionadores das atividades de turismo. Nos planos anteriores os focos temáticos foram: porto, ruas, avenidas, ferrovias, sítio histórico, bens patrimoniais, habitação e participação popular.

A mudança da imagem do bairro era tida como fundamental para o sucesso da revitalização. Para deixar de ser e de ter imagem de uma periferia central foi adotado como alternativa a atração de novos investimentos imobiliários por meio da densificação construtiva e na priorização de projetos considerados estruturadores como o centro de animação cultural, lazer e comércio do pólo do Bom Jesus, tendo como referências as experiências realizadas em New Orleans, Boston e Amsterdã.

Os projetos estruturadores em grande parte reportavam-se a lugares de propriedade pública, porém passíveis de investimentos privados, a exemplo do projeto do shopping cultural. Outro ponto diferenciador dos planos anteriores é à definição de uma estratégia de implantação baseada na articulação do setor governamental, investidores privados e proprietários dos imóveis do bairro; objetivada na criação de uma empresa de capital misto. Para que estas idéias fossem efetivadas destruições no interior dos imóveis foram realizadas, embora a conservação do ambiente público tenha sido mantido.

A mais recente versão dos projetos urbanos é o Projeto Recife – Olinda. Ele foi iniciado em agosto de 2003, mediante celebração de protocolo de cooperação técnica e financeira entre o Governo do Estado de Pernambuco e a empresa Parque Expo 98 S.A., para viabilizar e executar um projeto de “requalificação urbanística e ambiental” nas áreas compreendidas entre o Sítio Histórico de Olinda e a ex-Estação Rádio Pina (Boa Viagem/Recife), incluindo a área portuária do bairro do Recife. 

Este projeto consiste em uma operação urbana consorciada[3], abrangendo três zonas: de intervenção, de enquadramento e de abrangência. Destas três a de intervenção consiste no objeto central da operação, sendo dito que são áreas “predominantemente vazias, ociosas ou com usos passíveis de desativação”. O território compreendido por estes setores totaliza 2.803.662 m², sendo 71,45% pertencentes ao Recife e 28,59% a Olinda, deste total parcela substantiva é de propriedade de instituições do governo federal. 

As intervenções propostas transformam radicalmente a paisagem de relevância histórica e cultural, quanto ao padrão de ocupação e de uso, e transfere a propriedade pública dos terrenos. Tão importante quanto os estudos técnicos e as propostas urbanísticas são os estudos e as propostas do “Modelo econômico / financeiro e de configuração institucional e societária”. A Sociedade Implementadora, como um modelo de gestão privado, assume a forma de sociedade anônima e surge como elemento operativo, sendo a entidade responsável, por si ou através de terceiros, pela realização de todos os atos necessários à consecução das intervenções propostas.

Este modelo, difícil de ser criticado no campo do urbanismo e da geografia urbana, mostra que o projeto urbano é essencialmente um negócio imobiliário. Deste modo está introduzida uma inovação, ainda não suficientemente aquilatada na tradição do pensamento urbanístico. Se a partir do século XIX, a cidade era pensada como saber técnico, na contemporaneidade as práticas passam a estar circunscritas aos negócios privados, não podendo ser dissociadas de uma rentabilidade econômica, mudando o foco da reflexão sobre este fazer.  

As práticas urbanísticas levadas no bairro do Recife, seja no plano de revitalização, seja no projeto Recife-Olinda parecem estar inseridas na tensão conceitual entre o que é comum e aberto e o que é restrito e fechado. Principalmente sugerem que estas práticas aplicadas em áreas centrais históricas podem lesar o sentido de identidade constituinte de uma sociedade.

Entende-se que espaço comum e aberto é uma condição inerente a existência da cidade. Este entendimento está suportado na perspectiva de que não há cidade, mas cidades no tempo; isto é, que a cidade na história não consiste numa evolução de um acontecimento fundador, e sim em conceitos estabelecidos segundo diversas ordens. Ordens estas que ora conservam, ora demolem, ou apenas conservam demolindo.

Pretende-se colocar a necessidade de pensar outras possibilidades às práticas do urbanismo e da geografia urbana, como uma agenda de pesquisa, de modo a criar resistência ao “urbanismo de oportunidades”, quem sabe com um “urbanismo de temporalidades”. Urbanismo de temporalidades que garanta a manutenção do interesse público, a perspectiva do bem comum, onde se mesclam realidade e sonho, de uma civilização laica e livre; e, com a o acesso de todos aos espaços surgidos dos projetos urbanos.

Notas

[1] Acervo do Museu do Estado de Pernambuco. As primeiras páginas desse álbum, publicado em 1927, são fotos do Governador do Estado, Dr. Estácio Coimbra e do Prefeito do Município do Recife, Dr. Pessoa Guerra, indicando as praças, ruas, becos e travessas, que deveriam ser destruídos para a abertura das avenidas.

[2] Além do Plano de Melhoramentos do Porto do Recife, iniciado em meados do século XIX indo até 1910 outros quatro planos urbanísticos foram elaborados para o Bairro do Recife anteriores ao projeto urbano contemporâneo. Estes planos estão tratados em Lubambo (1991), Leite (2004) e Pontual e Lira (2006). 

[3] Operação urbana está definida no Estatuto da Cidade, Lei nº. 10.257/2001. Considerando esta Lei, pode-se dizer que operação urbana é uma intervenção imobiliária, que pode se reger por normas urbanísticas próprias, ou seja, desobedecer ou “requerer revisão” dos demais regulamentos existentes, daí ser obrigatório a sua aprovação pelo legislativo municipal.

 

Bibliografia

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© Copyright Virgínia Pontual y Rosane Piccolo, 2008
© Copyright Scripta Nova, 2008

 

Referencia bibliográfica:

PONTUAL, Virgínia y PICCOLO, Rosane. A Demolição e a conservação das áreas centrais: planos, leis e transformações morfológicas no Recife, Brasil. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.  Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2008, vol. XII, núm. 270 (138). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-270/sn-270-138.htm> [ISSN: 1138-9788]


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