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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XII, núm. 270 (97), 1 de agosto de 2008
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]


CONFLITOS NO ESPAÇO URBANO: LABIRINTO E DIALÉTICA

Alvaro Ferreira
Professor do Departamento de Geografia da Pontifícia Universidade Católica – PUC-Rio e
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ.
alvaro_ferreira@puc-rio.br


Conflitos no espaço urbano: Labirinto e dialética (Resumo)

Vivemos uma naturalização de fatos que nada têm de comum. Acreditamos que os recentes conflitos nas cidades são sinais claros da tensão que paira sobre o espaço urbano.

Apesar disso é comum ouvir comentários ou ler que não há mais movimentos sociais, ou que não passam de meros ativismos sem maiores pretensões. Não compactuamos com tais afirmações, pois acreditamos que os espaços de representação são construídos no cotidiano e que por mais que os movimentos pareçam estar perdidos em um grande labirinto (que é construído, muitas vezes, a partir das representações de uma ordem distante do lugar), é justamente na busca das tensões entre os diversos agentes que produzem o espaço urbano que encontraremos o melhor caminho não só para a análise dos conflitos sociais, mas também para a transformação do estado de coisas atual.

Palavras-chave: espacialidades, produção das relações sociais, desenvolvimento(s).


Conflicts in urban space: labyrinth and dialectics (Abstract)

A lot of people think that all facts are common. We believe that recent conflicts in cities are clear signs of tension that hangs over the urban space.

It is common to hear or read comments that there are no social movements, or who are nothing more than mere activisms without higher aspirations. We don't believe these assertions; we believe that the space of representation is constructed in the daily. The movements seem to be lost in a labyrinth, but it is precisely in search of the tensions between the various agents that produce the urban space that we will find the best way not only for the analysis of social conflicts, but also to the transformation of the world.

Key-words: spatialities, production of social relations, development(s).


Tem se tornado hábito buscar a naturalização de fatos que nada têm de comum. Assim, debates que buscam a tensão, as contradições, têm sido considerados ultrapassados, porém cada vez mais percebemos o crescimento do número de moradores de rua e de trabalhadores informais nas grandes metrópoles neste início do século XXI.

Acreditamos que os recentes conflitos nas cidades – a partir dos movimentos de trabalhadores sem-teto ocupando prédios abandonados ou, por outro lado, da ação dos promotores imobiliários, que tem investido em áreas da cidade que estavam por eles esquecidas, gerando mudanças na forma de uso e de apropriação do espaço pelos antigos moradores do lugar – são sinais claros da tensão que paira sobre o espaço urbano. Acreditarmos que havendo relações há também discursos, interditos, falsidades, dependências, poderes ocultos.

As relações sociais são sempre espaciais e existem a partir da construção de certas espacialidades. Aqui, trataremos de considerar, para este trabalho, a espacialidade efetivamente vivida e socialmente criada, ou seja, a construção da espacialidade como um produto de processos sociais e rebatimentos materiais; ao mesmo tempo concreta e abstrata. Assim, estaremos percebendo a espacialidade como parte do espaço socialmente construído. Nesse sentido, não é possível ignorarmos as diversas lutas simbólicas travadas no espaço urbano, em que está em questão a própria representação de mundo. Assim, temos convivido com discursos via mídia, seja por parte do governo ou por parte do empresariado, que falam da importância de “revitalizar certas áreas da cidade”. A palavra revitalização, segundo o dicionário Houaiss, significa “ação, processo ou efeito de revitalizar, de dar nova vida a algo”; ora essa expressão carrega consigo a idéia de que naquela área, a vida que ali havia não era importante, quando na verdade, talvez, aquela que lá existisse não interessasse ao Estado e aos empresários e promotores imobiliários.

Nesse sentido, esse discurso não se constitui um fato isolado que vem ocorrendo na área central da cidade do Rio de Janeiro; ao contrário, não faltariam exemplos em várias partes do planeta. Autores como Smith (1996), Atkinson (2007), Lees, Slater, Wyly (2007) utilizam-se do conceito de gentrification – optamos por não entrar na discussão acerca do uso desse conceito para o caso do Brasil, devido à brevidade deste artigo – ao tratar das políticas de transformação urbana de diversas áreas das cidades; em nosso caso, das áreas centrais principalmente. Trata-se de investimentos de grande soma de capital dirigida ao setor imobiliário, o que acaba contribuindo para a expulsão de moradores dessas áreas. Goulart (2005), ao realizar um estudo acerca desse processo no Rio de Janeiro, encontra a freqüente intervenção  estatal vinculada com as atividades culturais, “através dos negociantes de arte, designers, proprietários de galerias de arte, etc.”; nesse sentido, “o setor artístico esteve na vanguarda de numerosos processos de gentrificação em países ricos, tornando-se capaz, nas palavras de Neil Smith (1996, 18), de transformar dilapidação urbana em algo ultra chic.”     

Esse movimento, na área central do Rio de Janeiro, adquiriu uma velocidade bastante contundente e tem envolvido a própria mídia na divulgação positiva desse processo. São inúmeras matérias em jornais, revistas em nos telejornais. Dois dos  principais jornais do país – O Globo e Jornal do Brasil – publicam freqüentemente reportagens sobre a “grande transformação da Lapa”. Um desses exemplos intitulava-se: “O bairro está mudando novamente: é a sofisticação chegando na Lapa” (O Globo, 2002); referiu-se a como os bares noturnos regados a chope ao ar livre começa a descer a avenida Mem de Sá e a rua do Riachuelo, onde se concentram as novidades. Outras reportagens falavam da inauguração de uma casa de shows sofisticada em 2003, do crescimento de bares com música ao vivo e das restaurações de antigos casarões (pelos próprios locatários). A Rua do Lavradio, que passou quatro anos em obras de reurbanização (parte do projeto da prefeitura da cidade denominado Novo Rio Antigo), conta com um grande bar de música ao vivo em um antigo antiquário.

Segundo o seu presidente, o Pólo Novo Rio Antigo, criado em 2005, “é formado pelos principais estabelecimentos do centro histórico do Rio de Janeiro com o propósito de garantir o desenvolvimento [sic] para as regiões da Cinelândia, Lapa, Rua do Lavradio, Praça Tiradentes e Largo de São Francisco”. O Pólo conta com o apoio da Prefeitura do Rio de Janeiro, através da participação da Sub-Prefeitura do Centro Antigo e tem parceria atuante do SEBRAE-RJ, do SindRio, da FECOMÉRCIO e do SENAC-Rio.

Esse é o discurso que é constantemente veiculado, contudo não se tem dito que aquela área tem (tinha) um caráter bastante residencial, mais especificamente, residencial para população de baixa renda. Fato é que essa população tem sido cada vez mais afastada do seu lugar de moradia.

É preciso, também, contestarmos a maneira pouco cuidadosa pela qual ainda é utlizada a palavra desenvolvimento; que força tem essa expressão! Praticamente tudo é permitido se for em prol do desenvolvimento. Esse discurso do desenvolvimento tem sido crucial para o desenho da própria identidade do país, pois ao longo do tempo foi amplamente difundida a idéia de que é preciso se desenvolver; é preciso ser moderno. Com isso, muitos países viveram e vivem uma modernização ilusória com padrões de consumo imitativos, sem vínculo com as reais necessidades da sociedade. A população desses países tem experimentado a modernidade como uma ameaça a toda a sua história, tradições e objetivos.

O desenvolvimento é concebido como item da modernidade vista assim como modernização. Segundo Rua (2007, p.149), “pode-se dizer que a modernização, como base concreta da modernidade, teve como conceito-gêmeo o progresso, e a ambos foi, após a Segunda Guerra Mundial, acrescentando o conceito-síntese de desenvolvimento, que passou a expressar aquela base concreta”. Progresso e modernidade são conceitos que acompanham o desenvolvimento fazendo-se forte ideologicamente. Ele é um paradigma do projeto civilizatório ocidental a ser seguido por todas as sociedades (Rua, 2007).

Acredita Rua (2007, p. 165) que na Geografia, alguns dos principais autores que se ocuparam em transformar essa visão em um instrumental teórico para a análise espacial foram Neil Smith e David Harvey. Contudo teria sido Harvey aquele que

mais proficuamente se tenha debruçado sobre essa temática e que mais solidamente elaborou os conceitos de desenvolvimento geográfico pouco uniforme e desenvolvimentos geográficos desiguais (1996, p. 403; 2000, p. 237; 2006, p. 87). Com permanente preocupação em retomar a teoria marxista e trazê-la para a Geografia ao analisar as implicações espaciais da organização capitalista desigual do espaço, procura fugir do economicismo e abranger outras dimensões, principalmente a política (ligada à ação política), destaca a fragmentação espacial (mais do que os antecessores) e pode ter sua ênfase, para a temática em tela, resumida no seguinte: o estudo da geografia da acumulação capitalista e a reconstrução da teoria marxista”.

Tem-se, ainda hoje, utilizado desenvolvimento como sinônimo de crescimento econômico. Esse crescimento, definitivamente, não impede o aniquilamento da sociedade, pois não se trata apenas de desigualdades de desenvolvimento, mas da total destruição das relações sociais. Na verdade, quando há luta, ela se resume a ter condições menos ruins, nunca se refere a luta pela dissolução do modelo de exploração. Ou seja, não há busca pela mudança radical. A racionalidade econômica tende a estender-se a toda a sociedade, assim o lugar da reprodução das relações de produção é também o cotidiano do trabalho e do lazer, que encontra-se extremamente ligado ao consumo; ou seja, os tempos livres são cada vez mais comercializados.

Não estamos mais nos referindo à reprodução dos meios de produção, mas da reprodução das relações de produção. Em outras palavras, o que se fez durante muito tempo foi a análise crítica da produção e da reprodução dos meios de produção; quer dizer, das forças produtivas – ou seja, os trabalhadores e os seus instrumentos de trabalho. O que significa que os trabalhadores têm de reproduzir-se; de forma mais clara significa dizer que precisam ter filhos, alimentá-los, educá-los e torná-los capazes de trabalhar. Além disso, no que tange às máquinas e instalações, há o desgaste, transmitindo o seu valor, calculado em dinheiro, aos produtos1.

Contudo, segundo Lefebvre (1973, p. 49), ainda mais importante do que isso, as técnicas e a maquinaria transmitem-se à organização e à divisão do trabalho; e desde então já estamos tratando da base da reprodução das relações sociais. O próprio Lefebvre radicaliza seu discurso ao afirmar que a escola é o local de reprodução das relações sociais de produção, pois “a escola prepara proletários e a universidade prepara dirigentes, tecnocratas e gestores da produção capitalista”. Ambas propagam o conhecimento e formam as gerações jovens segundo padrões que convêm  ao empresariado e à manutenção da propriedade privada. Estamos querendo dizer que não mais o discurso econômico, mas o próprio cotidiano tornou-se a base sobre a qual o capitalismo se estabelece.

A consciência vai perdendo sua função ativa à medida que o processo de reificação penetra nos setores não-econômicos do pensamento e da própria afetividade, isto porque esse conjunto econômico tende a se apossar de todas as manifestações da vida humana. Goldmann(1977, p. 141) lembra-nos que, em muitos textos, “Marx insiste no fato de que (...) o que caracteriza o valor de troca é que ele transforma a relação entre o trabalho necessário à produção de um bem e este mesmo bem em qualidade objetiva do objeto; é o próprio processo de reificação”. Assim, estamos falando de um processo social que faz com que o valor chegue à consciência da sociedade como uma qualidade objetiva da mercadoria.

Importa percebermos que um dos pontos fundamentais da sociedade capitalista é mascarar as relações sociais entre os homens, transformando-os em seres passivos, “em espectadores de um drama que se renova continuamente e no qual os únicos elementos realmente ativos são as coisas inertes. (...) Substitui valor de uso por valor de troca e as relações humanas concretas [e específicas] por relações abstratas e universais entre vendedores e compradores” (Goldmann, 1977, p. 145). E mais, separa o produto do produtor, fortalecendo a autonomia da coisa com relação à ação dos homens e, o pior, contribuindo para a imobilização, para a naturalização e banalização das desiguladades; não há alternativa é a expressão mais ouvida.

Continuamos acreditando que pensar as cidades e o urbano a partir do debate marxista, obviamente não de forma dogmática, e de sua associação com o reconhecimento dos interesses de classe ainda contribui bastante para desvelar a realidade. Retomando o debate anterior, em que apresentávamos um “projeto de revitalização” de certas áreas da cidade do Rio de Janeiro, mostrávamos certa associação do Estado e empresariado. Essa associação não é nova e nem se resume a realidade brasileira.

Talvez a grande ruptura de Marx com Hegel se dê na questão do Estado. Nós sabemos que para Hegel, o Estado consolida e complementa a sociedade (sem ele se desagregariam os elementos e os momentos da realidade social, ou seja, profissões, corporações, a família, enfim, as necessidades e as regulamentações). Para Marx, ao contrário, o Estado é apenas uma instituição que depende de suas condições históricas. O sistema hegeliano, nesse sentido, inibe a ação, por sua vez, Marx entrou no pensamento como homem de ação; elabora uma estratégia para que contestemos e neguemos as instituições existentes, porque não podia admitir um sistema que sacralizasse o Estado e o direito existentes. Nesse sentido, o espaço ganha grande força, pois se o Poder ocupa o espaço que gera o cotidiano, tais relações de poder podem servir como acomodação ou inquietação.

O espaço torna-se cada vez mais o meio de reprodução das relações sociais; sendo hierarquizado, objeto de investimentos públicos e privados, reserva de valor ou mesmo deixado ao acaso e abandonado. Talvez a grande batalha deva centrar-se na necessidade de romper com a ocultação e buscar desvelar essa dominação do espaço. 

Lefebvre (1973, p. 96) acrescentava, já na década de 1970, que “os espaços de lazer constituem objecto de especulações gigantescas, mal controladas e frequentemente auxiliadas pelo Estado (construtor de estradas e comunicações, aval directo ou indirecto das operações financeiras, etc.)”. O espaço é vendido a alto preço aos citadinos e outros são “expulsos” de certas áreas da cidade; e isto vem se realizando nas imediações do bairro da Lapa no Rio de Janeiro.

O espaço torna-se o lugar da reprodução das relações sociais de produção e não apenas dos meios de produção, destarte percebemos o espaço como mercadoria. Porém, se o espaço é o lugar da reprodução, é também lugar da contestação, do encontro, da rebeldia, lugar da ação. E aqui estamos diante de grandes tensões, contradições; ou seja, se é no espaço da vida cotidiana que percebemos e vivemos o dia-a-dia, é nele também que os especialistas – cientes ou não do fato de que o espaço produzido é também produtor – concebem seus projetos e os põem em curso à revelia dos habitantes do lugar. Muitas vezes aqueles que deveriam ser os atores sociais da luta por mudanças acabam por perceber e viver a partir da total naturalização de tudo, da banalização da miséria, da desigualdade. Por outro lado, há  também aqueles atores sociais que, a partir da indignação, procuram formas de lutar contra o estado de coisas atual; as estratégias de suas práticas espaciais são fundamentais, posto que percebem que a produção do espaço é também instrumento de reprodução das relações sociais.       

Assim, outro fato é, também, que a área central – especialmente a zona periférica do centro – tem uma grande quantidade de imóveis desocupados e que têm sido foco de ações de ocupação por parte do Movimento de Trabalhadores Sem-Teto (MTST). O movimento nasceu em 1997, por iniciativa do Movimento dos Sem Terra (MST). Segundo Gilmar Mauro, membro da direção nacional do MST, sua criação partiu da constatação de que 85% da população brasileira, na época, residia em zona urbana e constituiu uma tentativa de articular as lutas pela terra e as lutas das populações urbanas. A primeira operação de envergadura do MTST aconteceu em Campinas, uma cidade próxima de São Paulo, quando cinco mil famílias ocuparam um terreno abandonado que foi batizado por eles de Eldorado dos Carajás. Dez anos mais tarde, o parque Oziel tornou-se um bairro completo, dotado de infra-estrutura adequada, com habitantes animados por um sentimento comunitário forte (Le Monde Diplomatique, 2007).

Nos anos que seguiram sua criação, o MTST estendeu suas atividades à periferia de São Paulo, aos estados do Nordeste e ao Rio de Janeiro. Entretanto, conforme reconhece Rosildo Santos, militante do MTST, em entrevista ao jornal francês, “nós não tínhamos nenhuma experiência com o meio urbano, nós nos contentamos em reproduzir a estratégia empregada nas lutas pela terra”. Mas as favelas são um meio complexo, cuja identidade é mais difícil de apreender do que a da comunidade camponesa. O MTST enfrenta a hostilidade das organizações criminosas, das seitas evangélicas e dos políticos locais, que temem perder o controle sobre a “clientela” tradicional. Ainda assim, uma vez definido o lugar de ocupação, o MTST ativa seus canais dentro das favelas, toma contato com famílias já mobilizadas e estabelece uma primeira lista de candidatos à ocupação.

Em entrevista ao Jornal Le Monde Diplomatique (2007) Helena Silvestre, membro da direção do MTST, afirma que “um acampamento de Sem-Teto é uma escola de democracia participativa onde se formam os futuros líderes comunitários. A partir de uma preocupação concreta – a moradia –, nós queremos contribuir para lançar as bases de um verdadeiro poder popular”. Orgulhosamente ligados à sua independência em relação aos partidos políticos, o MTST proíbe dar indicações de voto.

Porém, existem outros movimentos de sem-teto, como a Frente Internacionalista dos Sem-Teto(FIST). Afirmam seus dirigentes que “a importância que damos ao trabalho com essas ocupações existe por acreditarmos que as ocupações urbanas questionam, em primeira instância, a propriedade privada, a especulação imobiliária e a lógica do lucro, ou seja, pilares centrais do capitalismo que, como tais, devem ser questionados e combatidos por meio da organização dos explorados”.

Da mesma forma, acreditam que não cabe simplesmente esperar as medidas de bem-estar que podem vir de algum político, partido ou do próprio Estado, mas sim, por meio da ação direta, fazer de cada dia de luta um dia de aprendizado para a solidariedade e o apoio mútuo. São discursos fortes que procuram fazer um trabalho de conscientização.

Podemos perceber cada vez mais o crescimento das ocupações e o movimento parece disposto a enfrentar a pressão feita pelos proprietários. Depois de se organizarem rapidamente, em menos de um dia, os sem-teto que tinham sido despejados de uma ocupaçao no centro do Rio de Janeiro fizeram seu protesto do "Grito dos excluídos”. Eles foram de ônibus para o Barra Shopping, localizado na Barra da Tijuca, onde houve marcha nas avenidas com faixas e palavras de ordem.

Há aproximadamente três anos a Companhia Docas ingressou na Justiça com pedido de reintegração de posse do prédio ocupado por um grupo de sem-teto, também no Centro do Rio de Janeiro. As cerca de cem famílias ocuparam a antiga sede da empresa na Avenida Francisco Bicalho, na zona portuária. O prédio, do governo federal, é usado para guardar arquivos da companhia e deveria ser reformado. Estes são alguns exemplos de movimentos ditos organizados.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) recenseou 254 mil apartamentos vazios só no município de São Paulo e mais de 540 mil no total da aglomeração metropolitana. Existiria, portanto, moradia suficiente vaga para resolver em grande parte o problema da falta de habitação e dos loteamentos irregulares.

Longe de ir nesse sentido, as políticas públicas de recuperação do centro da cidade favorecem, sobretudo, a especulação. O preço dos imóveis elevam-se rapidamente, enquanto os sucessivos governos atingem duramente as camadas mais desfavorecidas, sob ataques repetidos contra os direitos trabalhistas, provocando a degradação geral das condições de emprego.

Ainda segundo o IBGE, no começo dos anos 2000, cerca de 54 milhões de pessoas – 53,5% da população economicamente ativa do Brasil – trabalhavam no setor informal; e 70% dos trabalhadores urbanos eram considerados empregados precários. Excluídos do mercado imobiliário, as mudanças que realizam, com meios e custos baixos, se dão na direção da periferia das grandes cidades ou nas encostas, aumentando ainda mais a população favelada.

Essa realidade tem, simultaneamente, criado um estado de convulsão social e de acomodação; contradições. Neste momento, não há como não retornar ao eixo norteador do discurso do desenvolvimento, já que ele tem sido usado como justificativa para inúmeras ações por parte do Estado ou dos empreendedores que, segundo seu discurso, visam ao crescimento do país.

Acreditamos, junto com Rua (2007, p. 173), que “é preciso observar toda uma série de manifestações particulares onde há marcos históricos que definem os diferentes momentos de construção da identidade local [aqui preferimos pensar em identidade do lugar a identidade local], sempre integrada à lógica dos diversos desenvolvimentos”. Não sem razão, Vainer (2000, 1998) faz duras críticas a idéia de desenvolvimento local, até porque pensar o local como alternativa à outras escalas contribui para encobrir a natureza do desenvolvimento. Assim, acredita Vainer (2000) que o local constitui escala e arena de construção de estratégias transescalares e de sujeitos políticos aptos a operarem de forma articulada com coalizões e alianças em múltiplas escalas. Propõe uma abordagem das relações interescalares, capaz de combinar, ao invés de opor, as múltiplas escalas. Por isso, acredita Rua (2007, 174), que a idéia de “desenvolvimento local escamotearia a lógica do capitalismo e não constituiria outro modelo de desenvolvimento”.

Posto isso, Rua (2007, 179) acredita ser necessário o nosso retorno aos “autores críticos ao desenvolvimento e retornar à idéia de diferentes modelos de desenvolvimento – desenvolvimentos geográficos desiguais – e colocar como horizonte o desenvolvimento sócio-espacial que, por não poder ser apenas local (não pode haver indivíduos autônomos numa sociedade heterônoma), teria que ser de uma sociedade em escala mais ampla, traduzida em ações em âmbito local”. O autor resgata importante contribuição de Sen (2000), que trabalha com a noção de desenvolvimento ligado a ampliação das potencialidades humanas, que, por sua vez, dependem de fatores sócio-culturais, como  saúde, educação, direitos civis  individuais e coletivos e liberdade. Assim, conforme Rua (2007, p. 180), a base material para o desenvolvimento é decisiva, mas é um meio e não um fim. Pode haver crescimento econômico sem que, automaticamente, se esteja diante de um processo de desenvolvimento.

É preciso partirmos dessa percepção, pois temos observado a aceitação passiva, por boa parte da sociedade, do discurso e conteúdo da modernização: privatização dos serviços coletivos, transformação dos modos de vida, aceleração doa compressão espaço-tempo etc. Contudo, como nos lembra Ribeiro (2000, p. 240), essa é apenas “uma das possibilidades abertas pela nova frente modernizadora, correlata a tendências observadas nos países centrais”.  Importa valorizar a história única de da sociedade brasileira e, obviamente, isso não significa que nossa cultura não contenha traços – inclusive fortes – de outras culturas. Talvez seja por isso que Ribeiro (2000, p. 241) acredita que existam “atos a serem reconhecidos e valorizados e, ainda, vozes a serem ouvidas e inscritas na formulação dos futuros possíveis”.

A noção de uma única forma de desenvolvimento que nos é imposta – e o que é pior, aceita – faz com que olhemos para o espaço urbano como problema e não como questão, faz-nos percebê-lo como atrasado em relação a este ou aquele modelo e não como objeto de luta e de utopia. Isso é ruim, pois se há nesse olhar críticas sérias, há também, como nos mostra Ribeiro (2000), “projetos de nova modernização mimética e, assim, de rápida imposição de modelos e práticas que impedem a verdadeira modelização de futuros possíveis”.

As ações ocorrem sempre no presente e é a partir da vinculação entre o passado – com toda nossa historicidade – e o futuro – com o projeto utópico que almejamos – que poderemos construir as mudanças. Estamos, então, certos de que as espacialidades e temporalidades do cotidiano não se separam da dimensão do concreto e nesse sentido, como afirmamos anteriormente, devemos fugir do risco das reificações; senão estaremos caminhando na direção da naturalização das fraturas sociais, passando a ver como normais a segregação socioespacial e as enormes desigualdades na apropriação da cidade.

Se escapamos dessa naturalização, a percepção das fraturas sociais – que são também espaciais – podem contribuir para formação de movimentos de luta. Estamos falando da luta pela apropriação do espaço a partir da busca de racionalidades alternativas. Ribeiro (2005, p. 421) afirma que tais racionalidades ainda estão em processo de sistematização,

“porém ensaios dessa sistematização são identificáveis na repetição de formas de apropriação espacial por distintos atores políticos e movimentos sociais. Nessa repetição, é possível reconhecer sintomas de que se encontra em germinação uma outra cidade (Santos, 2000), bem diferente daquela imaginada pelos que anseiam pela materialização, no país, da face luxuosa, gestora e contemplativa da cidade global”.

É no cotidiano, na ordem próxima, que a ordem distante, com todo aquele discurso pronto do desenvolvimento – que difere da noção de desenvolvimentos desenvolvida por Rua (2007) – tenta persuadir e se realizar. Escapar dessa armadilha é preciso, então, se falamos de uma produção da cidade e das relações sociais na cidade, estamos falando de uma produção e reprodução de seres humanos por seres humanos, mas do que de uma produção de objetos. É essa certeza que leva Lefebvre (1991, p. 47) a afirmar que “a cidade tem uma história; ela é a obra de uma história, isto é, de pessoas e de grupos bem determinados que realizam essa obra nas condições históricas”.

Estamos falando de uma história de conflitos; a ordem distante tenta se projetar na ordem próxima, contudo esta tentativa não deve ser tranqüila. A ordem próxima precisa entender que é, nela mesma, sujeito da transformação, pois é em seu âmbito, no cotidiano, que se encontram o direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar (Lefebvre, 1999, 1994, 1991, 1981, 1979; Harvey, 2006, 2000, 1996, 1980). Apesar disso é comum ouvir comentários ou ler que não há mais movimentos sociais, ou que não passam de meros ativismos sem maiores pretensões2.

Não compactuamos com tais afirmações, pois acreditamos que os espaços de representação são construídos no cotidiano e que por mais que os movimentos pareçam estar perdidos em um grande labirinto (que é construído, muitas vezes, a partir das representações de uma ordem distante do lugar), é justamente na busca das tensões entre os diversos agentes e atores que produzem o espaço urbano que encontraremos o melhor caminho não só para a análise dos conflitos sociais, mas também para a transformação do estado de coisas atual.

Notas

1 Para maior aprofundamento, ver MARX, Karl. O Capital. Crítica da economia política. 15. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996, 3v.

2 Estamos desenvolvendo um artigo em que questionamos o discurso de que certos ativismos ou movimentos menores e até individuais são menos importantes ou que não configurariam movimentos sociais.

 

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Referencia bibliográfica

FERREIRA, Alvaro.Conflitos no espaço urbano: Labirinto e dialética. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales.  Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de agosto de 2008, vol. XII, núm. 270 (97). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-270/sn-270-97.htm> [ISSN: 1138-9788]


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