Menú principal

Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XIII, núm. 294, 1 de julio de 2009
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

A CENTRALIDADE DO COMÉRCIO NA CIDADE PEQUENA NORDESTINA: O CASO DA FEIRA LIVRE DE VARJOTA (CEARÁ/BRASIL)

Lenilton Francisco de Assis
Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA - Sobral/CE); Bolsista do CNPq - Brasil
 lenilton@yahoo.com

Francinelda Ferreira de Araújo
Geógrafa
leydigeo@bol.com.br

Recibido: 17 de abril de 2008. Devuelto para revisión: 9 de septiembre de 2008. Aceptado: 19 de febrero de 2009.


A centralidade do comércio na cidade pequena nordestina: o caso da feira livre de Varjota - Ceará/Brasil (Resumo)  

A reorganização produtiva imposta pela modernização tecnológica tem aumentado o peso econômico das atividades terciárias, especialmente nas médias e grandes cidades. Todavia, em muitas cidades pequenas do Nordeste brasileiro, o inchaço do terciário demonstra a incapacidade de outros setores absorverem os camponeses expulsos das tradicionais atividades agropecuárias. É o caso de Varjota, cidade pequena localizada no Noroeste do Estado do Ceará (Brasil), onde o comércio informal da feira livre e os serviços ocasionais são as principais alternativas para a população local que, com baixa qualificação profissional, migra diariamente (ou de forma definitiva) para os maiores centros regionais em busca de emprego e de um terciário mais diversificado. A localização (entre a serra e o sertão) e a pobreza da população são os fatores que ainda mantêm a vitalidade da feira livre de Varjota e reforçam sua função de sub-centro comercial da rede urbana regional.

Palavras-chave : cidade pequena, feira livre, comércio, área central, Varjota.

La centralidad del comercio en la ciudad pequeña nordestina: el caso de la feria de Varjota - Ceará/Brasil (Resumen)

La reorganización productiva impuesta por la modernización tecnológica ha venido aumentando el peso econômico de las actividades terciarias, especialmente en las medianas y grandes ciudades. Sin embargo, en muchas ciudades pequeñas del nordeste brasileño, el hinchazón del terciario demuestra la incapacidad de los otros sectores absorberen los campesinos expulsos de las tradicionales actividades agropecuarias. Es el caso de Varjota, ciudad pequeña ubicada en noroeste del Estado del Ceará (Brasil). En esta ciudad, el comercio informal de la feria y los servicios ocasionales son las alternativas para la populación local que, com baja formación profesional, migra diariamente (o de modo definitivo) para los majores centros regionales en busca de empleo y de un terciario más diverso. Pero la ubicación (entre sierra y sertão) y la pobreza de la populación son los más importantes factores que mantienen la vitalidad de la feria de Varjota y refuerzan su función de subcentro comercial de la red urbana regional.

Palavras claves: ciudad pequeña, feria, comercio, área central, Varjota.

The central area commerce in northeastern small city: the case of Varjota free trade - Ceará State/Brazil (Abstract)

Productive reorganization imposed by the technological modernization comes increasing the economic weight of tertiary activities, especially in the middle and great cities. However, in many northeast Brazilian small cities, the tertiary boom demonstrates the incapacity of other sectors to absorb the peasants expelled of the traditional farming activities. It’s the Varjota case, small city located in the northwest of Ceará State (Brazil) where the free trade and odd job services are the alternatives for the local population that, with low professional qualification, migrates daily (or definitive form) for the biggest regional centers to look for job and a diversified tertiary. However, location (between mountain and sertão) and poverty population are the main factors that keep the Varjota free trade vitality and sustainable its commercial sub-centre condition of the regional urban network.

Key words: small city, free market, commerce, central area, Varjota.

O setor terciário tem se tornado um importante vetor da economia, em virtude do desemprego gerado na agropecuária e na indústria, da expansão de novos hábitos culturais e de consumo que proliferam, principalmente nas médias e grandes cidades[1].

Porém, em muitas cidades pequenas do Nordeste brasileiro, o inchaço[2] do terciário demonstra, sobretudo a incapacidade dos demais setores em absorverem a massa de camponeses expulsa das atividades agropecuárias. O comércio informal da feira livre e os serviços de biscate[3] passam a ser as alternativas para essa população com baixa qualificação profissional que migra diariamente (ou de forma definitiva) para os maiores centros regionais em busca de emprego e de um terciário mais diversificado.

É o caso da cidade pequena de Varjota, situada no noroeste do Estado do Ceará (Brasil), onde buscamos analisar a dinâmica e a organização espacial do comércio da sua área central, destacando a feira livre que ocorre nos domingos, no interior e nas adjacências do mercado público.

Os procedimentos metodológicos adotados na pesquisa reuniram técnicas quantitativas e qualitativas, a saber: um levantamento bibliográfico e documental para fundamentar o trabalho e coletar dados sobre os municípios de Varjota e Sobral; e alguns trabalhos de campo, onde mapeamos as categorias do comércio da área central de Varjota, realizamos fotografias e entrevistas com 20 comerciantes, 7 moradores antigos, 10 trabalhadores do perímetro irrigado e 20 feirantes.

Desse modo, dividimos o artigo em três partes: na primeira, fazemos algumas reflexões teóricas sobre o setor terciário e a centralidade da feira livre na cidade pequena; na segunda, apresentamos a cidade de Varjota e a expansão do seu comércio; e, na última, analisamos as atividades comerciais da área central e a transformação do município em sub-centro comercial da rede urbana regional.

O setor terciário da cidade pequena e a centralidade da feira livre

No Brasil, a falta de consenso metodológico faz com que muitos estudiosos utilizem a expressão cidades pequenas como sinônimo de municípios pequenos, já que não esclarecem se o universo considerado corresponde à população total do município (urbana e rural), à população urbana (da cidade e das vilas) ou apenas à população da cidade (sede do município).

Há ainda divergências entre os órgãos oficiais de estatística (IBGE e IPEA) e entre os especialistas (Santos, 1998a; Wanderley, 2001; Veiga, 2002) quanto ao uso irrestrito de parâmetros demográficos (mínimos e máximos) para classificar as cidades. Os critérios e parâmetros brasileiros também não se assemelham aos adotados em outros países (Braga, 2004; Veiga, 2004).

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), por exemplo, considera cidades pequenas os centros com população total de até 50.000 habitantes; classificação esta que é compartilhada por Corrêa (1999). Já Wanderley diferencia no seu estudo duas categorias de pequenos municípios: aqueles com uma população total inferior a 20.000 habitantes e aqueles cuja população total é superior, mas apresentam uma população urbana que não ultrapassa este limite.

Essa aparente confusão em torno do conceito de cidade pequena, na verdade, faz parte de um debate ainda mais polêmico que há muito vem sendo travado no âmbito das ciências humanas e dos órgãos de planejamento e estatística: o que se considera no Brasil como cidade/campo e urbano/rural.

Sem adentrarmos nesse debate – já que foge ao escopo do presente trabalho – compartilhamos, porém, da idéia de que o tamanho populacional é um critério insuficiente para se entender o papel e a vida de relações de uma cidade. Outros parâmetros devem ser contemplados, tais como: as origens, o cotidiano, as atividades econômicas e, especialmente as funções regionais.

Desse modo, é que analisaremos adiante a evolução do comércio da área central da cidade pequena de Varjota-CE, considerando além do seu contingente demográfico (já que se enquadra na classe de município com população total inferior a 20.000 habitantes), as funções que exerce na rede urbana regional, através das interações com os maiores centros e, principalmente com os distritos e as zonas rurais do seu entorno. 

Defendemos com esse trabalho que o estudo das atividades terciárias é mais um caminho para se investigar a evolução do urbano nas cidades pequenas. Para tanto, partimos do pressuposto de que o tradicional inchaço que caracteriza o setor terciário desses pequenos centros, geralmente, não está associado a uma melhoria da qualidade de vida da população local através da oferta de comércio e de serviços diversificados.

Nas últimas décadas, o setor terciário tem se tornado a principal opção de refúgio para o crescente desemprego gerado na agropecuária e na indústria. A reestruturação produtiva imposta pela “modernização” tecnológica vem aprofundando as contradições sócio-espaciais, causando, por um lado, um aumento da produção e da concentração das riquezas e, por outro, uma redução dos empregos formais nos “tradicionais” setores primário e secundário.

Segundo os dados da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), em 2006, o setor de serviços já absorvia cerca de 60% do estoque global de investimento direto estrangeiro (de cerca de US$ 4,4 trilhões) em comparação aos 49% de 1990. Em contrapartida, o setor secundário diminuiu a sua participação de 42% para 34% no mesmo período (Lacerda, 2006).

Na agropecuária brasileira, a mecanização do campo e a substituição maciça dos insumos naturais por artificiais (Elias, 2002a) provocaram uma crise na agricultura tradicional, intensificando o êxodo rural e a expansão dos agronegócios, sobretudo dos complexos agroindustriais (como os de soja, cana, milho e laranja) voltados para exportação.

A indústria, que sempre foi um importante vetor do crescimento urbano e da criação de novos empregos, também tem diminuído suas contratações. A transição do modelo fordista para o modelo de produção flexível tem levado as unidades industriais brasileiras a introduzirem equipamentos cada vez mais sofisticados e novos métodos de gestão que visam conciliar o aumento da produção com a diminuição dos encargos sociais e trabalhistas.

Dessa forma, o setor terciário se transforma na principal alternativa para os trabalhadores ‘expulsos’ do campo e da indústria. Muitos tendem a sobreviver do comércio informal e dos serviços de biscate em virtude da baixa qualificação profissional que apresentam para serem reabsorvidos na economia formal. Esse problema crescente nos países subdesenvolvidos reforça as observações de Santos (1979) sobre a existência de “circuitos paralelos” da economia urbana que integram de forma complementar atividades com alto coeficiente de capital e de tecnologia (circuito superior) com atividades de pequena dimensão que se beneficiam desigualmente e parcialmente dessa modernização (circuito inferior).

Suplantando estereótipos de setor parasitário e improdutivo da economia, o terciário cresce, diversifica-se, tornando mais complexa sua definição. De acordo com Lipietz (1984 apud Pedroso, 2005, p. 11.471), o setor terciário corresponde à:

“[...] esfera da produção de bens imateriais (serviços em específicos) e da realização (distribuição, circulação e venda) de bens materiais dos outros setores. De modo geral, esse setor contém, na prática, duas grandes categorias que equivalem às duas faces da esfera citada. São elas a Prestação de Serviços em estabelecimentos administrativos, sociais, financeiras, etc., e o Comércio em geral, incluindo toda a circulação de mercadorias”.

Essa conceituação apoiada na tradicional divisão dos três setores elaborada por Colin Clark, em 1940, foi revista pelo próprio Lipietz (1998) e criticada por Oliveira (1987) que esclarece:

“O Terciário enquanto setor é o agrupamento econômico que objetiva à produção de serviços gerais (seja comércio ou prestação), através do emprego de trabalho material ou não; porém, enquanto atividade, ele é o trabalho especificamente imaterial que realiza um serviço (“latu sensu”) enquadrado numa determinada esfera de produção, seja ela qual for” (Oliveira, 1987, p. 53).

A distinção acima se faz necessária diante da imbricação das atividades terciárias nos demais setores produtivos, pois tanto as indústrias quanto os complexos agroindustriais são cada vez mais dependentes dos serviços administrativos de gestão, de pesquisa, de marketing, de segurança, entre outros.

Santos (1982, p. 58) também esclarece que:

“O terciário, hoje, permeia as outras instâncias (primário e secundário) cuja definição tradicional esmigalha e, sob formas particulares em cada caso, constitui o elemento explicativo da possibilidade de existência com êxito de inúmeras atividades, sobretudo daquelas mais importantes. Referimo-nos, em particular, às atividades terciárias que precedem a produção material propriamente dita e sem as quais ela não pode realizar-se eficazmente. Essa realidade desmantela os esquemas clássicos de análise, sejam eles «burgueses» ou «marxistas» (incluindo as noções de realização, reprodução, etc.) e impõem uma nova ótica”.

As atividades de comércio e de serviços sempre desempenharam papéis de destaque na organização e na dinâmica dos espaços urbanos (Castilho, 1998). Na atualidade, elas se multiplicam impulsionadas por novos hábitos de consumo e por práticas sócio-culturais ligadas ao lazer, à saúde, ao entretenimento, à beleza, à segurança etc.

Diante dessa amplitude do terciário, alguns autores propõem a criação de um outro setor, o ‘quaternário’, para abrigar os chamados ‘serviços de ponta’ derivados principalmente dos avanços da informática, da robótica e da biotecnologia. Mas, se a criação de um novo setor pode ajudar a diminuir a heterogeneidade do terciário, ela não resolve seu principal problema que é a tendência de aumento da “[...] terciarização de miséria em massa nos aglomerados urbanos que incham monstruosamente” (Kurz, 2003).

São nas médias e, principalmente, nas grandes cidades que esse terciário ‘marginal’ difunde sua “perversidade sistêmica” (Santos, 2000) através do aumento das atividades informais e ilícitas. Porém, nas cidades pequenas, o setor terciário também (re)produz suas contradições.

Nas cidades pequenas nordestinas, comumente, a vida de relações é comandada pelo campo, tendo a indústria uma participação incipiente na economia e mais ligada à produção artesanal e manufatureira. O comércio e os serviços, por conseguinte, atendem às necessidades básicas da população.

Todavia, a melhoria dos meios de transporte e comunicação também se estende a muitas dessas cidades, redefinindo a organização dos seus setores produtivos e as suas funções na rede urbana nacional. Assim, as cidades pequenas, hoje, relacionam-se diretamente com as metrópoles regionais e nacionais para adquirir os produtos e serviços dos quais necessitam.

Essas transformações em curso nas cidades pequenas têm atraído a atenção dos geógrafos, que sempre foram mais preocupados com a macrocefalia e os problemas das metrópoles. Esse interesse também se justifica pelo fato das cidades pequenas de 20.000 habitantes terem aumentado sua participação no total de municípios brasileiros de 54,64% para 73,07% entre 1950 e 2000 (Quadro 1).

 

Quadro 1.
Número de municípios por classes de população – Brasil (1950/2000)

Classes de população

Número de municípios (absoluto e percentual)

1950

%

1960

%

1970

%

1980

%

1991

%

2000

%

De 0 a 20 mil

1.032

54,64

1.776

64,21

2.875

72,75

2.737

68,57

3.094

68,89

4.024

73,07

De 20 a 50 mil

691

36,58

783

28,31

826

20,90

872

21,85

926

20,62

958

17,40

De 50 a 100 mil

128

6,78

143

5,17

157

3,97

240

6,01

284

6,32

301

5,47

De 100 a 500 mil

35

1,85

57

2,06

83

2,10

124

3,11

162

3,61

193

3,50

Mais de 500 mil

3

0,16

7

0,25

11

0,28

18

0,45

25

0,56

31

0,56

Total

1.889

100

2.766

100

3.952

100

3.991

100

4.491

100

5.507

100

Fonte: Banco de Dados Agregados - SIDRA, IBGE, 2007. Disponível em http://www.ibge.gov.br. Elaboração própria.

 

Hoje, representando quase três quartos do total de municípios brasileiros, as cidades pequenas são afetadas pela expansão do meio técnico-científico-informacional e da Globalização que reforçam as ‘fraturas’ do território nacional, reproduzindo o desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo através da criação de pequenos centros em áreas de modernização agrícola e também em áreas onde existe pouca ou quase nenhuma dinâmica econômica.

Há, ainda, diferenças sócio-espaciais significativas entre as cidades pequenas que integram ou recebem influências das áreas metropolitanas conurbadas e àquelas mais ‘distantes’ ou menos articuladas aos grandes centros econômicos do país.

Partindo dessa realidade, Santos (1998b) propôs distinguir as cidades pequenas das “cidades locais” ou “cidades econômicas”. Nessas “cidades econômicas”, localizadas em áreas de modernização agrícola, o consumo produtivo do campo termina por convertê-las em “cidades do campo” (Santos, 1998b) que servem de suporte e de laboratórios para o fornecimento de grande parte dos insumos artificiais, de tecnologia, de mão-de-obra e dos demais produtos e serviços necessários à produção[4].

“Antes, eram as cidades dos notáveis, hoje se transformam em cidades econômicas. A cidade dos notáveis, onde as personalidades marcantes eram o padre, o tabelião, a professora primária, o juiz, o promotor, o telegrafista, cede lugar à cidade econômica, onde são imprescindíveis o agrônomo (que antes vivia nas capitais), o veterinário, o bancário, o piloto agrícola, o especialista em adubos, o responsável pelos comércios especializados” (Santos, 1998b, p. 148).

Contudo, essas metamorfoses das cidades locais não se estendem por todo o território brasileiro, conforme demonstrado nos estudos sobre algumas cidades pequenas do Ceará (Assis; Araújo; Gomes, 2007) e da Paraíba (Maia, 2005). Ao analisar as relações entre as pequenas e médias cidades cearenses, Maria Júnior (2004, p. 85) também reforça esta assertiva ao identificar que:

“Algumas dessas pequenas cidades, principalmente as que fazem parte das microrregiões de Sobral e Crato, tem hoje seu comércio praticamente “estagnado”, e não mais possuem agências bancárias exceto a agência de um banco particular vinculada aos correios. Fato que condiciona o deslocamento, até da população mais velha em direção aos centros regionais ao final do mês para receber a aposentadoria”.

Assim sendo, o setor terciário dos pequenos centros (especialmente as atividades de comércio) tende a arrefecer diante da maior concorrência com as grandes cidades e a reduzir seu grau de influência sobre as vilas e povoados do entorno. Isto reforça a observação de Corrêa (1999, p. 49) de que “a ampliação da acessibilidade corrobora para a perda de centralidade”[5].

Santos (1982, p. 60) também já advertia que “na medida em que os transportes se modernizam, [as] relações inter-regionais são freqüentemente mais numerosas e menos custosas (de tempo e de dinheiro), se feitas por intermédio das grandes cidades. Isso lhes aumenta o mercado terciário e, mutatis mutandis, reduz as possibilidades de outras localidades”.

Portanto, nas cidades pequenas onde a modernização agrícola não adquire expressão econômica para transformá-las em cidades do campo, o setor terciário se apresenta inchado devido à grande concentração de trabalhadores formais e informais nos serviços públicos e administrativos das Prefeituras e, principalmente no ‘comércio primitivo’ local - no qual a feira livre se destaca pela sua centralidade e por abrigar muitos pequenos agricultores, artesãos e desempregados.

A feira livre é uma das mais antigas e tradicionais formas de comércio do mundo. Também denominada de “mercado periódico” (Corrêa, 2002), a feira ainda exerce uma importância econômica e uma centralidade espacial em muitas cidades pequenas, principalmente no Nordeste brasileiro.

Nessa região, a pouca diversidade do comércio de vários pequenos centros, faz da feira livre uma “grande praça de mercado regional” (Gonçalves; Dantas, 2005), haja vista sua capacidade de agregar em determinado local uma diversidade de produtos, de trabalhadores e de consumidores. Em alguns lugares, é difícil distinguir até que ponto a feira depende da cidade ou a cidade da feira (Issler, 1967).

A feira oferece condições e oportunidades aos pequenos produtores de eliminarem os atravessadores[6] e venderem seus produtos diretamente aos consumidores a preços mais baratos.

No sertão nordestino, muitos pequenos municípios têm feiras diárias ou semanais. Estas últimas, quase sempre, são maiores que as primeiras, pois reúnem produtos mais diversificados como gêneros alimentícios, confecções, utensílios domésticos, produtos ilegais, importados, etc. O dia de feira é comparado a um dia de festa já que atrai pessoas de toda a região para a área central da cidade, beneficiando não só os feirantes, mas também os comerciantes do mercado público, das bodegas, armarinhos e mercantis que têm suas vendas aumentadas.

Além de um ambiente de troca e venda de mercadorias, a feira também é um local de encontro e de articulação da vida social, política e econômica nessas localidades. Nela prevalecem as relações de pechincha[7] e de amizade entre comerciantes e consumidores, sendo, portanto, locus  da sociabilidade e da ‘pessoalidade’ que marcam o terciário das cidades pequenas.

As relações de confiança, do ‘saber com quem se está falando’, são aspectos singulares do comércio das cidades pequenas onde o anonimato é muito difícil. O crédito a base da caderneta de compra é dado pelo reconhecimento de quem é o consumidor, a que família ele pertence. Se o comerciante adota relações impessoais típicas dos grandes centros (como a venda à vista, através de cartões de crédito, cheques e crediários), logo a população considera uma desfeita pessoal e recorre a outro conhecido que confie na sua palavra.

Nos serviços de educação, saúde, segurança e, especialmente na prefeitura (através da conversa direta e do pedido particular ao prefeito), a ‘pessoalidade’ também se faz presente, pois o contato diário do cidadão com o ‘doutor’ ou autoridade é mais corriqueiro de que nas grandes cidades. Por conseqüência, também são nestes pequenos centros onde mais impera o voto de cabresto[8] como uma obrigação do cidadão em troca do favor pessoal recebido do político.

Todavia, essas características da feira livre e do terciário das cidades pequenas não são estáticas. Elas tendem a mudar e a conviver de forma desigual e combinada. O aumento do movimento - ocasionado pela melhoria dos meios de transporte - tem levado a maiores interações das cidades pequenas com os grandes centros, gerando também, em alguns casos, uma estagnação do comércio local ou um crescimento - conforme podemos observar no comércio da cidade pequena de Varjota que apresentaremos em seguida.

A formação do comércio de Varjota e as interações regionais

O município de Varjota está situado na Depressão Sertaneja, na porção Noroeste do Estado do Ceará, distando cerca de 252 km da capital Fortaleza e 73 km da cidade média de Sobral. Sua área abrange 179,26 km2 e as principais vias de acesso são a CE-183 e a BR-403. Esta última corta Varjota e é complementada pela CE-366 que liga o Sertão Central à Serra da Ibiapaba (Figura 1).

 

Figura 1. Localização do município de Varjota – Brasil.

 

As paisagens de Varjota são marcadas pelo clima tropical semi-árido, com características de chuvas escassas e irregulares. Na maior parte do ano, predomina a estação seca (inverno), ficando o verão (período chuvoso) restrito aos meses de fevereiro, março e abril. A temperatura média anual varia entre 26º e 28º C.

O principal recurso hídrico do município é o açude Araras ou Paulo Sarasate, na bacia do rio Acaraú que tem uma capacidade de 891.000.000 m3 e uma vazão de 35.000 m3/h. Essa potencialidade hídrica de Varjota foi fator preponderante para o surgimento e a dinâmica da cidade, assim como do seu comércio.

Varjota foi formada a partir de uma antiga fazenda que ficava às margens da pequena várzea do Mucambo, riacho afluente do rio Acaraú. Nos arredores dessa fazenda foram se fixando os primeiros moradores que deram origem ao então povoado de Varjota, o qual ficou integrado, até 1911, à microrregião do Ipú, sendo incorporado, em 1936, ao município de Reriutaba e elevado à categoria de distrito em 1946.

Na década de 1950, o então distrito de Varjota foi incorporado às ações do Governo Federal de combate à seca no sertão nordestino. As oligarquias locais logo apoiaram as frentes de emergência comandadas pelo Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) para a construção de um açude na vazante do rio Acaraú que passou a intervir na estrutura social, territorial e política do distrito de Varjota e de toda a região.

Em 1952, iniciam-se as obras para a construção do açude Paulo Sarasate que durariam até 1958 e levariam à submersão o antigo povoado. Essa ‘desterritorialização’ do antigo povoado foi seguida por um adensamento populacional no novo território com a chegada de famílias de imigrantes flagelados da seca e de muitos trabalhadores contratados pelo DNOCS. Esse afluxo demográfico também contribuiu para o aumento do comércio.

O distrito de Varjota, então, prospera, especialmente em virtude da renda trazida pelos funcionários do Estado que dinamizavam a economia local e provocavam o desenvolvimento do comércio e de alguns serviços.

Nesse período, o comércio de Varjota era formado por algumas bodegas e pela feira livre, onde a população se abastecia de gêneros alimentícios (animais vivos, feijão, arroz, milho, rapadura, farinha, etc.). O distrito ainda era bastante dependente da sede de Reriutaba que concentrava uma maior oferta de mercadorias e de serviços.

Porém, o afluxo populacional e a venda de peixe fresco e salgado na feira livre também contribuíram para o aparecimento de novas unidades comerciais como as mercearias, as padarias e o mercado público. O peixe passou a ser um produto característico da feira de Varjota que, começava na sexta-feira e findava no domingo, atraindo consumidores de toda a região. Pequenos agricultores e criadores também vendiam seus produtos na feira livre, a qual passou a crescer e a diversificar a oferta de produtos com artesanatos, vestuários, etc.

A feira que antes se restringia ao interior do mercado público cresceu e se expandiu pelas ruas da área central do distrito, constituindo-se na principal forma de comércio de Varjota que já demarcava a sua centralidade em relação às outras localidades circunvizinhas.

Com o aumento do comércio e o dinamismo de Varjota, as relações desse distrito com a sede do município foram se reduzindo no final da década de 1970, fazendo com que ele já apresentasse um crescimento superior à sede Reriutaba. Isso logo contribuiu para que as lideranças do distrito reivindicassem sua elevação à condição de município, o que só ocorreu em 1985.

A emancipação política propiciou, de imediato, a melhoria da infra-estrutura de Varjota e o aumento da sua população que saltou de 11.964 para 16.593 habitantes entre 1980 e 2000. Muitas pessoas deixaram o campo em direção à sede do município, ocasionando, em 1991, uma queda da população rural e uma elevação da população urbana que, em 2000, já registrava uma taxa de 81,23% (Quadro 2).

 

Quadro 2.
Evolução da população de Varjota – 1980/2000

POPULAÇÃO

1980*

%

1991

%

2000

%

TOTAL

11.964

100,00

13.465

100,00

16.593

100,00

URBANA

4.704

39,31

9.963

74,07

13.479

81,23

RURAL

7.271

60,69

3.492

25,93

3.114

18,77

*Varjota ainda era distrito de Reriutaba.
Fonte: IBGE – Censos Demográficos 1980, 1991 e 2000. Elaboração própria.

.

A ‘urbanização’ de Varjota também foi acompanhada pelo surgimento de novas formas de comércio, como as farmácias, lojas de tecidos, de miudezas em geral, entre outras.

Em 1998, os governos federal e estadual fizeram outra intervenção importante (além do Açude Araras) no recém-criado município de Varjota - o Projeto de Irrigação Araras Norte. Nesse novo empreendimento, previa-se gerar 1.835 empregos permanentes diretos e 3.670 empregos indiretos, segundo a Revista Municípios do Ceará (2000).

Conforme Diniz (1999), o Ceará possui catorze perímetros irrigados, dos quais onze têm como base a produção familiar e três priorizam a produção empresarial.  O Perímetro Irrigado Araras-Norte incorpora as duas categorias, uma vez que 46,30% da área produzida é destinada a 89 famílias de pequenos agricultores (também denominados colonos), que ocupam uma faixa de 7 ha por lote; e 45,01% é de empresários, especificamente de duas empresas que possuem, cada uma, 302,90 ha para produzirem frutas exclusivas para exportação (banana, coco, manga, goiaba, laranja, caju, graviola, ata, uva e laranja). O restante da área do perímetro (8,96%) foi reservado para os técnicos agrícolas (10,5 ha de lote) e engenheiros agrônomos (9,33 ha de lote).

Frear o êxodo rural em direção aos grandes centros regionais e nacionais foi uma das principais justificativas para a criação do perímetro irrigado de Varjota, embora, essa política também se coadunou com os interesses da elite local de ativar a economia do município e de impedir uma reforma agrária geral e profunda que diminuísse a concentração de terras e desse melhores condições para os pequenos agricultores.  

Segundo dados da Secretaria de Administração da Prefeitura de Varjota, em 2005, o perímetro gerava, apenas, cerca de 700 trabalhos braçais temporários nas propriedades particulares e beneficiava 74 famílias de colonos.

Nos trabalhos de campo realizados em maio de 2006, identificamos que o Perímetro Irrigado Araras-Norte vem produzindo goiaba, graviola, manga, mamão, batata-doce, coco, uva e banana para exportação e para o abastecimento de algumas cidades da região Norte (Guaraciaba, São Benedito, Tianguá e Sobral), da capital Fortaleza, assim como para outros Estados (Piauí e Pernambuco).

Parte das frutas do perímetro não-aprovadas para exportação é vendida na feira livre de Varjota e a maior circulação de capital advindo da agricultura fez com que outras formas de comércio e a prestação de serviços também crescessem no município.

Contudo, consideramos que a instalação desse perímetro ainda não configura um processo de modernização agrícola capaz de transformar este pequeno município em uma “cidade local” de Santos (1998b). O baixo poder aquisitivo dos pequenos agricultores faz com que não adquiram máquinas e suprimentos químicos e biológicos modernos. Quando esses podem ser adquiridos, os irrigantes, geralmente, se dirigem à Fortaleza e Petrolina (PE) que têm um comércio mais diversificado e especializado.

Portanto, apesar das novas técnicas e das formas de produzir no perímetro irrigado, sua influência no comércio, na geração de trabalho e na organização do espaço urbano de Varjota ainda é incipiente para transformá-la em uma “cidade do campo” – conforme a visão de Santos (1998b) já explicitada. O número de famílias de colonos é pequeno e o comércio ainda não possui uma grande variedade de produtos agropecuários, tampouco uma especialização definida. A presença de técnicos ou de pesquisadores no município também é restrita às visitas de acompanhamento do DNOCS.

Conforme o Censo de 1991, a agropecuária era responsável pelo emprego de quase metade da mão-de-obra de Varjota (Quadro 3). Entretanto, ao analisarmos o PIB de Varjota por setores produtivos, em 2000, podemos notar que essa atividade ainda tem uma pequena participação (12,35%) na geração das riquezas do município. O grande destaque é das atividades de comércio e serviço (83,72%), enquanto a indústria ainda é menos representativa (3,93%).

 

Quadro 3.
Pessoas de 10 ou mais anos ocupadas por setor de atividade - Varjota - 1991

ATIVIDADES

Nº. Absolutos

%

Agropecuária

1.825

42,94

Indústria de Transformação

297

6,98

Indústria de Construção Civil

285

6,7

Outras Atividades Industriais

54

1,27

Comércio de Mercadorias

467

10,99

Transporte e Comunicação

55

1,29

Serviços Auxiliares das Atividades Econômicas

11

0,25

Prestação de Serviços

524

12,32

Social

457

10,77

Administração Pública

141

3,32

Outras atividades

135

3,17

Total

4.251

100

Fonte: IBGE - Censo Demográfico 1991, Mão-de-obra. Elaboração própria.

 

As atividades de comércio e serviço também se destacam no Censo de 1991 (Quadro 3) e se considerarmos o número de trabalhadores informais nelas ocupados (como os feirantes, por exemplo), podemos entender, a princípio, porque o setor terciário é o carro-chefe da economia de Varjota.

Entretanto, essa terciarização da economia de Varjota não resulta, apenas, da urbanização do município, mas também do enfraquecimento e da fragilidade dos demais setores (agropecuária e indústria) que vêm transformando o comércio e os serviços na principal alternativa ao desemprego e à miséria.

Varjota ainda é bastante dependente de Sobral, pois esta cidade média apresenta um comércio mais diversificado e serviços mais especializados. Ao mesmo tempo em que o desenvolvimento dos transportes reforça a posição geográfica de Varjota como um eixo que articula fluxos dos municípios da Serra da Ibiapaba, do Vale do Acaraú e do Sertão Central, isto também possibilita maiores interações com Sobral, reforçando a centralidade e a especialização terciária desta capital regional.

Os deslocamentos que antes eram feitos, pela maioria da população local, à tração animal ou em carrocerias de caminhões (paus-de-arara), foram substituídos pelos ônibus e transportes coletivos privados de pequeno porte (topicks, D-20´s, motos, caminhões e carros particulares). No trajeto Varjota-Sobral, gastava-se em média um dia, até o aparecimento dos caminhões que reduziu o tempo desta viagem para três horas.

Hoje, esse percurso é feito em uma hora, em média, em transportes coletivos. Isto, conseqüentemente, possibilita maiores interações entre as cidades, reduzindo o tempo e o custo dos deslocamentos e aumentando o espaço de consumo que não mais se restringe à área central ou aos limites de Varjota. Este espaço de consumo passa a ser definido pelas opções de deslocamento e, obviamente, pelo poder de compra da população.

Além do comércio, grande parte das interações Varjota-Sobral se dá por conta dos serviços de educação, saúde, transporte e bancos. Especificamente, constatamos que dos 30 estabelecimentos de educação existentes em Varjota, 18 são para o pré-escolar, 20 para o ensino fundamental e 2 para ensino médio, não existindo universidades ou cursos técnico-profissionalizantes. Isso repercute, diretamente, no número crescente de jovens e adultos que diariamente se deslocam para Sobral em busca de complementar seus estudos nas Instituições de Ensino Superior e outras. No Censo 2000 (IBGE, 2007), foram registrados em Varjota 141 ‘migrantes pendulares’, ou seja, varjotenses que diariamente migram para estudar e trabalhar em outros municípios do Estado – principalmente em Sobral.

Situação semelhante também foi observada nos serviços de saúde, já que nas 7 unidades públicas de Varjota, em 2002, as especialidades médicas existentes eram apenas clínica geral, obstetrícia, pediatria e odontologia. Esse fato, conseqüentemente, repercute no número de pacientes encaminhados para a Santa Casa de Misericórdia de Sobral que, de acordo com o Relatório do Balanço Social desta instituição, só no ano de 2002, atendeu 14.591 pacientes oriundos de Varjota.

A insuficiência desses serviços de educação e saúde, a pouca opção de transportadoras e de bancos (restrita a uma agência do Bradesco[9] e a uma lotérica da Caixa Econômica), ‘obrigam’ a população a se deslocar diariamente para Sobral e Fortaleza para suprir suas necessidades.

Da feira livre a sub-centro comercial

As construções do açude Araras e do perímetro irrigado contribuíram para o crescimento demográfico e econômico de Varjota. O comércio foi, direta e indiretamente, influenciado por essas intervenções do Estado que resultaram no aumento da feira livre e dos pequenos estabelecimentos da área central da cidade, ou seja, do entorno do mercado público. Comerciantes e moradores relatam essas mudanças em Varjota como sinais de progresso diante dos outros municípios da região:

“Hoje, temos a fruticultura irrigada que vem se desenvolvendo. É a nossa segunda fonte de renda. Inclusive, até maior que a primeira, a pescaria. Varjota sendo centralmente localizada, tem desenvolvido muito bem a parte de comercialização de frutos e de peixe, fato que a tornou um pólo central” (Sr. Marcos Cezar, morador local).

“As mudanças são radicais. Há 10 anos atrás, o comércio de Varjota era basicamente o de subsistência. Hoje, a gente já vê que com a implantação do sistema de irrigação já existem outros tipos de vendas, o comércio daqui não centralizou apenas o comércio daqui, mas o de outros municípios (Sr. Nélio, comerciante)”.

Embora muitos lotes e equipamentos do perímetro estejam em situação de semi-abandono (sem infra-estrutura adequada) e a produção ainda não tenha um mercado específico que elimine os atravessadores, a venda de frutas para a região da Ibiapaba, Sobral, Fortaleza e Piauí, tem contribuído para o crescimento da feira livre e da centralidade de Varjota, configurando o município como um importante sub-centro comercial da rede urbana regional.

A feira de Varjota ocorre nos domingos com uma grande diversidade de produtos que a tornam o principal centro de ‘trocas’ da região, haja vista sua capacidade de ‘dilatar’ as fronteiras do município e atrair agricultores, comerciantes, pecuaristas, artesãos e consumidores da Serra da Ibiapaba e do Sertão Central Cearense.

A feira transforma a área central de Varjota em um “mercado geral de negócios” (ISSLER, 1967) que já ultrapassa os limites do mercado público e oferece aos consumidores produtos tradicionais (frutas, verduras, legumes, goma, cereais, rapadura, peixe, outros animais vivos, artesanatos, etc.) e manufaturados (roupas, acessórios, CD’s, DVD’s, importados, etc.) (Figuras 2, 3, 4).

 

   

Figura 2. Venda de peixe fresco na
feira.
Fonte: Arquivo dos autores, 2006.

  Figura 3. Variedade de utensílios
domésticos.
Fonte: Arquivo dos autores, 2006.
 

Figura 4. Frutas do perímetro à venda
na feira.
Fonte: Arquivo dos autores, 2006.

 

Em Varjota, assim como em outras cidades pequenas do Nordeste, a permanência da feira representa também uma resposta às condições sócio-econômicas da população que encontra nesse “mercado periódico” uma alternativa de sobrevivência - conforme justificado por alguns feirantes:

“A gente tem de procurar um meio de vida, um emprego, e a falta de um emprego a gente tem que caçar outro meio de vida” (Sr. Antônio Paulo - Feirante).

“Se eu tivesse outro trabalho eu não viria pra feira. Eu tenho de vir pra feira para apurar alguma coisa [...] a gente não tem como entrar para o mercado de trabalho aí, tem que vir pra feira, pra fraturar alguma coisa” (Sr. Albanir Rodrigues - Feirante e atravessador).

“Só a lavoura não dá. Aí a gente trabalha na lavoura e vem pra feira. É a precisão NE” (Antônio Ferreira da Costa - Feirante).

A feira livre tem uma relevante importância para a economia de Varjota já que é um vetor de produção, circulação e consumo de mercadorias, assim como de distribuição de renda.

“Se não tivesse a feira, o comércio não resistiria. O comércio se acabava. [...] O comércio era fraco. Que aqui vem gente de toda essa região. Num dia de domingo desse, tem gente de toda essa região, pra comprar, pra farriar, mas de qualquer maneira vem gente. Tem aqueles que não vêm comprar, mas vêm tomar uma cerveja gelada” (Sr. Albanir Rodrigues - Feirante e atravessador).

O centro de Varjota se transforma nos domingos de feira, com um intenso fluxo de pessoas e de transportes coletivos privados de pequeno porte vindos de várias localidades circunvizinhas. É dia de folga e de descanso para muitos trabalhadores e donas-de-casa que vão à feira para consumir e também para passear, encontrar amigos, divertir-se, fazer articulações políticas, sindicais, etc. Assim, a feira se torna um locus de novas “territorialidades e sociabilidades urbanas” (Morais; Araújo, 2006) que (re)produzem a identidade e a cultura regional.

O grande fluxo de consumidores para a feira também beneficia os pequenos comerciantes da área central de Varjota que, diferente dos feirantes (os quais só aceitam ‘dinheiro vivo’), já diversificam os produtos e as formas de pagamento (cheque, cartão, parcelado e à vista) para atrair a atenção da clientela para os mercantis, farmácias, butiques e mercearias (Figura 5).

No levantamento de campo que realizamos em 2006, identificamos 65 estabelecimentos comerciais na área central de Varjota que foi delimitada neste trabalho pelas seguintes ruas: Francisca Rodrigues de Farias, Clóvis Ximenes, Modesto Mendonça e a Travessa Pedro Baltazar (Figura 6).

Dos 65 estabelecimentos mapeados, 24,6% eram de gêneros alimentícios e bebidas, seguidos por tecidos e artigos para confecção (23,1%), artigos diversos (14%), produtos farmacêuticos e veterinários (13,8%), ferragens (12,3%), combustíveis e peças para veículos e máquinas (7,6%) e aparelhos elétricos e não elétricos (4,6%). Esses estabelecimentos da área central de Varjota representam cerca de 30% do comércio varejista de todo o município que, segundo o Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará (IPECE), em 2001, tinha um total de 221 unidades – enquanto Sobral, neste mesmo ano, registrou um total de 1.896 estabelecimentos (CEARÁ, 2007).

 

Figura 5. Pequeno comércio na área central de Varjota.
Fonte: Arquivo dos autores, 2006.

 

Figura 6. Mapeamento do comércio da área central de Varjota.

 

Destarte, verifica-se que ainda prevalece em Varjota um comércio de pequeno porte que atende às necessidades primárias da população que, diariamente, desloca-se para Sobral para consumir produtos mais diversificados, além de serviços especializados – conforme relata um morador entrevistado:

“O fato de Sobral atrair outros municípios tem mais chance de crescer. Diante disso, o comércio de Varjota não tem como concorrer com o comércio de Sobral, que além de mais diversificado, oferece melhores preços e condições de pagamento” (Pedro Cavalcante Perdigão – Morador Local).

“Antes só quem ia fazer compra em Sobral só eram os lojistas mesmo. Hoje, a população já se desloca para ir comprar em Sobral. As pessoas hoje chegam numa loja aí e dizem assim: eu vou para Sobral porque lá eu compro só por um real”. (D. Alda – Comerciante)

“[...] Varjota é como se fosse um bairro de Sobral que atrai estes outros para sua influência” (Sr. Francisco das Chagas - Comerciante).

Vale acrescentar que, se por um lado, a melhoria das estradas e dos transportes expõe o comércio de Varjota à concorrência com Sobral; por outro, não se pode negar que tem havido um aumento da centralidade da feira livre dessa pequena cidade e de todo o seu comércio – conforme atestam os depoimentos abaixo:

“Depois do asfalto melhorou bastante e passamos a comprar em Sobral. Antes a gente fazia um pedido a fornecedores que vendiam aqui e comprávamos muito mais caro” (Sr. José Morais – Comerciante local).

“De 1994 pra cá, depois que foi feita a estrada, Varjota melhorou basicamente 200% em termos comerciais, porque até Varjota não tinha basicamente estradas, não tendo como o pessoal de Santa Quitéria e Ipú virem a Varjota” (Nélio, Comerciante Local).

Conclusão

A partir das reflexões e dos trabalhos de campo realizados, identificamos que, além da tradição, a feira livre de Varjota desempenha uma relevante função econômica para o município, pois atrai agricultores, artesãos, pecuaristas, consumidores e desempregados de toda a região circunvizinha para a sua área central.

Diferentemente das médias e grandes cidades (onde as feiras livres são cada vez mais sucumbidas pelos supermercados e shopping centers), nos pequenos centros do Nordeste brasileiro, elas ainda funcionam como ‘grandes praças de mercado regional’.

No caso de Varjota, a antiga ‘feira do peixe’ foi crescendo, diversificando-se, como a própria cidade que foi beneficiada pelo aproveitamento das suas potencialidades hídricas, através da construção do açude Araras (1958) e do Perímetro Irrigado Araras-Norte (1998).

Entretanto, essas intervenções estatais não foram suficientes para gerar nesta cidade pequena muitos empregos e melhores condições de vida (sobretudo com a oferta de serviços públicos adequados) que pudessem frear os fluxos migratórios (pendulares, temporários e definitivos) em direção aos maiores centros urbanos do Estado (como Sobral e Fortaleza) e do país.

Ainda predomina em Varjota um setor terciário primitivo e inchado que é complementado por Sobral. A modernização vivenciada nesta cidade média deve ampliar as suas relações com o mundo e atrair novos investimentos que reforcem o seu papel de capital regional.

Para que este crescimento de Sobral possa se expandir às cidades pequenas da sua hinterlândia (como Varjota), faz-se necessário que o Poder Público, de fato, amplie o foco dos seus investimentos produtivos para fortalecer a economia dos pequenos centros, já que estes se configuram como espaços parcialmente excluídos do mercado e do grande capital. Isto contribuiria para atrair investimentos privados e para transformar estas pequenas cidades em núcleos secundários de comércio e de serviços mais independentes de Sobral.

Sendo assim, concluímos que, apesar da inevitável concorrência com Sobral, a localização (entre a serra e o sertão) e a pobreza da população são os principais fatores que mantêm a vitalidade da feira livre de Varjota e que reforçam sua função de sub-centro comercial da rede urbana regional.

 

Notas

[1] Pesquisa realizada no Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais (NEURB) do Curso de Geografia da Universidade Estadual Vale do Acaraú (UVA - Sobral/CE), com o apoio da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNCAP).

[2]  Metáfora aqui empregada para ressaltar o crescente aumento do setor terciário nas cidades pequenas nordestinas, onde a maior ocupação nas atividades de comércio e serviços não representa, necessariamente, uma melhoria da qualidade de vida da população local.

[3] Ocupação ou serviço eventual, de curta duração e não regular; também chamado, popularmente, de “bico” ou “quebra-galho”.

[4] A respeito destes processos, ver os estudos sobre as “cidades locais” do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba-MG (Oliveira; Soares, 2002), do Baixo Jaguaribe-CE (Elias, 2002a) e do Sul de Goiás (Soares; Melo, 2005).

[5] Vale ressaltar que essa “perda de centralidade” também pode, em algumas cidades, gerar “novas centralidades” – conforme identificaremos adiante no estudo do comércio da área central de Varjota.

[6] Negociantes ou intermediários que exercem suas atividades colocando-se entre o produtor e o comerciante varejista.

[7] Barganha para baixar os preços dos produtos.

[8] Expressão regional para designar o voto forçado, sob pressão, que contraria o livre arbítrio.

[9] A permanência desta agencia da maior rede de banco privado do país, contudo, reforça a centralidade do comércio da área central de Varjota e o crescimento econômico registrado nesta pequena cidade nas ultimas décadas.

 

Bibliografia

ASSIS, Lenilton Francisco de. As redes de comércio e de serviço entre a cidade média de Sobral e algumas cidades pequenas da Região Norte do Ceará. In ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA. Anais eletrônicos... [CR-Rom]. São Paulo: USP, 2005, p. 1.270-1.291.

ASSIS, Lenilton Francisco de; ARAÚJO, Francinelda Ferreira de; GOMES, Maria Ferreira. A terciarização da cidade média de Sobral e sua influências no comércio das cidades pequenas de Cariré e Varjota-CE. [Em línea]. Revista da Casa da Geografia de Sobral,  v. 8-9, 2006-2007, p. 123-140. <http://www.uvanet.br/rcg>. [12 Dez. 2007].

BRAGA, Roberto. A urbanidade das pequenas cidades. [Em línea]. Boletim Território & Cidadania. <http://ns.rc.unesp.br/igce/planejamento/territorioecidadania/Artigos/Braga%206.htm>. [20 Out. 2004].

DNOCS. Departamento Nacional de Obras Contra a Seca. Perímetro Irrigado Araras Norte. [Em línea]. <http://201.30.148.11/~apoema/php/projetos/projetos.php>. [11 Apr. 2006].

CASTILHO, Cláudio J. Moura de. As atividades dos serviços, sua história e o seu papel na organização do espaço urbano: uma “nova” perspectiva para a análise geográfica? Revista de Geografia [da] Universidade Federal de Pernambuco, v. 14, n. 1-2, jan.-dez. 1998, p. 29-89.

CEARÁ. Governo do Estado. Instituto de Pesquisa e Estratégia Econômica do Ceará - IPECE. In Anuário Estatístico 2002/2003. [Em línea]. <http://www.ipece.ce.gov.br>. [12 Nov. 2007].

CLEPS, Geisa Daise Gumiero. O comércio e a cidade: novas territorialidades urbanas. Sociedade & Natureza. n. 16 (30), jun. 2004, p. 117-132.

CORRÊA, Roberto Lobato. Globalização e reestruturação da rede urbana – uma nota sobre as pequenas cidades. Revista Território, UFRJ, n. 6, jan.-jun. 1999, p. 43-53.

CORRÊA, Roberto Lobato. O espaço urbano. 4 ed. São Paulo: Ática, 2002.

DINIZ, Aldiva Sales. A intervenção do Estado e as relações de poder na construção dos perímetros irrigados no Nordeste. Revista da Casa da Geografia de Sobral, UVA, v. 1, n. 1, jan.-dez. 1999, p. 81-90.

ELIAS, Denise. Integração competitiva do semi-árido cearense. In ELIAS, Denise; SAMPAIO, José Levi Furtado (Orgs.). Paradigmas da agricultura cearense: modernização excludente. Fortaleza: Demócrito Rocha, 2002a, p. 11-36.

ELIAS, Denise (Org.). O novo espaço da produção globalizada: o baixo Jaguaribe-CE. Fortaleza: FUNECE, 2002b.

GONÇALVES, Francisco Ednardo; DANTAS, Geovany Galdino. As feiras e a economia das cidades pequenas de Rio Grande do Norte. In SIMPÓSIO NACIONAL DE GEOGRAFIA URBANA. Anais eletrônicos... [CD-Rom]. Manaus: UEA, UFAM, AGBManaus, 2005.

IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censos demográficos. [Em línea]. <http://www.ibge.gov.br>. [12 Nov. 2007].

ISSLER, Bernardo. As feiras no Nordeste e sua função regional. Revista Orientação, Instituto de Geografia da Universidade de São Paulo, Março 1967, p. 37-41.

KURZ, Robert. O que é a terciarização? [Em línea]. <http://obeco.planetaclix.pt/rkurz147.htm>. [6 Abr. 2003].

LACERDA, Antônio Correia de. A terciarização da economia mundial e seu impacto. [Em línea]. <http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI1086689-EI7095,00.html>. [27 Fev. 2006].

LIPIETZ, Alain. O terciário, arborescência da acumulação capitalista: proliferação e polarização. In O capital e seu espaço. São Paulo: Nobel, 1998, p. 177-209.

MAIA, Doralice Sátiro. Cidades pequenas: como defini-las? In SIMPÓSIO NACIONAL DE GEOGRAFIA URBANA. Anais eletrônicos... [CD-Rom]. Manaus: UEA, UFAM, AGB-Manaus, 2005.

MARIA JÚNIOR, Martha. Cidades médias: uma abordagem da urbanização cearense. 2003. Dissertação (Mestrado em Geografia). Fortaleza: Centro de Ciências e Tecnologia, Universidade Estadual do Ceará, 2004.

MORAIS, Ione Rodrigues Diniz; ARAÚJO, Marcos Antônio Alves de. Territorialidades e sociabilidades na feira livre da cidade de Caicó (RN). [Em línea]. Caminhos da Geografia. <http://www.ig.ufu/caminhos_de_geografia.html>. [18 Fev. 2006].

OLIVEIRA, Christian Dennis M. de. Terciarização e espaço metropolitano. Boletim Paulista de Geografia, AGB, n. 65, 1987, p. 49-77.

OLIVEIRA, Bianca Simoneli de; SOARES, Beatriz Ribeiro. Cidades locais do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba/MG: algumas considerações. Caminhos de Geografia, UFU, n. 3(5), fev. 2002, p. 52-72.

PEDROSO, Francis. As relações: cidade, subcentro e setor terciário – o caso do município de Campinas. In ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA. Anais eletrônicos... [CD-Rom]. São Paulo: USP, 2005, p. 11.462-11.487.

PINTAUDI, Silvana Maria. A cidade e as formas de comércio. In CARLOS, Ana Fani Alessandri (Org.). Novos caminhos da Geografia. São Paulo: Contexto, 2002, p. 143-159.

SANTOS, Milton. O espaço dividido: os dois circuitos da economia urbana dos países subdesenvolvidos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.

SANTOS, Milton. Espaço e sociedade. 2 ed. Petrópolis: Vozes, 1982.

SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 4. ed. São Paulo: Hucitec, 1998a.

SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico-informacional. 4 ed. São Paulo: Hucitec, 1998b.

SANTOS, Milton. Por uma outra globalização. 9 ed. São Paulo: Record, 2002.

SOARES, Beatriz Ribeiro; MELO, Nágela Aparecidade de. Pequenas cidades: reflexões em torno das suas funções sócio-econômicas em áreas de modernização agrícola. In ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DA AMÉRICA LATINA.  Anais eletrônicos. [Em línea]. São Paulo: USP, 2005, p. 15.066-15.084.

VEIGA, José Eli da. Cidades imaginárias: o Brasil é menos urbano do que se calcula. Campinas, SP: Autores Associados, 2002.

VEIGA, José Eli da. A dimensão rural do Brasil. Programa de Seminários Acadêmicos. n. 4/2004. São Paulo: USP, IPEA, 2004.

WANDERLEY, Maria de Nazareth Baudel. Urbanização e ruralidade: relações entre a pequena cidade e o mundo rural; Estudo preliminar sobre os pequenos municípios em Pernambuco. [Em línea]. Recife: UFPE, 2001. <http://www.fundaj.gov.br/pbservanordeste/obed001f.doc>. [7 Dez. 2001].

 

[Edición electrónica del texto realizada por Gerard Jori]

 

© Copyright Lenilton Francisco de Assis, Francinelda Ferreira de Araújo, 2009.
© Copyright Scripta Nova, 2009.

 

Ficha bibliográfica:

ASSIS, Lenilton Francisco de; ARAÚJO, Francinelda Ferreira de. A centralidade do comércio na cidade pequena nordestina: o caso da feira livre de Varjota (Ceará/Brasil). Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de julio de 2009, vol. XIII, núm. 294<http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-294.htm>. [ISSN: 1138-9788].

Índice de Scripta Nova Menú principal