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Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XVI, núm. 395 (19), 15 de marzo de 2012
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

CIRCULAÇÃO DE CRIANÇAS E O DESAMPARO

Sônia Altoé
Depto. de Psicologia Social e Institucional – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
soniaaltoe@gmail.com

Magali Milene Silva
Programa de Pós-Graduação em Psicanálise – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
magalimilene@gmail.com

Bruna Soares Pinheiro
Programa de Pós-Graduação em Psicanálise – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
bruna.soares.pinheiro@gmail.com

Recibido: 15 de septiembre 2010. Aceptado: 21 de julio de 2011.

Circulação de crianças e o desamparo (Resumo)

Propõe-se uma reflexão sobre as práticas institucionais de abrigos, no que concerne às múltiplas transferências pelas quais passam as crianças e adolescentes, considerando nossa experiência de atendimento clínico psicanalítico com essa clientela. Partimos da noção de desamparo considerada por Freud como estrutural ao aparelho psíquico. O desamparo é inerente à situação de dependência em que o bebê humano nasce, conduzindo à necessidade de comunicação e à construção de um aparelho psíquico, o que se faz na relação da criança com outras pessoas. Selecionamos alguns casos para exemplificar a especificidade desta clientela e os desafios jurídicos e operacionais suscitados pela mesma. Investigamos em que sentido a situação de vulnerabilidade social em que se encontram, com relações afetivas instáveis e referências familiares frágeis, relaciona-se com o desamparo fundamental.

Palavras chave: abrigamento, crianças, adolescentes, desamparo, psicanálise.

La circulación de los niños y el desamparo (Resumen)

El artículo propone hacer una reflexión sobre las prácticas institucionales de los albergues públicos, en lo concerniente a las múltiples transferencias por las que pasan los niños y adolescentes, considerando nuestra experiencia de atención clínica sicoanalítica para ese público. Se propone esa reflexión a partir de la noción de desamparo considerada por Freud, como estructural del aparato psíquico. El desamparo es inherente a la situación de dependencia en la que el ser humano nace, conduciendo a la necesidad de comunicación y a la construcción de un aparato síquico, lo que se logra a través del relacionamiento del niño con otras personas. Seleccionamos algunos casos para ejemplificar las especificidades de esta clientela y los desafíos jurídicos y operacionales suscitados por la misma. Investigamos en que sentido se relacionan la situación de vulnerabilidad social en la que se encuentran con las relaciones afectivas inestables, la fragilidad de los referentes familiares y el desamparo fundamental.

Palavras clave: niños, vulnerabilidade social, desamparo.

The wandering of children and helplessness (Abstract)

The article proposes a reflection on the institutional practices of shelters as far as the numerous relocations experienced by children and adolescents are concerned, considering our clinical psychoanalytic practice with this clientele. Such a refection is based upon the notion of helplessness considered by Freud as the structural psychic apparatus. Helplessness is inherent to the situation of dependence into which the human baby is born, thus leading it to the need for communication and the construction of a psychic apparatus built on the child's relationship with others. Some cases were selected to illustrate the specificity of this clientele and the legal and operational challenges arising from it. We aim to investigate how the situation of social vulnerability, unstable personal relationships and weak family bonds are related to the concept of helplessness.

Key words: sheltering, children, adolescents, helplessness, psychoanalysis.


O objetivo deste artigo[1] é apresentar algumas reflexões acerca dos efeitos da circulação das crianças que se encontram em situação de abrigamento, considerando especificamente a noção de desamparo (Hilflosigkeit) que Sigmund Freud (1895/1996) considera como um elemento estrutural na construção do aparelho psíquico[2]. Neste artigo utilizamos o termo circulação para nos referirmos ao fenômeno de mudança de moradia que implica na separação entre a criança e pessoas de sua referência e na ruptura de laços afetivos.

O século XX, em especial sua segunda metade, testemunha uma intervenção crescente de representantes da sociedade na relação das famílias com as crianças. “Em nome do bem do filho, vem tomar lugar, sob figuras diversas, um terceiro social: o professor, a pediatra, a psicóloga, a assistente social, o juiz de menores, o juiz de varas da família”[3]. O tratamento dispensado às crianças torna-se de interesse público, trazendo consequências positivas como o amparo em situações de negligência, abandono e violência, e também negativas como a qualidade de acolhimento oferecida e o entrave burocrático-administrativo no encaminhamento de soluções para os problemas das crianças, como veremos neste artigo.

Tomaremos a situação de abrigamento (abrigos, centros de acolhimento e outros similares) como referência central. Levantaremos considerações ao longo desta reflexão para mostrar que o desafio que se coloca na intervenção do Estado é o de oferecer não somente estrutura física adequada, mas uma qualidade de acolhimento que favoreça a saúde mental e preserve a construção singular da subjetividade das crianças e jovens. Nesse sentido, abordaremos as características de alguns casos atendidos, tecendo relações entre as mudanças e rupturas de laços afetivos na vida das crianças e o sofrimento em que se encontram, ressaltando, de início, alguns elementos da lei de proteção e aspectos do funcionamento institucional que não favorecem o acolhimento das crianças e dos adolescentes.

O Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) é fruto da responsabilização do Estado e foi criado visando à defesa dos direitos específicos desta população, por considerá-los indefesos e em formação. Há ainda reconhecimento e afirmação de que a família ou seu substituto é fundamental durante o crescimento e a formação da criança. Ressaltamos o art.4°, o qual estabelece que é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. O Estatuto defende o direito da criança de ser criada em uma família, mas também estabelece a possibilidade de o Ministério Público avaliar os casos em que ela deve ser afastada da família original e encaminhada para uma substituta (guarda, tutela ou adoção). Este fato, ainda recente, acrescenta normas para os cuidados das crianças e adolescentes, criando, com isso, novas instituições especializadas e voltadas para este acompanhamento como os Centros de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, os Centros de Atenção à Violência contra a Criança e o Adolescente e os Centros de Atenção Psicossocial Infantil. Ele estabelece, ainda, novas regras para as diferentes instituições voltadas para este público. De acordo com o ECA, no art. 92, as entidades que desenvolvam programas de abrigo deverão adotar os seguintes princípios:

I - preservação dos vínculos familiares;
II - integração em família substituta, quando esgotados os recursos de manutenção na família de origem;
III - atendimento personalizado e em pequenos grupos;
IV - desenvolvimento de atividades em regime de co-educação;
V - não-desmembramento de grupos de irmãos;
ÇVI - evitar, sempre que possível, a transferência para outras entidades de crianças e adolescentes abrigados;
VII - participação na vida da comunidade local;
VIII - preparação gradativa para o desligamento;
IX - participação de pessoas da comunidade no processo educativo.

Podemos observar, a partir desses princípios, que a primeira indicação é que sejam esgotadas as possibilidades de reintegração à família de origem antes de encaminhamento para família substituta. Segundo Enid Silva[4], em pesquisa que realizou uma caracterização dos abrigos do país, 87% dos residentes de abrigos têm família. Isso significa que a maior parte das crianças e adolescentes moradores de abrigos aguarda a reintegração às suas famílias, sendo assim uma importante frente de trabalho para os profissionais que ali atuam. No entanto, a realidade mostra muitas dificuldades. Acompanhando as crianças em nossa pesquisa, verificamos, através dos relatos das assistentes sociais, que o contato com a família é difícil, pois os responsáveis têm jornadas longas de trabalho, residem ou trabalham em localidades distantes, apresentam pouca condição material para receber a criança e demonstram que o vínculo familiar está muito deteriorado, não havendo interesse, em muitos casos, em resgatar a relação com a criança. Levando em conta essas informações e o trabalho com as crianças, consideramos que o próprio fato de crianças e adolescentes serem abrigados implica em que a instituição familiar, de algum modo, deixa de cumprir seu papel social e, muitas vezes, apresenta também dificuldade em sua função de oferecer um lugar na genealogia familiar e, consequentemente, no que se denomina transmissão de filiação, com referências familiares claras e estáveis nas quais a criança possa apoiar-se para construir sua subjetividade[5].

Neste ponto, a questão família ou abrigo insiste. Consideramos que, neste tipo de trabalho, o importante é que a instituição de atendimento (abrigo, internato, centro de acolhimento e outros similares) não se coloque como mais importante do que a família, como podia acontecer e era frequente na execução de políticas públicas para “crianças carentes” no período de vigência do Código de Menores, anterior ao ECA, quando as crianças moravam muitos anos nos grandes internatos[6]. Todo trabalho com esta população infanto-juvenil e suas famílias deve ter como base não a oposição, mas a complementaridade entre família e instituição.

Para a psicanálise, o sujeito humano não se faz sem instituições. Antonio Di Ciaccia[7], baseando-se em Jacques Lacan, propõe duas justificativas para a relação necessária entre criança e instituição a partir do papel da linguagem na constituição do sujeito. A primeira delas diz respeito à consideração feita por Lacan da linguagem como matéria-prima para a constituição do humano, estando como estrutura, na origem de toda forma institucional, cujas diferentes modalidades[8] podem ser englobadas sob o termo cultura ou civilização. A linguagem traz em seu cerne uma falta fundamental que é a própria marca do homem como ser de cultura, diverso da orientação natural. Sigmund Freud (1930) faz referência a essas questões ao tratar do insistente e inerente mal-estar do homem na civilização.

Além de matéria prima para a constituição do humano, a linguagem é o próprio campo em que a criança se humaniza, de modo que não podemos falar da construção psíquica sem nos referirmos ao outro, ao social, a isso que presentifica para o filhote humano sua inserção na cultura. Assim, a linguagem também é imprescindível à construção singular da fantasia, que marca um modo de inserção do sujeito no campo do Outro, possibilitando que o sujeito se constitua enquanto tal. Ou seja, por um lado, é graças à linguagem que a criança ocupa um lugar nas instituições humanas e, por outro, a mesma linguagem situa a criança no interior da fantasia[9]. A fantasia refere-se a uma estrutura mínima que situa um enquadre a partir do qual é possível uma construção simbólica de si e do mundo, marcando uma posição para o sujeito e com isso um modo de se relacionar com os outros e com as instituições. Podemos dizer então que é por sua entrada na linguagem que o bebê se humaniza, constituindo uma estrutura psíquica.

A existência de abrigos numa sociedade evidencia as dificuldades que se colocam no acolhimento das crianças dentro de sua própria família e se faz necessário recorrer ao acolhimento institucional e coletivo para fazer face aos maus-tratos, violência e abandono. Porém, nem sempre no Brasil as instituições existentes para esse fim oferecem um acolhimento adequado para proteger a criança e favorecer o seu desenvolvimento, conforme as recomendações do ECA. Nosso grupo de pesquisa trabalha com crianças e adolescentes de um abrigo, no Rio de Janeiro, cujo funcionamento apresenta um acolhimento precário, o que implica na dificuldade de levar em conta a singularidade das crianças no atendimento oferecido, com consequências importantes para aqueles que ali são acolhidos. A seguir, abordaremos alguns desses aspectos.


Dificuldades no atendimento institucional

Com a homologação do ECA, em 1990, fez-se necessária a construção de uma rede de atendimento à criança muito distinta da anterior que se baseava, sobretudo, na existência de grandes internatos e internações de longa duração[10]. Quase duas décadas se passaram e é preciso se perguntar com insistência se as instituições criadas dão conta de atender às exigências preconizadas pelo ECA, no que diz respeito aos direitos da criança, para favorecer seu desenvolvimento emocional e preservar sua saúde mental. Vamos levantar alguns aspectos que se mostram problemáticos e, muitas vezes, assemelham-se ao que era feito antes de 1990. A análise desse funcionamento é fundamental para se pensar uma política pública condizente com o que a lei recomenda[11].

Segundo o ECA, o abrigamento das crianças que se encontram em situação de vulnerabilidade sócio-familiar representa uma possibilidade de garantir cuidados, proteção, educação, novos vínculos e desenvolvimento da autonomia. O funcionamento institucional desse abrigo, entretanto, tem características que reforçam a situação de instabilidade que permeia suas vidas e justifica o próprio abrigamento. Discriminaremos algumas dessas situações a fim de caracterizar as mudanças, as rupturas e a inconstância dos vínculos afetivos na vida dessas crianças.

Uma primeira característica diz respeito à alta rotatividade dos educadores – adultos que trabalham diretamente com os internos, com equipes que se alternam dia sim, dia não. Eles são mal remunerados (recebem um salário mínimo[12]), não têm qualquer treinamento para este tipo de trabalho, são contratados por uma ONG e não são funcionários da prefeitura como as assistentes sociais e diretoras. Muitas vezes, a criança mostra-se perdida e confusa em relação ao vasto número de “tias” e “tios”, sem saber qual encontrará no dia seguinte.

Embora a situação de abrigamento deva ser breve e permitir a busca de alternativas, as crianças, muitas vezes, lá permanecem por longos períodos – muitos meses e em certos casos, alguns anos. Aliado a isto, o abrigo não oferece características que preservem a individualidade de cada uma, por exemplo, não possibilita a posse de objetos pessoais, nem roupas ou sapatos. As crianças usam o que estiver disponível, raramente vestindo a mesma “roupa usada” (roupas doadas, rasgadas, grande demais) mais de uma vez. Com os adolescentes, a situação é diferente. Eles podem preservar suas roupas e guardá-las no local onde dormem ou mesmo comprar outras, pois alguns deles têm a possibilidade de realizar um estágio de trabalho remunerado.

Outra característica institucional é o fato do alojamento (“casa”, dormitórios) ser organizado por faixa etária, de forma que a criança troca de alojamento na medida em que muda de faixa etária. Esse critério de organização também traz dificuldades no caso de irmãos - como em um caso atendido por nós que, apesar dos três irmãos serem muito ligados, ao serem internados, cada um foi morar em uma “casa”. É importante ressaltar que este funcionamento está em contradição com a recomendação do ECA de que irmãos permaneçam juntos. A questão fundamental que aqui levantamos é sobre a adequação do “equipamento” para o fim a que se destina. No caso específico, trata-se de um estabelecimento que foi construído com a finalidade de receber “adolescentes em conflito com a lei[13]”, o que implica em uma construção que apresenta grades, portas fechadas com cadeados, espaço pouco acolhedor e muros altos nas “casas”.

O equipamento[14] não oferece um espaço adequado para realização de atividades de lazer e esportivas. Estas são realizadas em ambientes externos e dependem das iniciativas dos educadores e da oferta de outras instituições. Esses fatores dificultam a continuidade das atividades, que são fundamentais inclusive como possibilidade de construção de outros vínculos sociais, além dos muros do abrigo.

Outro aspecto significativo refere-se às transferências de um abrigo para outro, seja por um pedido das assistentes sociais por razões disciplinares ou de adequação de encaminhamento, seja devido à fuga da criança ou jovem. Isso tem como consequência a passagem por diversos abrigos em um tempo relativamente curto, como é o caso do adolescente Humberto[15], que veremos mais adiante.

Outro ponto importante que interfere no bem estar da criança diz respeito à relação da instituição de assistência e proteção com as instituições jurídicas. Chamaremos de letargias burocráticas as dificuldades no andamento e encaminhamento dos casos. Testemunhamos, por exemplo, o caso de uma mãe, cujo vínculo com o filho era muito frágil, que ficou meses aguardando autorização para levá-lo para casa durante os fins de semana, enquanto suas visitas tornavam-se mais e mais escassas. É comum também a demora no julgamento que destitui a família natural e indica a criança para adoção, assim como os processos para adoção. É oportuno levantar a questão da pertinência ou não de tantas decisões serem reservadas às instituições jurídicas. E ainda, se têm condições, sobretudo nos grandes centros urbanos, de defender os interesses da criança, tal como prevê o ECA, levando em conta, por exemplo, o longo tempo de decisão (meses ou anos) o que acarreta, muitas vezes, consequências psicológicas negativas para a criança abrigada.

Apesar das dificuldades apontadas, certamente o abrigo cumpre uma função social importante. É preciso, no entanto, mudanças que visem garantir um atendimento mais individualizado que seja capaz de oferecer uma estrutura adequada para o desenvolvimento sócio-afetivo das crianças e dos adolescentes. O tratamento psicológico oferecido a alguns deles tem se mostrado, segundo as assistentes sociais, muito importante na condução dos casos, sobretudo aqueles em que a violência dos fatos, a separação ou perda dos pais, os maus-tratos ou violência sexual deixam a criança ou o adolescente muito angustiado, confuso, deprimido, com raiva, sem perspectivas do que vai lhe acontecer ou sem entender o que está lhe acontecendo.


Apresentação da pesquisa

O trabalho que oferecemos, de atendimento clínico individual, foi solicitado pelo abrigo que não oferece atendimento psicológico. A demanda foi apresentada pelas assistentes sociais à coordenação do Mestrado e Doutorado em Psicanálise da UERJ[16] e acolhida pela professora Sônia Altoé que, depois de um ano e meio, formou uma equipe com alunos do mestrado e do doutorado. Este trabalho fortalece uma tendência de atendimento e pesquisa que vem sendo realizada através das universidades brasileiras[17].

Os atendimentos são realizados pela equipe com frequência de uma a duas vezes por semana, dependendo do caso e da disponibilidade do psicólogo, sendo os casos discutidos semanalmente, em supervisão. As crianças e adolescentes residem no abrigo em função de conflitos familiares, abuso, maus tratos, negligência ou abandono que sofreram por parte dos pais ou de seus responsáveis. Alguns frequentaram a escola, outros viveram nas ruas, alguns cometeram infrações e passaram por instituições sócio-educativas, outros usaram drogas, outros se prostituíram e algumas moças se tornaram mães. Cada um deles traz uma história, apresentando formas singulares de lidar com o ocorrido.

Quando as assistentes sociais solicitam por telefone atendimento para uma criança ou adolescente, elas são ouvidas por nossa equipe na universidade. Coletamos as poucas informações que trazem sobre as histórias e quando o vínculo com a família existe, marcamos entrevistas com o responsável, que geralmente é a mãe. O trabalho é realizado nas salas do Serviço de Psicologia Aplicada da UERJ e tem orientação psicanalítica, o que implica ter como ponto de apoio a palavra, assegurando ao cliente o sigilo do que ali é dito e a utilização da associação livre como regra fundamental. No caso das crianças, colocamos a sua disposição jogos e brinquedos. O contrato é dito no início e repetido sempre que se considera oportuno. Na construção de uma relação de confiança é importante mostrar independência em relação à rede de atendimento que eles conhecem. Com a orientação psicanalítica não visamos à adaptação das crianças às instituições sociais (o que seria um trabalho pedagógico) embora tenha reflexos que podem ser assim percebidos pelas assistentes sociais e educadores, pois um dos primeiros efeitos da entrada em tratamento é a diminuição da angústia, o que permite um melhor relacionamento no seu grupo de convívio.

O atendimento realizado fora da instituição de abrigamento possibilita minimizar as interferências institucionais de fato e no imaginário da criança e do adolescente. Isto, porém, acarreta uma inconstância na vinda das crianças para as consultas, uma vez que elas são trazidas pelos educadores. Entendemos que isto ocorre por dificuldades organizacionais e número escasso de educadores para cumprir a rotina do abrigo e as diversas atividades externas. Em alguns casos mais do que em outros, a falta ou o intervalo mais longo interfere no andamento do tratamento. Levamos em conta também as interferências do funcionamento da instituição universitária (greve, férias), buscando manter o ritmo de atendimento semanal. Considerar esses aspectos é evitar e estar atento às situações que repetem a inconstância das relações afetivas em suas vidas e têm efeitos sobre o sujeito.


Características de alguns casos atendidos

Apresentamos a seguir informações do sumário social de alguns casos atendidos a fim de caracterizar a realidade social e a dificuldade de reconstituição da história dessas crianças mostrando a inconstância de suas referências familiares e institucionais, bem como o tempo de espera no abrigo para que uma solução seja encontrada e encaminhada nas suas vidas. Faremos alguns comentários a partir dos dados descritos nos relatórios das assistentes sociais e do atendimento clínico.

João, Daniel e Lúcio, três irmãos, com idade de três, seis e sete anos no momento da primeira internação. Foram abrigados pela primeira vez após serem encontrados em situação de exploração sexual, em companhia de um adulto, sendo transferidos após um mês para outro abrigo, mais próximo da residência dos familiares. A assistente social conseguiu contato com a mãe e o avô materno - a mãe alegou não poder receber as crianças por dificuldades financeiras e o avô materno, atendendo ao desejo de sua esposa, concordou em cuidar das crianças até a mãe se estruturar melhor para recebê-los. Após 10 meses residindo no abrigo, as crianças foram morar com o avô e sua esposa, junto com duas outras crianças adotadas anteriormente pelo casal. Permaneceram na casa do avô por quatro meses, tendo sido encaminhadas ao abrigo novamente pelo avô, o qual alegou que o comportamento delas “beirava a bizarrice e estava abalando a ordem familiar”. A partir daí, não se mostrou interessado em qualquer contato com as crianças. A assistente social responsável pelo caso relata que o avô descreve cenas em que a criança mais jovem defeca pela casa, urina na cama, suja a comida, se envolve com bandidos, incita sexualmente outras crianças, chegando a apontar uma faca para o avô, o ameaçando. No abrigo, ele era considerado muito agitado – mais do que os irmãos –, incitando outras crianças a brincadeiras de cunho sexual e a brigas. Muitas vezes, a agressão acontece porque outras crianças não concordam com as brincadeiras sexuais, que em seu vocabulário incluem “chupar”, “pegar o pau”, “comer”. Sempre que possível, toca os órgãos sexuais dos adultos e das crianças de modo que muitas crianças ficaram mais agitadas com a presença dele. Ao mesmo tempo, este mais jovem é muito sedutor, fazendo com que todos os educadores gostem dele. A assistente social destaca ainda que os irmãos, por serem muito ligados, sempre se referem ao outro e se defendem em brigas, embora estejam em “casas” separadas dentro do abrigo. A preocupação da assistente social é maior com o mais novo, mas pede atendimento para os três, pois todos estão muito inquietos, perturbando o convívio no grupo. Seis meses após esse segundo abrigamento a equipe do abrigo, por considerar que estivessem esgotadas as possibilidades de aproximação com a família, recomendou o encaminhamento das crianças para uma família substituta. Atualmente, as crianças continuam no abrigo, onde já residem há 18 meses, tendo sido encaminhadas para atendimento psicológico há cerca de um ano. O atendimento a essas crianças caracteriza-se, a nosso ver, como uma grande oportunidade de trabalhar a situação traumática vivida, preservando sua saúde mental e restabelecendo a possibilidade delas serem inseridas numa família com grandes chances de sucesso se a oferta desses novos laços familiares não tardar demais a chegar.

Luís, 13 anos, reside no abrigo há um ano. Foi encontrado na rua por policiais - alegou maus-tratos por parte da mãe, contando não ser a primeira vez que fugia e afirmando não querer voltar a viver com ela. A queixa da assistente social é de que ele não quer morar com a mãe, que afirma querer que ele volte para casa. Na tentativa de facilitar a reintegração familiar recomendada pela legislação, é encaminhado para atendimento psicológico. Sua história mostra um percurso itinerante, passando por diferentes moradias. Aos 10 meses de idade, a mãe o deixou com o avô materno e sua esposa. Quando o casal se separou, Luís morou com o avô algum tempo. Depois, foi morar com uma amiga do avô, contratada para cuidar dele, de onde fugiu, sendo abrigado pela primeira vez (ele não sabe informar a idade). Saiu do abrigo para morar com uma tia, irmã do avô. No final de 2007, veio para Rio morar com a mãe que mal conhecia. Segundo a mãe, em sua casa ele apronta de tudo e torna a vida dela “um inferno”. A mãe conta também que quando tenta conversar ele fica mudo, não responde, depois faz tudo de novo. Relata ainda que quando perdia a paciência batia nele. Depois de um desses episódios ele fugiu, ficou fora um mês, foi encontrado e voltou a morar com a mãe; mas eles brigam muito. Ele fica sozinho em casa quando não está na escola. Foge novamente e, então, é trazido para o abrigo. Luís apresenta dificuldade em narrar sua história e sua mãe também não pode contar a própria ou a dele sem que momentos de angústia despontem, sem que a narrativa seja entrecortada por pontos que impossibilitam a continuidade. Suas consultas são marcadas predominantemente por desenhos, que só comenta com palavras soltas e evasivas, geralmente após questionamento. É comum que peça para rever seus desenhos anteriores. Olha-os com calma e, raras vezes, faz algum comentário, mas parece ser importante revê-los para resgatar um fio pelo qual seguir na relação com a analista. Numa sessão, após um longo período sem atendimento, o que poderia suscitar o sentimento de abandono, desenha um barco a velas e diante do pedido de que falasse sobre o barco, declara: “É um barco abandonado, não tem história”. Com essa frase, ele parece sintetizar sua dificuldade observada durante o tratamento, de tecer elementos que lhe permitam construir uma história pessoal e familiar.

Alice, 16 anos, logo que nasceu, viveu em companhia de sua bisavó até completar dois anos, quando esta morreu. Morou então com tios em uma e outra casa. A mãe, disseram-lhe que morreu; ela não tem dados sobre a família da mãe. Relata ter sofrido agressões por parte de seus tios, inclusive ter sido “abusada sexualmente” por um tio de 16 anos. Quando fez 12 anos, seu pai retornou e ela foi morar com ele e sua avó paterna. Aos 14 anos, ficou grávida de seu pai. Saiu da casa da avó quando a comunidade tomou conhecimento da gravidez e o pai passou a sofrer ameaças. O fato foi denunciado ao Conselho Tutelar e ela foi encaminhada para o abrigo quando o bebê tinha seis meses. O motivo do encaminhamento para terapia: a adolescente não cuida suficientemente da higiene do bebê, que pesa somente 5 kg, tendo um ano de idade e, apesar dos cuidados das assistentes sociais e dos médicos, a situação não se modifica. Em tratamento, após poucas sessões, expressou através do relato de pesadelos que se repetiam seu conflito entre um desejo de morte do bebê e sua tentativa de protegê-lo; tomou a decisão corajosa e amorosa de doá-lo para adoção. Soubemos que, com a separação e a adoção, o bebê rapidamente ganhou peso. Foram seis meses de trabalho intenso, de muita angústia, dor, tentativa de entender o que se passava e rever sua entrada na adolescência. Em seguida, fugiu do abrigo. Este caso inaugurou a prática clínica na nossa pesquisa (Altoé e Jorge, 2011, no prelo).

Paulo João, 9 anos, há dois anos foi encontrado na Praça Quinze por um vizinho que o encaminhou à delegacia, indo em seguida para o abrigo atual. Relata que morava com a mãe, usuária de drogas, com os irmãos de dois e sete anos e que o irmão, de 11 anos, mora com a tia. O pai está preso. Segundo PJ, ele tentava “bater de arma” na sua mãe. Sobre ela, narra que bebe muito, “fica doida”, bate nele com vassoura, chinelo de borracha deixando marcas no corpo e vez por outra, “ela larga os filhos pela rua”. Certa senhora, de quem PJ gostava, cuidou dele por um tempo, mas morreu. Depois de internado, no esforço de encontrar sua família, a assistente social localiza uma tia que disse querer responsabilizar-se por ele e, em seguida, o avô paterno. Este confirma as histórias contadas por PJ e diz que seu filho (que se encontra cumprindo pena em regime de reclusão) não registrou civilmente seu neto. Mas ambos desistiram da ideia de se responsabilizar pela criança. Na busca desses contatos, PJ foi transferido para outro abrigo, em janeiro de 2008. Três meses depois, voltou para o abrigo atual, encaminhado pela Central Carioca de Recepção, pois onde estava fugia muito na tentativa de encontrar o avô. Após a desistência confirmada do avô e nenhuma notícia da mãe, através de busca realizada pelo Programa “Procuro Minha Família”, desde 21/08/07, a assistente social, encaminha o Comunicado de Abandono e sugere o encaminhamento de PJ para o setor de Colocação em Família Substituta, em 12 de maio de 2008. Até a presente data, agosto de 2009, PJ permanece no abrigo aguardando decisão. No tratamento, tem enorme dificuldade de falar sobre qualquer assunto, diz que não quer falar de sua história. Às vezes afirma querer voltar ao abrigo anterior para achar o avô, outras quer ficar onde está, ou ainda, quer outra família. A lentidão da decisão jurídica - “só o juiz sabe”, disse recentemente – dificulta qualquer projeto para um futuro, por mais breve que seja, o que parece paralisá-lo. Apesar de ser um menino inteligente, tem pouco interesse na escola, mas quando sorri, expressa um belo e maroto sorriso.

Inês, 16 anos, foi entregue quando criança pela mãe à avó, passando a morar em outro estado (Maranhão), longe da mãe, sem contato ou notícias da mesma. Morou com ela e seus irmãos, enquanto a mãe permaneceu no Rio de Janeiro. Não há notícias do pai. A adolescente não faz qualquer menção a ele. No Maranhão, decide sair da casa da avó e ir morar com amigos, passando a se envolver com drogas, bebida e engravidando. Pede para a avó entrar em contato com a mãe, manifestando o desejo de voltar a morar no Rio. Retorna, passando a residir com a progenitora. Contudo, a convivência mostra-se conturbada e insustentável, segundo Inês, principalmente após sua mãe descobrir que ela está grávida. Relata que os maus tratos, rejeições, violências físicas e psicológicas tornam-se constantes, a ponto dos vizinhos chamarem o Conselho Tutelar.

Sua prima e sua tia ficam então com a guarda temporária dela e de seu bebê. Mas logo a situação se complica. E, diante da desistência da guarda temporária por parte da tia, Inês é encaminhada a um abrigo. Nesse período se apega ao filho e o coloca como motivação única para permanecer viva. Porém, esta relação se mostra confusa e oscilante, pois se alterna entre cuidados e maus tratos, entre preocupação e descaso. Às vezes, cuida demasiado da higiene do filho, dá-lhe carinho e atenção, outras, o abandona à própria sorte, se irrita e bate nele; ou ainda, quando vai visitar a mãe, deixa-o sozinho trancado com seu padrasto que, segundo relata, parece já ter seduzido o garoto algumas vezes. Inês trabalha e estuda, mas frequentemente tem momentos de isolamento nos quais chora muito. Nos atendimentos fala sobre “uma angústia” e um “se sentir sufocada”. Vez por outra volta a utilizar drogas (crack) e diz algumas vezes que tem “medo de fazer uma besteira”, “uma loucura”, tendo relatado à assistente social que sente vontade de largar tudo e se matar. Diz não ter perspectivas, uma vez que não quer mais ficar no abrigo, não pode voltar para a casa da mãe, não conta com o apoio dela, assim como não gostaria de voltar para o Maranhão, pois “lá é difícil ganhar a vida”. Durante o atendimento, após enorme decepção com a mãe faz uma tentativa de suicídio, sendo encaminhada para um hospital psiquiátrico, onde fica internada por alguns dias. Depois da experiência marcante para ela dos dias passados no hospital de “malucos”, Inês ainda demonstra muita mágoa da mãe, embora demonstre também um desejo urgente de mudança. Alguns meses depois, a analista foi informada de que Inês fugiu do abrigo, levando seu filho para morar com seu namorado, um ex-funcionário, que fora ali abrigado antes de completar 18 anos.

Humberto, 16 anos, quando criança apresentava comportamento diferente na escola, segundo relato da mãe, tendo sido encaminhado aos oito anos para a Pestalozzi[18] e, em seguida, para um serviço de psiquiatria. Devido ao diagnóstico de hiperatividade teve acompanhamento psiquiátrico e psicológico durante seis anos. Possui oito irmãos, sendo alguns do mesmo pai e outros de pais diferentes. Relata ter vivido com o pai e a mãe até os seis anos. Em seguida, o pai foi morar em outro município e não deu mais notícias. Os nove filhos não viviam juntos; uns moravam na casa da mãe e outros na casa da avó, que fica em bairro distante. Com a doença da avó, todos voltaram a morar com a mãe e a situação tornou-se caótica e insustentável, segundo narra a genitora. Ela conta que com a chegada de Vitório (seu filho “metido em coisa errada”), Humberto se envolveu em pequenos furtos, se tornou agressivo, arredio, chegando, juntamente com o irmão, a agredi-la fisicamente duas vezes. A mãe chamou a polícia, que os levou para a delegacia; em seguida, foram para um estabelecimento de medida sócio-educativa, onde ficaram 45 dias internados. Foram então para um abrigo, pois a mãe não quis recebê-los de volta. Humberto nos informa que já “ficou na rua” e que passou por cinco abrigos diferentes (dados que se confirmam no seu Relatório Social) no intervalo de dois anos. Apresenta comportamento agressivo com alguns colegas do abrigo, do estágio e com membros da equipe do abrigo que, segundo ele, “atrasam sua vida”, “fazem judaria”. Pelos relatos, o comportamento agressivo é uma constante na vida deste rapaz, seja através de simples ameaças ou de ações, o que nos faz cogitar ser este um dos motivos para as diversas mudanças de abrigos.

A partir desses relatos, podemos ver na singularidade do caso a caso, como as histórias de vida dessas crianças são fragmentadas, marcadas por mudanças constantes e pela ausência de referências duradouras em relação às quais elas possam construir sua subjetividade. A seguir, abordaremos especialmente a noção de desamparo estrutural para Freud, discutindo o processo de construção do aparelho psíquico, destacando a importância da família ou de substitutos que representem uma referência estável para a criança, processo este que fica abalado, no caso dessa clientela, cuja característica marcante é a frequente mudança de moradia e de abrigo.


Desamparo e família

Sigmund Freud, desde o início de sua obra, dedica-se ao estudo de como um bebê humaniza-se e de como se dá a construção do aparelho psíquico. Em 1895, formula a noção de desamparo e lhe atribui função fundamental na estruturação psíquica. O desamparo (Hilflosigkeit) refere-se à dependência de outra pessoa para sua autopreservação, como acontece com o bebê humano ao nascer. Essa ajuda externa não se reduz à satisfação da necessidade, ela introduz a criança na ordem simbólica, uma vez que requer a função de comunicação[19].

A situação de dependência seria intolerável para a criança, que começaria a construir estratégias para contornar essa posição radical de desamparo, constituindo, com isso, um aparelho psíquico, empreendimento humano por excelência. Ou seja, não sendo um animal orientado por instintos, mas um ser marcado pela linguagem, o homem deve inventar modos de se relacionar com o mundo. E a invenção singular desses modos é o que Freud descreve como a construção singular do psiquismo.

O complexo de Édipo é usado por Freud, a partir da tragédia de Sófocles[20], para descrever, tendo como base as primeiras relações infantis, como essa organização psíquica se dá e, por conseguinte, como a construção do sintoma neurótico é feita; ou seja, como cada um irá construir uma narrativa sobre si, pelo vínculo com as pessoas que lhe são mais próximas em seus primeiros anos de vida. Através do romance familiar, encenado nos afetos agressivos e amorosos, que as crianças destinam aos genitores, um modo de relacionamento afetivo com o mundo é constituído[21].

Em um artigo do início de sua obra, Os complexos familiares na formação do indivíduo, de 1938, Jacques Lacan tece algumas elaborações sobre a importância das primeiras relações na construção da estrutura psíquica, ou seja, reflete sobre o papel da família na constituição psíquica da criança a partir dos “complexos familiares”. É por meio do complexo que a diversidade cultural é assimilada pela criança, modelando seus instintos: “Entre todos os grupos humanos, a família desempenha um papel primordial na transmissão da cultura”[22], pois é ela quem estabelece uma continuidade psíquica entre as gerações. Ou seja, é no seio das primeiras relações, vividas em geral na família, que a criança passa por complexos estruturais, recebendo a herança simbólica de sua cultura através das histórias familiares.

Lacan, em seu retorno a Freud, formula conceitos próprios para abordar a constituição subjetiva. Destacaremos aqui algumas elaborações a respeito da construção da fantasia primordial, uma vez que ela é considerada um modo de estruturação básica para o desejo, marcando uma posição subjetiva. O choro do bebê, que a princípio é pura descarga energética diante da pressão de uma necessidade que exige satisfação, ganha contornos de sentido a partir do encontro com o Outro primordial (representado pelo outro que desempenha a função materna). Ou seja, a criança, que a princípio age instintivamente, é banhada pelas significações do Outro que interpreta seu choro. Isso implica em dizer que é o desejo do Outro que o sujeito recebe como seu. Nesse momento lógico a criança estaria totalmente submetida ao Outro, exposta em seu desamparo. E, para a assunção de um sujeito, é preciso que estratégias subjetivas sejam construídas a fim de contornar essa situação.

Diante da presença e ausência da mãe, Outro primordial, o bebê começa a criar alternativas psíquicas que dêem conta de contornar essas faltas e a não satisfação que elas implicam, construindo “teorias infantis” para justificá-las, conforme articula Freud. Essa falta do Outro sinaliza que este, o Outro, não é completo, uma vez que precisa dirigir-se a outros objetos do mundo em busca de sua satisfação; por outro lado, indica também que a criança, enquanto objeto, também não é completa, pois o fato de se dirigir a outros objetos indica que o bebê não a satisfaz plenamente.

A operação que marca essa dupla inscrição de incompletude para o sujeito e para o Outro é chamada por Jacques Lacan de metáfora paterna ou Nome do pai[23]. Trata-se de uma metáfora porque se refere à substituição desse objeto primordial, a mãe, pelo objeto como falta de objeto, que abre as vias de acesso à construção do desejo e à relação com todos os demais objetos. O sujeito constrói, então, modos de relação com os objetos, a partir das significações que recolhe do Outro, operação de construção da fantasia, que regula o desejo para um sujeito, estabelecendo um lugar para ele no campo do Outro[24]. A fantasia marca a constituição de um sujeito, marcando também os efeitos de transmissão da Lei simbólica, de efetuação da metáfora paterna.

Enfim, esse breve percurso teórico nos permite afirmar que todos nós somos desamparados, sendo nossa história pessoal a construção de contornos possíveis a esse insuportável. Cada construção é única, mas utiliza os elementos disponíveis de seu contexto. O convite da psicanálise é um convite a dizer-se conforme o próprio desejo, ultrapassando o lugar de objeto para o Outro, constituindo-se como sujeito ao mesmo tempo em que constrói uma narrativa, “é dizer contando com o que falta, produzindo novos enlaces para si e com os outros”[25].

Maria Cristina Poli[26], discutindo as particularidades da clínica com adolescentes moradores de abrigos, afirma que é preciso constantemente interrogar quais os efeitos das precondições do Outro no lugar que o sujeito ocupa em sua narrativa particular. Ao contar sua história, o paciente põe-se a produzir, mas também a reproduzir o modo como é contado. Nos atendimentos que fez com essa clientela, Poli relata a dificuldade deles em construir uma narrativa, respondendo com certo mal-estar ao serem arguidos sobre sua história.

Em outro artigo, uma de nós escreve que frequentemente as crianças moradoras de abrigos sentem-se confusas em relação às suas referências familiares, não conseguindo contar suas histórias de vida senão em narrativas entrecortadas, perdendo o laço de continuidade de sua genealogia, uma vez que a filiação é marca de um lugar, permitindo à criança descrever-se como filho(a) de... e de... Neste texto é levantada a hipótese de que, possivelmente, as histórias de vida dos pais dessas crianças abrigadas também sejam despedaçadas, dificultando ou impedindo a transmissão da filiação[27].

Em nossa pesquisa, encontramos dificuldades semelhantes, como ilustra o fragmento do caso de Luís, cuja história de mudanças sucessivas de moradia e de responsáveis assemelha-se com a da mãe, que também não consegue narrar com clareza sua própria história de vida nem a de seu filho.


Considerações finais

O trabalho de pesquisa que realizamos envolve uma realidade social específica, o que nos leva a um posicionamento que se pode considerar como político. Nesse sentido, ao relatarmos os casos atendidos, sentimos necessidade de contextualizar a situação de vida, na qual crianças e adolescentes se encontram. Mesmo considerando que o principal objetivo de nosso trabalho é a busca de um desenvolvimento teórico-clínico que propicie avanços no atendimento a essas crianças e adolescentes, não pudemos nos eximir de fazer algumas considerações sobre a política pública de atendimento a esta população infanto-juvenil e a relação desta com as instituições jurídicas.

As novas formas institucionais que passaram a existir a partir do ECA implicam em uma rede de atendimento diversificada e que tem uma função social importante. Entretanto, os equipamentos que compõem essa rede ainda apresentam modos de funcionamento que não preservam a criança e o adolescente atendidos. É preciso não só pensar em uma melhoria da qualidade física e de pessoal qualificado, como também na criação de medidas preventivas que permitam diminuir o fluxo de entrada dessas crianças que circulam entre famílias, abrigos e rua. Mudanças importantes são necessárias, oferecendo, sempre que possível, o atendimento dentro do próprio bairro onde a criança vive, buscando manter os laços de família, vizinhança e convivência comunitária. Desse modo, seria possível preservar elementos estáveis para a construção de uma história, o que se torna difícil com as freqüentes mudanças de um lugar para o outro e que é vivida, por essas crianças e adolescentes, muitas vezes, como arbitrária.

Observamos, através desta análise que aqui apresentamos, a urgente e importante necessidade de considerar modificações no funcionamento da rede, em particular, no funcionamento do abrigo. E, a partir do trabalho com a teoria psicanalítica, chamamos atenção para a importância de um amparo de outra ordem, um apoio simbólico, para lidar com o desamparo estrutural. A especificidade da realidade social da clientela atendida, embora não seja o foco do tratamento, é considerada na clínica. Para a psicanálise, interessa a construção de uma clínica que privilegie o sujeito.

A clínica psicanalítica visa possibilitar o resgate ou mesmo a construção de uma narrativa sobre sua própria história, a fim de possibilitar ao sujeito contar-se de um modo diferente. Esse trabalho, perpassado pela regra fundamental de tudo dizer, favorece a diminuição da angústia diante daquilo que não se pode dizer, permitindo seguir a vida com as possibilidades que esta oferece.

 

Notas
[1] O artigo foi confeccionado a partir da conferência “Circulação de crianças e desamparo”, apresentada no workshop “Circulação de crianças: revisitando o interesse prioritário da criança”, promovido por PPGAS/UFRGS, PPGA/MS/UERJ, CAPES, FAPERJ, UERJ, em 2009, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

[2] Este trabalho é parte da pesquisa “Criança e adolescente em situação de vulnerabilidade social: um estudo sobre o desamparo, a angústia e os processos identificatórios”, desenvolvida na UERJ pela professora Sônia Altoé – Prociência 2008-2011, Pós doutorado na Universidade de Paris VII, 2010-1011.

[3] Julien, 2000, p.15.

[4] Silva, 2004.

[5] Altoé, 2008b.

[6] Altoé 2008a.

[7] Di Ciaccia, 2005.

[8] Cf Di Ciaccia “...a linguagem, como estrutura, está na origem de toda forma institucional, seja esta social, política, econômica ou se apresente sob a forma de manifestações filosóficas, artísticas ou religiosas” (p.19).

[9] No âmbito desse texto, não abordaremos questões referentes a diferentes modalidades de construção da fantasia, pois só nos interessa aqui a operação a partir do qual o sujeito se constitui.

[10] Altoé, 2008a.

[11] Altoé, 2008b.

[12] O valor do salário mínimo no Rio de Janeiro, em janeiro de 2010 é de 581,88 reais.

[13] Denominação dada no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) aos jovens que cometem atos infracionais e são sujeitos a medidas sócio educativas.

[14] Termo utilizado pelos profissionais do abrigo.

[15] Todos os nomes utilizados neste artigo são fictícios.

[16] Os estudantes de mestrado (Bruna Soares Pinheiro, Henrique Martins e Marco Aurélio de Carvalho Silva) e de doutorado (Magali Milene Silva) realizam os atendimentos clínicos no Serviço de Psicologia Aplicada da UERJ.

[17] Temos conhecimento da existência deste trabalho através de publicações de colegas no Rio Grande do Sul (UFRGS- Universidade Federal do Rio Grande do Sul), em São Paulo (USP – Universidade do Estado de São Paulo) e no Rio de Janeiro (UERJ – Universidade Estadual do Rio de Janeiro, UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro e PUC – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro).

[18] A Associação Pestalozzi é uma instituição beneficente com mais de 70 anos de atuação no Brasil. Sua atuação envolve acolher, educar, prestar assistência e integrar pessoas deficientes à sociedade.

[19] Freud (1895/1996, p.422).

[20] 2005.

[21] Consultar a esse respeito os artigos de Freud: Sobre as teorias sexuais infantis (1908); Romances familiares (1909); A dissolução do complexo de Édipo (1924); Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925); Sexualidade feminina (1931); Conferência XXXIII – Feminilidade (1932).

[22] Lacan, 1938/2003, p.30.

[23] Não importa se aquilo a que se dirige a mãe, ao não estar totalmente à disposição da criança, é o pai biológico, outro homem, ou mesmo o trabalho; importa que a operação se dê, constituindo o registro da falta para a criança, e abrindo a via para o advento do sujeito.

[24] Cf. Seminário 5: As formações do inconsciente (1957-1958) e artigo Subversão do sujeito e dialética do desejo (1960) nos quais Lacan apresenta o grafo do desejo e o matema da fantasia.

[25] Holk, 2008, p.24.

[26] Poli, 2005. Referimos aqui ao livro “Clínica da Exclusão: a construção do fantasma no sujeito adolescente”. Esse livro baseia-se em tese de doutoramento da autora, partindo de sua experiência em trabalho clínico com adolescentes realizado em uma instituição de acolhimento de jovens afastados de suas famílias e dos questionamentos que esta prática suscitou. Objetiva estudar a particularidade da construção subjetiva na adolescência marcada pela característica de saída da família e entrada em instituição estatal.

[27] Altoé, 2008b.

 

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© Copyright Sônia Altoé, Magali Milene Silva y Bruna Soares Pinheiro, 2012.
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Ficha bibliográfica:

ALTOÉ, Sonia; MILENE SILVA, Magali y SOARES PINHEIRO, Bruna. Circulação de crianças e o desamparo. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 15 de marzo de 2012, vol. XVI, nº 395 (19). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-395/sn-395-19.htm>. [ISSN: 1138-9788].

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