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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XVI, núm. 418 (37), 1 de noviembre de 2012
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

A PROVÍNCIA E O URBANO NA CONSTRUÇÃO DO ESTADO NACIONAL LATINOAMERICANO NO SÉCULO XIX: A INVENÇÃO DO RIO DE JANEIRO COMO CIDADE CAPITAL

Jorge Luiz Barbosa
Departamento de Geografia – Universidade Federal Fluminense
jorgebarbosa@vm.uff.br

A província e o urbano na construção do Estado Nacional latinoamericano no século XIX: a invenção do Rio de Janeiro como cidade capital (Resumo)

A questão que orienta o nosso trabalho se dispõe no conjunto de relações entre o Estado e o urbano na construção de Projetos Nacionais na América Latina, especialmente no que diz respeito ao Brasil. O processo em anúncio ganha maior visibilidade da segunda metade do século XIX ao início do XX, quando as cidades afirmam a autarquia do seu poder territorial face aos domínios de província articulados no binômio latifúndio - exportação. È nessa textura geográfica que se inserem os processos de modernização urbana inaugurados na América Latina, notadamente em Buenos Aires (Argentina), em Montevidéu (Uruguai) e no Rio de Janeiro (Brasil), criando capitais modernas como espaços de exercício de hegemonias políticas e culturais.

Palavras chave: Estado, cidade, poder.

The Province and urban in the construction of the latin american National State in the nineteenth century: the invention of Rio de Janeiro as the capital city (Abstract)

The question that guides this work is available in the set of relations between the state and city in the construction of National Projects in Latin America, especially when comes to Brazil. The process has gained more visibility in the second half of the nineteenth century to the early twentieth century, when cities claims the authority of his power against the territorial areas of the province articulated in the binomial large property/exportation. It is precisely this geographical texture that fits the processes of urban modernization inaugurated in Latin America, notably in Buenos Aires (Argentina), Montevidéu (Uruguay) and in Rio de Janeiro (Brazil), creating capital and modern spaces for the pursuit of political and cultural hegemony.

Key words: State, city, power.


O objetivo maior do trabalho é colocar em evidência a construção de Estados nacionais em sua intrínseca relação com a modernização urbana, traduzindo não só as transformações do patamar de acumulação de riquezas sob a égide do capital bancário e industrial, como também no que concerne a formação de um mercado de trabalho e de consumo urbano.

Um novo roteiro de tensões é inaugurado entre espacialidades sociais: a província e o urbano. De modo mais específico, estamos chamando atenção para uma cartografia política capaz de assinalar conflitividades entre em modos de poder: relação terra/território como base histórica de reprodução agrarista de relações não especificamente capitalistas de produção (trabalho compulsório e familiar, por exemplo) face à emergente capital/território, própria do industrialismo, portanto exigente de novas relações de propriedade, trabalho e consumo.

A afirmação de cidades capitais como lócus de poder do Estado atende aos propósitos da supremacia do urbano em relação ao rural. As cidades capitais se tornam espaços de centralização do poder político, combinando a modernização urbana (funcional e simbólica) com a emergência de alianças políticas e blocos de classes sociais, redefinindo o significado do Estado e, evidentemente, o sentido do projeto de poder inscrito na produção do espaço geográfico.


O Rio de Janeiro como cidade-província

Com a expansão da economia cafeeira no Vale Paraíba fluminense do início do século XIX, e com o crescente desenvolvimento comercial que esta atividade impulsionou, a cidade do Rio de Janeiro se tornou, por excelência, o centro nevrálgico entre a economia agroexportadora e a circulação internacional de mercadorias (Oliveira, 1982). A imagem “cidade armazém” parece ser bem apropriada para o Rio de Janeiro das primeiras décadas do século XIX. Stanley Stein assim retratava a cidade:

“Em ambos os lados das ruas dos Beneditinos, Rosário, Prainha, Visconde de Inhaúma; ruas estreitas e ladeadas de casas comerciais de cujas portas vinham o cheiro de café e sacaria, localizavam-se as casas comissárias que recebiam a produção cafeeira das grandes fazendas de Vassouras (...). Aqui e nas ruas vizinhas concentravam-se os negócios de café dos Municípios do Vale do Paraíba; e daqui e de outras grandes casas comerciais, seguiam as mercadorias para as grandes fazendas de café, e para abastecerem as prateleiras das casas de negócio do interior – ranchos, vendas, tabernas e botequins (...)”[1].

O cheiro do café, os estabelecimentos comerciais e as casas comissárias eram elementos da paisagem urbana da relação campo-cidade sob a égide do capital mercantil. Acrescentaríamos também o prédio da Alfândega, os trapiches e a mobilização frenética de mercadorias pelas ruas. Todos são marcos da “cidade armazém”. Imagem que denota a posição da cidade do Rio Janeiro na circulação de mercadorias da economia plantacionista do Vale do Paraíba fluminense. Ou seja, a cidade do Rio de Janeiro é a centralidade de realização da economia agrária, em função de sua posição estratégica no território fluminense e no concerto da divisão internacional do trabalho.

È importante frisar, entretanto, que o período que consagra a expansão da lavoura cafeeira no Vale do Paraíba, e no qual a cidade do Rio de Janeiro torna-se a sede do capital mercantil, controlador da produção agroexportadora (1840-1870), marca também o elevado acréscimo da população urbana, que atinge a taxa de crescimento em torno de 72% (passando de 137.078 para 235.291 em 30 anos).

A urbanização da população, em passos largos, corresponde contraditoriamente à forma particular da relação cidade-campo, sobretudo diante da estrutura agrária (latifúndio/monocultura/escravidão) que abortava o desenvolvimento de uma rede urbana mais complexa. Respondendo, portanto, à concentração de recursos, atividades e população em um pequeno número de grandes cidades no país daquele período histórico.

As casas comerciais e as casas comissárias estavam localizadas nas ruas estreitas de uma cidade de limites estreitos e que se destacava como sede do controle burocrático/político da Corte Imperial. A mobilização da mercadoria café, como a das demais mercadorias, era largamente apoiada na exploração do trabalho compulsório. As vielas sujas por onde o comércio transbordava sua euforia estavam mais do que nunca presentes com seus cheiros e sons. Negros em busca de trabalho, carregando cestos e apregoando suas mercadorias estão presentes nas ruas, em busca do seu próprio sustento e do sustento dos seus senhores. O tímido artesanato que florescia tinha como mestres os homens brancos livres e, como “aprendizes”, os homens negros escravizados. E as casas comissárias e as casas comerciais se localizam nesta cidade de mosaicos sem encaixe, constituindo riquezas em meio à miséria urbana em reprodução na cidade-província. A cidade do Rio de Janeiro do século XIX exprimia a inscrição do Brasil na ordem geográfica da divisão mundial do trabalho, com os modos específicos de realização do capital mercantil e das relações senhoriais escravistas.


A reforma urbanística do Rio de Janeiro

É sabido que a Cidade do Rio de Janeiro era o principal centro escoador da produção cafeeira (sem concorrente até 1890), concentrando o movimento financeiro e comercial relacionado à atividade mercantil agrícola. A cidade do Rio de Janeiro também se destacava na importação de mercadorias (sobretudo manufaturados ingleses) e de um promissor comércio interiorano, drenando e distribuindo mercadorias numa ampla rede de ancoradouros e pequenos portos fluviais e marítimos. Contudo, o principal interesse do capital mercantil estava vinculado à circulação das mercadorias valorizadas no comércio internacional, manifestando pouco interesse em mudanças radicais no espaço urbano, a não ser as quais forçosamente imprimiu para aumentar a intensidade dos fluxos de exportação/importação: a ferrovia e o reaparelhamento portuário.

A ferrovia era grande invenção técnica do século XIX. Representava a expansão do maquinismo, assim como celebrava o desenvolvimento das forças produtivas libertas com Revolução Industrial. A criatura produzida pela moderna indústria britânica chegou e movimentava-se como uma serpente entre matas e montanhas brasileiras. O movimento da máquina-de-ferro e sua capacidade de carregamento rompiam os limites das tropas de burros e dos portos fluviais no escoamento do café, estabelecendo novos padrões de circulação de produtos agrícolas.

A ferrovia encurtava distâncias físicas e aumentava o volume da mercadoria-café que chegava ao porto, mas como uma serpente voraz, devorava a tímida rede de portos fluviais e povoados outrora articulados com a cidade do Rio de Janeiro através do circuito de exportação do café de do abastecimento de gêneros. A ferrovia viria contribuir decisivamente para a centralização e concentração de capitais (sobretudo bancário e comercial) no Rio de Janeiro. A cidade se tornava o espaço privilegiado da realização de oligopólios e assumiria, em breve, outra fisionomia urbana.

A reestruturação urbana da cidade do Rio de Janeiro estava intimamente associada aos dispositivos de circulação (reaparelhamento portuário, abertura de avenidas, alargamento de ruas) exigidos pela agroexportação. Porém, abrigava um projeto mais ambicioso: a criação de uma cidade capital. O espaço construído como um mosaico complexo de atividades se erguia como obstáculo ao projeto maior. Ruas estreitas, vielas, becos, casario, armazéns e oficinas constituíam um aglomerado de formas urbanas incompatível para as novas demandas em termos da produção / organização do espaço urbano exigidas pelas novas formas de acumulação de capital.

O urbano da racionalidade do capital requeria a destruição de formas urbanas pretéritas, sobretudo em função das relações sociais cristalizadas na organização do espaço urbano, pois estas expressam modos de apropriação e uso inaceitáveis para as exigências impostas por novos poderes em afirmação na cidade. É neste sentido que a reforma urbanística do inicio do século XX consagra um novo padrão de urbano e de urbanização. No lugar das formas antediluvianas do urbano quem eram esfumaçadas no ar, surgiam as linhas longas e retas das ruas e avenidas:

“Em dois annos! Sem contar uma imensidade de obras pequenas effectuadas, outras maiores realizadas no interior de edifícios da Municipalidade, institutos, etc, e outras grandiosas, a que também se dedicou intensamente, como o alargamento das ruas Camerino, Uruguayana, Assembléia e abertura das projetadas avenidas Mem de Sá e Salvador Correa e Sá”[2].

A “Reforma Passos” promovida pela “República das Oligarquias” testemunhava a ambição de construir uma bela, moderna e salubre capital federal. Edificar uma cidade capaz de representar a grandeza do Brasil no concerto das nações modernas.

Ao embelezamento da cidade juntava-se a remodelação do aparelho portuário, prevendo a construção de “soberbos caes com a extensão de três e meio kilometros” sob o encargo do Governo Federal que, por sua vez, concedeu à empresa C.H. Walker Company Limited London os negócios opulentos da construção portuária [3].

As obras de remodelação do porto, que se estenderam de 1904 a 1911, se destinavam à retilinização da sinuosidade natural da orla marítima (da atual Praça Mauá à Ponta do Caju) e à dragagem do fundo marinho para permitir a atracação de navios de maior calado. Para à execução de tal projeto se impôs a demolição e a desapropriação de centenas de habitações, além do aterro de enseada que abrigavam pequenas embarcações utilizadas no transbordo de mercadorias comum à estrutura anterior do cais–assim como as vinculadas às atividades pesqueiras artesanais. O reaparelhamento portuário contava também com a edificação de 17 grandes armazéns em substituição aos trapiches e com a instalação de gigantes mecânicos, movidos à energia elétrica, para mobilizar as cargas de maior volume. Articuladas também à remodelação portuária, duas grandes avenidas eram abertas – a Avenida do Mangue e Avenida do Cais – permitindo maior acessibilidade à zona portuária. Emergia, portanto, uma renovada centralidade com as novas vias de circulação dispostas como afluentes do porto, e com intuito de acelerar os fluxos de mercadorias na cidade.

Surgia a geometria no espaço urbano, o império das retas e da uniformidade nas vias de circulação. Não é por excesso de precisão físico-matemática que as vias de comunicação impostas ao urbano passaram a ganhar, no vocabulário cientificista dos urbanistas, o conceito de vetores de expansão. A ordem da perspectiva geométrica no espaço urbano se combinava à expansão dos bondes elétricos da Light and Power Company no centro da cidade, substituindo a então vagarosa mobilização das mercadorias por meio de carris e carroças movidas a tração animal e dos chamados “burros sem rabo” (carros movidos pelos músculos humanos).

As obras de remodelação do porto, calcadas na extensão e retilinização do cais, permitiram a aproximação de embarcações de maior porte, dispensado progressivamente o uso de chatas, faluas, alvarengas e, sobretudo, provocando a eliminação de formas de sobrevivência de inúmeros trabalhadores. O uso da maquinaria para o transbordo de mercadorias ratificava a dispensa de atividades “porosas” para o capital. O mesmo pode-se afirmar em relação à maquinaria aplicada aos transportes urbanos (o bonde elétrico é sua mais virtual expressão do período), que elimina os carroceiros do movimento incessante e febril das mercadorias. A projeção territorial do sistema fabril imperava sobre as tarefas da circulação, determinando sequências técnicas que viabilizavam tanto a realização como a criação do valor de troca no espaço urbano.


A construção do Rio de Janeiro como cidade-capital

A (re)divisão técnica que transforma o modo do trabalho social na circulação urbana cumpria os desígnios de uma nova categoria de propriedade privada, agora tipicamente capitalista e que progressivamente tudo abarcava, sobretudo por meio da força homogeneizadora do mercado e da hegemonização do trabalho. O trabalho, o movimento, o território, o tempo e o espaço são agora objetos de apropriação e controle direto do capital na cidade.

Portanto, a objetivação do tempo útil no espaço erigia um arranjo funcional que adequava a estrutura urbana do Rio de Janeiro à consolidação dos empórios comerciais, à difusão de produtos imobiliários e à formação de um centro bancário. Emergiam novos capitais e novas personas do capital.

Na esfera comercial da cidade, a moderna circulação possibilitava a rapidez dos fluxos de abastecimento e das trocas sob o impulso das exigências da realização do valor. A Avenida Central assume a visibilidade maior do entrelaçamento dos interesses do capital comercial e do emergente capital imobiliário. Na grande avenida eram inauguradas as casas comerciais do mundo burguês das mercadorias, assumindo o cosmopolitismo dos objetos que chegavam ao porto moderno. Os grandes proprietários vinculados às atividades comerciais, sobretudo de importação, foram agraciados com a grande avenida que nascera da modernização urbana. Assim como os empreendedores imobiliários ganharam espaços de raridade para seus negócios Novos proprietários e novos usos se cristalizavam na orla das artérias que cortavam a cidade.

Apesar da articulação entre o desenvolvimento fabril e a modernização urbana tenha passado ao largo dos estudos sobre as reformas urbanas do inicio do século XX, esta articulação assume contornos menos nebulosos quando analisamos as estatísticas do movimento de importação no porto do Rio de Janeiro. Recorrendo aos índices quantitativos é possível identificar que as matérias primas e artigos aplicados às artes e às indústrias ocupam um lugar de destaque nos fluxos de mercadorias importadas. O destaque especial é o carvão em pedra (matéria prima utilizada como força energética nas indústrias) que alcançava, no início do século, mais da metade da tonelagem total importada. O ferro e o aço manufaturados também reluziam entre os materiais destinados a produção industrial.

Embora consideremos que os artigos e matérias-primas importados não eram destinados exclusivamente à cidade do Rio de Janeiro, podemos inferir que o próprio desenvolvimento das atividades fabris e manufatureiras foi beneficiado com a modernização portuária e das vias de circulação. Um bom exemplo é a Avenida do Cais (atual Rodrigues Alves), que possibilitava maior acessibilidade ente o porto e a “zona” industrial e manufatureira que emergia entre o bairro de São Cristovão e as instalações portuárias.

É bem verdade, como afirmam os estudiosos do período em questão, que entre os principais personas da “regeneração” da cidade não sobressaiu nenhum representante orgânico dos interesses industrialistas. (Apesar da criação, por parte dos industrialistas, de formas específicas de representação dos seus interesses na cidade, a exemplo da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e do Clube de Engenharia). Entretanto, é correto frisar que os interesses industrialistas estavam incluídos no imenso rol dos interesses privados de comerciantes, banqueiros, especuladores e aristocratas de papel timbrado, formando um elenco variado de beneficiados com a modernização da cidade.

A diferenciação entre agrários, banqueiros, comerciantes e industrialistas, manifestava-se no Brasil, daquele período, nas disputas de condução do poder estatal e nos interesses diretos na apropriação/regulação da cidade capital.

O esgotamento da antiga ordem disciplinar de sujeição e coerção pessoal caracterizada pelo binômio senhor-escravo, exigiu a reelaboração de estratégias capazes de conter, nos estreitos limites do mercado, aquela massa de livres e libertos que convergia para a cidade. O Código Penal e a posterior Lei Adolfo Gordo (1907) foram medidas institucionais por meio das quais a propriedade e os proprietários eram resguardados, sob o escudo protetor do Estado, dos despossuídos que ingressavam nas novas relações entre homens “juridicamente livres e iguais”. A nova ordem disciplinar requerida pelos dominantes não se evidenciaria exclusivamente pelo aparato legal e policial do Estado. Novas formas de trabalho e de relações de produção exigiam estratégias espaciais capazes de conter o “nomadismo” daqueles homens disponíveis como força-de-trabalho e transformá-los da condição “de multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidade organizadas”[4].

A “cidade da ordem agroexportadora” como espaço disciplinador estava em plena decomposição com a transição para o capitalismo, tanto como referência simbólica indicadora de os “de cima” (o sobrado) e de os “de baixo” (o térreo), como pelos seus dispositivos de coerção que tinham como alvo principal o corpo do escravo. O novo Poder do Estado e da Economia deveria ser impessoal, vasto e negador das singularidades objetivas e subjetivas. Portanto, dedicado a toda a “nação flutuante” das ruas da cidade. Estava posto um projeto de poder que se constituía na cidade e, a partir da cidade, como afirmação da racionalidade capitalista que acompanhava a mudança político-institucional do Império para República.

Compreende-se agora porque os discursos das autoridades intelectuais dirigiam seus ataques contra a “cidade colonial” (“símbolo do passado, do opróbrio, do atraso”). Percebe-se que a “cidade colonial/armazém” significa a imagem-síntese do capital agroexportador e seu cortejo de conflitos territoriais, considerados como expressão da desordem urbana.

Contudo, a demolição da “cidade armazém” para a construção do urbano da “ordem e do progresso” teve como alvo principal a destruição da “cidade negra e pobre”. O contexto social urbano que emergiu em plena ordem escravista e se reproduzia nas fimbrias do urbano do capital mercantil agroexportador. Homens livres e libertos que constituíam seus modos de vida e trabalho nas ruas-labirinto não estavam suficientemente sensíveis à nova disciplina que a economia da mais-valia exigia. Portanto, seus códigos de vida e trabalho, surgidos contraditoriamente sob a ordem escravocrata, se confrontavam com as normativas do trabalho fabril precipitada na cidade.

A realização da cidade como espaço disciplinar requeria a destruição das ruas-labirinto que entrelaçavam e ocultavam vidas. Demolir o casario e as vielas por onde transbordava cheiros e sons, significava descortinar modos de vida, vigiar e punir a coagulação densa e plasmática da multidão. Destruir os labirintos significava a possibilidade concreta de edificar uma ordem espacial capaz de impedir o cruzamento entre os proscritos pela indigência da miséria e a “população ordeira” capaz de ingressar no mundo civilizado da higiene e da disciplina burguesa.

A modernização urbana ao buscar subsumir o movimento “inútil e perigoso” da multidão pela circulação ordeira da força-de-trabalho realizava os princípios da industrialismo: o “progresso” como trabalho e a “ordem” como disciplina. O espaço modernizado celebrava a substituição das “leis da rua” pelas leis do capital e do Estado.

A construção do arranjo funcional no espaço urbano exigia a eliminação dos “usos da desordem” no coração da cidade. Refazer a cidade era também construir um “habitat civilizado” para o desfrute das novas classes dominantes, pois significava instrumentalização do urbano nas condições de acumulação de capital e da formação do mercado de força de trabalho livre.

Distintos negócios seriam beneficiados com a reforma urbanística do Rio de Janeiro, inclusive tomariam parte do processo de reestruturação urbana para além da urbe primordial. Estamos nos referindo à apropriação mercantil da terra urbanizável impulsionada pelos empreendimentos imobiliários com a abertura de novos bairros na cidade.

A modernização urbana abrigou a transformação do uso espaço que, em linhas gerais, podemos definir como a ultrapassagem definitiva da hegemonia do uso senhorial-mercantil para o uso da racionalidade capitalista. É desnecessário frisar que, no período anterior a chamada “Reforma Passos”, já estava em marcha o processo de especulação imobiliária no urbanismo. Porém, esta tendência na urbi primordial convivia com as formas de apropriação do capital mercantil vinculada a uma incerta “acumulação primitiva urbana”, matizada na propriedade (e nas rendas provenientes da propriedade) de habitações precárias, prédios de uso comercial (armazéns, quitandas, carvoarias, oficinas) e até mesmo dos imóveis que abrigavam atividades artesanais e manufatureiras nas ruas do centro da cidade.

Os limites desta “acumulação primitiva” estariam, sobretudo, no caráter de classe dos seus ocupantes que, por sua vez, exprimiam nas formas urbanas o seu lugar na sociedade. Portanto, o novo uso do solo, ou melhor, o novo uso da cidade exigia a “limpeza do terreno” para que a cidade pudesse ser tratada como mercadorias em toda sua plenitude.

Na cidade do Rio de Janeiro a tendência extrema da especulação imobiliária teve como seu pilar os poderes do Estado. De modo discricionário, o Estado passa a dotar a cidade de infraestruturas e serviços modernos privilegiando a expansão de certas companhias – Light and Power Company, Companhia Belga de Gás e Iluminação, Companhia do Jardim Botânico – que encontravam as condições de expandir sues negócios ao monopolizar determinadas “áreas” da cidade e, ao mesmo tempo, acrescendo o valor venal e locativo de terrenos sob o controle de companhias construtoras e incorporadoras de imóveis.

O Estado colhia, por sua vez, resultados objetivos de sua atuação e demonstrava sua racionalidade econômica, à medida que a elevação do valor de prédios e terrenos permitiu a criação de mais impostos e uma previsível regulação das rendas capturadas por suas esferas administrativas, como pressuposto para o reinício do ciclo dos investimentos públicos que são apropriados de modo privado.

A abertura da Avenida Central permite descortinar a nítida associação do Estado e dos interesses privados na reestruturação urbana. Os novos proprietários e os novos usos assim como as trilhas da Light and Power que percorrem a avenida de mar a mar, revelavam a concretude dos interesses econômicos em despertar o “bem gosto arquitetônico”:

“Com a Avenida Central, ganhou a cidade do Rio de Janeiro a sua mais importante artéria, na zona do centro; modificou por completo os hábitos e aspectos da cidade. Sua influencia no comércio foi decisiva. As melhores casas comerciais foram ali instaladas. Os jornais nela constituíram seus prédios, então monumentais. As grandes companhias, clubes, hotéis e vários edifícios do governo como a Escola de Belas Artes, a Biblioteca Nacional, o Supremo Tribunal, o majestoso Teatro Municipal, o Palácio Monroe, foram ali localizados“[5].

A Avenida Beira Mar garantia, além dos seus atributos paisagísticos destinados ao olhar do visitante (negociante) estrangeiro desde a entrada da baía da Guanabara, a acessibilidade aos bairros do Flamengo e Botafogo, bairros onde os empreendimentos imobiliários estavam em expansão e agraciados com jardins e praças criadas pela municipalidade.

A expansão da especulação imobiliária no período aberto com a Reforma Passos não tardaria a alcançar “o novíssimo e salubérrimo” bairro de Copacabana. Retalhado e loteado, o novo bairro que era integrado às premissas da especulação imobiliária é a expressão da incorporação da terra urbanizável pelo capital, antecipando e dirigindo o processo de ocupação territorial na cidade.

Os limites da valorização real e artificial (preço da especulação) têm seus horizontes alargados no poder aquisitivo das classes sociais que ocupam o novo ambiente urbano construído, justamente as classes que podiam pagar os valores de troca criados. Avenidas, ruas, jardins, praças, infraestruturas e serviços criados pela modernização urbana do inicio do século XX correspondiam ao estilo civilizado burguês, porém com o preço carimbado do mundo das mercadorias.

A modernização operou uma demarcação territorial na extensão do urbano e da urbanização, pela via do controle do solo sob as finalidades de produção e consumo tipicamente capitalista. Essa demarcação regulada pelo mercado inventou a zona sul como espaço geográfico da reprodução do capital imobiliário e criou a clivagem decisiva entre o que é urbano e o que é suburbano sob as novas condições objetivas e ideológicas de produção do espaço.

O espírito regenerador do Barão de Hausmann estava em sua própria casa no Rio de Janeiro. Aqueles que não se sentiam conformados eram homens e mulheres contra os quais o arbítrio da modernização se fez. A carta da União Operária do Engenho de Dentro, publicada no Jornal do Brasil em junho de 1905, nos oferece o agravamento das condições sociais pelas intervenções urbanísticas na cidade:

“Com as reformas radicais e necessárias por que está passando esta capital, afluíram aos subúrbios muitos e muitos habitantes, que até essa ocasião moravam em outros pontos, o que veio dar lugar a promiscuidade natural e consequentemente à miséria e à fome. Daí o encarecimento enorme de aluguéis, e serem os moradores pobres obrigados a habitar verdadeiras pocilgas infectadas e imundas. A fome, porém, não tem peias, credo ou lei, e a fome já avassala nossas pocilgas, não há prédios para habitar, os aluguéis sobem, enquanto a vida se torna mais difícil (...)” [6].

A reforma urbana do Rio de Janeiro foi tecida como uma vasta e complexa rede de interesses privados sob o patrocínio do aparelho estatal da “Republica das Oligarquias”. Mas, havia entre todos os interesses particulares algo em comum que a “regeneração” da cidade materializou: a construção do espaço urbano como estrutura de reprodução da hegemonia das relações capitalistas de produção.

A modernização na cidade do Rio de Janeiro realizou-se como um processo destruição das formas antediluvianas do capital para dar lugar à construção de um espaço próprio da racionalidade burguesa, dadas às novas condições gerais de acumulação de capital. É neste sentido que a cidade do Rio de Janeiro assumiu, com o processo de modernização, a configuração de um projeto de poder de classe.

Apesar dos diferentes interesses privados em jogo na “regeneração” da cidade, esta surgiu como a primeira e decisiva investida sistemática de hegemonização das relações sociais, especialmente por meio da instrumentalização do espaço urbano. Para cumprir seus objetivos nada ocultos, as classes dominantes e suas agências instrumentais impuseram a dissolução brutal de modos de vida e códigos sociais ainda não inteiramente determinados pela força disciplinadora do Estado.

A “regeneração” impôs as regras do “progresso e da ordem” burguesa, mobilizando estratégias espaciais para a objetivação de um padrão racional e utilitário do urbano que correspondesse às necessidades do movimento de autovalorização do capital e, ao mesmo tempo, a afirmação de ordem urbana sob o controle do Estado. E, se o urbano criado estava orientado pelos princípios da acumulação de distintas formas de capital, a própria modernização surgiu como fruto-semente de um projeto de poder hegemônico. Fruto, porque foi impulsionada e construída pela universalização do valor de troca, e semente, pois investiu na dissolução dos “mundos do trabalho” e da vida cotidiana de homens e mulheres, tornando-os não somente despossuídos das condições objetivas da vida material, mas de seu espaço social de existência: a própria cidade.

A reforma urbanística da cidade do Rio de Janeiro no inicio do século XX pode ser tomada como uma razão do Estado. Chamando para si as tarefas de modernização, o Estado estabelece uma nova relação com o urbano, onde a própria razão do Estado é a razão própria do capital. No bojo deste processo a cidade começa se autonomizar em relação aos interesses agromercantis até então dominantes, tornando-se o espaço de construção de uma nova hegemonia de classe.


Conclusão

As relações de poder assentadas no urbano como condição para instituição do Estado Nacional na América Latina e, particularmente no Brasil, requer maior atenção das pesquisas dedicadas ao tema das formas políticas institucionais. Acreditamos que a construção do Estado Nacional tem como materialidade o urbano, tanto em sua mediação nevrálgica de desenvolvimento quanto em sua escala territorial de poder. É neste momento que a cidade se emancipa da província e se impõe como campo político e cultural de direção hegemônica.

As cartografias de posições e disposições dos atores políticos revelam o complexo jogo de poder que atravessou a construção do Estado, demonstrando que a centralidade do urbano é decisiva em todo seu processo constituição. Emergem neste intricado tecido as práticas territoriais que se originam de modos diferenciados de exercício de poder.

Acreditamos que curso das mudanças sociais de modos de poder configura as cidades como espaços de conformação política, fazendo das mesmas uma síntese das disputas pelo sentido do Estado e de sua projeção nacional como instância de direção política. Portanto, a leitura aqui proposta visa contribuir para a construção de uma analítica urbana centrada nas relações de poder que, embora não desconsidere a dimensão econômica das relações sociais, direciona sua ótica para o entendimento no âmbito da geografia política da modernização das cidades.

A modernização da cidade do Rio de Janeiro no início do século XX é emblemática na configuração geográfica do processo aludido, pois é elevada a condição de uma razão de e para o Estado (nacional). De sua posição nevrálgica entre economia agroexportadora e o mercado externo, a cidade do Rio Janeiro passa a se tornar a centralidade de governo e, sobretudo o espaço de afirmação de um projeto de poder revelado na sua passagem de cidade-província para cidade-capital.

 

Notas

[1] STEIN, Stanley. Grandeza e Decadência do Café no Vale do Paraíba. São Paulo, Ed. Brasiliense, 1961, p. 101.

[2] Fecunda Administração. Revista “O Comentário”, janeiro, 1905.

[3] A empresa inglesa contratada para a remodelação portuária contava no seu vasto currículo a construção das docas de Preston e Barrow, do canal de Manchester e, no período de ampliação dos seus serviços no Rio de Janeiro, estava em andamento a construção de um quebra-mar nas Bermudas e da Doca Sul de Buenos Aires. Como podemos observar, o próprio currículo da C.H. Walker aponta as exigências do desenvolvimento capitalista na modernização das estruturas espaciais de circulação “nesta” e em outras “partes do mundo”.

[4] Foucault, Michel. Vigiar e Punir, p. 135.

[5] Reis, Jose de Oliveira. O Rio de Janeiro e seus Prefeitos. Rio de Janeiro. Prefeitura do Rio de Janeiro, 1977, p. 129.

[6] Jornal do Brasil, 14/06/1905.

 

Bibliografia

ABREU, Maurício A. Evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987.

BARBOSA, Jorge Luiz. Modernização Urbana e Movimento Operário. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Geografia. UFRJ, 1990.

BENCHIMOL, Jaime Larry. A Modernização do Rio de Janeiro. In O Rio de Janeiro de Pereira Passos. Rio de Janeiro: Index, 1985.

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STEIN, Stanley. Grandeza e Decadência do Café no Vale do Paraíba. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1961.

 

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Ficha bibliográfica:

BARBOSA, Jorge Luiz. A província e o urbano na construção do Estado Nacional latinoamericano no século XIX: a invenção do Rio de Janeiro como cidade capital. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de noviembre de 2012, vol. XVI, nº 418 (37). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-418/sn-418-37.htm>. [ISSN: 1138-9788].

Índice del nº 418
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