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Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XVI, núm. 418 (48), 1 de noviembre de 2012
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

CONSTRUINDO E DESFAZENDO TERRITÓRIOS: AS RELAÇÕES TERRITORIAIS ENTRE OS PARESI E OS NÃO-ÍNDIOS NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XX

Roberta Carvalho Arruzzo
Depto. Educação e Sociedade/Instituto Multidisciplinar – Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
betarruzzo@hotmail.com

Construindo e desfazendo territórios: As relações territoriais entre os Paresi e os não-índios na segunda metade do século XX (Resumo)

O território Paresi, no Centro-Oeste brasileiro, se modificou profundamente a partir da intensificação de suas relações com os não-índios, na segunda metade do século XX, como parte das ações para ocupar este imenso “espaço vazio”. Procurou-se, primeiramente, estabelecer como era o território Paresi no início do século XX e como este território foi parcialmente desarticulado devido às relações estabelecidas com as frentes extrativistas e as Linhas Telegráficas. A partir da década de 60, com os projetos de desenvolvimento e ocupação governamentais, ampliou-se a presença de atores não-índios na Chapada dos Parecis. Ocorreu, a partir daí, a imposição de territorialidades baseadas na linearidade dos limites e na exclusividade do uso dos recursos. Ações e acontecimentos em escalas distintas foram delineando uma nova territorialidade Paresi, em contraponto a dos atores não-índios, baseada na presença de limites lineares e definida com base em uma série de ações legais estranhas aos povos indígenas.

Palavras chave: povo Paresi, territorialidade, território, Chapada dos Parecis.

Building and destroying territories: The territorial relations between Paresi and non-indigenous people in the second half of the twentieth century (Abstract)

The Paresi territory, in central-western Brazil, changed after the intensification of their interaction with non-indigenous people as of the second half of the twentieth century, as part of attempts to occupy this vast "empty space". Initially, the nature and extent of Paresi territory at the beginning of the twentieth century was defined and how this territory was partially disrupted as a result of interactions with groups engaged in extracting natural resources and erecting telegraph lines. As of the 1960s, when government development and occupation projects were introduced, an increasing number of non-indigenous people were drawn to the Parecis plateau. From then on, territorialities were imposed that were based on linear boundaries and the exclusive use of the resources within. Actions and events on different scales gradually delineated a new Paresi territoriality, set in contrast against that of the non-indigenous actors, and also based on linear boundaries and defined by a series of legal procedures that were unfamiliar to the indigenous peoples.

Key words: paresi people, territoriality, territory, Parecis plateau.


O processo de formação e consolidação da sociedade brasileira, primeiro como colônia portuguesa e depois como nação independente, nos remete, entre outras coisas, a formas distintas de se conceber e atuar sobre o chamado “interior do Brasil”. As regiões Centro-Oeste e Norte foram muito comumente identificadas, inclusive em políticas públicas, como imensos “espaços vazios” econômicos ou populacionais e foram o foco de preocupações e ações diversas por parte do Estado e outros atores.

Dificilmente estes espaços foram encontrados realmente vazios. O processo de integração das regiões Centro-Oeste e Norte do Brasil aos mercados da região sudeste foi, sem dúvida, marcado pelo encontro e o conflito étnico. Grupos indígenas que ocupavam largas extensões territoriais no início do século XX, no fim do mesmo habitavam territórios consideravelmente menores, com limites estabelecidos a partir de uma série de procedimentos legais, as Terras Indígenas[1].

Neste contexto, o grupo indígena Paresi, que no início do século XX ocupava vasta área da Chapada dos Parecis no estado de Mato Grosso, termina o mesmo habitando onze Terras Indígenas de extensão muitíssimo inferior, algumas contínuas, outras não. Nosso objetivo central foi entender as modificações territoriais dos Paresi na segunda metade do século XX como fruto das relações estabelecidas com os outros atores que buscaram se apropriar da Chapada dos Parecis. Procuramos, assim, compreender os processos que levam à construção, modificação e redefinição de territórios, buscando focar nas ações realizadas para que os territórios existam e se transformem e nos objetivos e estratégias dos atores que realizam estas ações.

Para abordarmos tais questões, realizamos uma intensa pesquisa bibliográfica e em documentos oficiais buscando reconstruir a extensão e forma de organização tradicional do território Paresi e as ações oficiais de colonização, além de importantes trabalhos de campo que nos auxiliaram no entendimento das lógicas envolvidas nos processos de “ocupação” da região. Porém, foram fundamentais as entrevistas realizadas com os Paresi no ano de 2008, bem como a consulta a jornais e revistas, para o entendimento das questões mais recentes.

O texto divide-se em quatro partes. Na primeira, buscamos apontar os principais elementos de nosso aporte teórico sobre território e territorialidade. Na segunda, encontram-se alguns comentários sobre as principais relações territoriais entre os Paresi e os não-índios na primeira metade do século XX como forma de, através dos principais relatos, entendermos o território e territorialidade tradicional do grupo indígena. Na terceira parte, tratamos as principais ações governamentais de ocupação da região nas décadas de 1960 e 1970, que resultaram numa grande modificação do território e territorialidade Paresi. Na quarta parte, tratamos do processo de regularização fundiária oficial do território do grupo, ou seja, a criação das Terras Indígenas e algumas de suas consequências.


Território e territorialidade: tecendo um aporte teórico

A abordagem teórica que enfocamos aqui opta especificamente por uma visão territorial da questão, utilizando parte da base conceitual da geografia política. O conceito de territorialidade, tal como estruturado por Sack (1986), e o de território proposto por Raffestin (1993), nos permitiram uma abordagem dos processos de ocupação da Chapada dos Parecis pelos diferentes atores não-índios e suas relações com os Paresi.

Não cabe aqui o interesse pela materialidade do território unicamente, mas sim pelas ações realizadas para que ele existisse e fosse mantido, quem as realizou, para quê e de que forma. Entendemos o território como uma área apropriada por ator ou atores sociais e que é organizado, vivido, estruturado com base em três elementos fundamentais: nós, redes e malhas ou tessituras (Raffestin, 1993). Como nenhum ator está sozinho, como há uma constante relação com outros atores e seus territórios, o que em geral é percebido pelo geógrafo é o sistema territorial, são os territórios dos diferentes atores em relações uns com os outros.

Neste sentido, a noção de territorialidade proposta por Robert Sack (1986) se fez fundamental. A territorialidade é, para nós, as ações desenvolvidas na tentativa de se formar um território e mantê-lo, ou seja, de exercer controle sobre uma área para controlar pessoas e/ou recursos. As relações entre as territorialidades dos diferentes atores e grupos sociais, entre as estratégias utilizadas e suas razões, nos parecem ser a forma mais eficaz conseguirmos entender as ações desenvolvidas para a construção, manutenção e destruição de territórios.

Estabelecer, manter e organizar um território são ações realizadas com determinados objetivos, sentidos. Na maior parte das vezes, acreditamos que não seria totalmente leviano supor que, constituir, organizar e manter o controle sobre determinado espaço seja uma ação social como proposta por Weber (2002). Desta forma, é fundamental buscarmos entender os sentidos da ação.

As relações que aqui chamamos de territoriais são, na verdade, relações entre atores, o espaço geográfico e outros atores. Se entendermos que os territórios são sempre constituídos para controlar pessoas e/ou recursos, através do controle de uma área, este controle será sempre em relação a alguém. Além disso, ao constituir o território o ator social está sempre exposto aos territórios dos outros atores, constituindo o sistema territorial de Raffestin. O que nos propomos aqui, em última instância, é analisar como se organizou o sistema territorial atual na Chapada dos Parecis.

As relações entre os distintos grupos de atores podem ser de diversos tipos, como nos aponta Raffestin (1993), e ter diversos conteúdos. Sendo, em sua maioria, dissimétricas e multilaterais, envolvem relações de poder e dominação entre os diversos grupos sociais envolvidos.


Grupo indígena Paresi: Território tradicional e as relações territoriais com os não-índios no início do século XX

Os Paresi são um grupo étnico que ocupa a Chapada dos Parecis desde tempos imemoriais. Até o início do século XX, permanecia ainda certa indefinição do que seriam os subgrupos dos Haliti[2]. Atualmente é consensual que tenha havido cinco subgrupos: Kaxíniti, Waimaré, Kozárini, Warére e Kawali, com grande variedade de grafias ao longo dos anos. Nos dias atuais, restam representantes de três dos subgrupos Paresi: os Kozárini, os Waimare e os Kaxiniti, sendo este em número bem reduzido.

A importância do território para o grupo se encontra presente desde o seu mito fundador, no qual o homem[3] teria surgido do interior da terra, na localidade conhecida como Ponte de Pedra, brotando das suas fendas, “pelos buracos das rochas existentes no rio Sucuriu-winã (Sucuruína ou Ponte de Pedra, tributário do Arinos) e descobriu o mundo” (Machado, 1994: 249). Os subgrupos Paresi, teriam surgido das relações entre os grupos de irmãs e irmãos surgidos de dentro da terra.

A partir do século XVIII, aos poucos se intensificam as notícias sobre os Paresi, em grande parte devido ao desgaste das minas da região de Cuiabá, o que levou as bandeiras e monções a mudarem sua direção procurando novas minas e “gentios” para escravizar. Os Paresi capturados pelas bandeiras eram utilizados como mão-de-obra nas minas, roças e como guias na expansão para o Oeste. Havia também uma constante preocupação em evitar um avanço espanhol sobre as minas de Mato Grosso e acreditava-se que alguns povos indígenas pudessem facilitar e auxiliar esta expansão do domínio espanhol. As referências aos Paresi nos documentos legais e relatos da época acabaram por criar uma imagem de índios “dóceis”, “mansos”, em oposição aos “bravios”, “traiçoeiros” Nambiquara e Paiaguá.

Mapas e relatos de autores como Roquette-Pinto (1975), Rondon (1912 e 1940), Costa (1985), Machado (1994) e Schimdt (1943) sobre os Paresi indicam que o território que ocupavam no início do século XX, que aqui denominamos de território tradicional, se estendia da margem direita do rio Juruena até quase a margem esquerda do rio Arinos[4], no noroeste do estado de Mato Grosso. Este território era ainda diferenciado entre os subgrupos. Os Waimare ocupavam as áreas mais ao norte enquanto que os Kozárini as mais ao sul e os Kaxíniti as áreas mais a leste[5].

Quanto às relações dos Paresi e os outros povos indígenas que ocupavam a região, entendemos que a fronteira entre os mesmos existia, mas não era nem linear, nem fixa. Podemos recorrer, como Raffestin (1993: 166), a noção de fronteiras zonais, que funcionavam mais como uma “zona de defesa” do que como um limite preciso e linear entre os territórios dos povos.

Durante o século XX intensifica-se o contato dos Paresi com grupos não-índios[6]. Os principais grupos de atores que nos interessam aqui são: os extrativistas, Rondon e a Comissão de Linhas Telegráficas e Estratégicas de Mato Grosso e, por fim, os missionários religiosos. Entendemos que, além de social e culturalmente, as relações dos Paresi com estes grupos interferiram na sua organização territorial. A partir de agora analisaremos estas relações como se fossem bilaterais, ou seja: os Paresi e as frentes extrativistas; os Paresi e a Comissão de Linhas Telegráficas e, por fim, os Paresi e os missionários religiosos. Esta separação é unicamente analítica. Além de parte destas relações dos Paresi com outros grupos de atores sociais terem sido simultâneas, não poderiam ocorrer “separadamente”. Estas relações eram o que Raffestin (1993) denominou multilaterais.

Cada grupo social que encontrou e se relacionou com os Paresi tinha determinadas finalidades ao adentrar seu território e procurou estabelecer controle sobre o espaço e seus recursos. Como isto vai ser realizado e o nível de controle de acesso e de limites que o grupo social tenta criar depende profundamente de seus objetivos e finalidades ao limitar uma área sobre a qual exerce poder. Os Paresi então foram forçados a entrar em contato com estes grupos sociais, seus objetivos e suas territorialidades.


Os Paresi e as frentes extrativistas

No início do século XX, Rondon encontrou os Paresi em situação ora de dominação ora de colaboração com os seringueiros[7], que estão fartamente descritas em seus relatórios e nos textos da Comissão. A borracha já era utilizada anteriormente pelos Paresi para a confecção de adornos e da bola para o famoso “futebol de cabeça” praticado pelo grupo. Assim, a princípio atuaram como guias dos seringueiros e, posteriormente, trabalharam na extração de latéx, trocando o produto extraído no barracão por bens industrializados e ferramentas de trabalho. Esta relação também foi, em muitos casos, marcada pela violência.

Cabe aqui entender a forma como se organizavam territorialmente os seringais. As seringueiras se localizam nas áreas de matas próximas aos rios e se distribuem de forma pouco uniforme, convivendo com uma enormidade de outras espécies vegetais. O seringueiro, então, traçava suas estradas, caminhos entre as seringueiras, que em geral começavam e terminavam em sua casa, localizada na proximidade de um rio. Como a Hevea se encontrava dispersa pela mata, as casas dos seringueiros não poderiam ser próximas, não formando assim núcleos maiores que uma família. Os seringais, para serem produtivos e rentáveis para os seringalistas, tinham que ocupar enormes extensões.

Como as seringueiras poderiam se esgotar e apenas elas eram interessantes, nem sempre importava aos seringalistas a propriedade da terra regularizada, apenas a rede de caminhos que levava os seringueiros às árvores e ao barracão. Fundamental era a comercialização da “riqueza da selva”, não exatamente a propriedade e o controle da terra. Assim, os seringais eram, em geral, enormes concessões de terras públicas (Ribeiro, 2000: 39). As vias de acesso mercado consumidor, controladas pelo seringalista para controlar o trabalhador, eram, no caso de Mato Grosso, estradas precaríssimas, tornando o transporte lento e caro (IBGE, 1957: 122).

Os Paresi historicamente habitavam as cabeceiras dos rios, sendo inevitável um encontro constante. Os subgrupos Kaxíniti e Waimare, que viviam nas regiões de seringais, acabaram por servir de mão-de-obra para os seringalistas e se tornaram “índios-seringueiros”. Esta relação contribuiu para a dispersão de aldeias com a saída dos homens ou de famílias inteiras para a extração de látex, para a redução de grande parte da população destes grupos, bem como para uma maior relação dos mesmos com os não-índios. Sobreviveram em melhor situação que os seringueiros tradicionais, pois dificilmente deixavam de produzir suas roças e seu alimento, mas não escaparam da exploração do trabalho inerente ao sistema de aviamento.

Concomitante à exploração da borracha, havia a da poaia. Das raízes da Ipecacuanha se extraía emetina, substância utilizada principalmente na indústria farmacêutica. A extração da raiz começou no sudeste do Brasil e apenas na segunda metade do século XIX se intensificou em Mato Grosso. Havia grande concentração da poaia nas matas dos rios Jauru, Cabaçal e Sepotuba, território tradicional dos Paresi.

A extração da poaia era uma função bastante penosa. Além de ter que caminhar grandes extensões em busca do vegetal, sua localização não era conhecida, como no caso das seringueiras. A planta era extraída por inteiro e a cada dia o poaieiro devia fazer outro caminho pela mata. Costa (1985: 217-218) identifica dois momentos na coleta de poaia em Mato Grosso: até a Primeira Guerra Mundial de forma mais espontânea e sem a presença do “patrão de poaia”, que agia de forma semelhante ao seringalista; e um segundo momento que, devido à valorização do produto no mercado mundial, contava com a presença dos patrões. Parte dos patrões de poaia eram também seringalistas nos meses secos do ano e o sistema de barracão e aviamento era utilizado.

Para a mesma autora, grande parte dos Paresi se envolveu neste trabalho. Ao entrevistá-los a respeito do trabalho na poaia, encontrou imagens bastante distintas das envolvidas na extração da borracha. Não havia em seu discurso referências a conflitos com os patrões da poaia, pelo contrário. Estes pareciam ser vistos como benfeitores doadores de bens, como quem “antes de Rondon tomava conta de índio” (Costa, 1985: 226).

Muito provavelmente, tais imagens positivas do trabalho na extração da ipeca se devem às condições e ao período em que o mesmo ocorria. Para a extração da poaia os Paresi formavam grupos durante o período das chuvas. Este período é justamente quando a vida social e econômica nas aldeias era menos intensa. Como o período de extração não era muito longo, compravam pouquíssimos itens alimentares no barracão, dificilmente se endividando.

Os patrões da poaia deixaram de atuar na região por volta de 1970, quando chegaram os produtores rurais. Sua organização espacial assemelhava-se muito a dos seringueiros, diferindo talvez por ser ainda mais intermitente. Sua duração era inferior à da extração da borracha, mas sua espacialidade semelhante. A continuidade territorial em si não era o mais importante e sim a rede de extração e comercialização de um único produto. Durante o resto do ano, os patrões permitiam que os poaieiros ficassem nas proximidades, plantando roças de subsistência e se endividando no barracão e os Paresi retornavam a suas aldeias com os bens industrializados que conseguiram adquirir.


Rondon e as Linhas Telegráficas

Cândido Rondon foi um militar de grande importância no Brasil, tendo participado, entre outras coisas, de diversas missões de reconhecimento e ocupação dos sertões brasileiros e, em suas relações com os povos indígenas, destacava-se por sua postura pacífica. Seu contato com os Paresi se dá no início do século XX, com as missões realizadas para a instalação de linhas telegráficas que ligariam o Mato Grosso ao Amazonas. Estas missões incluíam ainda outros objetivos estratégicos para o Estado Brasileiro: construção de estradas e integrar e proteger as áreas próximas às fronteiras com a Bolívia e o Paraguai. Muitos Paresi, dos subgrupos Kaxíniti e Waimare, acabaram por se envolverem na construção e mesmo na manutenção das linhas telegráficas. Depois de instaladas as estações, muitos passaram a viver nas mesmas, trabalhando como guarda-fios, por exemplo.

Machado (1994) nos mostra como os Paresi explicaram a seu modo, recorrendo a resignificações de seus mitos, o empreendimento estratégico e militar de Rondon, que contribuiu de forma significativa para a redução de seu território e população. Associaram Rondon a figura mítica de Wazare, o reconhecendo com um protetor. Como vimos, Rondon aproximou-se principalmente dos Kaxíniti e dos Waimare, que já se encontravam em relações de comércio, troca e trabalho com os seringueiros. Já os Kozárini ocupavam o território mais ao sul e eram para Rondon “os mais puros representantes dos Parecis” já que estariam mais livres dos “cruzamentos” com seringueiros, diferentemente dos Waimare e Kaxíniti (1912: 13).

Desta forma, se a atividade nos seringais vinha contribuindo para a dispersão das aldeias, o trabalho nas linhas telegráficas fez o caminho inverso. Boa parte dos Kaxíniti e Waimare se concentrou ao redor das linhas telegráficas, abandonando parte de suas atividades e território tradicionais. O fascínio exercido por Rondon, sua identificação com a entidade abstrata do Estado e com o grande líder e o herói mítico Paresi, facilitaram essa aproximação. Já nas primeiras décadas do século, o efeito deste afastamento de seu território tradicional era bastante expressivo, como evidenciou Schmidt (1943) em mapeamentos feitos sobre o território do grupo.

Com o fim das linhas telegráficas e a posteriormente chegada dos agricultores nas décadas de 1960 e 70, muitos dos Paresi das estações telegráficas migraram para as cidades, outros para postos indígenas e poucos Waimare voltaram ao seu território tradicional. As conseqüências desta desarticulação se fazem sentir até hoje, seja pela reduzida população destes subgrupos, seja pela dificuldade em demarcar pequenas partes de seus antigos territórios.


Missões Religiosas

Algumas missões religiosas[8] também atuaram junto aos Paresi. A Missão Jesuíta, que mais tarde foi substituída pela Missão Anchieta (MIA), também ligada à ordem Jesuíta, optou por agir principalmente com as crianças. Estas eram deste cedo afastadas de suas famílias, obrigadas a conviver com outros grupos étnicos por vezes inimigos e impedidas de falarem a língua materna. As crianças, educadas desde cedo nos costumes da “civilização cristã”, seriam mais facilmente integradas à mesma. Para Costa (1985), a atuação dos jesuítas eram pensadas como tentativas de conduzir o “índio” a “se superar” e adotar os costumes cristãos.

A ideia evolucionista presente na necessidade de “superação” do indígena começa a ser questionada nos altos cargos da Igreja Católica em meados da década de 1960. A Missão passou então a questionar sua atuação, reformulando suas perspectivas educacionais e sua vocação pela aculturação dos índios. No ano de 1968, por exemplo, incluiu-se nas funções da Missão Indígena, setor autônomo, porém ligado à Prelazia, a necessidade de negociar junto à FUNAI a agilização da demarcação de Reservas Indígenas para os grupos étnicos com que atuava. No mesmo ano é decretada, entre outras, a Reserva Indígena Pareci (Costa, 1985). Até então não havia notícias de atuação dos missionários na defesa dos territórios indígenas.

A partir do ano seguinte se inicia a desativação da Missão Jesuíta de Utiariti. Embora o internato tenha sido desativado, a MIA consegue autorização da FUNAI ainda no início da década de 1970 para continuar a agir junto aos grupos indígenas, principalmente na área da saúde, além de promover pesquisas junto aos mesmos. Em 1969 também foi criado a OPAN[9], braço leigo da MIA, que manteve sua atuação junto à parte dos Paresi, incluindo a realização de projetos de agricultura mecanizada (Costa 1985).

De certa forma, a atuação centralizadora da MIA na Missão de Utiariti[10] pode ter contribuído, junto com a exploração da borracha e a presença das estações telegráficas, para a composição de certa concentração populacional ali, desorganizando grupos locais e seu cotidiano. Desta forma, sua atuação parece ter sido muito mais no sentido de desarticular a organização espacial de alguns grupos locais do que atuar na defesa dos direitos territoriais indígenas, o que consonava com sua política de integração do índio à sociedade cristã.


Grandes projetos governamentais: ocupação do “espaço vazio” e a introdução da cerca

No Brasil, na segunda metade do século XX, duas áreas figuravam para o estado brasileiro como imensos espaços vazios a serem ocupados: a Amazônia e o Centro-Oeste, em especial as áreas de cerrado. Além de fazer parte da região Centro-Oeste, Mato Grosso também faz parte da Amazônia Legal, ou seja, estava inserido na grande maioria dos discursos e ações oficiais sobre os “espaços vazios” brasileiros.

Em 1957, data da publicação do volume Grande Região Centro-Oeste da Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, realizada pelo IBGE, a maior parte da economia de Mato Grosso era baseada na pecuária extensiva e sem seleção de raças. Apenas nas áreas de mata se praticava a atividade agrícola “feita pelo processo rotineiro da derrubada e queimada, aprendido dos índios, e praticado sem grandes melhoramentos durante quatro séculos da ocupação luso-brasileira” (IBGE, 1957: 27). As dificuldades de transporte também eram grandes limitantes. Havia áreas, em especial no Norte de Mato Grosso, “em que apenas os rios e veredas abertas em meio à vegetação de cerrado e mata, constituem os caminhos transitados pela escassa população dos seringais em Mata Grosso” (IBGE, 1957: 28).

A partir de 1960, com a construção de uma estrada federal em pleno território Paresi, a BR-364, a situação começa lentamente a mudar. Esta mudança se inicia com a valorização das terras e com uma enorme procura por títulos das terras devolutas. Considerável número de títulos definitivos foi expedido entre os anos de 1958 e 1961, voltando a crescer novamente às vésperas do fechamento do DTC[11] em 1966, provavelmente como conseqüência da grande expedição de títulos provisórios nos anos 1963 e 1964[12]. Grande parte da Chapada dos Parecis passa assim, em poucos anos, de vastos seringais arrendados a terras tituladas.

Embora boa parte da Chapada dos Parecis tenha adquirido “donos” já no início da década de 1960, a atividade principal permanecia o extrativismo e pecuária extensiva e, até fins da década de 1970, a agricultura ainda era considerada de nível muito baixo (IBGE, 1957: 266). Os primeiros agricultores da região produziam milho e arroz de sequeiro para o mercado regional (Silva, 2003: 190). É apenas na década de 1980 que a agricultura começa a ganhar importância na Chapada dos Parecis, o que provavelmente se deve à valorização das áreas devido aos melhoramentos dos transportes, incentivos públicos, produção de sementes de soja adaptadas às áreas de cerrado, bem como à presença e interesse de agricultores capitalizados o bastante para utilizarem as tecnologias necessárias à produção nestas áreas. Assim, a produção agrícola de forma rentável e empresarial já se inicia na região com elevado nível tecnológico, baseado em intenso maquinário, correção química do solo e biotecnologia.

Estas ações foram sendo incentivadas através de um grande número de programas, projetos e planos realizados durante os governos militares[13]. A maior parte destes programas e planos se inseria em contextos maiores, como era ocaso do I Plano Nacional de Desenvolvimento, lançado em 1971, prevendo ações de 1972 a 1974, no âmbito do qual foram criados outros planos também de grande porte, como o Plano de Integração Nacional (PIN) e o PRODOESTE (Programa de Desenvolvimento do Centro-Oeste). Além destes dois últimos, muitos programas nacionais e ações para a Amazônia Legal e para os cerrados e Centro-Oeste atingiram o espaço mato-grossense, que mudou drasticamente.

É no contexto destas facilidades legais para a obtenção de grandes extensões de terras e dos projetos governamentais incentivando o maior aproveitamento econômico dos “espaços vazios” de Mato Grosso que, a partir da década de 1960, a Chapada dos Parecis aos poucos muda sua posição geográfica. Já na década de 1990 a produção de grãos, em especial a soja voltada para o mercado externo, era bastante expressiva na região que, nos anos finais desta década, era uma das principais áreas produtivas do país. De um imenso “espaço vazio” a Chapada dos Parecis passa a fazer parte do comércio internacional de commodities agrícolas.

Um dos principais limitantes do desenvolvimento agrícola em Mato Grosso parecia se apresentar ainda mais temerário na Chapada dos Parecis: o alto custo do transporte até os portos exportadores e o mercado consumidor. As melhores zonas produtivas são as áreas planas das partes mais altas do Chapadão, distantes às vezes centenas de quilômetros do novo traçado melhorado da BR-364 e de estradas pavimentadas. Estas dificuldades vão sendo amenizadas através da abertura de estradas vicinais, como a Nova Fronteira, que corta a TI Utiariti[14], e da qual trataremos mais tarde. Neste contexto, o Grupo André Maggi, na década de 1990, participa da implantação de um antigo projeto de criação da hidrovia Madeira-Amazonas. A hidrovia, finalmente inaugurada em 1997, após alguns anos de negociações e associações políticas, reduziu o preço do transporte da soja até o mercado internacional, tornando a Chapada dos Parecis ainda mais viável e interessante economicamente. Ainda hoje, a questão do transporte é de fundamental importância e melhorias e asfaltamento de estradas são reivindicações constantes dos produtores. As grandes distâncias favoreceram também o surgimento de centros urbanos dinâmicos e capazes de fornecer serviços especializados aos produtores.

Assim, em meados da década de 1990, a região da Chapada dos Parecis já apresentava uma das maiores produções de soja do Brasil, com elevado rendimento, indicando o nível tecnológico e o quão intensivo era o sistema produtivo ali instalado. Este sistema, representado principalmente pela produção de soja, mas também com importante produção de algodão, cana-de-açúcar, milho e arroz, modifica rapidamente o caráter regional. O forte crescimento populacional, o surgimento de cidades e municípios, novas estradas, a conexão com outros eixos de transporte e a ostentação da riqueza nas fazendas e nas cidades não ocorreram sem profundas consequências na vida dos povos indígenas locais, em especial os Paresi.


A lógica da cerca Versus Wazare

Das tendências apontadas por Sack (1986: 31-34), cinco se destacam na territorialidade Paresi tanto antes da penetração da frente agrícola, como podemos perceber através de textos e relatos, quanto atualmente, evidente em suas falas e ações. As três primeiras são as que estão presentes em toda sorte de comportamento territorial: classificação, comunicação dos limites e o controle do acesso[15]. Já as duas outras tendências nos parecem ser as que o autor identifica como fundamentais em situações em que ocorrem representações mágicas e míticas do território. Vamos nos deter um pouco em cada uma delas.

A classificação através da área está presente quando aquela área e tudo o que nela se insere é visto como um tipo, diferente do que está fora. As coisas são classificadas pela sua localização no espaço, no caso específico: é ou não é parte do território Paresi. Já a comunicação dos seus limites também se faz fundamental. Os limites Paresi, como já vimos anteriormente, não eram comunicados através de marcos criados no território, mas coisas que ali estavam eram utilizadas como tal e comunicadas nas relações pessoais. Os limites, inclusive entre os subgrupos, eram bem definidos e tão bem comunicados que até os dias atuais são repetidos muito naturalmente. Quando perguntados sobre os limites de seu território, a resposta dos Paresi costuma sempre ser iniciada por uma breve ou longa narrativa que envolve Ponte de Pedra e as designações das áreas que deviriam ser ocupadas por cada subgrupo, feitas por Wazare quando os homens saíram da pedra, e os nomes dos rios em sua língua.

O controle de acesso, terceira tendência apontada por Sack (1986) como uma das fundamentais e presentes em todo tipo de territorialidade, era, até muito provavelmente as décadas de 1970 e 1980, a menos utilizada pelos Paresi. Devido a toda uma forma de ver o mundo, que tornava os Paresi entendidos como “índios mansos” e que muitas vezes se relacionaram de forma pacífica com seus invasores, esta tendência apenas começou a ganhar força a partir do processo de demarcação territorial. A ideia de exclusividade do uso dos recursos presentes no território não era algo de grande peso para os Paresi, o que foi demonstrado pela longa convivência com os seringueiros.

Outra importante tendência da territorialidades para os Paresi é a reificação do poder, ou seja, tornar o poder e influência, que nem sempre são tão palpáveis, visíveis como cachoeiras, rios e montanhas (Sack, 1986:32-33). Sem dúvida, a reificação está sendo aqui abordada de forma simplória, quase como sinônimo de coisificação, já que o conceito marxista só poderia ser aplicado a sociedades capitalistas complexas.

Por fim, a última tendência da territorialidade manifestada com grande relevância pelos Paresi é o deslocamento da atenção das relações estabelecidas entre as pessoas para o território em si. O território parece conter em si mesmo as formas como as relações irão se estabelecer. O território não é tido como um produto das relações sociais e de poder entre grupos e pessoas, mas como sendo a fonte do poder.

Estas duas últimas tendências da territorialidade podem ser identificadas muito claramente em seus mitos e discursos e visão de território deste povo só pode ser entendida a partir destas questões. A sociedade Paresi vê-se como inseparável de seu território. Surgiu, assim como toda a humanidade, de Ponte de Pedra, saindo de dentro daquele lugar e, já a partir deste momento, sabiam onde deveria viver cada um dos subgrupos. Como vimos, foi Wazare, um personagem fundamental na mitologia Paresi, quem primeiro saiu da pedra, quem nomeou os rios e os lugares e quem disse que irmão deveria habitar que área. O mito é sempre reforçado pela própria existência de uma organização territorial determinada. A localização das aldeias também deixa isto bem evidente. O fato de um determinado lugar ter sido uma aldeia torna este lugar sempre uma aldeia em potencial. Os cemitérios Paresi são dentro das suas casas tradicionais, assim, uma antiga aldeia é onde está parte de sua família e sempre estará.

Já para os agricultores modernos, a territorialidade tem significados bem distintos. O controle de um espaço visa, neste caso, o uso exclusivo de alguns recursos, que são maximizados com tecnologias de produção, para a posterior venda do produto gerado e a obtenção do maior lucro possível. Como o recurso neste caso é a terra, são importantes os elementos relativos à qualidade do solo e à topografia, bem com a proximidade de estradas e rios. O uso exclusivo do recurso, a necessidade de total controle do processo produtivo, do que acontece em sua propriedade e a necessidade de se retirar a cobertura vegetal, tornam inviável a convivência, em um mesmo espaço, da atividade agrícola com os Paresi. O território deve ser ocupado por esta atividade com máxima exclusividade possível.

As três tendências básicas da territorialidade são utilizadas com intensidade pelos produtores agrícolas: a classificação do espaço como seu, reafirmada pela exibição de documentos legítimos ou não, como no caso da grilagem; a comunicação dos limites de seu território através de placas e de cercas, coisas até então estranhas aos Paresi e, por fim, o controle do acesso, realizado com maior ou menor intensidade, dependendo da relação estabelecida entre o fazendeiro e os Paresi.

Uma importante tendência que também se apresenta é a de considerar este espaço como vazio. Na concepção tanto dos compradores das terras quanto do Estado, que legaliza sua expropriação, este espaço é visto como um imenso vazio demográfico e um vazio econômico. São eles, os produtores, através do desmatamento do cerrado e impulsionando o deslocamento da população que ali habita desde remotos tempos, que tornaram este espaço preenchido. Tomar este espaço por vazio e eliminar, pelo menos no plano do discurso, qualquer impedimento à ocupação, é uma forma de ação cara à modernidade e às sociedades complexas (Sack 1986: 34). Pensar o espaço como conceitualmente vazio e agir territorialmente como se assim fosse, permite que se realize o movimento de esvaziar, preencher e novamente esvaziar espaços, reorganizando objetos e recursos para se alcançar o objetivo de controle funcional. As relações entre os espaços e os acontecimentos, pessoas e objetos são entendidas como apenas contingentes.

As relações também são tornadas cada vez mais impessoais, assim como o lugar é visto como neutro. Já que a Chapada dos Parecis é considerada legalmente como composta por terras devolutas, a expropriação dos indígenas de seu território é tida como neutra e legítima. Interpretações de leis nacionais e estaduais são utilizadas para revestir de legitimidade ações locais, mesmo que em realidade as ações fossem ilegais, pois a terra era habitada por indígenas. Ao serem ignorados oficialmente pelo Estado, o seu território se torna área vazia, legalmente passível de compra e venda, ações estas normalmente efetuadas à distância e sem qualquer conhecimento dos indígenas.

As Terras Indígenas em que hoje habitam os Paresi só começaram a ser demarcadas em fins de 1960, e apenas na década de 1990 a grande maioria foi homologada. Mesmo sendo estas áreas bem inferiores ao território dos Paresi na primeira metade do século XX, diversos lotes de ‘terras devolutas’[16] foram vendidos dentro das áreas demarcadas, com certidões negativas de presença de indígenas expedidas pelo órgão tutor.


Para além da demarcação territorial

A constituição de uma Terra Indígena depende, além das demandas locais dos povos indígenas, de uma série de procedimentos legais e administrativos. Em entrevistas realizadas em 2008, lideranças Paresi, como o Sr. João Garimpeiro, nos narraram suas inúmeras reivindicações ao então órgão responsável que, além de se encontrar distante fisicamente (nos relata idas a Cuiabá), não chegou a atender as suas demandas.

Parte destas demandas é atendida quando no Decreto n° 63.368 de 08 de outubro de 1968 é criada a Reserva Pareci[17], limitada ao sul pela BR 364. A criação desta reserva parece objetivar mais a liberação[18] das outras áreas da Chapada dos Parecis para sua ocupação com outras atividades econômicas do que propriamente atender à reivindicação indígena, principalmente dos grupos que se encontravam ao sul da estrada, então terras mais valorizadas.

Desta forma, diversas aldeias Paresi haviam sido excluídas do processo e começaram a reivindicar também a demarcação de suas terras. Quando da necessidade de novas investidas junto aos órgãos responsáveis, João Garimpeiro, Daniel Cabixi e diversos outras lideranças Paresi se mostram aliados e solidários, considerando “tudo luta minha”[19].

Costa (1985) associa o fortalecimento das ações da FUNAI junto aos Paresi, que ocorre nos anos 80, a estes se encontrarem na área abrangida pelo POLONOROESTE. Em 1981, a FUNAI teria feito uma consulta às aldeias indígenas a respeito das necessidades de demarcação. Assim foi elaborado o Programa de Apoio às Comunidades Indígenas da Área de Influência da Rodovia Cuiabá/Porto Velho, válido de 1980 a 1985, que previa verbas para serem distribuídas em várias áreas, fornecendo viaturas, atendimento médico, escolas e a regularização fundiária. Com a promessa destas verbas, que deveriam ser utilizadas na melhoria das condições de vida dos Paresi, estes finalmente permitem a criação de postos da FUNAI e sua permanência nas aldeias (1985: 311-318). A FUNAI aparece como um “mal necessário, um novo meio de atingir seu objetivo precípuo: a demarcação das terras” (Costa, 1985: 317). Mas é notável que, assim como a maior parte das TIs no Brasil, a regularização fundiária apenas ocorre na década de 1990 com a tentativa de se colocar em vigor a Constituição de 1988, mesmo no caso da TI Paresi, criada em 1968. Porém, outras TIs ainda se encontram em processo de regularização, como a TI Ponte de Pedra, por exemplo.

Embora, já em meados de 1980, grande parte destas áreas estivesse declarada de posse indígena, isto não evitou uma série de invasões que tiveram que ser elaboradas e tratadas pelos Paresi. Anteriormente, no momento em que havia ausência de limites territoriais definidos e delimitados fisicamente, os Paresi não tinham o costume de empreender expedições de vigia de seus territórios. Conforme vão se criando novas relações, através do estabelecimento legal de limites fixos, os Paresi começam a modificar suas estratégias de controle, procurando aumentar uma tendência pouco desenvolvida até então, a de controle do acesso ao seu território com o objetivo de controlar bens e pessoas. Por outro lado, já não bastavam comunicações interpessoais, mais se faz necessária uma oficialização impessoal do órgão tutor e do presidente da república. Passam, os Paresi, também a controlar o acesso através de comunicações diretas com os invasores[20].

As dificuldades dos povos indígenas em sobreviver em áreas valorizadas economicamente não se extinguem com a regularização fundiária e a criação de Terras Indígenas. Na verdade, a demarcação de um território e a consequente “liberação” para a ocupação das áreas do entorno, dificultam a manutenção de uma série de atividades tradicionais. A grande quantidade de produtos químicos necessária à produção em áreas de cerrado prejudica a qualidade do ar, dos rios e solos. As vastas áreas desmatadas no entorno, além de prejudicarem as atividades de caça, modificam a rede hidrográfica.

Assim, ao entrarem em contato com novas problemáticas a serem solucionadas, as sociedades indígenas, ao seu modo, recorrem a novas formas de agir e de simbolizar ações e situações. O território agora cercado acaba por levar à criação de novas necessidades, que têm de ser supridas. De certa forma, como sobreviver com uma territorialidade “branca” e continuar sendo “índio”, é uma das questões mais cruciais para os povos indígenas na atualidade.

As estratégias de sobrevivência e de acesso a bens industrializados desenvolvidas pelos Paresi, durante sua história no último século, apresentaram significativa diferença quanto aos subgrupos. Enquanto que os Waimare e Kaxíniti estabeleceram relações baseadas no sistema de aviamento com os seringueiros, os Kozárini pouco estiveram inseridos neste processo. As relações com Rondon e as Linhas também ocorreram bem mais intensamente com aqueles subgrupos, contribuindo para uma maior dispersão dos mesmos e um significativo desequilíbrio populacional com relação aos Kozárini. Embora haja uma recente recuperação do subgrupo Waimare, que em grande parte habita a TI Utiariti, este ainda é reduzido em comparação com a população Kozárini. Mais recentemente, as estratégias econômicas desenvolvidas pelos Waimare e os Kozárini acabaram por se aproximar um pouco mais. Grande parte dos Kaxíniti e seus descendentes, em número bem reduzido, ainda aguardam pela demarcação definitiva das TIs em processo de identificação e delimitação.

No início da década de 1960, parte dos Paresi trabalhavam junto aos poaieiros e seringueiros e, esporadicamente, negociavam objetos que produziam nas áreas urbanas ou estradas próximas, além de realizarem trabalho temporário nas fazendas. Desde 1975, através de ações iniciadas pela Missão Anchieta e OPAN, os Paresi haviam realizado tentativas de instituir lavouras mecanizadas em seu território, com pouco êxito. Em meados da década de 1990 os Paresi, já organizados em associações, voltaram a realizar tentativas na direção de uma produção mecanizada de arroz, desta vez recorrendo ao auxílio de produtores locais. A legalidade das relações produtivas com os fazendeiros foi e é debatida no âmbito da FUNAI e Ministério Público Federal desde 1997. Somado a isso, em fins de 1997, o pedágio da rodovia Nova Fronteira, que corta uma das TIs dos Paresi, passa a ser cobrado pelos mesmos como uma alternativa à lavoura mecanizada.

Após diálogos com representantes da FUNAI, dos governos estadual e municipais e do MPF, chegou-se a um acordo em que o financiamento e apoio técnico para as lavouras seriam liberados e, em 2003, foram firmados acordos de parceria agrícola com empresários locais, ao que se seguiu uma série de discussões legais e éticas sobre a questão. Em tese, os acordos não seriam equivalentes ao arrendamento, já que os próprios índios deveriam ter preferência para trabalhar na lavoura, recebendo salário e as associações parte da produção. Assim ocorreria um repasse do conhecimento necessário à produção deste porte, os Paresi iriam aprendendo a utilizar as tecnologias necessárias à produção mecanizada, para depois poderem realizá-las com autonomia. O repasse de parte pequena e, até certo ponto, crescente da produção aos parceiros indígenas, seria justificado pelo alto risco do negócio.

Martins (1985) faz uma importante análise das consequências da penetração da mercadoria na vida social dos povos indígenas, levando a desastres sem precedentes para estes povos. Mas, a mercadoria e o mercado não são uniformes e seus efeitos também não o são. O autor avalia os efeitos diferenciados do produto como mercadoria, da força de trabalho como mercadoria e da terra como equivalente de mercadoria. Na verdade, em todas as suas formas, a mercadoria tem efeito devastador nos povos indígenas, muitas vezes subjugando-os a condições de trabalho bastante exploratórias e a negociações por produtos cruelmente injustas. A terra, convertida em equivalente de mercadoria, passa a ser negociada em instâncias muitas vezes misteriosas para os povos indígenas, levando a que fossem massacrados, retirados ou cercados em pequenas áreas. Porém, embora desastrosas, a penetração do mercado e da mercadoria e de novas relações de produção, não apresentam apenas as consequências esperadas pelo capital[21].

As contrapartidas da penetração da mercadoria nas diversas etnias indígenas são distintas, sem dúvida. O importante é que nem sempre representam a morte social dos povos, e sim, em alguns casos, sua ressurreição como protagonistas políticos. Há casos em que os grupos indígenas, como sujeitos políticos, encontram condições para se recriarem. “Os índios amansam os brancos”, utilizando-se da mercadoria e de suas formas de produzir para prosseguirem e recriarem suas instituições e relações sociais.

Embora as consequências das incursões dos Paresi na agricultura mecanizada e na cobrança de pedágio sejam ainda pouco mensuráveis, podemos também perceber seu fortalecimento como sujeitos políticos. Isto está evidente não apenas na candidatura e eleição de um Paresi a vereador de uma cidade nas proximidades de suas terras, como também na participação de representante da etnia em reuniões e associações diversas. As visitas a Brasília, constantes negociações com a FUNAI local, o fechamento da estrada Nova Fronteira como tentativa de chamar a atenção da mídia e de autoridades, negociações com produtores rurais, são exemplos de ações políticas dos Paresi.


Considerações finais

Nas décadas finais do século XX, o limite do território dos Paresi está completamente modificado. A extensão e os limites fixos das Terras Indígenas diferem bastante de seu território tradicional. De fronteiras zonais e pouco definidas passam a limites lineares fixos e estabelecidos a partir de procedimentos legais que não dependem unicamente de suas ações. De uma única malha contínua passam a ocupar áreas contínuas e outras não, modificando as relações e atividades que promoviam a coesão social. As estratégias utilizadas para a manutenção de seu território têm de ser completamente modificadas.

Tampouco as atividades econômicas tradicionais são suficientes para suprir suas necessidades. A diminuição da caça, o aumento populacional e a necessidade de acesso a bens industrializados fazem com que os Paresi passem a buscar novas estratégias de reprodução social. Neste sentido, os Paresi passam a se envolver com a lavoura mecanizada de soja e atuar politicamente no controle da rodovia que corta parte de seu território e é de fundamental importância para o escoamento da produção agrícola regional. Para permanecerem Paresi, para permanecerem culturalmente diferenciados, se modificam.

Buscamos então mostrar como a segunda metade do século XX representa para os Paresi, entre outras coisas, uma recriação de seu território. Através de relações estabelecidas em múltiplas escalas e com diversos atores, as estratégias e ações que levam a formação e manutenção de seu território se tornam cada vez mais próximas das estratégias e ações não-indígenas. Os limites lineares e regularizados oficialmente e a redução da extensão territorial, bem como uma série de mudanças sociais e ambientais ocorridas dentro e fora das áreas indígenas, contribuem para que não apenas as estratégias de controle do território, mas também de reprodução social, tenham que ser alteradas. Da mesma forma em que, para sobreviverem Paresi, em um mundo de poderes não índios, recriam e recontam seus mitos e tradições, recriam também suas estratégias espaciais e de sobrevivência, com consequências ainda imprevisíveis. Porém, os Paresi são atores de sua história e resistem, territorial e socialmente, a sua própria maneira.

 

Notas

[1] Não há associação direta entre os conceitos de território e territorialidade e a noção de Terra Indígena, sendo esta uma categoria jurídica.

[2] Haliti é a autodenominação do grupo, e significa “nossa gente”, “nosso povo”, em oposição aos imoti, os não-índios ou não-haliti.

[3] O primeiro homem a sair da pedra teria sido Wazare, importante herói mítico Paresi a que faremos referência várias vezes ao longo do texto.

[4] Nos limites norte se estendiam até a confluência do rio Sacre com o Papagaio e ao sul nas cabeceiras dos formadores da bacia do Paraguai.

[5] A organização espacial dos Paresi também é simbolizada em seu mito fundador: “Wazare, ao distribuir o território entre os irmãos evitou a competição pelos recursos naturais entre eles e entre seus filhos, adaptando-os, assim, a nichos específicos” (Machado, 1994, p. 250). Assim, a cada subgrupo formado pelos irmãos, saídos de dentro da pedra, caberia seu território específico.

[6] Os atores não-índios foram assim denominados de forma que permitisse incluir uma gama considerável de situações e realidades históricas diferentes. Na verdade, são diversos grupos de atores que, de forma a facilitar a análise, são divididos segundo as principais atividades econômicas praticadas.

[7] Nome dado aos extratores de latéx das seringueiras (Hevea brasiliensis), para a fabricação de borracha. Os seringalistas eram os “patrões” da borracha, controladores dos seringais, grandes áreas onde se encontravam número considerável de seringueiras.

[8] Concomitante com a atuação dos Jesuítas houve a de alguns missionários protestantes, como a South American Indian Mission, na década de 1950.

[9] Operação Anchieta.

[10] Localizada ao norte no território Paresi, área habitada pelos Waimare.

[11] O Departamento de Terras e Colonização do estado de Mato Grosso, que foi substituído pelo Intermat, o Instituto de Terras de Mato Grosso.

[12] Estes dados foram obtidos em consulta à base de dados digital do Intermat, em setembro de 2008.

[13] Alguns exemplos de Programas que incidiram na região estudada são Polocentro (Programa para o Desenvolvimento dos Cerrados), Polonororeste (Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil) e do Prodeagro (Programa de Desenvolvimento do Agronegócio). Entre seus objetivos se encontram: ampliar o aproveitamento agropecuário e florestal das áreas de cerrado, com a utilização de máquinas e insumos agrícolas; criação e o melhoramento de estradas que pudessem conectar as áreas produtivas e investimentos em pesquisas com sementes melhoradas geneticamente.

[14] Uma das Terras Indígenas habitadas pelos Paresi já regularizadas.

[15] Além destas, sete outras tendências também são listadas pelo autor.

[16] Segundo dados do Intermat.

[17] Como então era chamada a atual Terra Indígena Paresi, uma das Terras Indígenas atualmente ocupadas pelo grupo.

[18] Para Costa, “O estabelecimento de limites nas terras indígenas “liberou” uma área que pode ser apropriada por grandes empresas econômicas, com o respaldo de Certidões Negativas, com implicações para a sociedade indígena” (1985, 320-321).

[19] Nas palavras de João Garimpeiro, atualmente morador da TI Paresi.

[20] Segundo Costa, “Por sua própria iniciativa os índios passaram a percorrer, com regularidade, todo o seu território, para impedir qualquer tentativa de assentamento de fazendas ou fixação de estranhos em suas terras. A tática empregada nos casos de invasão consistia na reunião de um grupo de homens devidamente armados que se dirigiam ao local invadido; ao identificarem o responsável pelo empreendimento exigiam que se retirasse e procurasse entrar em contato com a representação da FUNAI em Cuiabá. Na crônica das invasões ao território Paresi, não encontramos registro de violência praticada pelos índios contra os invasores. Os índios recorriam à FUNAI, colocando-a em contato com os fazendeiros, evitando, desta forma, um confronto direto. Em apenas duas situações, ocorridas em 1976 e 1981, os índios apreenderam maquinário e outros instrumentos de trabalho (...) em ambas situações, objetivavam pressionar a FUNAI para que agilizasse o processo de demarcação das terras.” (1985: 306-307).

[21] Segundo Martins, “Se a mercadoria é um instrumento para subjugar os povos indígenas, tem também o seu retorno, a sua contrapartida. Ao mesmo tempo em que destrói ou modifica as sociedades tribais, cria um canal de vivificação de relações sociais, lança o índio na contradição da sociedade de mercado, em que a mercadoria enriquece e empobrece ao mesmo tempo. Para enfrentar tal contradição, o índio se transforma em agente dos processos da sociedade que pretende dominá-lo, passa a ser sujeito político do mundo que pretende fazê-lo desaparecer, que pretende transformá-lo em comprador e vendedor de coisas, que pretende transformá-lo em branco. Neste sentido, é que ele paga politicamente o preço da mercadoria que invade e transforma seu mundo: ele relativiza, inverte, o impacto da mercadoria e se transforma em civilizador da sociedade branca e mercantil, ele amansa os brancos, ele civiliza os civilizados, quando assume e complica os desencontros e descompassos da trama social mercantilizada. Desmistifica a linearidade prepotente de uma história social concebida como mero desdobramento da lógica aparente da mercadoria.” (Martins, 1985: 17).

 

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Ficha bibliográfica:

ARRUZZO, Roberta Carvalho. Construindo e desfazendo territórios: As relações territoriais entre os Paresi e os não-índios na segunda metade do século XX. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de noviembre de 2012, vol. XVI, nº 418 (48). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-418/sn-418-48.htm>. [ISSN: 1138-9788].

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