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Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XVI, núm. 418 (50), 1 de noviembre de 2012
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

DA IGREJA AO ESTADO: A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA E O TRATAMENTO DO SOLO URBANO NAS CIDADES ESPANHOLAS E BRASILEIRAS

Doralice Sátyro Maia
Departamento de Geociencias – Universidade Federal da Paraíba
doralicemaia@hotmail.com

Da Igreja ao Estado: a institucionalização da propriedade privada e o tratamento do solo urbano nas cidades espanholas e brasileiras (Resumo)

No século XIX são constituídas as bases de criação e institucionalização do Estado Moderno que por sua vez fundamentam a criação das leis e outras determinações oficiais, dando impulso ao surgimento do sistema do direito uniforme e de leis gerais para todo o território nacional. Com base nos escritos de Jacques Le Goff, George Duby, Edward Thompson, entre outros, utiliza-se como instrumentos de análise as legislações nacionais do Brasil e da Espanha no século XIX. Dentre estes documentos elegeram-se aqueles que trataram da propriedade privada da terra, bem como dos bens da Igreja e do Estado. Tais documentos possibilitaram entender as modificações na relação Igreja e Estado, bem como apreender como se foram dando as modificações no tratamento da terra e das edificações na cidade. Assim, o propósito aqui é revelar as principais legislações que foram determinantes para a instituição da propriedade privada nas cidades espanholas e brasileiras.

Palavras chave: Estado, Igreja, propriedade privada da terra, legislação, cidade no século XIX.

From the church to the State: the private property’s institutionalization and the urban soil treatment in Spanish and Brazilian cities (Abstract)

In the 19th century, the foundation and institutionalization of the Modern State are constituted which, in turn, justify the lawmaking and other official determinations, leading a system of uniform rights and general laws to arise all across the national territory. Based on the writings of Jacques Le Goff, George Duby, Edward Thompson, among others, Brazilian and Spanish 19th-century national legislations are used as analysis instruments. Among these documents, those regarding land as private property and properties of the Church and the State were chosen. Such documents made it possible for the modifications of the Church-State relation to be understood and the modifications and their progress in the land treatment and city’s edifications to be learned as well. Thus, the purpose herein is to reveal the major determinative legislations for the institution of the private property in Brazilian and Spanish cities.

Key words: State, church, private property, legislations, 19th century’s city.

De la Iglesia al Estado: la institución de la propiedad privada y el tratamiento del suelo urbano en las ciudades de España y Brasil (Resumen)

En el siglo XIX se lanzaran las bases para la creación y la institucionalización del Estado Moderno que a su vez subyacen a la creación de leyes y otras determinaciones oficiales, dando impulso a la creación de un sistema uniforme y de leyes generales para todo el territorio nacional. Basado en los escritos de Jacques Le Goff, George Duby, Edward Thompson, entre otros, se utiliza como instrumentos para el análisis las legislaciones nacionales de Brasil y España en ese siglo. Entre estos documentos fueron elegidos los que tratan de la propiedad privada de la tierra y la propiedad de la Iglesia y del Estado. Estos documentos han permitido comprender los cambios en la relación Iglesia y Estado, y aprender como si estuvieran dando los cambios en el tratamiento de las fincas en la ciudad. Por lo tanto, el propósito aquí es dar a conocer las principales leyes para la institución de la propiedad privada en las ciudades de España y Brasil.

Palabras clave: Estado, Iglesia, propiedad privada, legislación, ciudad en el siglo XIX.


O século XIX corresponde a um momento bastante singular para o entendimento do processo de urbanização e principalmente do ordenamento urbano. A Revolução Francesa no final do século XVIII e a Revolução Industrial promovem grandes transformações na estrutura das sociedades e também na organização política-territorial. É ainda neste intervalo temporal que as cidades ganham uma dinâmica jamais vista. Dinâmica esta que se por um lado impulsiona o aumento demográfico e, por conseguinte, a expansão da malha urbana, por outro exige a regularização de todos esses crescimentos. É também neste período que se constituem as bases de criação e institucionalização do Estado Moderno que por sua vez se fundamenta na criação das leis e outras determinações oficiais, dando impulso ao surgimento do sistema do direito uniforme e de leis gerais para todo o território nacional. Desde então se concebe a lei como o instrumento político e jurídico que representará “uma missão grandiosa para qualquer chefe político”. A análise do conjunto de leis promulgado no século XIX pode promover o entendimento de como se deu o fundamento do Estado Moderno[1]. Além disso, é preciso assinalar que a política no sentido moderno de negociação pública e institucionalizada para conseguir poder e vantagens foi um invento do século XIX.

As leis, os decretos, as resoluções e ainda as decisões executivas são denominações dadas aos documentos que constituem o conjunto das legislações do Brasil e da Espanha no século XIX. Aqui utilizamos a expressão “documento” para designar o tipo de material utilizado em nossa pesquisa.

Com base nos escritos de Jacques Le Goff, George Duby, Edward Thompson, entre outros, utilizamos as legislações nacionais do Brasil e da Espanha no século XIX como instrumentos de análise sabendo dos riscos e das incertezas que este recurso pode possibilitar, mas também conscientes de que as suas afirmativas não significam a verdade, nem são provas dos fatos, mas que correspondem a uma fresta ou uma face da história e, portanto, da realidade analisada. Como bem afirmou Murilo Marx (1989), “o arcabouço legal reflete muito bem a mentalidade que domina ou que ainda não foi extirpada ou superada plenamente por outra”[2].

No período estudado, um dos temas mais evidentes no conjunto de leis, decretos e decisões reais promulgado pelos Estados do Brasil e da Espanha é o da propriedade, seja a privada, seja a pública. Tal constatação a princípio em nada surpreende, uma vez que o fundamento do Estado Nação é a riqueza mobiliária (dinheiro e capital), a terra e a renda da terra, portanto, a propriedade privada. Se a economia do século XIX formou-se principalmente sob a influência da Revolução Industrial inglesa, no mesmo sentido, a política e a ideologia se constituíram ou se inspiraram fortemente na Revolução Francesa, pois, a França proporcionou os códigos legais, o modelo de organização científica e técnica para muitos países. Nesse conjunto de determinações, destaca-se a instituição da propriedade individual em detrimento dos direitos feudais. O documento intitulado “Declaração dos direitos do homem e do cidadão” define um “direito” que se tornará universal: a propriedade privada, enquanto direito natural sagrado, inalienável e inviolável. Para tanto, difunde a ideia da eliminação das monarquias absolutistas e defende a monarquia constitucional baseada em uma oligarquia de proprietários de terras, mas que se expressa por uma assembleia representativa. Esta forma governativa mostrou-se mais adequada aos interesses da burguesia liberal do que a república democrática. A mesma propaga-se pelos mais diversos territórios e, por conseguinte, representará os ideais da sociedade moderna[3].

Assim é que em 1812 na Espanha e em 1822 no Brasil promulgaram-se as primeiras Constituições dessas nações que instalam em seus respectivos territórios – com devidas diferenças e adequações às suas realidades - o modelo liberal de Estado. Além dos textos constitucionais, o conjunto de leis e decretos também se inspirará nos ideais liberais e impulsionarão as mudanças necessárias à consolidação do capitalismo. Por conseguinte, repercutirão na morfologia e no ordenamento urbano, uma vez que determinarãoo a forma de administrar as cidades e o tratamento das terras da Igreja, do Estado e principalmente dos particulares.


Brasil e Espanha: Do Antigo Regime ao Regime Constitucional e o tratamento da propriedade privada

Na Espanha, já nas primeiras décadas do século XIX, a instauração do regime constitucional produz uma inversão dos princípios que estabelecem a propriedade privada, pois enquanto o Antigo Regime concebia a propriedade privada subordinada aos sacrifícios patrimoniais, o Regime Constitucional ou Novo Regime considera a propriedade privada frente “a los ataques del poder publico”[4].

Dessa forma, os novos princípios defendidos pelo Novo Regime, prescreviam a extinção dos sistemas tradicionais agrários, pois a terra teria que se converter em uma mercadoria, devendo ser possuída por proprietários privados com plena liberdade para vendê-la e compra-la.

Na Espanha, as terras que não se podia comercializar eram denominadas de «manos muertas», ou seja, correspondiam às terras das instituições religiosas, as dos nobres herdadas pelo «mayorazgo», e ainda aquelas que estavam à margem do mercado e os bens de propriedade comunal dos “pueblos”. Estes eram divididos em duas grandes categorias: “los «propios», integrados por aquellas tierras que el municipio arrendaba para cubrir con sus ingresos los gastos públicos (si bien un 20 por 100 de estos ingresos lo percibía el estado como un impuesto), y los «comunales» o «baldíos», que eran los que utilizaban gratuitamente los vecinos, como las dehesas de pasto y los bosques que les proveían de leña (los «montes públicos»)[5].

No início do século XIX, apenas o señorio jurisdiccional foi de fato abolido, pois, o segundo, ou seja, o señorio territorial,  foi ao contrário, consagrado como direito de propriedade individual, o que favoreceu, tanto os já proprietários nobres como os futuros proprietários burgueses[6].

No conjunto legislativo espanhol do século XIX que trata do direito da propriedade, merece destaque o decreto de 1813 e restabelecido em 1836 que declarava “cerradas y acotadas perpetuamente todas las fincas”. A demarcação das fincas dava-se segundo a Real Orden de 1847, por “cualquier señal material y visible que indique el derecho de propiedad”.

O tema da titularidade da terra foi fundamental no processo de negociação entre a nobreza e a burguesia. Na verdade, nas palavras de Parias Sains, a “su fusión matiza el alcance revolucionario de la transformación liberal, ya que la nobleza se convierte en burguesía agraria y la burguesía comercial compra tierras y títulos, surgiendo de ello una oligarquía de base agraria a la que R. Herr encuentra difícil llamar burguesía”[7].

No que diz respeito ao Brasil, a história da doação – aquisição e da propriedade de terras, portanto, o tratamento jurídico da propriedade difere-se do processo espanhol. No Brasil, já é bastante conhecido o fato de que, desde a instalação do império português que a distribuição da terra dava-se pelo sistema de Sesmarias que remonta à Lei promulgada por D. Fernando em 1375 e que “perpetua-se em nossas fontes jurídicas por meio das Ordenações régias e, posteriormente, por uma profusão de avisos, alvarás e cartas-régias que procuram disciplinar as sesmarias no Brasil-colônia”[8].

O primeiro registro de suspensão de doação de sesmaria data de 17 de julho de 1822, antes mesmo de declarada a Independência, sendo reforçada pelo imperador em 27 de outubro de 1823. Desde então, todas as propriedades ocupadas não tinham a posse legalizada, portanto, as propriedades regularizadas eram minoria. Daí exigir-se a medição e titularização de todas as sesmarias e de todas as posses em situação irregular sob pena de serem registradas como devolutas[9].

As terras devolutas são bens de natureza dominial, vale dizer, integram o patrimônio de pessoa jurídica de direito público, embora não destinadas a uso público nem concedidas a particulares. São terras vagas, não aproveitadas, que podem ser alienadas ou concedidas a particulares. A principal característica das terras devolutas é a inexistência do título de propriedade.

A exigência do modo de produção capitalista em transformar a terra em mercadoria, livre para ser comercializada estabelece “a constituição do direito à propriedade privada absoluta da terra, propriedade de limites preciso, devidamente registrada, e que possa servir como garantia de empréstimos”[10]. É no século XIX que O “Direito de Propriedade em toda a sua plenitude” é garantido desde a primeira Constituição Brasileira de 1824. Este mesmo documento ainda determina: “Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta única excepção e dará as regras para se determinar a indemnisação”[11]. Apesar dessa definição, o tratamento da terra e da propriedade permanece sem maiores determinações até meados do século. Somente em 18 de setembro de 1850, sanciona-se a Lei 601 denominada de Lei de Terras que estabelece a “venda de terras em hasta pública à vista e a preços mínimos que variavam de meio real a dois réis por braça quadrada, de acordo com o terreno, criava comissários especiais para extremar as terras do domínio público, e previa a criação de uma Repartição Geral de Terras Públicas”[12].

Ruy Cirne Lima já em 1933, ao publicar seu livro Origens e aspectos do regime das terras no Brasil escrito a princípio como tese para o concurso de cátedra de Direito Administrativo, apresenta fundamental análise da Lei de Terras de 1850. Para este autor, a “despeito das críticas que possa merecer no pormenor” a referida lei “é no seu conjunto, obra de valor e vulto, sobretudo, relativamente ao tempo”, uma vez que “se tornou possível aviventar a já então indistinta linha divisória, entre as terras do domínio do Estado e as do particular”[13]. De fato, o artigo 3˚ da supracitada lei assim define as terras devolutas:

1) as que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias ou outras concessões do governo geral ou provincial, não incursas em comisso, por falta de cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura; 2) as que não se acharem dadas por sesmarias ou outras concessões do governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas pela lei; 3) as que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas pela lei; 4) as que não se encontrarem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal[14].

As análises no campo do direito sobre a Lei de Terras revelam que nesta, o termo «devoluto» foi utilizado tanto na acepção antiga, quanto na moderna, de vago e inculto. Tanto a opção por denominar de «devolutas» as terras públicas nacionais, como a sua própria definição ser feita por exclusão, ou seja, as que não estavam sob domínio particular, foi alvo de grandes discussões entre os seus estudiosos[15].

A partir da promulgação da Lei de Terras, também se estabelece que as terras alienadas ficariam sujeitas às benfeitorias públicas, como estradas, portos, etc, “salvo o direito de indenização das benfeitorias e do terreno ocupado” (Lei de Terras, Artigo 16).

Dessa forma, adverte Lígia Osório Silva, “as terras devolutas eram, em princípio, passíveis de sofrerem a aquisição prescritiva, cujo elemento essencial era a posse, mas não podiam ser ocupadas (apossadas) porque uma lei maior interditava essa prática, e isso impossibilitava a prescrição”[16]. Assim, ao mesmo tempo em que determinava a extinção de um costume “arraigado e secular da posse”, a lei lutava contra “o elemento essencial da prescrição aquisitiva”, garantia dada pelo Direito aos proprietários. 

A importância da Lei de Terras de 1850 é assinalada por Varela, em razão de demarcar a passagem do “patrimônio fundiário da Coroa às mãos dos particulares, buscando disciplinar a caótica realidade agrária brasileira de então, composta pelas terras dadas de sesmaria – muitas vezes não cultivadas, não demarcadas, não registradas, em desconformidade à legislação vigente – e pelas posses em terras devolutas”. A referida autora ainda acrescenta que nesta mesma lei, são proibidos os apossamentos e “conceituadas as terras devolutas, com o escopo de definitivamente separar o público do privado, firmando as bases para a regularização da propriedade privada no Brasil e para o afastamento da fórmula jurídica condicionada por deveres com o cultivo” [17].

Desde a aprovação da Lei de 1850, algumas tentativas de reforma foram feitas, sendo tema de discussão em muitas sessões da Câmara dos Deputados, contudo, de fato, foram aprovados o Regulamento da Lei de 1850 através do Decreto n. 1318 de 30 de janeiro de 1854; o Regulamento de 1854 que “dispõe provisoriamente sobre as medições e demarcações das terras devolutas”; a Portaria n. 385 de 19 de dezembro de 1855 que “manda observar provisoriamente as instruções práticas organizadas pela Repartição Geral de Terras, para execução dos artigos do Regulamento de 8 de maio de 1854”; e o Decreto n. 6129 de 23 de fevereiro de 1876 que “organiza a Inspetoria Geral das Terras e Colonização”.

No conjunto das transformações do tratamento da terra, no caso brasileiro não se pode esquecer que tais determinações se deram associadas à necessária substituição do trabalho escravo pelo trabalho assalariado, em outras palavras da passagem da economia escravocrata para uma economia fundada na mão-de-obra livre[18].

Na legislação brasileira, outro documento fundamental para a consolidação do direito de propriedade é a Lei Hipotecária de 1864, pois que “além de disciplinar juridicamente a hipoteca, útil instrumento à mobilização do patrimônio fundiário, instituiu o registro de imóveis, condição fundamental à publicidade e à disponibilidade dos direitos reais”.

Fato é que a contradição está posta: propriedade – direito de todos. Não precisamos repetir que a instituição da propriedade individual e a legitimação do seu direito como absoluto e inalienável surgem como um dos pilares do modo de produção capitalista, portanto para enriquecer a classe proprietária e rechaçar as classes populares. Já em 1840, Karl Marx escreve em um periódico denunciando a atuação do Estado em prol aos interesses dos proprietários: “Ya que la propiedad privada no tiene medios para elevarse a la perspectiva del estado, el estado tiene derecho de rebajarse a los medios de la propiedad privada, contrarios a la razón y al derecho.”[19]  

Verifica-se que a afirmação da propriedade privada dá-se tanto através da legitimação do direito individual, particular e inviolável, mas também está associada a outros registros que dizem respeito ao tratamento do solo de um modo geral e que, por conseguinte, irá repercutir diretamente sobre o ordenamento do solo urbano.


Igreja e Estado: Decretos, leis e determinações no tratamento dos bens imóveis que demarcam a relação entre as instituições na Espanha e no Brasil

Da Igreja para o Estado: a desamortização espanhola

Na Espanha, a desamortização, ou seja, a transformação de bens “manos muertas” em terras ou edifícios que pudessem ser comercializados inicia-se segundo Francisco Martí (2003) desde o tempo de Godoy (século XVIII) e posteriormente foi fortemente implementada por Mendizábal[20]. Bens estes que pertenciam de forma dominante à Igreja Católica. Mendizábal foi Ministro da Fazenda e responsável pelos decretos de 1835 - 1836 que estabeleceram a desamortização. O ano de 1835 é marcado por um conjunto de Decretos e Órdens Reais tanto do Ministério da Fazenda como do Ministério “Gracia y Justicia” que extinguiram ou suprimiram irmandades e ordens religiosas a exemplo da Companhia de Jesus e de las santas hermandades de Talavera y Ciudad Real, bem como mosteiros, conventos e igrejas. Todas estas determinações transformavam todos estes bens em Bienes Nacionales. Como bem escreve Martí (2003), “lo que queria el Gobierno era apoderarse de los bienes eclesiásticos y por eso trataba de justificarlo com muchas razones; entre otras, sbrayando la riqueza de los monjes y el descuido de sus fincas”[21].

O Real Decreto de 19 de Fevereiro de 1836 do Ministerio da Fazenda, declara “en venta todos los bienes que hayan pertenecido a las suprimidas Corporaciones religiosas com la excepcion que se dice” (Figura 1):

 

Figura 1. Decreto Real de 19 de Fevereiro de 1836 – Ministerio da Fazenda – Espanha.
Fonte: Biblioteca Virtual Fundación Constitución 1812.
<
http://www.constitucion1812.org/listado_completo.asp?tipo_libro=1>. [Acesso em 20 de maio de 2007].

 

Ainda de acordo com Martí, Mendizábal aproveita o exemplo de “tantas naciones sabias” e tem em mente o exemplo da Inglaterra “opulenta y libre”[22]. A política adotada por Mendizábal teve continuidade na regencia de Espartero  após a expulsão da Rainha Cristina no período de maio de 1841 a junho de 1843. Neste período algumas ordens foram dirigidas à “venta de las fincas del clero secular” em 31 de agosto de 1841; “venta de los bienes del clero secular”  de 02 de setembro de 1841; às dotações do clero secular também de 1841 (setembro); Ordem solicitando inventário dos bens do clero secular (novembro de 1841); entre outros que prosseguem até 1843 na regência de Espartero e que continua até 1851 quando ocorre uma paralização no processo. Neste período, avalia Martí (2003):

En 1844 se vendieron como la mitad de los bienes que habían sido de la Iglesia; después, al subir al poder los moderados, decreció la venta, hasta que se paralizó en 1851. Com la revolución progressista de 1854 se volvió a la subasta.

En Madrid se habían vendido más de 40 fincas urbanas, por más de millón de reales, y alguna por valor de dos millones. Algunos compraron el 3,76% de todo lo invertido en la nación hasta el mês de agosto[23].

A respeito da quantidade de propriedades, que alguns afirmam ter sido pouca, além da falta de recursos de grande parte da população ressalta-se também a interferência das ordens religiosas. Contudo, é fato que a desamortização teve maior impacto na propriedade urbana das grandes cidades[24].

Porém, na história da transformação da propriedade na Espanha, há que se destacar a desamortização de 1855 e que se prolonga até 1895. Em fevereiro de 1855 o Ministério da Fazenda ordena (Real órden) “mandando suspender la venta de bienes, cuya subasta no se hubiese verificado, hasta la aprobación por las Cortës del proyecto de ley sobre desamortización”.  Em 1o de maio de 1855 decreta-se a “Ley de desamortización”. A referida lei inicia com o Título 1: “Bienes declarados em estado de venta y condiciones generales de su enajenación”. Aqui são declarados em estado de venda “con arreglo  a las prescripciones de la presente ley, y sin prejuicio de las carga y servidumbres a que legitimamente estén sjuetos, todos los prédios rústicos y urbanos, censos y foros pertenecientes.” E complementa:

Al Estado, al clero, a las órdenes militares de Santiago, Álcantara, Calatrava, Montesa y San Juan de Jerusalém; a confradías, obras pías y santuários; al secuestro dele ex-infante don Carlos; a los próprios y comunes de los pueblos; a la bendficencia, a la instrucción publica y cualquiera otros pertenecientes a manos muertas, ya estén o no mandados vender por leyes anteriores. (Ley de la Desamortización, 1 de Mayo de 1855).[25]

Após a promulgação da Ley de Desamortización  de 1855, outros decretos, leis e ordens reais são declarados referindo-se à propriedade, sejam as particulares, sejam Bienes Nacionales, Bienes Eclesiásticos, Bienes de Ayuntamientos, del clero. Trata-se de um conjunto de ordens legislativas que regulamentam a comercialização de terras e de imóveis tanto rurais como urbanos, mas que terão grande impacto nas cidades espanholas.

As legislações promulgadas no período de 1855 a 1877 que trataram dos bens eclesiásticos, bens nacionais e propriedade particular foram identificadas e anotadas. Do registro feito, extraímos aquelas que dizem respeito à hipoteca, definição de casas e ruas, entre outras. Neste período foi anotado um total de 52 documentos oficiais, entre ordens, leis e decretos que tratam da propriedade da terra e das edificações. Tais registros revelam a importância do tema, o interesse em se legitimar a propriedade privada, mesmo que seja para o domínio do Estado, seja para favorecer a burguesia nascente, mas também para separar o que pertence ao Estado, que se quer Moderno, e o que permanece com a Igreja, já que esta deve restringir-se à religião e ainda aos serviços de educação e saúde, desde que supervisionados pelo Estado.

A promulgação da Ley de la Desamortización em 1 de Maio de 1855 várias vezes foi reafirmada em ordens, circulares e decretos que exigiam que o clero entregasse os bens já solicitados, que os governadores das províncias fizessem cumprir as determinações devendo entregar a relação de bens eclesiásticos ao Ministério da Fazenda, supressão de conventos que não tivessem o número mínimo de doze religiosas professas, entre outras. Como bem escreve Martí a desamortização ganha força em 1855 e permanece até o final do século XIX.

Tomamos então como marco temporal a Ley de la Desamortización de 1855 já que ela de fato estabelece com maior expressão o processo de extinção do que se denominava de bens de “manos muertas”, bem como é a partir desta que outras normativas surgem para regularizar e favorecer a propriedade da terra e das edificações tanto do Estado como de particulares.


A Definição de los Bienes Nacionales: os bens pertencentes ao Estado Espanhol

Na legislação espanhola a partir de 1855 encontram-se vários registros de documentos que tratam dos Bienes Nacionales, isto é dos bens pertencentes ao Estado. Citam-se: (Quadro 1)

 

Quadro 1.
Legislação espanhola referente à desamortização

Data

Documento

Resumo

1855 – 1 de Mayo

Hacienda

Ley, declarando en estado de venta todos los prédios rústicos y urbanos, censos y foros pertenecientes al estado, al clero etc, y [...] otros pertenecientes à manos muertas.

1855 – 6 de Mayo

Gobernación

Ley, declarando particular las suerte de terrenos baldíos, realengos, comunes, propios y arbitrios que se repartieron bajo las reglas prescritas en la Real provision de 26 de mayo de 1770, y demás disposiciones que se expresan

1855 – 1 de Junio

Direccion General de Ventas de Bienes Nacionales

Circular, excitando el celo de los Gobernadores de provincia para que eviten los abusos que puedan cometerse en las fincas rústicas y urbanas, puestas en venta por la ley de 1 de Mayo de 1855.

1855 – 4 de Junio

Direccion General de Ventas de Bienes Nacionales

Circular, encargando à los Gobernadores de provincia que, no obstante lo dispuesto en la instrucción de 31 de Mayo de 1855, suspendan poner en venta los montes del Estado y demás procedentes de bienes nacionales, hasta que se determine cómo haya verificarse.

1855 – 6 de Agosto

Direccion General de Contabilidad de Hacienda Publica

Circular, disponiendo la formación y remision de estados mensuales de los prédios rústicos y urbanos que se enajene ó rediman, y recomendando la debida uniformidad en la redaccion de los pagarés que por tal concepto han de suscribir los interesados.

1855 – 9 de Agosto

Direccion General de Ventas de Bienes Nacionales

Circular, resolviendo que las fincas que se enajenen de bienes nacionales pasen á los compradores con todas las servidumbres que sobre si tengan.

1855 – 15 de Agosto

Direccion General de Ventas de Bienes Nacionales

Circular, dando reglas para la instrucción de los expedientes de redencion de censos procedentes de bienes nacionales.

1855 – 10 de Setiembre

Direcciones Generales de Contabilidad y de ventas de bienes nacionales

Circular, declarando que la disposición tercera de la de 8 de Agosto de 1855 es solo aplicable á los réditos de los bienes y censos que administra el Estado, con exclusión de los pertenecientes á propios, beneficencia e instrucción pública.

1855 – 20 de Octubre

Hacienda

Real órden, mandando que se suspenda todo procedimiento contra los censatarios de bienes nacionales por los descubiertos en que se encuentren de sus respectivos censos, hasta que se apruebe el proyecto de ley presentado para la redencion de los mismos.

1860 – 18 de Febrero

Hacienda

Real órden, dictando reglas para evitar los abusos y perjuicíos en los remates de fincas de bienes nacionales, ocasionados por parte de los rematantes.

1860 – 21 de Mayo

Hacienda

Real órden, resolviendo que se proceda desde luego á la venta de todos los censos pertenecientes á los bienes nacionales, cuya redencion no hubiesen pedido los censatarios hasta el dia de la fecha.

1861 – 10 de Abril

Hacienda

Real órden, determinando la práctica que ha de observarse en las subastas de bienes nacionales cuando se anuncian con equivocaciones ó errores esenciales.

1861 – 27 de Junio

Hacienda

Real órden, dictando reglas sobre la forma y época ñeque deben devolverse las cantidades ingresadas en el Tesoro por los compradores y sedimentes de bienes nacionales cuando sean anuladas las ventas y redenciones.

1863 – 12 de Enero

Hacienda

Real órden, dictando varias aclaraciones respecto á las consignaciones en pago de bienes nacionales.

1866 – 17 de Febrero

Hacienda

Real órden, disponiendo que los Escribanos se ajusten en el otorgamiento de las escrituras de redencion de censos y ventas de bienes nacionales á los modelos que se les tienen facilitados, y autorizándoles á que manuscriban algun pliego adicional en los casos que se espresan.

1869 – 22 de Enero

Hacienda

Decreto, señalando el tipo á que han de ser admitidos, en pago de bienes nacionales vendidos, los bonos del tesoro de la emision de 200 millones de escudos y las cartas de pago de los imponentes por depósitos voluntarios en la Caja general de los mismos.

1869 – 8 de marzo

Hacienda

Orden, dictando varia reglas para la ejecución de lo dispuesto en el decreto de 22 de Enero próximo pasado, sobre admisión de bonos del Tesoro en pago de bienes nacionales vendidos.

1869 – 21 de Agosto

Hacienda

Orden mandando hacer efectivos los descubiertos de plazos por compras de bienes nacionales, y declarando sin curso ulterior las solicitadas promovidas ó que puedan promoverse en demanda de suspensión de apremio.

1873 – 29 de Mayo

Hacienda

Decreto, suprimiendo las Secciones de Propiedades y Derechos del Estado y las plazas de investigadores de Bienes nacionales de las provincias.

1877 – 20 de Marzo

Hacienda

Real órden, aprobando la adjunta Instrucción para el cumplimiento de la ley de 9 de Enero, sobre venta de Bienes nacionales y consevacion de arbolados.

1877 – 31 de agosto

Hacienda

Real órden, aprobando la adjunta instrucción para llevar á efecto el real decreto de 20 de Julio último sobre cobranza de débitos por compras de Bienes nacionales.

1878 – 13 de Junio

Hacienda

Ley, dictando disposiciones acerca del procedimiento que ha de seguirse con los compradores de bienes nacionales antes y después del vencimiento de los pagarés, arrendamiento de fincas y responsabilidad de los jefes económicos y los de la Intervención y demas que tienda á hacer efectivos los débitos á la Hacienda por dicho concepto.

Fonte: Coleccilon Legislativa Española.

 

A lei de 1 de Maio de 1855 exige uma série de regulamentações. A criação de uma “Direccion General de Ventas de Bienes Nacionales” encaminha várias circulares no decorrer do mesmo ano esclarecendo aos governadores das províncias sobre os procedimentos que deveriam ser adotados até a regulamentação da compra e venda dos “bienes nacionales”. Assim, tem-se desde o alerta para que se evitem os abusos ao colocar a venda imóveis rurais e urbanos até a determinação da suspensão temporária dada pela Lei de 1 de Maio, que é o que se explicita na circular de 4 de junho de 1855. Muito embora a supracitada lei tenha autorizado a venda de todos os bens pertencentes ao Estado e ao Clero, bem como o que ainda fosse considerado pertencente a “manos muertas”, a sua repercussão provocou conflitos e desentendimentos. Assim, passa-se a exigir que se faça o registro de todos os bens que serão expostos a venda em 15 de agosto do mesmo ano e mais uma vez em outubro do mesmo ano, suspende-se todos as ações que dissessem respeito a venda dos bens nacionais. Tal inconstância mantem-se até o final do século.

Entretanto, observa-se que o pagamento dos bens nacionais não ocorre devidamente, tanto que se encontram decretos e reais ordens exigindo a sua cobrança. No conjunto dos documentos, evidencia-se a necessidade primeira do Estado conseguir recursos a partir da venda dos seus bens, muitos destes já provenientes da desamortização, particularmente dos bens do clero. Porém, tal procedimento não se mostra eficaz já que nem mesmo o pagamento se dá de acordo com as determinações contratuais.


Os Própios Nacionais – Os Bens do Estado Brasileiro

No conjunto da legislação brasileira do século XIX que trata da propriedade imóvel, encontram-se vários registros que definem e determinam o tratamento do que se denominava de “Proprios Nacionaes”, antes mesmo da Lei de Terras de 1850. Estes registros mostram que antes de se definir a propriedade privada, assim como em outros países como a Espanha, houve uma primeira necessidade em se separar o que era da Igreja e o que era do Estado. Desta forma, o que pertencia ao Estado denominava-se de “Proprios Nacionaes”. Alguns documentos valem uma observação mais atenta, como o Decreto do Ministério da Fazenda de 7 de novembro de 1827 que “ordena a remessa de uma relação de todas as propriedades naciaonaes”[26].  Desde o início do século XIX há também no Brasil uma preocupação por fazer crescer os recursos nacionais e uma forma encontrada, foi a de arrendar “os próprios e terrenos nacionais que não forem precisos para o serviço público”[27]. Muito embora não se identifique propriamente um processo de desamortização dos bens eclesiásticos como o ocorrido na Espanha conforme expresso anteriormente, existem determinações de incorporação aos “Proprios Nacionaes” de edificações e terras anteriormente pertencentes à Igreja, como expressa a Decisão n. 324 do Ministério da Fazenda em 4 de Julho de 1837 que trata da incorporação nos “Proprios Nacionaes de huma capella vaga e explicando o processo de seguirse em taes casos”.

Ainda referente ao período que antecede a Lei de Terras vale destacar a importância das terras e terrenos devolutos. Sobre os terrenos devolutos, a sua definição é estabelecida pela Ordem de 3 de Dezembro de 1836:

[...] pela qual se declarou que os terrenos devolutos, porque nunca tiverão dono, posto que sejão Nacionaes, no sentido lato, não são com tudo comprehendidos na  disposição do mencionado § 15 do Art. 51 da dita Lei, a qual he só relativa áquelles bens Nacionaes, que no sentido stricto se chamão – Proprios – e estão lançados nos livros deles na conformidade da Lei de 4 de Outubro de 1831; isto he aquelles, que se adquirrão para a Fazenda Nacional, e a ella se adjudicarão por algum titulo [...].  (Ministerio da Fazenda. Decisões n. 43, 16 de março de 1847).

Há portanto uma preocupação em se definir legalmente os bens do Estado, como também em preserva-los. Tal intenção legitima-se na já citada Lei de Terras, ou Lei n. 601 de 18 de setembro de 1850 (Figura 2).

 

Figura 2.  Lei N. 601 de 18 de Setembro de 1850. Lei de Terras.
Fonte: Coleção de Leis e Decretos – Câmara Legislativa Brasileira.

 

Em outubro do mesmo ano de 1850, a Decisão n. 172 manda incorporar aos Proprios Nacionais “as térreas dos Indios que já não vivem aldeados, mas sim dispersos e confundidos na massa da população civilizada, e dá providencias sobre as que se achão ocupadas”.  A decisão imperial expropria os povos indígenas das suas terras de origem, incorporando-as aos Bens Nacionais.

No Brasil, antes mesmo da Lei de Terras já se tinha determinado o pagamento de “sisa”, ou seja, imposto de transmissão inter vivos[28]. Contudo, verifica-se uma maior frequência de Decisões que se referem ao pagamento da sisa em relação aos Bens Nacionais, sendo que a grande maioria trata de respostas do Tesouro Nacional a respeito do pagamento ou não da sisa, já que não havia legislação específica sobre o assunto. Nas Decisões analisadas, o pagamento da sisa deve ser feito, sendo que a metade é paga pelo comprador e a outra metade pelo vendedor, mas tratando-se da venda de bens nacionais, esta parte nada paga “por ser a própria Fazenda”. (Decisão n. 233 de 23 de setembro de 1851).

Em decorrência da execução da Lei de Terras que se dá com o Decreto 1317 de 30 de Janeiro de 1854, encontram-se na legislação brasileira vários decretos que criam Repartições Especiais das Terras Públicas nas províncias, citam-se os Decretos de números: 1431, 1432, 1433, 1473,1648, 1722, 1726, 1758, 1984, 2092, 2595. O período corresponde ao interstício de 1854 a 1860. Posteriormente outros decretos estabelecem alterações em algumas das Repartições criadas. Desta forma, em cada província do território brasileiro tem-se um órgão administrativo vinculado ao Ministério do Estado e dos Negócios.

Assim, diferentemente do que se verifica no conjunto de leis espanhola do período analisado, no Brasil não se identificam ordens e determinações em grande número destinadas à venda dos Bens Nacionais, mas sim, para a definição do que são estes Bens. Por conseguinte, há uma grande preocupação do Estado brasileiro que é o de registrar, oficializar as propriedades privadas. Atenção esta que também apresenta o Estado espanhol.


Desamortização, amortização e registros da propriedade particular: ações do Estado Moderno que modificam o uso do solo urbano.

A Desamortização dos bens eclesiásticos foi um processo que marcou a legislação espanhola do século XIX, o que representa a necessidade do Estado em aumentar os seus recursos, bem como o momento de ruptura entre Estado e Igreja em território espanhol. Tais ações provocaram alterações no uso das edificações e no tratamento do solo urbano, já que grande parte dos bens desamortizados se localizava nas cidades, e principalmente nas grandes cidades a exemplo de Madrid e Barcelona.

Tomás y Valiente (1972) ao analisar a desamortização espanhola, afirma que a mesma foi necessária para se implementar o novo regime de propriedade da terra, que segundo o autor se constitui pela abolição dos senhorios, a desvinculação dos “mayorazgos” e a desamortização[29]. Entretanto, continua o autor, dentre as três medidas, a desamortização foi a única que não se limitou a modificar a estrutura da propriedade, “sino que inexorablemente produjo también el cambio de los propietarios. Y éstos fueron em gran medida membros de la burguesia”[30]. O estudo de Tomás y Valiente também revela que a grande parte dos compradores dos bens desamortizados constituía a burguesia espanhola, muitos comerciantes, industriais e mesmo já proprietários de terras, fortalecendo a concentração de imóveis nas mãos de uma minoria.

Já no território brasileiro, muito embora se evidencie através do conjunto de legislações a preocupação pelo fortalecimento do Estado e também a ruptura entre as duas instituições, Estado e Igreja, não se pode dizer que a desamortização é um processo marcante. Pois, ainda se encontram vários registros de Decisões e de Decretos que tratam da concessão de recursos para a construção de capelas, seminários e igrejas localizadas em cidades.

Do início da Monarquia – 1822 – até setembro de 1850, quando se promulga a Lei de Terras, verifica-se que para a Igreja adquirir terras ou bens imóveis ou ainda restaurar antigas edificações precisava da autorização do Estado. Neste sentido, tanto há decisões favoráveis como contrárias às solicitações. Ressalta-se que mesmo a Igreja ainda mantendo privilégios no que se refere à aquisição de bens e propriedades, esta já não tem a mesma autonomia. Qualquer modificação na construção ou necessidade em ampliar o terreno, ou modificar o uso da edificação precisa da autorização do Estado. Além disso, a Igreja no Brasil ainda revela grande importância, já que são muitas as concessões de recursos – loterias – para a construção e reformas destinadas à Igreja. Alguns anos se destacam pelo acúmulo de legislações com o mesmo tema.

Alguns Exemplos:

a)      Concessão de recursos para obras e edificações

 

Quadro 2.
Legislação Brasileira referente a bens da Igreja

Data

Documento

Resumo

1827 – 6 de fevereiro

Decreto

Concede seis loterias conforme plano anexo para edificação da nova igreja matriz do santíssimo sacramento desta Corte

1827 – 10 de Julho

Decreto

Concede duas e mais seis loterias conforme plano anexo para edificação da igreja de S. José desta Corte.

1827- 10 de Julho

Decreto

Concede duas loterias, conforme plano anexo para edificação da igreja do Santíssimo Sacramento da Villa de Rezende

1827 – 20 de Julho

Decreto

Concede duas loterias para a conclusão da obra da matriz da Villa Real da Praia Grande.

1827 – 17 de Agosto

Decreto

Concede ao Seminário Episcopal do Pará um terreno contiguo.

1829 – 24 de Setembro

Decreto

Concede à Santa Casa da Misericordia da corte a posse de um terreno pertencente ao Hospital Militar

1838 – 27 de Julho

Decreto

Concedendo faculdade à Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Villa de Vassouras para possuir trezentos e sessenta braças de terra.

1838 – 25 de setembro

Decreto

Autorizando a Irmandade de Nossa Senhora da Gloria da Villa de Valença, Província do Rio de Janeiro, a possuir os bens de raiz, que constituem o seu patrimônio.

1840 – 28 de Abril

Decreto

Autorizando a Fábrica da Igreja Matriz de Santa Anna da Villa do Príncipe, na Província do Rio Grande do Norte, para poder possuir um terreno que lhe fora doado e para adquirir bens de raiz até o valor de oito contos de réis.

1840 – 28 de Abril

Decreto

Autorizando a Camara Municipal do Rio de Janeiro para levar a efeito a convenção por ella celebrada sobre o terreno do Largo do Machado, onde se pretende edificar a Igreja Matriz da Freguesia de Nossa Senhora da Glória

1840 – 28 de Abril

Decreto

Applicando para a edificação da Igreja Matriz da Freguesia de Santa Anna da Cidade do Rio de Janeiro, as obras da Casa destinada para cadeia, começada no Largo fronteiriço a Rua das Flores.

1840 – 5 de Novembro

Decisões – Fazenda

Declarando que, posto sejão os conventos os legítimos proprietários dos bens adquiridos pelos seus religiosos, não podem taes bens ser-lhes entregues no caso de falecimento dos religiosos, e de se terem arrecadado por algum Juiz sem a legal habilitação.

1841 – 22 de Setembro

Decreto

Concede tres loterias para com o seu produto reparar-se o convento de Santo Antonio desta Cidade.

1841 – 22 de Setembro

Decreto

Concede quatro loterias para com o seu produto concluir-se a obra da Igreja de São José desta Cidade.

1847 – 24 de Junho

Decreto

Concede uma loteria anual para a continuação das obras da Igreja Parochial de Nossa Senhora da Glória desta Corte.

1848 – 13 de maio

Decreto

Autorisa a Irmandade da Santa Casa da Misericordia da Cidade de Pelotas para poder possuir cem contos de réis em bens de raiz.

1848 – 19 de Agosto

Decreto

Manda aplicar do produto da última das quatro loterias concedidas a beneficiadas obras da Matriz da capital do Ceará quatro contos de réis a compra de paramenteos e alfaias para a mesma Matriz.

1848 – 2 de Outubro

Decreto

Permite que a ordem Terceira de Nossa Senhora do cArmo da Cidade de São Paulo possa adquirir por título gratuito e possuir em bens de raiz até cem contos de réis vinte dos quases o poderão ser por qualquer dos títulos reconhecidos em direito.

Fonte: Coleção de Leis e Decretos da Câmara Legislativa Brasileira.

 

No ano de 1850, encontram-se 8 Decretos referentes às concessões de auxílios e permissão para possuir bens de raiz em várias províncias.

b)      Amortização –Dispensa

 

Quadro 3.
Legislação Brasileira que tratam da amortização

Data

Documento

Resumo

1845 – 11 de Fevereiro

Decreto

Dispensa Leis de Amortização para que o Convento da Soledade da Província da Bahia possa adquirir a propriedade que lhe foi legada por Antonio Jose Flores.

1846 – 23 de setembro

Decreto

Dispensando as Leis de Amortização a favor do Recolhimento de Santa Theresa da cidade de São Paulo e do Convento de Santa Theresa desta Corte.

1850 – 30 de Março

Decreto

Concedendo à Irmandade de S. Francisco de Paula, da Província da Bahia a propriedade da Capella da Invocação do mesmo santo ajudicada a Fazenda Nacional.

Fonte: Coleção de Leis e Decretos da Câmara Legislativa Brasileira.

 

c)      Multas, Proibições de Estabelecimentos de Morgados e Capelas

 

Quadro 4.
Legislação Brasileira – Bens da Igreja e Proprios Nacionais

1829 – 6 de Agosto

Decreto – Marinha

Declara multa à venda de uns terrenos feita pelo Guardião do Convento de Santo Antonio de Santos por serem ditos terrenos de marinhas de propriedade nacional

1835 – 6 de Outubro

Lei n. 57

Prohibe o estabelecimento de Morgados, capelas ou quaisquer outro vínculos, extingue os existentes e providencia sobre os bens que deixão de ser vinculados.

1837 – 4 de Julho

Decisão - Fazenda

Tratando da incorporação nos Proprios Nacionais de huma capella vaga e explicando o processo a seguir-se em taes casos.

Fonte: Coleção de Leis e Decretos da Câmara Legislativa Brasileira.

 

Observa-se pelos conteúdos das legislações acima descritas que até 1850 vários são os decretos e decisões que concedem a construção, a reforma ou mesmo a propriedade de bens de raiz à Igreja em várias cidades do Brasil. Torna-se evidente o maior número de documentos referentes às edificações na Corte, então cidade do Rio de Janeiro. Porém, ao contrário do que se verificou na leitura dos documentos espanhóis, no Brasil, até meados do século XIX, era o Estado que determinava, que concedia, mas a Igreja recebe várias concessões, encontrando-se poucas negativas ou determinações no sentido de dirimir o poder eclesiástico. Neste último sentido, destacam-se os registros apresentados no Quadro 4, em que em 1829 multa-se o Guardião do Convento de Santo Antonio de Santos por ter vendido terrenos da marinha, portanto propriedade nacional; em 1835 proíbe-se o estabelecimento de morgados e capelas, o que de fato revela uma inibição à expansão do poder eclesiástico e em 1837, uma Decisão do Ministério da Fazenda que vai de encontro à desamortização: incorporação de edificações da Igreja aos bens nacionais. Decisão esta que se diz valer para os futuros casos. Porém é importante destacar que a condição é que esteja sem utilização, portanto bastante diferente do processo ocorrido na Espanha como tratado anteriormente.

A partir de 1850 com a promulgação da Lei de Terras no conjunto da legislação brasileira mantém-se a concessão de data de terras, de casas, terrenos e outras edificações à Igreja, a exemplo do Decreto 115 - Legislativo referente à cidade de São Paulo. Há que se destacar o Decreto 1225 de 1864 que “Autoriza o Governo a conceder às corporações de Mão Morta licença para adquirirem ou possuírem por qualquer títulos, terrenos ou propriedades necessárias para edificação de igrejas, capelas, cemitérios extramuros, hospitais, casas de educação e de asilo e quaisquer outros estabelecimentos públicos”. Tal determinação amplia os direitos da Igreja em adquirir propriedades. Observe-se que neste momento o Estado delega à Igreja os serviços de educação e saúde e que se fazem principalmente em edificações localizadas nas cidades. Portanto, o Estado brasileiro que se quer moderno ainda dá passos lentos para a completa dissociação com o poder eclesiástico.   


Anotações finais

Pelo exposto, a legislação nacional seja a espanhola, seja a brasileira confirma o projeto de solidificação do Estado Nacional. A relação com a Igreja dá-se de forma diversa tratando-se de uma e de outra nação, porém, em ambas prevalece o interesse por se definir e proteger os bens nacionais, diminuir o poder eclesiástico e também regulamentar e definir a propriedade privada. Tais determinações eram condicionantes para a constituição do Estado Moderno, como também para a regulamentação de um mercado insurgente: o mercado imobiliário. De fato, tais legislações muito embora não dissessem respeito diretamente ao espaço urbano, constituíam determinações que se referiam na maior parte às edificações localizadas nas cidades, sejam elas vilas, pueblos, sejam as cidades capitais das províncias.

Confirma-se a progressiva – embora mais lenta no caso brasileiro – “dos regulamentos incidentes sobre as áreas de domínio e uso comum”[31]. O conjunto das legislações nacionais revela, portanto, o ideário de se fortalecer o Estado Nacional com ideais necessários à constituição e expansão do capitalismo comercial e industrial. Estado este que se firma e se constitui em uma espacialidade concreta: a cidade. Tal mentalidade expande-se, atingindo terras de diferentes margens oceânicas, entre estas a espanhola e a brasileira.

Por fim, as leis aqui anotadas revelam o fundamento para a constituição do mercado de trabalho, para a concretização da relação capital x trabalho, cuja base é a propriedade privada.

 

Notas

[1] Homem, 2006, p.35.

[2] Marx, 1989, p. 11.

[3] Hobsbawm, 2001, p. 67.

[4] Bassols, 1973, p. 62.

[5] Fontana, 2007, p.24.

[6] Parias Sains in Paredes, 2004, p. 67.

[7] Parias Sains in Paredes, 2004, p. 69.

[8] Varela, 2005, p.6.

[9] De acordo com o Dicionário Jurídico, o termo terra devoluta, provém do latim devolvere, devolutu, lançado à deriva. No latim medieval, devolvere passou a significar pedir transferência, para si, de um bem vago, sem proprietário. As terras devolutas são bens de natureza dominial, vale dizer, integram o patrimônio de pessoa jurídica de direito público, embora não destinadas a uso público nem concedidas a particulares. São terras vagas, não aproveitadas, que podem ser alienadas ou concedidas a particulares. A principal característica das terras devolutas é a inexistência do título de propriedade. Dicionário Dji – Índice Fundamental do Direito. http://www.dji.com.br/constitucional/uniao.htm#Terras%20devolutas. Acesso em 02 de agosto de 2007.

[10] Varela, 2005, p.6.

[11] Constituição do Brasil, 1824, Parágrafo XXII, Artigo 179, Título 8.

[12] Carvalho, 2003, p. 341.

[13] Lima, 2002, p.70.

[14] Lei n. 601 de 1850.

[15] Silva, 1996, p.156.

[16] Silva,1996, p.155.

[17] Varela, 2005, p.7 (Grifos da autora).

[18] Embora muitos dos discursos dos legisladores já defendessem a extinção do trabalho escravo e argumentassem em favor da instituição do trabalho assalariado, a abolição da escravatura no Brasil se dará tão somente em 1888, um ano antes de decretada a República. Antes disso, em 1845, o Parlamento britânico aprovou a lei conhecida como bill Aberdeen conferindo amplos poderes às autoridades inglesas na repressão ao tráfico de escravos feito em navios brasileiros.  A mesma teve repercussões, e após várias pressões, especialmente do governo britânico, em quatro de setembro de 1850 é sancionada a lei Euzébio de Queiróz que determinou o fim do tráfico de escravos no Brasil.

[19] Marx, 1983 [1840].

[20] Martí, 2003, p. 9.

[21] Martí, 2003, p. 43 - 44.

[22] Martí, 2003, p. 48.

[23] Martí, 2003, p. 55.

[24] Segura, 1973 apud Martí, 2003, p. 56.

[25] Fonte:  Fonte: Biblioteca Virtual Fundación Constitución 1812. <http://www.constitucion1812.org/listado_completo.asp?tipo_libro=1>. [Acesso em 20 de maio de 2007].

[26] Ministerio da Fazenda. Decreto n. 215, 7 de Novembro de 1829. Arquivo da Câmara Legislativa Brasileira.

[27] Ministério da Fazenda. Decisões n. 274 de 4 de Setermbro de 1832. Arquivo da Câmara Legislativa Brasileira.

[28] O termo sisa de acordo com o Dicionário Houaiss3 provem da palavra assise do francês antigo e que significa 'tributo imposto ao povo'.

[29] Tomás y Valiente, 1972, p. 6.

[30] Tomás y Valiente, 1972, p. 6.

[31] Marx, 1989, p. 17.

 

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Ficha bibliográfica:

MAIA, Doralice Sátyro. Da Igreja ao Estado: a institucionalização da propriedade privada e o tratamento do solo urbano nas cidades espanholas e brasileiras. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de noviembre de 2012, vol. XVI, nº 418 (50). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-418/sn-418-50.htm>. [ISSN: 1138-9788].

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