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Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. XVI, núm. 418 (9), 1 de noviembre de 2012
[Nueva serie de Geo Crítica. Cuadernos Críticos de Geografía Humana]

 

A CONQUISTA DO BRASIL CENTRAL: FRONTEIRAS E FRENTES PIONEIRAS NO SÉCULO XIX

Carlo Eugênio Nogueira
Departamento de Geografia – Universidade de São Paulo
carleugenio@usp.br

A conquista do Brasil Central: fronteiras e frentes pioneiras no século XIX (Resumo)

O processo de formação territorial no Brasil é examinado nesta comunicação com o intuito de estabelecer, através de um estudo que privilegia a região mais interiorizada da América portuguesa, um arsenal analítico adequado a uma interpretação geohistórica do espaço construído herdado da ação colonizadora lusitana em terras americanas. Com isso, espera-se recuperar alguns aspectos ainda não abordados de forma conclusiva pela bibliografia especializada, como a importância dos nexos territoriais coloniais no processo de construção e manutenção do substrato material, sobre o qual o novo Estado politicamente independente viria a reclamar jurisdição após 1822. Através do exame da chamada fronteira Oeste, articulada por meio dos contatos entabulados entre a rede de cidades de Goiás e os fortes, presídios, aldeamentos e vilas planejadas de Mato Grosso, esboçaremos uma interpretação da dinâmica regional nos momentos que antecedem o desenrolar do processo de emancipação política brasileiro.

Palavras chave: geografia histórica, formação territorial, fronteira.

The conquest of Central Brazil: borders and frontiers in the XIX century (Abstract)

The formation process of the Brazilian territory is examined in this paper in order to build an appropriate analytical tool to understand the Lusitanian settlement actions in South American lands in a geo-historic view. In doing so, it is our goal to recover some important aspects of this process, such as the importance of the colonial territorial nexuses in the construction and maintenance of the material substrate on which the new politically independent state would claim jurisdiction after 1822. By examining the so-called Western frontier, articulated through the contacts held between the cities of Goias and the fortresses, prisons, villages and planned towns in Mato Grosso, we intend to outline an interpretation of the regional dynamics side by side with the Brazilian political emancipation process.

Key words: historical geography, territorial formation, frontier.

La conquista del Brasil Central: fronteras y frentes pioneros en lo siglo XIX (Resumen)

El proceso de formación territorial de Brasil se examina en este trabajo con el fin de construir, a través de un estudio centrado en la región más interior de la América portuguesa, un arsenal de análisis adecuado para hacer una interpretación de la herencia geohistórica de la acción colonizadora lusitana en tierras americanas. Por lo tanto, se espera recuperar algunos aspectos no abordados de forma concluyente por la literatura especializada, como la importancia de los nexos territoriales coloniales en la construcción del sustrato material sobre el que el nuevo Estado políticamente independiente  reclama la jurisdicción después de 1822. Mediante el examen de la frontera occidental, articulada a través de los contactos mantenidos entre la red de ciudades de Goiás y los fuertes, las cárceles, pueblos y ciudades planificadas en Mato Grosso, pretendemos esbozar una interpretación de la dinámica regional en los momentos previos al proceso de emancipación política brasileña.

Palabras clave: geografía histórica, formación territorial, frontera.


Este trabalho estuda um aspecto singular do complexo debate em torno do caráter diferenciado
que o processo de constituição do Estado nacional brasileiro, que não se reduz à ruptura representada pelo movimento de emancipação política de 1822, expressa quando confrontado com o conjunto da América Latina. De fato, as questões que nos enseja, tal verdadeiro guia da argumentação a ser desenvolvida, podem ser assim formuladas: 1) no processo de expansão do povoamento portugês para a raia Oeste de sua colônia americana, que corre em paralelo a um grande movimento de aprisionamento de terras, povos indígenas e recursos naturais, poder-se-ia identificar, por parte da administração ultramarina lusitana, uma intencionalidade que nos permita asseverar de maneira razoável ter existido uma finalidade geopolítica nas ações planejadas e implantadas para a região?; 2) haveria, nesse sentido, uma continuidade relativa à existência ou formulação de um projeto expansionista, o qual, informando uma razão de Estado ao Império português, acabou, como “herança”, por influenciar o processo de formação territorial do Brasil?

Essas indagações são os fios condutores da análise que se pretende aqui desenvolver, uma vez que um dos objetivos deste trabalho é precisamente qualificar o processo de construção e ocupação efetiva do verdadeiro mosaico regional que os núcleos portugueses de povoamento consolidado constituíam em suas fronteiras americanas mais ocidentais. Na realidade, quanto ao problema da legitimação do controle territorial dos novos Estados independentes surgidos na América Latina no contexto mais amplo de crise e desagregação das bases essenciais do Antigo Sistema Colonial, poder-se-ia indicar, em uma perspectiva de longa duração, que o conceito de nação, visto como justificação do controle político sobre um âmbito espacial geograficamente delimitado, não era utilizado ali de maneira homogênea pelos diferentes grupos que debatiam, cada qual em sua arena de atuação, os múltiplos projetos de poder então em disputa, todos reclamando, de algum modo, os espólios territoriais da esfacelada soberania imperial ibérica na América[1].

Em outras palavras, a crescente vinculação da nação ao território, condição que a partir do final do século XVIII passa paulatinamente a mediar a definição mesma de Estado soberano, agora atrelado de forma definitiva à tarefa de delimitação espacial de uma área homogênea a ser colocada sob sua jurisdição direta, aponta para as intrincadas interações que se podem observar entre o espaço construído herdado, uma rugosidade fruto do desenrolar histórico de ações colonizadoras, e as construções identitárias de base espacial nascidas em meio ao surgimento e afirmação do nacionalismo. Portanto, uma rápida revisão do quadro conceitual a ser utilizado numa análise que se quer focada no processo de formação territorial brasileiro faz-se necessária.

Didaticamente, as modalidades de emprego da palavra “nação” podem ser esquematizadas, em ordem cronológica, da seguinte maneira: originalmente ela surgiu, e assim foi utilizada por séculos, com um sentido puramente étnico, referindo-se a diferentes conjuntos humanos que podiam apresentar composição demográfica variável, se bem que unidos por uma origem sanguínea e cultural até certo ponto comum. Em seguida, possivelmente entre os séculos XVII e XVIII, e sem que o uso anterior desaparecesse, surge o sentido estritamente político com o qual a palavra foi generalizada – era a época da sinonímia entre nação e Estado. Numa terceira fase, após a Revolução Francesa e paralelamente ao Romantismo, ocorre um amálgama dos usos étnico e político com a criação do princípio das nacionalidades, que acaba por conciliar a soberania popular com a existência de um programa que pensa a nação como corpo social politicamente organizado e definido por alguns critérios (a etnicidade, uma língua, religião e memória histórica comuns, além de um território mais ou menos definido, entre outros) que, previamente estabelecidos, seriam em tese compartilhados pelos “nacionais”[2].  

Nessa última acepção, o Estado passa a ser visto como expressão política territorializada de uma coletividade nacional dita una e indivisa, sendo considerado como um corpo de cidadãos cuja soberania coletiva expressa-se no acima aludido princípio das nacionalidades, que concebe como equivalentes os termos nação, Estado e povo, vinculando diretamente o alcance da identidade nacional às fronteiras políticas do território estatal. Logo, sempre que nos referirmos a território, ênfase distintiva deve ser posta no papel desempenhado pelo poder na mediação da relação mais universal que envolve sociedade e espaço, o que significa dizer que os territórios são aqui qualificados pela prática da dominação, definindo-se, por conseguinte, por serem uma jurisdição legal, tributária, militar ou religiosa de uma soberania formal ou administração. Enfim, são, em sentido amplo, áreas às quais um grupo humano reivindica o exercício legítimo do poder.

Já o território usado, num uso não ortodoxo do conceito, pode ser caracterizado como constituído pelas áreas efetivamente apropriadas por meio da colonização que afirma a conquista – os lugares com ocupação consolidada, portanto –, uma vez que dentro de um espaço de dominação política existem áreas que não se encontram incorporadas aos fluxos colonizadores com povoamento e/ou exploração. A essas últimas áreas, que constituem parte do patrimônio territorial sob jurisdição e domínio político de um Estado ou grupo social, mas que não estão realmente ocupadas, chamamos fundos territoriais, querendo com isso designar aquilo que na ótica dos que exercem uma influência decisiva nos movimentos de conquista seriam verdadeiros espaços de reserva para futuras ações colonizadoras[3].  

De  todo modo, se a questão básica que nos ocupa pode ser resumida na elucidação de alguns traços que apontem certa intencionalidade da coroa portuguesa na formulação de um projeto expansionista em terras americanas, traços esses que influenciariam, como herança, o posterior processo de formação territorial brasileiro, deve-se notar que a persistência do problema que diz respeito à identificação direta do antigo território colonial português, considerado patrimônio pessoal do monarca, com o território sobre o qual irá se exercer uma soberania brasileira, que se quer “nacional”, pode ser em alguma medida relativizada. No caso, se utilizarmos uma perspectiva analítica que avalie o fenômeno da construção dos Estados independentes na América Latina a partir da disputa pelo controle dos espaços colonizados por uma ou outra metrópole, e não pelo viés da formação de diferenciadas identidades coletivas de fundo político, o próprio território construído herdado, atuando como rugosidade, delinea-se como elemento de continuidade.

Prudente reconhecer esse detalhe, pois ainda que hegemônico, o projeto político construído após o 7 de Setembro de 1822, estabelecido como um novo consenso a ser organizado em torno da figura do príncipe D. Pedro, careceria, para ser bem sucedido, de uma aceitação unânime do conjunto das províncias do Brasil, dificuldade de não somenos importância, como bem parecem demostrar as inúmeras revoltas provinciais ocorridas durante o perído Regencial. De certa maneira, então, pode-se dizer que a defesa do princípio da legitimidade dinástica expressava uma tentativa de justificar, no plano internacional, uma possível afirmação da soberania brasileira sobre as antigas fronteiras pactuadas durante o período colonial, uma vez que a permanência da Casa de Bragança no trono poderia fornecer um consistente argumento para a diplomacia européia da época, remetendo-se a uma continuidade político-institucional que visava a legitimar o direito de domínio do novo governo sobre a totalidade do conjunto territorial luso-americano, pois subjacente à implantação de uma forma monárquica de governo estaria também a vantagem estratégica advinda da pretensão de manter unido o antigo território colonial português:

Do ponto de vista da legitimação da soberania sobre o território legal da ex-colônia, a adoção da monarquia atuou como elemento facilitador do processo na arena internacional, uma vez que na Europa pós-napoleônica conjunturalmente restauravam-se certos elementos do Antigo Regime, entre eles a forma dinástica de legitimar um domínio territorial estatal. A adoção da monarquia como forma de governo implicou uma continuidade dinástica que amenizava o fato emancipatório, visto como perigoso pelos Estados europeus possuidores de vastos impérios coloniais. A manutenção do Brasil sob domínio da Casa de Bragança permitia que o processo de independência fosse equacionado pelas monarquias européias como uma questão de família, principalmente na conflituosa conjuntura sucessória portuguesa na época. E de fato a soberania brasileira sobre os vastos fundos territoriais existentes no âmbito espacial conformado pelas fronteiras do período colonial não foi questionada na arena internacional, e já em 1825 até a antiga metrópole reconhece a independência brasileira[4].   

Como quer que seja, a análise pormenorizada do processo de independência surge neste trabalho apenas como referência indireta, ainda que realmente possa ser tomado como fenômeno estrutural básico que exerce certa hegemonia sobre os demais acontecimentos naquele momento. De qualquer modo, o que esperamos, por ora, é que tenha ficado nítido que associar direta e recorrentemente o território colonial ao território nacional pode vir a difundir uma noção equivocada de equivalência histórica natural entre o estabelecimento das fronteiras coloniais e o atual desenho das fronteiras nacionais, postura que, ademais, pode mascarar o entendimento de potenciais variáveis históricas no processo de formação territorial do Brasil[5].

Com efeito, para que não percamos de vista as alterações ocorridas nas formas de controle do espaço com a desagregação das bases do Antigo Sistema Colonial, há que estabelecer uma definição satisfatória de um termo que entendemos ser dos fundamentais para o ponto em questão, qual seja, a territorialidade. Entendida como prática que revela uma forma primária de expressão geográfica do controle social, a territorialidade pode ser conceituada como resultado das estratégias utilizadas por indivíduos, grupos ou organizações para influenciar ou controlar fenômenos e recursos naturais, pessoas e relações sociais através de uma delimitação do espaço que garanta o controle das ações e o exercício do poder sobre uma área determinada.

Desse ângulo, pode-se distinguir lugares que se expressam como territórios de outros tipos de lugares, uma vez que ao longo da história diferentes sociedades fizeram uso de também diversas formas de exercício do poder, organização geográfica e concepções de espaço para estabelecer um padrão de classificação por áreas, isto é, para criar categorias de inclusão e exclusão de pessoas e coisas a partir de sua localização no espaço. Enfim, a prática da territorialidade não se restringe a relações de separação e exclusão, mas também tem dentre suas funções seletivas a aptidão para estabelecer comunicação, algo particularmente importante nas zonas fronteiriças de suas divisões, já que, enquanto esforço de controle ao acesso de pessoas e coisas para dentro e para fora da área delimitada, a territorialidade acaba por representar uma nova relação de equilíbrio de poder entre os pretendidos “controladores” e aqueles sobre os quais se quer exercer o controle[6].

Os esclarecimentos acima podem ser úteis para uma melhor colocação do problema, pois mesmo assumindo que os territórios colonial e nacional expressam formas distintas de territorialidade – e, logo, diversos modos de controle do espaço e de exercício da soberania –, não se pode negar que, no momento da emancipação política do Brasil, o sistema de fixos e fluxos sobre o qual se podia planejar os futuros territórios de realização dos projetos políticos então em desenvolvimento seria resultante, de alguma maneira, dos mais de três séculos de colonização lusitana, e isso mesmo tendo-se em conta a formulação de propostas de nação que não imaginavam sequer a continuidade de união dos antigos estabelecimentos luso-brasileiros.

Aqui, embora se admita que o território objetivamente construído ao longo da colonização portuguesa funciona, enquanto rugosidade[7], como elo que estabelece certa continuidade entre a colônia e o império, dá-se um realce ao fato da variedade ser uma constante histórica, pois mesmo referidas a uma herança material até certo ponto comum, as territorialidades desenvolvidas nas várias etapas de consolidação do Estado independente brasileiro (I Reinado, Regência e II Reinado) são, se vistas em detalhe, diferenciadas entre si. Expressivamente, a escolha do nome para o novo ente estatal – Império do Brasil – apontaria igualmente para um equacionamento ímpar da questão da soberania e apropriação futura dos vastos fundos territoriais existentes, uma vez que, como bem demonstrou Bertrand Badie, a territorialidade imperial, diversamente daquela do Estado-nação, chega mesmo a negar a rigidez da idéia de uma fronteira linear fixa, convivendo bem com a imprecisão fronteiriça e com a diversidade cultural. Essa flexibilidade territorial da forma imperial de governo, que consiste num modo de reiterada reorganização de sua política interna, coloca interesses econômicos e estratégias políticas, militares e diplomáticas numa contínua recomposição de territorialidades de geometria variável, e isso tende a revelar o império como uma construção política original dotada de um singular uso do território[8].

Desse ângulo, a compreensão das etapas de construção da territorialidade lusitana na América torna-se importante, porque através da análise desse processo pode-se visualizar a maneira como a representação de uma unidade espacial e de uma contigüidade territorial própria foi forjada, ou melhor, recriada a partir de uma herança concreta que indicaria, em seu padrão espacial de ocupação, a possibilidade de uma futura “expansão para dentro”. Uma tal espécie de imperialismo centrípeto, por sua vez, seria pensado pelos entes estatais como forma de garantir o exercício do expansionismo imperial  dentro dos limites daquilo que poderíamos denominar, tomando de assalto expressão consagrada, como o “território imaginado” formalmente sob jurisdição do Estado imperial brasileiro. Entretanto, é forçoso reconhecer, em última análise, que essa herança não passava, do ponto de vista econômico, de um conjunto de regiões e lugares tenuamente articulados sobre o qual se pôde projetar politicamente linhas de fronteira que em muito ultrapassavam os limites efetivos da área de fato ocupada ao longo da colonização portuguesa. Por fim, a continuidade que buscamos identificar na passagem da situação colonial para uma de Estado politicamente independente jazeria exatamente no processo de composição desse substrato geográfico construído, que seria a base e o suporte sobre a qual poderia funcionar uma rede de relações articulando conexões territoriais em torno de virtuais centros de poder, quaisquer que fossem os projetos de organização social e política em disputa[9].


Os caminhos da conquista

Colocando o assunto em perspectiva, poderíamos fazer um breve histórico da criação das capitanias de Goiás e Mato Grosso durante o século XVIII, já que ambas têm histórias muito similares, e um processo de ocupação e autonomização administrativa diretamente ligado ao desenvolvimento da atividade mineradora na região. No Mato Grosso, os primeiros achados auríferos de Pascoal Moreira Cabral, às margens do rio Coxipó, afluente do Cuiabá, em 1719, inauguram o estabelecimento de núcleos fixos de povoamento português nessa localidade. Já em Goiás, o marco inicial de ocupação seria a bandeira de Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera Filho, que impulsionada pela confirmação da descoberta de ouro em Cuiabá e a conseqüente abertura de um caminho fluvial que ligava essa localidade a São Paulo, daí saiu no dia 3 de Julho de 1722, rodeando por três anos os sertões do Planalto Central até finalmente encontrar, em 1725, no sopé da Serra Dourada, ouro no rio Vermelho.

Nessa realidade, nos anos que antecederam o Tratado de Madri, assinado em 1750 pelas coroas portuguesa e espanhola, a administração lusitana teria estimulado a criação de inúmeros núcleos de povoamento que cumpririam o objetivo de garantir a ocupação dessa área, justificando, por ocasião das negociações, os argumentos que pleiteavam a posse definitiva de terras formalmente castelhanas desde Tordesilhas. A estratégia culmina na divisão da antiga capitania geral de São Paulo e na fundação das novas capitanias de Goiás e Mato Grosso. A primeira, criada em 1744, continuou presa administrativamente a São Paulo até 1748, pois que apenas no ano seguinte toma posse, meia década após a criação de Goiás como capitania, seu primeiro governador, D. Marcos de Noronha. Já a capitania do Mato Grosso, que abrangia os distritos mineradores de Cuiabá e Mato Grosso (centrado nas proximidades do rio Guaporé, mais ao norte), foi criada em 1748, tomando posse seu primeiro governador, D. Antônio Rolim de Moura, em 1751.

 

Figura 1. Localização das Missões espanholas – século XVIII.  
Fonte: Nogueira (2008).

           

A atenção crescente recebida pelas novas capitanias deve ser entendida, do ponto de vista das pretensões de soberania do Estado imperial português sobre essa área da América Meridional, a partir da importância que obteve o uso diplomático do princípio do uti possidetis de facto. Como essa doutrina apóia-se na posse pelo uso, o estudo da gênese e desenvolvimento dos movimentos colonizadores nos ajudaria a compreender o sucesso dos argumentos diplomáticos luso-brasileiros em boa parte das disputas fronteiriças travadas entre Portugal e Espanha pelo controle soberano dos vales dos rios Paraguai e Guaporé ao longo do século XVIII e XIX[10].

Aproximando-se de vez da realidade estudada, toda documentação consultada indica que, após o descobrimento das jazidas de ouro nas adjacências do rio Cuiabá e o conseqüente início de uma colonização em senso estrito, nos primeiros momentos do Setecentos, desenvolveu-se no Conselho Ultramarino uma estratégia de ocupação do vale do rio Paraguai que tinha como pontos centrais os distritos mineradores de Cuiabá e do Mato Grosso, no vale do Guaporé, e que devia ser sustentada por um eixo de assentamentos e pousos consolidados que formaria uma faixa ao longo do curso dos principais rios que serviam de vias de penetração.

Em verdade, se for dada a devida atenção à proximidade dessas minas com os estabelecimentos espanhóis de Moxos e Chiquitos, pode-se até perceber uma articulação entre os propósitos de defesa e os de exploração econômica, pois o que se almejava era a exclusividade da navegação em trechos fluviais fundamentais para o controle das cabeceiras das duas maiores bacias hidrográficas da América do Sul, a do Amazonas e a do rio da Prata. Isso posto, pode-se compreender de outro modo a relação estratégica que, no momento da negociação dos tratados de limites, vai-se procurar estabelecer entre a argumentação portuguesa e a consolidação dos caminhos que com o passar do tempo vieram a dar materialidade e viabilidade à colonização dessa área[11].

Estas rotas de penetração, que cartografadas dariam já uma idéia de todo ao território colonial luso-americano em formação, seriam, no rumo Norte, o caminho que saía de Vila Bela, cidade planejada na década de 1750 para ser a capital de toda a capitania do Mato Grosso, e seguia pelo alinhamento dos rios Guaporé-Mamoré-Madeira até este encontrar o Amazonas pela sua margem direita, daí demandando Belém. Já ao Sul, esse caminho fluvial estabelecia-se de início pela célebre via aquática entre Araritaguaba e Cuiabá, tantas vezes evocada nos clássicos estudos de Sérgio Buarque de Holanda. Nele, seguia-se Tietê acima até o rio Paraná, daí rumando depois para o alinhamento Pardo-Coxim, de onde se conseguia atingir o Taquari pelo estreito varadouro seco de Camapuã, passando-se deste até os rios Paraguai e Cuiabá, um seu formador pela vertente oriental.

A bem dizer, lembremos que o rio Pardo foi de fato a pioneira porta de entrada para os sertões de Goiás e Mato Grosso. Isso porque através do caminho em que se atingia a partir dele o rio Coxim até o Taquari, era possível, a depender do rumo seguido, ou ganhar as cabeceiras do Paraguai, como dissemos, ou mesmo alcançar as nascentes do Araguaia e do rio das Mortes – pois através do caminho aquático dos rios Caiapó, Claro, Vermelho e Peixe se podia chegar ao interior mais profundo de Goiás. Uma outra ligação de crucial importância para a fixação dos caminhos é a estrada terrestre, oficializada em 1736, que ligava Vila Boa de Goiás à Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, pois a partir daí os contornos regionais começam a se definir melhor, existindo, via Goiás, comunicações habituais desse imenso Hinterland com São Paulo, Bahia e Minas Gerais, além das rotas monçoneiras, fluviais, que ligavam o Mato Grosso a São Paulo e Belém[12].

A convergência de interesses envolvendo colonos e autoridades régias nesse movimento de apropriação de terras ao longo das rotas que rumavam em direção ao interior do continente, tinha em vista não apenas a proteção das recém-descobertas minas cuiabanas e o conseqüente controle das grandes extensões adjacentes de terra que daí decorreriam, mas também o esboço, nesse momento muito mais no plano ideal que no efetivo, de uma linha fronteiriça que se projetava como anteparo defensivo para as já ricas jazidas de Minas Gerais, além de poder funcionar como uma garantia da continuidade da busca por novos achados de ouro que de fato não tardaram a ocorrer.

De mais a mais, o que queremos sublinhar é que em muitos documentos de época, tais como as correspondências entre os administradores régios coloniais e a Corte lisboeta, abundam caracterizações de Cuiabá e seu entorno como a “chave e propugnáculo para todo o sertão da América”, donde decorreria a necessidade estratégica de um povoamento que garantisse a configuração de um verdadeiro “antemural da Colônia”, entendido esse termo como se fosse uma barreira que funcionasse como freio a um hipotético avanço espanhol sobre essas áreas[13].

Além disso, seria também importante notar que os achados auríferos feitos nas proximidades dos rios Claro e Vermelho, em terras futuramente goianas, foram posteriores ao rush migratório em direção a Cuiabá. Localizadas a meio caminho entre Cuiabá e Minas Gerais, essas novas descobertas podem ter dado aos funcionários régios a medida exata da importância em manter a todo custo o posto avançado de ocupação que as primeiras representavam em relação às novas e ricas jazidas de Goiás, “as minas dos índios Guayases” que então se iniciavam a explorar. Tais constatações permitem-nos mesmo indicar algumas respostas aos questionamentos colocados no início, pois o recurso a documentos de época parece sugerir, para além de qualquer determinismo, que de fato havia certa intencionalidade nas políticas de ocupação efetiva das áreas no entorno de Cuiabá, bem como na fixação dos caminhos utilizados para chegar às minas de ouro.


Realidades Regionais

Centremos agora nossas atenções num momento de transição, pois no que concerne à conjuntura sócio-econômica, as províncias, no início do século XIX, deixam progressivamente de ser economias calcadas unicamente na mineração e passam a depender cada vez mais da produção agropastoril. Em outras palavras, a ruralização da vida durante esse século muda a configuração territorial das capitanias surgidas como distritos mineradores, operando toda uma transmutação na geografia de Mato Grosso e, principalmente, Goiás, já que se passa de uma população radicada quase que exclusivamente em centros urbanos para uma dispersa pelos campos.

Em Goiás as mudanças foram mais evidentes por dois motivos básicos: primeiramente, a própria exploração do ouro atingiu nessa província níveis mais elevados que deram origem a um povoamento mais estável, com fluxos mercantis perenes e uma rede de cidades até certo ponto consolidada, ao passo que, no Mato Grosso, as necessidades de defesa e o caráter militar do governo, originados de sua situação fronteiriça, sempre acabavam por consumir a maior parte dos cabedais e esforços de seus habitantes.

Assim sendo, ressalta-se o fato de que tanto em Goiás, como no Mato Grosso, o que assegurou de vez o povoamento não foi o ouro, e sim a agropecuária. Isto é, na ótica da formação territorial, e afora a óbvia função polarizadora de fluxos cumprida pela mineração em províncias que apresentavam tão singulares posições geográficas – mais centralizada no caso de Goiás, e limítrofe com outro front colonial no de Mato Grosso –, pode-se dizer que foi a ruralização da população durante o século XIX o que veio a garantir a perenização e continuidade dos assentamentos. Afinal, mesmo numa realidade em que a extrema pobreza permeava a vida da população como um todo, em vez de a economia entrar numa fase de decadência, com a conseqüente regressão das atividades econômicas à mera subsistência, o que se deu em Goiás, e em menor escala no Mato Grosso, foi uma alteração na divisão social e territorial do trabalho, com o rearranjo dos diferentes grupos humanos que lá permaneceram.

Por isso, cabe salientar que a essa mudança da estrutura produtiva corresponde uma outra, que diz respeito às sociabilidades que davam suporte a tal estrutura econômica: a decadência do ouro é, sobretudo, a decadência da sociedade surgida e projetada para o controle da  produção aurífera. Porém, deve-se notar que apesar de o reordenamento do conjunto das forças produtivas emprestar um caráter agropastoril aos novos empreendimentos surgidos no entorno dos núcleos urbanos e ao longo dos caminhos, com o declínio da atividade mineradora e a conseqüente substituição defensiva de importações, não se descarta a hipótese de que mineradores abastados e grandes comerciantes moradores dos centros urbanos possam ter protagonizado a montagem de fazendas, diversificando suas possibilidades de ganho na agilização do circuito do capital mercantil.

O que colocamos acima permite-nos dizer que continuaria havendo, como no século anterior, um certo paralelismo entre os indivíduos que ocupavam cargos de mando administrativos ou militares, aqueles que detinham privilégios nos contratos de arrematação de impostos que incidiam na produção de gado e alimentos – o novo nicho econômico que proporcionaria maiores ganhos –, e a capacidade de inversão de capitais com a necessária realocação do plantel de escravos, algo absolutamente necessário para a formação e reprodução das novas unidades produtivas.

 

Figura 2. Caminhos e rotas – século XIX.   
Fonte: Nogueira (2008).

 

Ilustrando essa situação, consideremos brevemente alguns dados referentes ao número de sítios de lavoura e de fazendas de gados existentes em Goiás no ano de 1828. Entre essa data e 1796  houve um acréscimo de 1.713 novos núcleos agrícolas, com um crescimento de 109% em 32 anos. Pode parecer pouco, mas demonstra um movimento progressivo que nos remete à possibilidade de um “crescimento vegetativo” dos rebanhos e áreas cultivadas. Porém, se a frágil divisão social do trabalho fica clara na tênue especialização das produções, ou seja, se a pauta produtiva dos diversos arraiais era basicamente a mesma, visando à auto-suficiência e produzindo principalmente milho, mandioca, farinha, algodão, arroz, feijão, mamona e fumo, o recurso ao trabalho escravo, que era generalizado, indica que proliferaram na província pequenas unidades mercantis escravistas que raramente ultrapassavam os mercados locais dos centros urbanos regionais mais consolidados.

O resultado desse tipo de desenvolvimento econômico pode ser espacialmente traduzido por um padrão areolar de crescimento que se espraia longitudinalmente num aumento das terras ocupadas com um tipo semelhante de uso do solo. Em outras palavras, maiores extensões de terra produzindo os mesmos produtos, o que nos permite aventar a hipótese de que ocorria uma reprodução simples espacialmente ampliada das unidades produtivas. Desse modo, ao invés de regressão e decadência, o que teríamos em Goiás, afora a óbvia generalização da pobreza que de fato deve ser observada, seria a manutenção da vida local dando certa sustentação ao esqueleto das articulações e nexos de cooperação entre os diversos e afastados pedaços do território colonial.

No caso goiano, a província estava internamente assim regionalizada: o Norte participava do ativo extrativismo das “drogas do sertão” engendrado no vale do Amazonas e escoado por via fluvial para Goiás e Mato Grosso, tendo em Porto Imperial e Natividade seus principais pontos de apoio; o Nordeste goiano estava, como sempre, articulado com os pastos do São Francisco pelo vale do Paranã, respondendo, pois, às ordens da Bahia e Pernambuco. Em ambas as áreas também o contato com os algodoais do Maranhão eram mercados para a produção e as principais aglomerações eram Cavalcante, Arraias e São Félix. O Sul e Sudeste da província, sua região mais desenvolvida, onde se entroncavam todos os caminhos e se localizavam Vila Boa e Meia Ponte, os maiores núcleos urbanos do Brasil Central, articulava-se com o porto do Rio de Janeiro via comércio com Minas Gerais e São Paulo. O Sudoeste entrava nos interesses dos empresários agrários na medida em que o café ia fixando-se no Oeste paulista e no Sul de Minas Gerais, estabelecendo contatos recíprocos com Santana do Paranaíba. Aliás, esse crescente interesse pela ocupação (mesmo futura) das terras, recoloca a importância que a manutenção dos fundos territoriais ganharia na articulação de interesses que acabariam por garantir a não fragmentação da América portuguesa durante seu processo de independência política.

Enfim, sobre a questão da decadência após o fausto da mineração, como entendemos ser a reordenação das forças produtivas um processo não gradual e linearmente evolutivo, sujeito mesmo que é a avanços e recuos, preferimos colocar o acento naquilo que do ponto de vista espacial pôde garantir a ocupação, e não propriamente nos nexos com o circuito de reprodução ampliada do capital mercantil, mais ligado ao comércio de exportação do açúcar e do ouro e que agora atingia as províncias apenas tangencialmente. Todavia, no caso do Mato Grosso a estagnação econômica deve ser de fato enfatizada, de vez que a abertura da exploração das minas diamantíferas do Alto Paraguai, em 1805, somada a alguns novos achados que impulsionaram o franqueamento de uma Companhia de Mineração, em 1818, demostram que a crise mais evidente da mineração mato-grossense deve ser colocada no início do século XIX e não no final do XVIII.

Nessa perspectiva, os insucessos das ações voltadas para a consolidação das atividades agropastoris mato-grossenses, compreendidas como uma tentativa de reverter a dependência crônica que a província sofria em relação ao seu abastecimento de alimentos, que sempre provieram do exterior, seja via São Paulo ou via Belém, acentuam a prolongada estagnação econômica, que se arrastou ao longo de toda a primeira metade do século XIX e foi marcada por um padrão de desenvolvimento sujeito a fortes flutuações e crises somente amenizadas por ações de socorro do governo central. O que devemos, porém, reter dessa rápida análise é que a valorização política do espaço mato-grossense, levado a cabo durante o século XVIII por meio de explícitas políticas territoriais de povoamento, conseguiu engendrar com sucesso um tipo de economia que funcionava como suporte da colonização. Essa estrutura econômica dependente, que manteve suas linhas básicas de funcionamento durante a primeira metade do XIX, nos leva a concluir que a dinamização de fluxos comerciais sempre foi subsidiária da ocupação de terras, o que possivelmente vem revelar que a finalidade geopolítica, expressão da valorização política do espaço, parece prevalecer ante ao aspecto econômico estrito senso da organização territorial que inclui a região no circuito de trocas desiguais do comércio colonial.

Por outro lado, as ações de incentivo ao cultivo de variados produtos agrícolas que dinamizariam o comércio e ativariam as relações inter-regionais no interior do Brasil, integradas a uma ideologia mercantilista na qual o político e o econômico não são tomados como campos separados e autônomos, eram  pensadas pelo Estado como parte das atividades que visavam à integração do território colonial, já que esse cultivo cumpriria um papel de fixador da população em lugares considerados estratégicos. Daí ser possível inferir que a organização produtiva mato-grossense do início do século XIX não diferia muito da apresentada no século anterior: pequenas unidades agrícolas organizadas no entorno das antigas lavras minerais, empregando mão-de-obra escrava ou mesmo admitindo agregados, e produzindo basicamente produtos voltados para o abastecimento interno, atingindo a quase auto-suficiência.

Pode-se até dizer que, no limite, não era a população economicamente ativa que dinamizava a economia mato-grossense, mas, ao contrário, era a economia, pensada como projeto político, que sempre funcionou de maneira a manter a população naquela localidade, donde se compreende por que os fluxos comerciais se mantiveram por tanto tempo, mesmo sendo deficitários. Nessa realidade, a ajuda externa do governo não serviria apenas para manter funcionando em níveis baixos uma estrutura econômica em crise, mas para assegurar que essa mesma estrutura econômica, embora em crise, conseguisse estabilizar os níveis de habitantes fixados na fronteira, pois deve ser observado, antes de mais, que o padrão de ocupação em Mato Grosso apresenta-se bem diverso do goiano: ao invés do grande espraiamento espacial das ocupações de Goiás, havia ali uma grande concentração das atividades e da população na região articulada no entorno das pequenas algomerações localizadas nos vales dos rios Cuiabá, Guaporé e Alto-Paraguai.

 

Figura 3. Produção Agropecuária – Goiás (1804) e Mato Grosso (1831).   
Fonte: Nogueira (2008).

 

Continua também a exercer grande influência, num exemplo da manutenção das linhas básicas do funcionamento da economia, o surgimento de novas minas de ouro, donde se depreende que as migrações continuavam a acompanhar a possibilidade de desenvolvimento da atividade. Dessa maneira, a abertura da exploração dos diamantes fez com que, nos primeiros anos do século, Diamantino se tornasse o segundo maior núcleo populacional da província, passando de local interditado à vila com população de mais de 4.000 habitantes entre 1805 e 1825. Em Cuiabá, por sua vez, vemos duas tendências demográficas diversas: uma primeira fase de crescimento populacional entre 1800 a 1815, a que se seguiu um sensível declínio até 1825, aproximadamente. As oscilações, entretanto, ficaram sempre, para o conjunto de povoações, em torno de 20.000 habitantes, pouco mais ou menos.

A partir desses números, que são uma tentativa de buscar apreender alguns padrões de flutuação e desenvolvimento da população regional no período – embora saibamos que lidar com dados de demografia histórica seja muito difícil, pois as informações anteriores ao censo de 1872 são normalmente incompletas e, não raro, imprecisas –, podemos inferir que na primeira metade do século XIX há duas fases distintas da demografia mato-grossense, a qual de certo modo acompanha a tendência cuiabana: entre 1800 e 1825 a população praticamente se estabiliza na casa dos 25.000 habitantes, expandindo-se levemente até 1830, quando passa novamente a oscilar, mas sempre na casa dos 30.000 a 40.000 habitantes, dos quais cerca de 70% ou mais mantiveram-se sempre em Cuiabá e arredores, a não ser no pequeno intervalo entre 1820 e 1825, quando a participação cuiabana oscilou num patamar entre 55% e 60%. Comparando esses últimos com os dados disponíveis para Goiás, vemos que a proporção da população assentada apresenta-se de 2 a 3 vezes maior que na província de Mato Grosso. A tendência do desenvolvimento é também parecida, com uma expansão da população total entre 1804 e 1819, quando aumenta de cerca de 50.000 para mais de 60.000 almas. Posteriormente, na década de 1820, há uma estagnação na casa dos 60.000, com uma leve subida a partir de 1830, quando se aproxima, sempre numa crescente, dos 70.000 habitantes, chegando, em 1848, à casa dos 80.000. No que diz respeito à população dos centros urbanos, também nenhuma surpresa, com Vila Boa e Meia Ponte concentrando praticamente 30% da população durante toda a primeira metade do século. Logo, em 1804 contaria Vila Boa com pouco mais de 9.000 habitantes, chegando aos mais de 14.000 em 1832, período quando Meia Ponte passou dos cerca de 6.500 habitantes para quase 10.000.

Tratando agora da pauta produtiva de Mato Grosso, novamente vemos similaridades com as atividades agrícolas desenvolvidas em Goías, sendo produzido regularmente em terras mato-grossenses milho, arroz, feijão, fumo, açúcar, rapadura, aguardente, algodão e café, este último em pequena quantidade. Por fim, a pecuária apresenta em Mato Grosso um padrão de desenvolvimento que nos permite dividi-la em dois eixos de ocupação: um localizado mais para a baixada cuiabana e Alto-Paraguai, principalmente às margens dos rios São Lourenço e Cuiabá, onde se observa a proliferação de fazendas nos caminhos que interligavam Vila Bela, Vila Maria e Cuiabá, e outro eixo que, ocupando vales de rios como o Miranda, o Pardo e o Brilhante, localizados ao sul da província, colocará sob influência luso-brasileira antigas áreas imemorialmente disputadas com os hispano-paraguaios, mas tidas como parte do Império desde o Tratado de Badajoz, de 1801.

Um outro ponto importante é a diferenciação que se deve fazer entre as fazendas particulares e as fazendas públicas formadas com capital régio, que eram pensadas como saída para o abastecimento de gado vacum e cavalar das tropas regulares estacionadas na província, pois aqui se torna visível uma mudança funcional nas antigas praças fortificadas, já que nesse momento esses núcleos passam a exercer o papel de sedes dessas imensas fazendas erigidas com recursos da Coroa. Colocando o foco um pouco mais nas fazendas de propriedade do governo provincial, as depois chamadas Fazendas Nacionais, podemos ver que elas se dividiam entre as localizadas no Alto Paraguai, dentre as quais se destaca Casalvasco e o chamado “Complexo Caiçara”, formado pela sede de mesmo nome e mais três outros sítios associados, as fazendas do Pau Seco, do Caité e da Campina, e aquelas localizadas no Baixo Paraguai, como as fazendas surgidas próximo aos presídios de Miranda e de Albuquerque[14].

A administração e o custeio do rebanho do Complexo Caiçara das fazendas nacionais do Alto Paraguai ficava a cargo da tropa residente em Vila Maria, tendo esse conjunto de fazendas sido controlado pelo tenente-coronel João Pereira Leite, também proprietário da fazenda Jacobina, por quase três décadas. No que diz respeito ao uso e ocupação das terras, o relacionamento entre as distintas propriedades que formavam os complexos de fazendas parece indicar uma rotação periódica no uso dos pastos e recursos (sais minerais e água) pelos rebanhos, com alguns sítios mais afastados e sem benfeitorias cumprindo a função de pastos auxiliares, reservados para a invernada. Afirma-se aqui também, como já notamos, um padrão de desenvolvimento simples espacialmente ampliado, pois um mesmo rebanho podia ocupar indistintamente grandes extensões de terras.

Enfim, tanto a presença das fazendas nacionais, como também a liberdade para a emissão de moedas de cobre na Casa de Fundição de Cuiabá, caso raro e expressão do socorro externo prestado à província, representam aqui o subsídio do governo central para a continuidade do povoamento que garantiria o sucesso do processo de ocupação e defesa das terras disputadas desde o século XVIII. Se atentarmos para o fato de que, na média, entre 1800 e 1840 os subsídios enviados para Mato Grosso pela Corte do Rio de Janeiro representaram 49% das receitas, com os gastos militares sendo da ordem de 60% a 70% das despesas, veremos o modo como o Mato Grosso continuava, embora afastado da região core e sofrendo as óbvias conseqüências de um certo isolamento geográfico agravado pela desaceleração econômica, preso aos desígnios do governo central e às determinações geopolíticas, indicando que a região do Mato Grosso, como expressão do caráter descontíguo da soberania estatal que se expressa como território colonial, mantinha-se como ponto avançado da ocupação frente a outros fronts de expansão, delineando, a partir da hierarquização dos lugares enfeixados em seu círculo de influência, os limites rarefeitos da soberania formal.

Nessa província, a concentração da população e produção em Cuiabá continuamente repõe sua característica de posto avançado da ocupação. Nesse sentido, as fortificações, presídios e destacamentos militares, mas também os pequenos arraiais e pousos estabelecidos como pontos de apoio ao longo dos caminhos que os interligavam, aparecem como as balizas mais evidentes desse projeto português de construção e delimitação das áreas fronteiriças com os domínios espanhóis na América, cumprindo as importantes funções geopolíticas de barrar o expansionismo espanhol no vale do rio Paraguai ao mesmo tempo em que permitiam a projeção cartográfica do território imaginado. Já Goiás seria essencialmente uma zona fronteiriça que começava a se consolidar como uma região periférica parcialmete isolada, com uma tendência de ocupação que se enquadrava no movimento de manutenção das fronteiras econômica e demográfica da colônia ao marcar, a leste do rio Araguaia, os limites fluidos do território usado. Assim é pois não havia, entre os cerca de 1.000 km que separam Vila Boa e Cuiabá, nenhum estabelecimento perene de povoação luso-brasileira, existindo mesmo diversas formas de negação do sistema colonial português, como as áreas dominadas por diferentes povos indígenas (nesse trecho a presença dos índios Caiapó, um dos grupos que mais resistência impuseram à colonização, é exemplar), ou núcleos articulados de negros fugidos, enfim, verdadeiras extraterritorialidades ameaçando o pretendido domínio estatal.

 

Figura 4. População escrava e livre – Mato Grosso e Goiás (1825). 
Fonte: Nogueira (2008).

                                

Visto dessa maneira, o recuo da fronteira econômica representado pelo declínio da atividade garimpeira, que normalmente é interpretado como a expressão concreta da decadência pela qual a região passava, aqui é visto como a imagem das intensas migrações que, no processo de reestruturação da economia regional, foram uma realidade dura mas necessária para uma massa populacional apta a se deslocar. Em pormenor, se lembrarmos que o estabelecimento de comunicações pela via fluvial através dos grandes rios, intentada desde o fim do XVIII, esbarrava no fato de que o despovoamento das margens do Araguaia e Tocantins permanecia um problema insolúvel ainda no XIX, veremos de que maneira os presídios e aldeamentos que tomavam conta da margem oriental do Araguaia representam os marcos da colonização lusitana na América. É claro que os núcleos de povoamento instalados em Mato Grosso são, ao fim e ao cabo, os que estão em contato direto com os limites da área de povoamento de preponderância hispânica, mas compreendendo a fronteira como fronteira do humano, a rede de cidades polarizada por Vila Boa e Meia Ponte torna-se o limite efetivo da colonização empreendida nas terras interiores do Brasil Central por serem esses os centros polarizadores ao qual se associa a fronteira do Araguaia.

Concluindo, o que estamos descrevendo pode ser mais bem visualizado se operarmos aqui a distinção, consagrada nos EUA, entre os termos frontier e border, pois enquanto o primeiro pretende representar uma tendência de desenvolvimento que apresenta manifestações centrípetas de forças que buscam o centro político principal devido às injunções específicas de sua condição estratégica, o segundo refere-se normalmente a movimentos centrífugos orientados para a expansão da ocupação produtiva do espaço em direção a novas áreas. Goiás representaria mais fielmente a definição de fronteira econômica sugerida normalmente pelo primeiro termo, pois funcionava como a retaguarda da ocupação consolidada, formando uma zona para a qual o significado mais propriamente econômico de franja pioneira encaixar-se-ia perfeitamente, já que a expansão espacial e a difusão da colonização se dão incorporando novas áreas na economia de mercado. Por sua vez, Mato Grosso identificar-se-ia plenamente com uma área que teve sua organização territorial influenciada objetivamente pela construção de um limite estritamente político, uma vez que a especificidade geoestratégica da sua ocupação tem caráter evidentemente militar. Em língua inglesa, atribui-se tal especificidade ao termo border, que de fato se refere à zona que margeia uma linha fronteiriça nitidamente demarcada entre duas soberanias.

 

Notas

[1] “A constituição do Estado nacional brasileiro configura um processo diferenciado quando confrontado com as outras variantes latino-americanas. Ao contrário do que se verificou na América hispânica, aqui o novo Estado emergente da crise do Antigo Sistema colonial não rompeu com o princípio da legitimidade dinástica, transformando-a, pelo contrário, em instrumento de superação dos localismos, tão poderosos na América portuguesa quanto na espanhola (...) Não havia nenhuma inexorabilidade histórica inscrita na constituição dos dois Impérios coloniais a determinarem a fragmentação de um e a unidade do outro. Pelo contrário, para os homens da época , vivessem em qualquer região que fosse da América ibérica, ao menos até o final do século XVIII e início do XIX, a sua identidade política passava pelo reconhecimento ou pela negação de realidades dentre as quais a nacional era a menos nitidamente definida (...) O nacional, no sentido que emerge da revolução burguesa, identificando soberania da nação com Estado soberano, era um projeto a ser inventado na América Latina, na medida em que não repousava sobre antecedentes históricos que levassem a identificar, necessariamente, as divisões dos Impérios ibero-americanos como Estados nacionais emergentes” (Jancsó, 2002, pp. 3-4).

[2] Ao estudar formas de emprego e os significados atribuídos a esse termo, José Carlos Chiaramonte verificou que não se pode imputar o surgimento dos Estados-nação à existência prévia de identidades nacionais que buscariam sua independência política em meio a outras nacionalidades, concorrentes ou similares, pois: “no chamado conceito “étnico” não se estabelece uma relação necessária entre um grupo humano culturalmente distinto e um Estado, relação que, por outro lado, será essencial no chamado princípio das nacionalidades, a partir do começo de sua difusão na primeira metade do século XIX. Em outros termos, a diferença entre ambos os conceitos de nação baseia-se no fato de que apenas aquele, difundido durante o século XVIII e predominante à época das revoluções norte-americanas, francesa e latino-americanas, correspondia à existência política independente, na forma de um Estado, de um grupo humano.” Levando-se em conta a preocupação com os antecedentes dos conteúdos “étnicos” ou “políticos” relacionados ao conceito de nação, o autor chega a conclusão de que: “não se trata de um mesmo sujeito, chamado nação, que passa de um estatuto político a outro, mas de diferentes sujeitos históricos que confundimos em uma mesma denominação: grupos humanos unidos por compartilhar uma origem e cultura comum, por um lado, e população de um Estado – sem referência a sua composição étnica, por outro. O sujeito que muda de natureza é o Estado, adotando a palavra nação para arrogar-se soberania” (Chiaramonte, 2003, pp. 78-87).

[3] Acompanhamos a proposta de Antônio C. R. Moraes (2011) de alterar sutilmente o escopo interpretativo do conceito de território usado, desenvolvido originalmente por Milton Santos e Maria L. Silveira. Cf. Santos&Silveira, 2002.

[4] Moraes, 2002, p. 114.

[5] Essas potencialidades históricas, que incluem obviamente as formas de negação da conquista colonial e as múltiplas territorialidades das diversas etnias indígenas, aparecem indicadas no momento da emancipação política na existência, no Brasil, de uma multiplicidade de projetos de futuro que se mostrariam até certo ponto provisórios, pois que baseados em arranjos e alianças estratégicas de grupos regionais pretendendo legitimar um domínio político sobre áreas que muitas vezes entravam também no espectro de interesses de outros grupos. Foi esse o caso, para ficarmos apenas num exemplo que afirma a existência de territorialidades superpostas e conflitantes dentro daquilo que viria a ser o território brasileiro, das províncias do extremo Norte, que lideradas por grupos políticos do Pará, formularam no início do XIX, em articulação com disssidências de Goiás e Mato Grosso, projetos que aventavam a formação de um bloco regional que manteria ligações diretas com Lisboa, não se subordinando ao projeto de poder elaborado a partir do Rio de Janeiro.

[6] Sack, 1986.

[7] As rugosidades são na verdade uma espécie de testemunho de um momento do modo de produção, memória que se apresenta como espaço construído, pois as coisas fixadas na paisagem por meio das formas normalmente duram mais que os processos que  lhes deram origem. Daí certos processos engendrarem novas formas enquanto outros se adaptam às já existentes, refuncionalizando-as de acordo com as necessidades do momento. Esse predicativo deve-se à chamada inércia dinâmica do espaço, pois em cada lugar o tempo atual é confrontado com os tempos passados cristalizados nas formas, o trabalho morto transmutado em meio ambiente construído, influenciando na repartição do trabalho vivo: “O espaço é a matéria trabalhada por excelência. Nenhum dos objetos sociais tem tanto domínio sobre o homem, nem está presente de tal forma no cotidiano dos indivíduos. A casa, o lugar de trabalho, os pontos de encontro, os caminhos que unem entre si estes pontos são elementos passivos que condicionam a atividade dos homens e comandam sua prática social. A práxis, ingrediente fundamental da transformação da natureza humana, é um dado sócio econômico mas é também tributária das imposições espaciais (...). As rugosidades são o espaço construído, o tempo histórico que se transformou em paisagem, incorporado ao espaço. As rugosidades nos oferecem, mesmo sem tradução imediata, restos de uma divisão de trabalho internacional, manifestada localmente por combinações particulares do capital, das técnicas e do trabalho utilizados” (Santos, 2002, pp. 172 -173).

[8] Badie, 1996.

[9] Sobre o estudo das condições materiais de produção dos efeitos político-administrativos, Antonio Manuel Hespanha afirma que: “O exercício quotidiano do poder político – a que chamamos administração – é, antes, uma prática corporizada em coisas – o espaço, os equipamentos e processos administrativos, as estruturas humanas da administração, o saber administrativo, a mentalidade administrativa (que nada tem a ver com a teoria política ou com a ‘ciência da administração'). Coisas que resistem aos factores externos – que o digam os fracassos das “reformas administrativas” – e que segregam uma dinâmica própria. A este nível de análise, surpreendem-se as continuidades insuspeitadas; insuspeitadas pelos próprios agentes. Nas coisas e nas auto-representações. É o impensado da história do poder que vem ao de cima” (Hespanha, 1986, p. 2). Já sobre a “expansão para dentro”, consultar: Mattos, 2005.

[10] Seria importante sublinhar a importância que o contexto geopolítico do Consulado Pombalino (1750/78) teve para a consolidação do povoamento na região, até pelo fato de a mentalidade ilustrada desse período persistir, no início do XIX, nas políticas do principal conselheiro de D. João VI, D. Rodrigo de Souza Coutinho. Trabalhando para solidificar os interesses de Portugal nas indefinidas áreas de fronteira com a América hispânica, podemos identificar, na reorganização administrativa pombalina, algumas frentes de apropriação territorial que, configurando novos assentamentos, proporcionaram a criação de interesses concretos por sobre os vastos fundos territoriais disponíveis aos colonos. O caso é que os esforços de integração do Planalto Central com a região Amazônica, que vinham se desenvolvendo desde a metade do século XVIII com a abertura e oficialização de novas rotas, mais a consolidação da ocupação representada pelo adensamento do povoamento da capitania de Goiás, garantiu a posse da fronteira mato-grossense do Guaporé e a defesa dos interesses lusitanos sobre o vale do Amazonas. Dentro desses parâmetros, a trajetória da construção da fronteira sustentada pelas “frentes Ocidentais” de apropriação territorial, marcada pelos esforços para se integrar efetivamente as distintas localidades do vasto território colonial, fazia parte do processo de redistribuição racional das capitanias, isto é, relacionava-se com a reforma na organização político-administrativa do Estado representado pelo incremento dos dois centros de poder criados ao Norte, no Pará, e ao Sul, no Rio de Janeiro, sede da Corte e centro do Império após a chegada da família real, em 1808. Sobre o princípio do uti possidetis, desenvolvido por Alexandre de Gusmão durante as negociações do Tratado de Madri (1750), sabemos que atribuí ao uso produtivo do solo um valor básico para se auferir soberania legítima e efetiva posse a áreas em litígio. Atualizado no século XIX, tal princípio balizou a doutrina imperial de direito territorial e se transformou em instrumento legal de legitimação internacional nas disputas com os vizinhos hispano-americanos, que normalmente se apoiavam na doutrina do uti possidetis iure e consideravam válidas as letras dos antigos tratados coloniais. Cf. Machado, 1973; Falcon, 1993.

[11] “todo processo de incorporação do território brasileiro baseia-se na descoberta anterior do(s) caminho(s) que permitiram alcançar cada ponto, caminho marítimo, inicialmente, e depois caminhos terrestres e fluviais. Os percursos pioneiros realizados no espaço garantiram para os seus seguidores a conexão possível entre o conhecido e o desconhecido, ampliando sucessivamente os limites da procura. A descoberta da passagem viabilizava a demanda do território (...) Os caminhos foram a estruturação básica do território e sobre eles se fundamentaram tanto a conquista quanto a ocupação das terras. Disputava-se para garantir a possibilidade de percorrer os caminhos, assim como para impedir que outros o fizessem (...) O caminho é portanto um método de apreensão e de apropriação conceptual do espaço, espaço contínuo, e não necessariamente visível ou utilizável, mas sobre o qual se exerce o poder do seu conhecimento virtual, e se reivindica a sua posse potencial, ou direito de utilização (...) A defesa dos caminhos no processo de colonização do Brasil era, literalmente, assunto de Estado. O território onde este exercia a sua soberania conformava-se através de uma rede de percursos. O Estado manda até onde alcança e, num contínuo empurrar, e solidificar, da sua área de influência, procurará sempre defender os seus caminhos, gerindo-os como um processo político. Há caminhos que são liberados, outros que são proibidos, há caminhos oficiais e clandestinos” (Araújo, 2000, p. 67/69/71). Ver também: Goés Filho, 1998; Magnoli, 2003.

[12] Cf. Teixeira Neto, 1982; 2002; Bertran, 1988 ; 1994; Lapa, 1977; Holanda, 1986; 1990.

[13] Poderíamos citar uma Consulta ao Conselho Ultramarino de 1748 sobre a constituição do governo das novas capitanias de Goiás e Mato Grosso, na qual se diz sobre a última que esperavam que “por meio do estabelecimento do Governo, como por todos os outros que ocorrerem, se procure fazer a Colônia do Mato Grosso tão poderosa  que contenha os vizinhos em respeito, e sirva de antemural a todo interior do  Brasil” (Apud Araújo, 2000, p.71). Ou ainda a carta enviada ao rei em 1757 por Antonio Rolim de Moura, primeiro governador de Mato Grosso, que trata da fundação da nova capital da capitania, Vila Bela: “Parece-me que V.Magde. não mandou formar essa Vila ao cômodo e satisfação dos moradores do Matogrosso, nem eles tal Vila pediam e nem queriam. O motivo que V. Magde. toma para esta determinação é a vizinhança que este distrito tem com as terras de Espanha, por cuja causa lhe chama V. Magestade Chave e Propugnáculo do Sertão do Brasil pela parte do Peru, e assim o sítio desta Vila devia especialmente corresponder a este fim, ainda que daí resultasse algum incômodo aos moradores” (Apud Araújo, 2000, p. 41). Ver também: Volpato, 1987.         

[14] Dentre as principais fazendas consolidadas, as mais importantes haviam sido formadas na segunda metade do século XVIII, como por exemplo as fazendas de Miranda, Dourados, Albuquerque, Vila Maria, Cambará e a grande fazenda Jacobina, a mais rica e conhecida de todo o Mato Grosso. Essa fazenda, formada em 1772, era o principal centro produtor de alimentos e gado da região, a ponto de seu proprietário gabar-se em dizer, no início do XIX, que possuía mais terras que o rei de Portugal. Na década de 1830, contava com mais de 60.000 cabeças de gado, 300 cavalos, centenas de burros de carga e uma infinidade de outros animais, como galinhas, porcos e cabritos, e plantava, como de resto em outras localidades, milho, mandioca, feijão e abóbora, além de empregar mais de 200 escravos e, entre forros, índios e agregados, atingir uma população de mais de 500 pessoas. Localizada a cerca de 6 léguas de Vila Maria, na estrada que ligava esse núcleo à Cuiabá, a Fazenda Jacobina é o embrião de uma outra propriedade de valor histórico indiscutível para o desenvolvimento da economia mato-grossense, a Fazenda Descalvados. O ponto curioso a ser ressaltado está no fato de que após a Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai, no final do século XIX, a antiga propriedade “do Escalvado”, já chamada de Descalvados e vendida pelos herdeiros da fazenda Jacobina a um empresário argentino, entra nos interesses do capital internacional belga, que tentou desenvolver ali ações imperialistas em tudo similares com aquelas que levadas a cabo na África resultaram na criação do Congo Belga. Cf. Garcia, 2005. 

 

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Ficha bibliográfica:

NOGUEIRA, Carlo Eugênio. A conquista do Brasil Central: fronteiras e frentes pioneiras no século XIX. Scripta Nova. Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales. [En línea]. Barcelona: Universidad de Barcelona, 1 de noviembre de 2012, vol. XVI, nº 418 (9). <http://www.ub.es/geocrit/sn/sn-418/sn-418-9.htm>. [ISSN: 1138-9788].
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