Menú principal

Índice de Scripta Nova

Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VI, núm. 119 (39), 1 de agosto de 2002

EL TRABAJO

Número extraordinario dedicado al IV Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)

TRABALHO E EXCEDENTE ECONÔMICO: REMANESCENTES DE QUILOMBOS NO BRASIL

Lourdes F. B. Carril
CEFET – Centro Federal Tenológico


Trabalho e excedente econômico: remanescentes de quilombos no Brasil (Resumo)

A partir da década de cinqüenta, com a intensificação do processo de modernização da economia brasileira, vários projetos foram pensados para expandir o capitalismo brasileiro. Esses projetos alcançaram as terras de quilombos que, por mais de um século, vivenciam o uso comum dos recursos naturais e das terras, desde a escravidão. Os quilombos surgiram das lutas anti-escravistas e hoje lutam para o reconhecimento jurídico de seus direitos através do Artigo 68 da Constituição Brasileira. Como trabalhadores, no entanto, os tempos lhes impõem a desagregação da cultura camponesa. Projetos hidrelétricos, madeireiras, mineradoras e especuladores imobiliários exploram as suas terras. As unidades de conservação ambiental consideram essas terras territórios vazios. Os jovens são vistos pelos mais velhos como vadios, pois não são mais agricultores e nem conseguem emprego nas cidades.

Palavras - chaves: excedente, territorialidade, identidade, sustentabilidade


Work and economic overflow: the Quilombos in the Brazil (Abstract)

Begining in the 50s with the increase of the modernization process in the Brazilian Economy, several projects were created to expand the Brazilian Capitalism. These projects reached the Quilombos lands, which for more than of century experience the common use of natural resources and the land itself since Slavery times. The Quilombos originated from the fights against slavery and nowadays they still strugle for the recognition of their rights through chapter 68 of the Brazilian Constitution. As workers, however, time imposes on them the disagregation of the Peasant culture. Hidroeletric projects, Lumber companies, mineral explorers (mine prospection) and real estate investors have exploited their lands. The units environmental preservation consider these lands as empty territories. The youngsters are seen by the older as a lazy group as they have been taken away from their lands and have not been able to find a job in the city.

Key-words: overproduction, peasantes, agricult production, common use.


"Pode trabalhar e carpir já que planta dá? Então eu queria que viesse uma libertação no Brasil sabe, porque o Brasil é grande, Brasil não é pequeno lugar, eu desejava que o presidente desse liberdade para o Brasil trabalhar, se nós tivesse a liberdade de trabalhar eu não precisava comprar alguma coisa de você, se você não precisa comprar, aquela não precisa estar comprando, porque todos nós tinha nosso punhadinho..." (Dona Antonia Vitorino de Oliveira (1905-1995), da Comunidade de Pilões, no vale do Ribeira/SP).

As mudanças na economia mundial na passagem do século XX para o atual tendem a reorganizar os espaços com maior velocidade e explicitam desafios aos trabalhadores do mundo inteiro. A perda não é somente do poder salarial, mas do próprio emprego que fica mais difícil. O enfraquecimento dos sindicatos deixa mais clara ainda essa vulnerabilidade, sobretudo nos países do Sul. No caso brasileiro, a modernização econômica que teve impulso mais fortemente a partir da década de cinqüenta não se fez homogênea sócio-econômica e espacialmente. Regiões brasileiras, como o Nordeste e Amazônia apresentam níveis de industrialização muito pequenos se comparados à região Centro-Sul. Se essa realidade revela uma fração das distorções existentes, ela também explica que em vários locais do território brasileiro a relação sociedade-natureza se expressa ainda hoje sob diferentes formas. É o caso de uma boa parte do meio rural brasileiro, em que se incluem os quilombos.

Em nosso artigo, pretendemos caracterizar as relações de trabalho nas comunidades remanescentes de quilombos. Em primeiro lugar, vamos assinalar que os quilombos são famílias majoritariamente constituídas por pessoas negras agrupadas em torno de uma terra de uso comum, (constituída durante o período escravista que durou até 1888). Ao longo de mais de um século, muitas famílias permaneceram nessas terras, outras se dispersaram pelo meio rural. Procuraremos caracterizá-las segundo algumas de suas especificidades e explicar as relações com a natureza e o mercado. Vamos delinear também alguns de seus problemas e as principais estratégias de resistência.

O campesinato brasileiro caracteriza-se pela heterogeneidade cultural, o que resultou na construção de diversas lutas pela terra. Na maioria das vezes, é o impacto de projetos de modernização nas várias regiões brasileiras que o faz se organizar. Esses projetos quase sempre foram acompanhados pela valorização das terras públicas (sem donos particulares e nas mãos do Estado) o que atraiu toda sorte de interesses, inclusive por parte de especuladores imobiliários.

Em nossa dissertação de Mestrado, estudamos as comunidades remanescentes de quilombos no vale do Ribeira, no litoral sudoeste do estado de São Paulo, com ênfase àquelas que habitavam o Alto e o Médio Ribeira de Iguape. Chamava nossa atenção o fato de que no fim do século XX, pudéssemos encontrar agrupamentos humanos com passado colonial e sobrevivências culturais presentes na prática e na memória viva dos mais velhos, que integram o universo rural brasileiro. Elencamos vários aspectos sócio-econômicos-culturais importantes para caracterizar a dinâmica grupal e familiar dos homens e mulheres que vivem o meio das florestas e matas, montanhas e rios – herdeiros de um passado, cuja materialização são as terras dos quilombos.

Pudemos verificar que os desafios são muito complexos para as comunidades quilombolas do vale do Ribeira. Elas vivenciam o uso comum das terras, praticando, ao mesmo tempo, uma agricultura baseada na mão de obra familiar, reproduzindo uma vida camponesa. Laços de solidariedade encontram-se presentes entre seus membros que aprenderam que a luta pela sobrevivência somente tem força quando é feita coletivamente. No entanto, as pessoas têm percebido não possuir armas suficientes para enfrentar os vários interesses distintos à sua lógica que vêm sendo instalados há um longo tempo em seu espaço. Na verdade, um território é a concepção que se aplica ao vínculo ser humano-natureza nas terras quilombolas. O uso comum da terra, engendrado na sua ancestralidade, a base física e imaginária desses grupos, é de fundamental importância para os membros dessas comunidades. Seu valor se remete, portanto, à satisfação de suas necessidades mútuas, que incluem o simbólico, tradições e sobrevivências culturais. É nesse sentido que território e cultura se mesclam, assegurando-lhes a continuidade. Mas, a sua produção econômica é muito pequena e não lhes dá margem de lucratividade, muitos aspectos ligados às suas relações sociais internas e externas encontram-se comprometidas pelas mudanças no padrão de trabalho e pela sua inserção no mercado. Projetos de natureza técnico-científica têm imposto desarticulações sobre o modo de ser desses grupos.

Com o tempo, percebemos que entre as problemáticas das comunidades quilombolas, a luta pela terra era apenas um dos momentos escolhido pela rede de alianças formada pelo movimento social iniciado no vale do Ribeira, na década de oitenta, formado pelas comunidades, Igreja, através da Comissão Pastoral da Terra – CPT, Movimento dos Ameaçados pela construção de Barragens e SOS Mata Atlântica. Em fevereiro de 1994, esse movimento ora denominado "Movimento Pró-Ribeira" reunia 30 entidades ambientais e sociais sob a justificativa de um desenvolvimento sustentável para a região. A suspensão da autorização de construção da barragem de Tijuco Alto, da Companhia Brasileira de Alumínio – CBA, através da obtenção de uma liminar da Procuradoria da República Federal que partiu da solicitação de uma entidade paranaense, o GEEP-Açungui foi recebida com bastante entusiasmo. Dentre as razões para a suspensão da construção das barragens, alegou-se se tratar de um rio interestadual, cuja diretriz de uso deveria ser sancionada mediante o parecer da Comissão Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, de âmbito federal.

O fato é que a luta contra a construção de barragens e a luta pela terra não respondia a todas as demandas colocadas no cotidiano das comunidades negras estudadas. Esses grupos há quase meio século vinham sendo deixados no limite da sobrevivência; a sua produção interna, hoje, corresponde minimamente às suas necessidades e os excedentes comercializáveis, que permitem aos mesmos adquirirem mercadorias não produzidas internamente, foram buscados em outras atividades como o cultivo da banana ou na extração ilegal do palmito.

Essa situação de escassez é visível entre os quilombos. Uma das suas causas encontra-se no estabelecimento de políticas públicas territoriais aplicadas ao vale do Ribeira. Elas podem ser evidenciadas a partir do estudo das preocupações preservacionistas com os remanescentes de mata Atlântica no vale do Ribeira e com a instalação do primeiro parque no território das comunidades negras. Em 1958, foi criado o Parque Estadual Turístico do Alto Ribeira – PETAR. Ocorre que a delimitação de parques e áreas preservadas na mata Atlântica não considerou a existência de populações moradoras nas áreas definidas para a preservação. A criação do PETAR restringiu as áreas de cultivo e a tradicional extração do palmito que antes era feita de forma legal, tornou-se ilegal e clandestina desde a criação do parque. A APA da Serra do Mar-Área de Proteção da Serra do Mar, criada por um decreto estadual em 1984 alterou ainda mais a organização econômica das comunidades.

Consideramos que a luta contra as barragens no vale é inócua se não levar em consideração o fator de principal corrosão econômica e social das comunidades negras, que é a existência dessas restrições às áreas de cultivo impostas pelas unidades de conservação. A concepção de vazio demográfico norteou as políticas governamentais de implantação de parques e áreas de conservação no vale do Ribeira e no Brasil. A conseqüência tem sido a limitação penosa da vida dos moradores que, normalmente, são camponeses e extrativistas desde seus antepassados.

Podemos fazer algumas questões: a que(m) se destina uma área de preservação? Quais são as alternativas para as comunidades ou populações tradicionais que se vêem repentinamente dentro de um parque? Por que esse modelo de parques e áreas de conservação foi escolhido e tem sido implantado no Brasil?

A possibilidade de investigar sobre as construções da paisagem é um dos elementos norteadores de nosso trabalho. Cada uma das visões, olhares e intervenções sobre uma paisagem ocorrem tendo em vista o observador e o agente modificador das mesmas. A paisagem sempre foi, no entanto, mais do que a aparência física do meio ambiente, ela é a representação mental, base física e histórica e meio de intervenção do homem. Os quilombos modernos traduzem essa premissa ao estabelecerem uma forma específica de relação com o meio natural, dispondo do mesmo para a obtenção dos recursos necessários à sua sobrevivência e ao mesmo tempo transformando-o em sua base territorial. São diversas as paisagens formadas por antigos quilombos que se encontram distribuídas pelo território brasileiro.

De acordo com a primeira configuração espacial dos territórios das comunidades remanescentes de antigos quilombos no Brasil, existem 843 quilombos em nosso país e no sudeste brasileiro, onde realizamos nossa pesquisa de doutorado, há 88 comunidades de quilombos (1).

Há muitas semelhanças entre as comunidades do vale do Ribeira e as demais que vivem na região sudeste, bem como com as demais mapeadas em outros estados e regiões brasileiras. Elas se encontram em áreas de difícil acesso, em serras e vales montanhosos, possuem estratégias próprias de apropriação dos recursos naturais e, ao contrário do que pensamos, elas não se encontram isoladas, pois mantêm relações de intercâmbios comerciais com os municípios e as regiões próximas desde o estabelecimento das unidades quilombolas.

Muitos dos quilombos permaneceram nos mesmos sítios ou próximos de onde eles se formaram desde a época da escravidão, praticando a agricultura de excedentes comercializáveis, mantendo relações comerciais com os povoados próximos ou com os comerciantes que passavam próximo aos sítios onde estavam localizados. As formas de apropriação dos recursos naturais foram, na maioria das vezes, resultado do ambiente em que se encontraram, na medida em que as famílias se refugiaram em áreas de florestas e matas, a montante de cachoeiras ou em serras. No vale do Ribeira, a presença de remanescentes de mata Atlântica propiciou desde o início a prática do extrativismo (como a extração do palmito) e a existência de terras abundantes e livres forneceu as bases para a reprodução física e cultural desses grupos. As comunidades de quilombos no vale do Ribeira permanecem nas terras por mais de um século. O fato da maioria das terras no vale ter permanecido, em grande parte, devoluta até a década de oitenta, contribuiu para a formação desses territórios e dessa paisagem. Até a década de oitenta do século XX, a situação dominial ainda não havia sido regularizada no vale. Contendo uma área de, aproximadamente, 1,5 milhão de hectares, calcula-se que em torno de 700 mil hectares sejam terras devolutas – terras sob domínio público.

Esse longo tempo de interação com o meio e com a terra constituiu um saber sobre os recursos naturais e um vínculo duradouro dos indivíduos entre si e com o território, formando uma territorialidade (2) - pressupondo um vínculo de identidade de um grupo e seu território. Bandeira (3) aponta em seu trabalho esse traço importante de articulação das comunidades quilombolas, que se traduz pela territorialidade, vinculando-as à situação específica de alteridade. Gusmão (4) ressalta que sobre o território das comunidades negras de Campinho da Independência, no Rio de Janeiro, recaem aspectos político-ideológicos. Soares (5) ao estudar comunidades de quilombo no Maranhão trabalha com dois focos teóricos: a apreensão do "circuito dinâmico das determinações recíprocas entre domínios diversificados da experiência social", as bases que sustentam ideologicamente o grupo, em que a base física torna-se um componente de grande importância; a segunda questão refere-se às relações entre pequena produção agrícola e o desenvolvimento do capitalismo.

A diversidade de formas de constituição das terras de quilombos propiciou a retomada de discussões e pesquisas sobre o conceito de quilombo. Moura (6) aponta a definição de quilombo conforme o que determinou o Conselho Ultramarino de 1740, segundo o qual, quilombo era "toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles." As várias pesquisas recentemente realizadas, no entanto, apontam para outras formas de origem de quilombos: doações de terras por antigos proprietários aos seus escravos, decadência da lavoura com a permanência dos escravos nas fazendas após serem abandonados por seus donos, terras doadas a santos e outros.

A interpretação do que vem a ser um quilombo no período atual, no entanto, é uma das problemáticas discutidas desde a formulação do Artigo 68 das Disposições Transitórias da Constituição de 1989, que dispõe que "Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos". A definição do Conselho Ultramarino tornou jurídica a questão das fugas de escravos, baseando-a na noção de escravos fugitivos, mas a realidade territorial dos quilombos no período atual nos leva a outras origens, tornado-se um obstáculo à implementação daquele artigo. A constatação de várias e diversas origens de quilombos no Brasil nos apresenta um campo de discussão sobre a identidade e a territorialidade. Durante o período escravista e mesmo após a abolição, a marginalização e as punições aos escravos fugitivos convocavam formas de defesa dos mesmos. Conforme Almeida (7):

"Admitir que era quilombola equivalia ao risco de ser posto à margem. Daí as narrativas místicas: terras de herança, terras de santo, terras de índio, doações, concessões e aquisições de terras. Cada grupo tem sua estória e construiu sua identidade a partir dela".

No atual momento, os embates da luta cotidiana pela sobrevivência fizeram emergir entre os quilombos uma outra consciência e uma reelaboração de si próprios perante as ameaças sobre seu território. Após séculos, alojados em áreas de difícil acesso, os quilombos passaram a conviver com projetos de modernização, principalmente a partir da década de cinqüenta com a intensificação do processo de industrialização brasileira. Quando a luta pela sobrevivência exigiu novas estratégias de organização social e política, tornou-se imperativo aos atuais quilombos que se estruturassem sob uma nova identidade. Uma organização estruturada junto a outras instâncias da sociedade civil (Igreja, Movimentos de Atingidos por Barragens, Movimento Negro e ONG’S) configurou-se por meio de condições subjetivas, como a memória e a tradição. O quilombo ressurgiu como identidade entre os grupos distribuídos pelo território brasileiro. A constatação da escassez verificada principalmente pelos mais velhos foi possível mediante a comparação entre um passado de abundância e alegria e as faltas visíveis do presente.

A condição de ser negro trouxe novas possibilidades. E não somente ser negro, mas pertencer a um grupo antigo, a uma ancestralidade: o quilombo promete a possibilidade de garantir a terra. Uma nova identidade aparece. As lutas das terras de quilombos associadas à luta dos movimentos negros urbanos pressionaram o trabalho da Constituinte de 1988 e garantiu o Artigo 68, positivando um passado de lutas que retorna para que esses grupos possam encontrar um lugar novo na sociedade. Isto se tornou possível através da materialização de sua história e cultura vinculadas ao território. O território é a prova histórica de sua identidade, é a sua territorialidade.

Os quilombos nos chamam a atenção num momento em que se discute a forma de apropriação dos recursos naturais em áreas protegidas, sobretudo após a assinatura da CDB - Convenção da Biodiversidade, um instrumento de direito internacional, criado durante a reunião das Nações Unidas realizada no Rio de Janeiro em junho de 1992. Até o final de 1997, 187 países já haviam aderido e, na sua maioria, cerca de 169 países, haviam ratificado as disposições da Convenção. No Brasil, essa ratificação ocorreu através do Congresso Nacional, em maio de 1994. Somente os Estados Unidos não ratificou até o momento essa convenção.

A CDB apresenta dois dispositivos importantes: solicita, através do artigo 8(j) aos Estados-membros que respeitem, preservem e mantenham o conhecimento, as inovações e as práticas das comunidades indígenas e locais que incorporam estilos de vida tradicionais relevantes para a conservação e o uso sustentado da diversidade biológica; garante, através do artigo 15 aos Estados a soberania sobre seus recursos genéticos e trata dos modos de lhes facilitar o acesso, estipula, entre outras coisas, a necessidade de consentimento prévio.

Embora as terras indígenas tenham sido citadas textualmente pela CDB, ela também faz menção sobre as comunidades locais, mas não especifica como os quilombos se integram ao documento. Essa questão reforça as nossas preocupações sob dois aspectos: em primeiro lugar, a respeito das políticas públicas de caráter ambiental e territorial, as quais vêm interferindo sobre as terras de quilombos impactando o seu modo de vida e a relação dessas comunidades com os recursos presentes em seu território tendo em vista as lutas pela definição jurídicas das terras amparadas pelo Artigo 68 da Constituição, para garantir os seus direitos. O outro aspecto está relacionado à forma como essas comunidades encontram-se inseridas ao mercado.
 

As mudanças no modo de vida

O modo de vida camponês foi adotado pelos ex-escravos desde a formação dos quilombos. A produção de gêneros alimentícios se manteve, em grande parte, voltada para o próprio consumo, mas sempre houve intercâmbios com os mercados próximos. Os excedentes comercializáveis nem sempre lhes permitiram uma grande abundância. À produção não se juntou a utilização de máquinas e técnicas modernas e também não puderam contratar trabalhadores. Mas a memória dos mais velhos traz tempos onde não faltavam alimentos, não havia escassez de produtos necessários à sobrevivência . Pode-se apreender pelas falas dos entrevistados a comparação entre o passado e o presente. A vida no passado é vista como mais tranqüila e o presente é marcado por ações externas que lhes obrigam a lutar intensiva e arduamente. No decorrer dessas mudanças, os moradores dos quilombos elaboram e redefinem os seus conceitos sobre a terra, a vida, o trabalho:

"O povo sabe, lá, de há muito tempo, que é um povo remanescente de quilombo. Mas antes tinha nome de escravo...Quilombo, a gente vem aprendendo depois da idéia do trabalho, agente não tinha muito tempo com isso aí. Só que não tinha trabalho, porque não havia necessidade, todo mundo trabalhava sossegado. Não tinha exigência de florestal, não tinha exigência de ninguém. Não tinha opressão de grileiro..."(Comunidade de Ivaporunduva).

Uma outra moradora de Ivaporunduva aponta:

"Era mais fácil antigamente, a gente vivia uma vida tranqüila. Não tinha nenhuma pertubação."

É preciso compreender essa avaliação das comunidades sobre o caráter do trabalho como uma percepção interna da alteração do ritmo de trabalho que até então vivenciavam. O tempo de antes e o tempo de agora mostra a introdução de novos elementos em seu espaço. Os moradores de Ivaporunduva sabem que desde os seus ancestrais, os moradores do quilombo organizaram uma vida camponesa, ligada à terra como forma substancial de se reproduzirem física e culturalmente. O seu tempo interno, então, era regulado por condições bastante diferentes das do homem urbano. O seu tempo seguia outra cronometria, a do calendário agrícola. Cândido aponta essa dinâmica:

"A fim de obter os resultados expostos, o parceiro deve obedecer a um ritmo de trabalho, inscrito nas diferentes unidades de tempo – que são para o dia, a semana e o ano agrícola. Para o operário urbano, com a jornada fixa, a hora e freqüentemente o minuto assumem relevo marcado, indicando o rendimento do esforço e os elementos temporais em que decompõe uma operação. Não é assim para o trabalhador rural, que lavora de sol a sol, e cujas tarefas se completam em período mais longos, só se perfazendo, na verdade, segundo o ciclo germinativo."pg. 36

Essa situação estende-se para essa realidade dos quilombos. A conjugação de suas vidas à dinâmica da natureza tornava-os mais próximos da mesma e comportava a elaboração de representações simbólicas, incluindo as festas, as práticas culturais, o conhecimento da natureza e as suas possibilidades na cura de doenças. Por outro lado, permitia-lhes a manutenção de estreitos laços de solidariedade e ajuda mútua, como era o caso da prática, hoje na mais utilizada, como a do mutirão. Em certos momentos, como o da colheita, o mutirão era uma forma de cooperação coletiva para minimizar o impacto do trabalho.

A existência desse tempo dimensionado por valores outros, levava moradores externos à comunidade a classifica-los de vadios e preguiçosos, por não compreenderem a lógica em que se baseava o seu ritmo de vida, identificando essas características ao fato de serem negros e a trabalharem quando queriam ou quando necessitavam adquirir algumas mercadorias. Hoje, a crítica ao ritmo de trabalho parte de pessoas de dentro das comunidades:

"A gente fazia aquele pirão de caldo de carne pra comer. Hoje em dia, ninguém quer. Eu falo mal do pessoal, agora é tudo vadio. Olha, antigamente você pegava, fazia uma roça, plantava alguma roça, e ela nem carpida tava, aquela roça, se era de milho eu mesmo ira buscar, milho verde tinha, se era arroz eu tinha arroz pra catar, pra comer, a gente fazia cuscuz de milho novo pra comer, a gente fazia o tal de curau, a gente fazia pamonha, a gente fazia tudo, tudo aquilo eram um conforto. Hoje em dia, não foi nem lavado o cuscuz, diz: mas eu não sei fazer. Criança desse tamanho em diante, os pais e as mães deixavam dentro de casa, eu, se solta, busca um cuscuz pra nós. Quando eles chegavam da roça, estavam cozidos. Hoje em dia, não tem uma mãe que ensine o filho a trabalhar, não tem uma que seja trabalhadeira, os pais com coisa vai tirar palmito, outra coisa vai se empregar, outra vai tentar chão, vai lá pra outro lugar procurar emprego. Como é que pode ter uma família de trabalhador: O que é que dá uma família dessa? O que é que vira uma família dessa?". (Ivaporunduva).

A introdução do corte do palmito e da plantação da banana roubou-lhes uma parte do tempo, fazendo-os abandonar parte do que plantavam e deixando-os mais submetidos à necessidade de comprar dos mercados locais. O impacto violento do cerceamento do cultivo de grande parte de suas roças graças às unidades de conservação, restringiu-lhes ainda mais a liberdade e a autonomia conquistada ao longo do tempo por esses personagens. Por fim, a ação dos grileiros e o receio da construção de barragens lhes retiram mais tempo do trabalho agrícola, pois precisam entrar com ações judiciais contra os grileiros e obter liminares para a suspensão dos projetos de hidrelétricas.

As mudanças na vida das comunidades promovem a sensação entre os mais velhos de que o verdadeiro trabalho era o dos tempos antigos, quando se plantava e todos se alimentavam e ainda havia tempo para as festas e para a realização dos rituais comunitários. O trabalho de hoje não propicia a satisfação das necessidades dos membros dos grupos, não há espaço suficiente nas terras para plantar devido às unidades de conservação que protegem as matas e os rios. Antigamente, eram as pessoas de fora que os chamavam de vadios, agora são os homens e as mulheres mais velhos. Ser vadio é não poder plantar para sobreviver e ficar sem trabalho na própria terra onde nasceram.

Por sua vez, as relações internas aos grupos modificaram-se sob diversos aspectos. Tanto as relações de reciprocidade, que preservam o modo de vida camponês com os graus de confiança interpessoal se alteram. Os mutirões foram abandonados em vista da luta que para cada um se impõe no dia a dia. O ritmo se altera, porque não há mais tempo que não esteja em prol de adquirir meios e recursos financeiros para dar continuidade até a unidade familiar, núcleo de vida camponesa.

É nesse sentido que as comunidades de quilombos têm se remetido às origens dos grupos. A rememoração busca os elementos fundamentais desse passado e dão base aos movimentos de luta pela titulação das terras com base no Artigo 68 das Disposições Transitórias da Constituição Brasileira de 1988, que garante a terra às comunidades remanescentes de quilombos.

A luta pela terra no Brasil, demonstra, assim, a sua diversidade cultural e histórica e coloca as diferenças entre as realidades estudadas em terras de negros. As comunidades quilombolas participam da situação de herdeiros de um território, fonte de poder, originado na sociedade escravista. Porém, no seu caminhar sofreram um corte profundo na sua reprodução física, ocorrendo, conseqüentemente, perdas na sua reprodução cultural, sendo que a política de preservação da mata atlântica é um dos responsáveis por esse processo.

A constatação de que as políticas de preservação do meio ambiente onde vivem os quilombos não tem levado em consideração a existência de populações que vivem baseadas na sustentabilidade dos recursos naturais nos leva a indicar que a luta é mais ampla. Os quilombos vivenciam vários impactos que dentre outras conseqüências desarticula a organização do trabalho como forma de reprodução física e cultural para serem submetidos cada vez mais à dominação das redes de mercado para o qual não possuem instrumentos de igualdade de inserção com os demais produtores rurais. A migração para os centros urbanos em busca de trabalho cessou. Percebeu-se que a luta pela terra é o caminho para a manutenção do grupo. A construção de uma nova identidade de grupo aponta para a etnia como força política e à possibilidade de refazer outro patamar de inserção no conjunto da sociedade, amparado pela existência concreta da base territorial, legado dos seus antepassados.
 

Notas:

(1) ANJOS, Rafael Sanzio Araújo dos Territórios das comunidades remanescentes de antigos quilombos no Brasil. Primeira Configuração Espacial. Brasília. Mapas, Editora & Consultioria. 2000.

(2)Utilizamos aqui a noção de território de RAFFESTIN, onde o conceito de território não se esgota na forma do poder investido nos Estados-Maiores, mas também numa outra forma: "O território, nessa perspectiva, é um espaço onde se projetou um trabalho, seja energia e informação, e que, por consequência, revela relações marcadas pelo poder. O espaço é a ‘prisão original’, o território é a prisão que os homens constroem para si...o território se apóia no espaço, mas não é o espaço. É uma produção, a partir do espaço. Ora, a produção, por causa de todas as relações que envolvem, se inscreve num campo de poder. Produzir uma representação do espaço já é uma apropriação, uma empresa, um controle, portanto, mesmo se isso permanece nos limites de um conhecimento. Qualquer projeto no espaço que é expresso por uma representação revela a imagem desejada de um território, de um local de relações." In RAFFESTIN, Claude. (págs. 143-144). Por uma geografia do poder. São Paulo . Ática.. 1993.
(3)BANDEIRA, Maria de Lourdes. Território negro em espaço branco. Brasiliense. São Paulo.
(4)GUSMÃO, Neusa Maria M. 1990A.dimensão política da cultura negra no campo: uma luta, muitas lutas. Tese de Doutorado apresentada ao Depto. de Antropologia da FFLCH/USP. São Paulo. 1988
(5)SOARES, Luiz Eduardo. Campesinato: Ideologia e Política.. São Paulo. Zahar Editores. 1981
(6)MOURA, Clóvis. Os quilombos e a rebelião negra. Tudo é História. São Paulo. Brasiliense. 1981.
(7)ALMEIDA, Alfredo W. Berno de. Terras de preto, terras de santo, terras de índio: uso comum e conflito. In CASTRO & HEBETE (orgs.) Na trilha dos grandes projetos: modernização e conflito na Amazônia. Cadernos NAEA no. 10. UFPA. Belém. Ed. Universitária, 1988.
 

Bibliografia

ALMEIDA, A W. B. Na trilha dos grandes projetos: modernização e conflito na Amazônia. Belém, Cadernos NAEA no. 10. UFPA. Ed. Universitária, 1988.

ANJOS, R S. A . Territórios das comunidades remanescentes de quilombos no Brasil. Primeira Configuração Espacial. Brasília, 2000.

BANDEIRA, M. L. Território negro em espaço branco. São Paulo: Brasiliense, 1988.

GUSMÃO, Neusa M. M. A dimensão política da cultura negra no campo: uma luta, muitas lutas/ Tese de doutorado. FFLCH/USP. São Paulo. 1990.

MOURA, C. Os quilombos e a rebelião negra. Tudo é história. São Paulo. 1981.

RAFFESTIN, C. Por uma geografia do poder. São Paulo. Ática, 1993.

SOARES, L. E. Campesinato, Ideologia e Política. São Paulo. Zahar Editores. 1981.

VIANNA, A. O movimento de atingidos por barragens e a questão ambiental. In: Proposta no. 46. Especial:

Barragens – questão ambiental e luta pela terra. Rio de Janeiro. FASE, setembro/1990.

VIOLA, e. J. e LEIS, H. R. Desordem global da biosfera e nova ordem internacional: o papel organizador do ecologismo. In: Lua Nova no. 20. maio/1990.

geolu@terra.com.br

© Copyright Lourdes F. B. Carril, 2002
© Copyright Scripta Nova, 2002
 

Ficha bibliográfica

CARRIL, L. de F.B. Trabalho e excedente econômico: remanescentes de quilombos no Brasil.  Scripta Nova, Revista Electrónica de Geografía y Ciencias Sociales, Universidad de Barcelona, vol. VI, nº 119 (39), 2002. [ISSN: 1138-9788]  http://www.ub.es/geocrit/sn/sn119-39.htm


Menú principal