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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VI, núm. 119 (89), 1 de agosto de 2002

EL TRABAJO

Número extraordinario dedicado al IV Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)
 

A BIFACIALIDADE DO TRABALHO NO SETOR PÚBLICO: UM ESTUDO A PARTIR DA PETROBRÁS

Eduardo Carnos Scaletsky
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Brasil


A bifacidade do trabalho no setor público: um estudo a partir da Petrobrás (Resumo)

As convergências e divergências entre as lideranças gerenciais e sindicais da Petrobrás com o governo, em torno dos rumos sugeridos para a empresa. Trata-se de fazer anotações sobre as formas e mecanismos através dos quais as gerências foram ganhando autonomia e as lideranças sindicais se posicionando face as transformações estratégicas da empresa. As trajetórias desses dois segmentos é acompanhada na discussão de questões recorrentes na empresa: a privatização, a quebra do monopólio e as relações empresa/governo. Aos poucos as lideranças gerenciais e sindicais foram revelando uma das característica marcantes de suas identidades: a bifacialidade. Uma face privada e outra que expõe seus interesses públicos. A Petrobrás, a maior empresa do país, nos oferece um cenário privilegiado para verificar esse bifacialidade.

Palavras chave: trabalho, trabalho no setor público, Petrobrás


A bifaciality of work in the public sector. A Petrobras case study (Abstract)

The agreements and disagreements between Petrobrás management and union leaderships on the debate about the future and bearings of the company. This will be done through the historical records on the way the management played the role of a boss in the company. At the same time, this work aims to analyse the workers’ and union leaderships’ face to Petrobrás changes. Discussing and acting on issues such as the privatisation, the end of the company’s monopoly, the company/government relationships. On this way, the manegers and works became clear his significant characteristic: bifaciality, while one face shows their private interests the other shows their public ones. Petrobrás, the greatest country enterprise is the scenery for actors movements and action.

Key words: work, public sector work, Petrobrás


Os anos 1990 foram uma década na qual os governos alteraram de forma irreversível as estruturas do Estado brasileiro construído no pós-30. Em linhas gerais, foi inaugurado o debate de dois grandes temas. De um lado, a redefinição das esferas de atuação dos setores público e privado, em favor desse último. De outro, as discussões sobre um novo modelo de Estado, onde prevaleceram as idéias de regulação e fiscalização.

Há uma enorme quantidade de estudos dedicados às empresas estatais, aos programas de privatização e à reforma do Estado. O estudo do trabalho no interior desse amplo sistema estatal não mereceu a mesma valorização. São relativamente poucos os autores que se debruçaram sobre os significados do trabalhar para o Estado e sobre o modo de pensar e agir desses trabalhadores. A mesma constatação vale para os estudos sobre a gestão e os gestores do trabalho no setor público. Pesquisadores da história, da sociologia e da economia do trabalho, acompanharam as tendências mundiais preferencialmente voltadas para o mundo do trabalho no setor privado.

Tal seletividade deixou à margem do foco analítico alguns milhões de trabalhadores do país, cuja escala política supera, com vantagens, sua importância quantitativa. É o que mostra a emergência das lideranças nascidas no seio dos setor público e alçadas à condição de lideranças do país. Pensando a história do presente, essa lacuna trouxe muitos prejuízos, visto que a representação política das lideranças emergentes desse segmento expandiu sua influência para além das fronteiras do mundo do trabalho e da empresa.

Fazer esse exercício é a razão maior desse artigo. Nosso objetivo central é discutir as convergências e divergências entre as lideranças gerenciais e sindicais da Petrobrás com o governo, em torno dos rumos sugeridos para a empresa. Trata-se de fazer anotações sobre as formas e mecanismos através dos quais as gerências foram ganhando autonomia e as lideranças sindicais se posicionando face as transformações estratégicas da empresa.

As trajetórias desses dois segmentos são acompanhadas pelas discussões recorrentes na empresa: a privatização, a quebra do monopólio e as relações empresa/governo. Aos poucos as lideranças gerenciais e sindicais foram revelando uma das característica marcantes de suas identidades: a bifacialidade. Uma face privada e outra que expõe seus interesses públicos. A Petrobrás, a maior empresa do país, nos oferece um cenário privilegiado para verificar essa característica.

Como não há pretensão de esgotar o tema, de resto irrealizável nesse espaço, foi indispensável definir alguns limites. A escolha foi por estudar a questão a partir da Petrobrás, a maior empresa do país (entre privadas e públicas), por onde, de certa forma, passou a história do país nas últimas cinco décadas. Até por isso, a empresa e suas lideranças gerenciais e sindicais vivem intensamente o conflito da transformação de uma empresa símbolo do modelo desenvolvimentista para tornar-se a empresa símbolo de um novo modelo de ação do Estado recente.

Na primeira parte, discute-se a construção da empresa como símbolo do modelo de desenvolvimento do país e, no mesmo processo, como foram sendo reunidos elementos para cunhar a identidade bifacial dos atores. Nas duas partes seguintes, tomamos dois cenários para mostrar os atores expondo sua característica bifacial. Um cenário onde combinam-se fatores contraditórios. A Petrobrás ganhou acento ao lado dos grandes oligopólios mundiais do setor petrolífero, ao mesmo tempo em que foi chamada pelo governo brasileiro a contribuir para o ajuste macroeconômico da das crises da década de 80. O segundo cenário, explorado na terceira parte, quando ela, a Petrobrás, apesar dos sucessos empresariais enquanto empresa estatal, é chamada para simbolizar as mudanças do modelo neoliberal e globalizado.
 

Uma breve história da construção de um símbolo e dos significados do trabalho para o Estado

O capitalismo do século XX, principalmente a partir dos anos 30, assumiu a forma de um capitalismo marcado pela presença do Estado. Tendo em vista o caso brasileiro, o Estado não só esteve presente no papel clássico, de fomento e regulação do desenvolvimento, mas também intervindo diretamente na produção de mercadorias por meio da criação das empresas estatais. Ao participar diretamente na produção de bens e serviços destinados ao mercado, o Estado assume a propriedade sobre uma parcela do capital do país, gera excedentes e se impõe como um ator interessado no processo de concorrência capitalista e na gestão de uma parcela da força de trabalho. Como qualquer outra firma geradora de bens e serviços, as estatais estão submetidas às leis de mercado. Mas ao mesmo tempo, são instrumentos de regulação e estão submetidas às determinações políticas impostas pelo governo. Nesse sentido pode-se falar que essas empresas possuem uma especificidade que não comungam com as do ramo privado: a sua dupla face – a privada e a pública. Enquanto empresas fazem parte do sistema produtivo privado e são conduzidas para defender seus próprios interesses no circuito de valorização do capital. Já como parte do sistema estatal estão imersas na malha de organismos do Estado, tornando-se um palco permanente de tensões entre os interesses privados e os públicos.

Essa múltipla inserção na economia conferiu-lhes uma característica que a literatura descreve como ambigüidade estrutural, quer dizer, não possuem nem comportamentos orientados exclusivamente pela racionalidade empresarial, tão pouco atuam como organizações típicas de Estado. Esse fato as colocam em permanente conflito. Condicionadas pelo governo e agindo como um instrumento na regulação do sistema elas acabam assumindo posições na economia que são estranhas aos seus interesses empresariais. Sua inserção na produção de mercadorias, por outro lado, as impulsiona para o lado do rompimento com a lógica de atuação pública (1)

Esse conflito estrutural entre as duas lógicas nos remete a supor que se trata de uma variável explicativa relevante para o estudo dos sujeitos desse processo no interior da empresa estatal, pois se podemos falar da natureza ambígua do capital público, nada mais certo do que falar também em ambigüidade do trabalho e da gestão do trabalho nas estatais. Nesse sentido podemos apontar que uma das características comuns ao trabalhador e aos gestores da empresa estatal, e da Petrobrás em particular, é a existência de uma bifacialidade. Uma face que expõe seus interesses privados – que não os distingue de outros grupos de interesse da sociedade - e outra que expõe seus interesses públicos - dedicada à defesa da empresa estatal e monopolista e para a qual reserva o papel de falar em nome da sociedade.

A Petrobrás oferece-nos um cenário privilegiado para trilhar esse rumo. Nascida no seio de uma campanha popular com as cores do nacionalismo, sempre foi objeto de polêmicas que ocuparam as primeiras páginas dos jornais. Não só por sua importância econômica, mas principalmente pelos inúmeros simbolismos que foi assumindo ao longo de quase meio século de existência, cujos significados são interpretados e reinterpretados por seus atores. É portanto nesse palco que se movimentam os personagens da nossa pesquisa. A empresa, sua evolução e mudanças de rumo foram os temas trilhados nos diálogos dos de dentro da Petrobrás, entre si e com os de fora. Uma parte do tempo desses atores será dedicada a responder perguntas como a que está na capa de um dos inúmeros livros sobre a Petrobrás: "O cidadão (aquele que emprestou o sufixo Brás e entrou com o Petro para formar a Petrobrás) é dono ou não participa mesmo de nada? A Petrobrás é dos brasileiros ou dos brasileiros da Petrobrás?" (2)

As respostas que as lideranças sindicais e gerenciais da Petrobrás têm para essas questões ilustram bem a característica bifacial de suas identidades. Nada melhor, então, que lhes dar a palavra:

"- Muitos diziam que petroleiro não é uma função, mas uma missão que tinha de representar o povo brasileiro dentro da Petrobrás, tinha que defender a empresa contra os ataques multinacionais que queriam privatizá-la." (Spiz liderança sindical da Petrobrás) (3)
"- (...) nós não temos patrão, a gente não sente a situação de patrão contra empregado. Nosso patrão é a Petrobrás. Nosso patrão é todo o povo brasileiro." (sindicalista da Petrobrás, depois da greve de 1983) (4)
"- O dono de uma empresa estatal é um ente abstrato chamado Estado, que bota lá um preposto transitório, que normalmente - ressalvadas poucas e brilhantes exceções - está ali em busca de sua realização episódica, naquele período.(...) Então, eles têm pouco vínculo com a empresa." (Aldo Zucca, assessor da Diretoria Executiva da Petrobrás) (5)

Essas observações, colhidas em diferentes e importantes contextos, podem ser traduzidas em questões como: a Petrobrás tem um patrão? Quem é o seu dono? Até que ponto os trabalhadores e os gestores da empresa representam os interesses da sociedade como um todo?

A característica bifacial dos atores do setor público ao responderem a essas perguntas nos conduzem a duas dimensões do problema: a dimensão político-gerencial e a dimensão político-sindical. A primeira diz respeito aos líderes empresariais da Petrobrás e se expressa pela busca de autonomia para o exercício da gestão empresarial. Grosso modo, sem deixar de ser um empregado, o técnico-gerente quer ser o patrão. Embalados por essa idéia, as lideranças empresariais assumem a defesa da empresa, dos concorrentes e também do próprio governo.

Já a dimensão político-sindical diz respeito ao trabalhador da estatal, que é antes de mais nada um trabalhador e, como tal, tem aspirações sindicais e reivindicatória. Isso o aproxima do conjunto dos trabalhadores do país. Porém, ao mesmo tempo, está imbuído de uma missão: representar e defender a empresa dos seus inimigos em nome do seu legítimo dono, para ele, até então claramente identificado com o povo brasileiro.

O contato entre essas duas dimensões compõe as relações sociais entre gestores e trabalhadores. É nesse contexto que se visualiza convergências e divergências entre as lideranças gerenciais e as lideranças sindicais da Petrobrás, nas relações que foram estabelecendo entre si, com o governo e com a sociedade em torno dos rumos para a empresa e para a gestão do trabalho em seu interior. Em seus movimentos, buscam a conquista de espaços onde pudessem justificar sua inserção social. Em outros termos, através de anotações históricas percebe-se nitidamente as formas e mecanismos através dos quais as gerências foram assumindo o papel de patrão da empresa, de empresário na sociedade e de ator político no plano da malha de organismos que compõem o sistema estatal do país. E, nos discursos e nas ações do trabalhador e de suas lideranças, elementos que expliquem como foram construindo sua imagem social de trabalhador mobilizado, atento aos rumos da empresa e do país.

Até 1964, a Petrobrás era a guardiã das riquezas do subsolo nacional. Isso justificava o fato de ser uma empresa fundamentalmente dependente de recursos orçamentários, mas a obrigava a constantes negociações, não só com o governo federal, como com o poder Legislativo. Sua vinculação ao restante do setor público era muito forte. Essa forma de inserção no contexto do país não favorecia muito às aspirações de seus dirigentes por maior autonomia gerencial. Eles tinham noção que era necessário, antes da autonomia, garantir fontes próprias de financiamento, independente do debate orçamentário governamental. Como diz Getúlio Carvalho: "atingir um alto grau de autonomia depende consideravelmente da capacidade de criar uma soma de recursos internos" (6).

Havia ainda uma questão maior. Não encontrar petróleo, na abundância e necessidades desejadas, exigiu que a Petrobrás encontrasse uma razão de ser para sua imponência "imperial", sua natureza monopolista e estatal (7). O caminho adotado para encontrar essa razão de ser sintetizou-se na proposta de se tornar uma grande empresa em termos de eficiência. Uma empresa, no mínimo igual às empresas privadas e, em termos gerais, o mais distante possível do restante do setor público da administração direta. Desde o Plano de Organização dos Serviços Básicos da Petrobrás, elaborado por Hélio Beltrão em 1954, houve a intenção de dar à empresa uma estrutura distinta dos órgãos públicos da administração direta.

A identidade da Petrobrás, até 1964, sofria uma enorme influência das construções que sobre ela se faziam fora de seus próprios muros. Sua capacidade em definir ações estava tolhida por pressões "externas" e ela só prosperava na medida em que seu em torno fosse favorável. Na visão dos técnicos-gerentes, o grau de abertura vivenciado na Petrobrás de antes de 1964 retirava dela a possibilidade de funcionar, de fato, como uma empresa, pois era incapaz de acumular as forças suficientes para reagir aos movimentos contrários de seu    meio (8).

A grande transformação é que a empresa resultante do regime militar vai se fechar. Não de uma forma absoluta, mas acumulando forças e reagindo às influências "externas". No plano interno, criava espaços para ações autônomas e para estruturas organizacionais menos suscetíveis às ingerências de fora. Com respeito ao meio circundante - governo, clientes e fornecedores - desenvolveu sistemas de alerta, indicativos dos limites às pressões. Sistemas que tornaram as relações de convivência e dependência com as conjunturas mais ou menos definidas. Com isso, gerou autonomia para agir sobre o meio ambiente, colocando a empresa como um ator das transformações. A expressão objetiva desse processo foi a crescente redução da dependência de recursos orçamentário.

Fechar-se em si mesma, é claro, não a autonomizou em relação às dimensões do processo econômico, social e político. Apenas aumenta as barreiras seletivas às influências que sofre. Foi no pós-64 que a Petrobrás - leia-se, suas direções- ganhou mais poder no interior do aparelho de Estado, e para além dele, na economia como um todo. No plano institucional, estava sendo modelado o Estado e sua ação durante os anos seguintes. O decreto-lei no 200, deu legitimidade à intervenção do Estado na economia através das empresas estatais, estabeleceu o princípio da descentralização e assegurou às estatais "condições de funcionamento idênticas às do setor privado".

Fora dado o sinal verde às lideranças gerenciais da Petrobrás para sua expansão empresarial. Não demorou muito para que iniciassem um processo de adequação organizacional interna e definissem estratégias para ação externa. A Petrobrás verticalizou-se, criando instâncias intermediárias de gestão, os departamentos. Ao mesmo tempo, passou a investir recursos crescente na formação de técnicos, para que eles assumissem funções gerenciais. As lideranças preparavam-se para ampliar seu espaço de atuação. O dilema vivido: era uma empresa petrolífera, cujos resultados em termos de produzir petróleo eram muito pouco expressivos. A questão petrolífera estava perigosamente se aproximando de seu desfecho e exigindo definições estratégicas. Enquanto a capacidade de refino praticamente dobrou, a alma da empresa, a produção de petróleo, estava seriamente enferma.

Reduzindo-se o debate da época a suas linhas mestras, colocavam-se duas proposições estratégicas. A primeira, do ministro Antônio Dias Leite, indicava direcionar crescentemente os recursos para pesquisa e prospecção do petróleo. Se aparentemente coincidia com o discurso do nacionalismo petrolífero da lei no 2004, por seus termos, comovia até os segmentos mais moderados. Para viabilizar sua opção, o ministro propunha reduzir a alocação dos recursos em todas atividades que não a de exploração, especialmente nas de refino e de comercialização. A Petrobrás monopolista, que expandira suas fronteiras muito além do que poderiam supor seus pioneiros na década de 1950, manteria apenas seu núcleo essencial. A proposta era complementada pela sugestão de abertura do subsolo à exploração de empresas estrangeiras, por meio de contratos de serviço com cláusulas de risco.

A opção que prevaleceu foi a segunda: dar prioridade às atividades de refino, distribuição e petroquímica. Passou a ser aceito, no governo e na Petrobrás, que a produção interna de petróleo era insuficiente e cara. É o que se vai chamar de deslocamento do eixo estratégico, que terá três direções: "... a ênfase nas atividades mais rentáveis de refino, transporte e distribuição crescente de volumes de cru importados como base para conglomeração; a entrada decisiva no ramo petroquímico e a internacionalização de algumas atividades com a criação de subsidiárias internacionais para atuar em áreas de exploração (BRASPETRO) e comercial (INTERBRÁS)" (9).

A Petrobrás seguia os passos da indústria petrolífera mundial: integrada e verticalizada. Expandia-se nas atividades com menor necessidade de investimento e risco, elevando a rentabilidade média da empresa. Espelho dessa escolha foi a inversão de prioridade nos investimentos. Se até 1970 a área de exploração e produção mereciam mais da metade do investimento, apenas no final da década, em termos relativos, esses investimentos voltaram a igualar-se aos demais.

O novo rumo agradou aos técnicos e aos técnicos-gerentes. A Petrobrás tornou-se um espaço onde a técnica e o saber técnico passaram a jogar um papel privilegiado. Essa cultura técnica marcou e demarcou seu meio: o dos homens do petróleo. A valorização dessa cultura, no pós-64, veio junto com a ampliação do raio de ação da empresa, que passou a ter no horizonte o objetivo de tornar-se a Oitava Irmã (10) do Petróleo, no plano internacional, e a líder do desenvolvimento, no interior do país. Foi a soma da cultura do saber fundamentalmente técnico, com a cultura dos grandes negócios nacionais e mundiais.

O debate foi acirrado. Afinal, para muitos, "significava renegar a possibilidade de alcançar a auto-suficiência" (11). Mas o panorama não favorecia as teses dos nacionalistas. O consumo de derivados continuava a crescer no país. A Petrobrás não conseguia abastecer mais do que 20% desse total com petróleo próprio, e a exploração de petróleo na plataforma continental esbarrava nos altos custos e nas dificuldades tecnológicas.

Para os nacionalistas, reunidos em torno da bandeira da auto-suficiência a qualquer custo, o "sentido de ser" da Petrobrás e da lei 2.004, era encontrar o petróleo no Brasil:"Em lugar de olhar para o chão, onde estava o problema, ela [Petrobrás de Geisel] preferiu olhar para cima, construindo uma grande empresa e belos edifícios" (12).

Por tudo isso, segundo algumas avaliações, essa opção tomada nos anos 70 conseguiu desagradar tanto aos nacionalistas ortodoxos quanto aos "inimigos da iniciativa estatal" (13). Isso porque os inimigos do monopólio dirão "(...) a Petrobrás passou a representar o símbolo da grandeza majestática do Estado industrial, sem ampliar nenhum campo novo de vulto e sem ampliar nossas reservas de óleo" (14).

As crises do petróleo (1973 e 1979) vão colocar sob holofotes essa Petrobrás grande empresa industrial e comercial nascida no regime militar. Os vinte anos que a separavam de sua fundação pareciam curtos se comparados com a distância das idéias que a gestaram. O petróleo e junto com ele a Petrobrás vão para o centro dos acontecimentos. O petróleo estava no olho do furacão mundial e a Petrobrás, afinal, fora criada para produzir petróleo e reduzir a dependência do país. Era natural que os olhares de todos se voltassem para ela em busca de respostas e foi natural que a cabeça da empresa se voltasse para o subsolo. Isso a reaproximou dos seus valores culturais moldados na década de 1950. O desafio era corresponder às expectativas desse período. Não era pouco.

As vozes liberais uniram-se às correntes que, desde 1964, defendiam a abertura do subsolo para exploração por empresas estrangeiras. Ambas cobravam do general Ernesto Geisel por sua opção de construir a Petrobrás do chão para cima. O fantasma da dependência, exorcizado na Campanha do Petróleo é Nosso, estava de volta.
 

Apesar dos poços surgentes

A passagem da década de 1970 para a de 1980 foi rica em acontecimentos e significados para a história da Petrobrás. Uma combinação de fatores levou a empresa ao centro das atenções do país. O mais crítico deles foi a nova elevação no preço do petróleo importado, conhecido como o segundo Choque do Petróleo. Em 1979, o barril passou de US$ 12,70 para US$ 24,00, um aumento superior a 88 por cento. Em dezembro de 1980, o preço do barril importado já se situava na casa dos US$ 31,68. Continuava a ser exigida da empresa uma resposta para o problema dos gastos em divisas com a importação de petróleo.

Foi em 1979 que os investimentos na busca de petróleo voltaram a superar todos os demais, sendo em 1980 mais de 70 por cento do total, mostrando a inversão de prioridades. A Petrobrás, que nunca saíra do centro dos acontecimentos nacionais, em termos relativos assume uma posição ainda mais significativa. Entre 1980 e 1986, o grupo Petrobrás foi responsável por cerca de 30 por cento dos investimentos das estatais como um todo; sozinho respondia por cerca de 55 por cento das receitas operacionais do conjunto do setor produtivo público. Mas ser uma empresa com boa saúde financeira não era suficiente para justificar a sua razão de ser. A Petrobrás, é bom repetir de vez em quando, tinha um objetivo que a definia: produzir petróleo. A alta nos preços internacionais do petróleo, em 1979, e a debilitada saúde financeira do país, pressionavam a empresa. Reduzir a dependência da importação de petróleo voltava a ser sua principal meta.

Pensando estritamente nesses termos, a Petrobrás conseguiu resultados significativos nos anos seguintes. Reverteu a tendência anterior, aumentando sua participação relativa no atendimento às necessidades do consumo. Em 1981, abastecia com petróleo nacional 20 por cento do consumo e, na metade da década, ultrapassou os 50 por cento. A Petrobrás voltava a se afirmar no contexto nacional, superava todas as estimativas, atingindo o número mágico dos 500 mil barris/dia.

Paradoxalmente, quando a produção de petróleo começou a ser significativa, a situação financeira da Petrobrás se deteriorou e a empresa perdeu força política. Na Nova República, os projetos de expansão foram abandonados e alguns de seus ramos, como o petroquímico, privatizados. O governo passou a intervir sistematicamente na gestão empresarial, o que, ao lado do recrudescimento das campanhas pelo fim do monopólio e pela privatização, passaram a ocupar uma parte razoável da agenda das gerências, dos sindicalistas e dos trabalhadores. Para esses segmentos, estava em jogo a própria empresa, e portanto, sua inserção social. Para o governo, era hora de submeter a Petrobrás à política macroeconômica ditada pela área econômica. O eufemismo utilizado: abrir a caixa preta.

Na Petrobrás, durante o ciclo de expansão econômica, houve espaço para uma convivência equilibrada, entre sua natureza pública e privada. Como parte do sistema produtivo, a Petrobrás assumiu a liderança na estruturação de um modelo, no qual, além de defender seus interesses, possibilitou que seus sócios privados solidificassem posições de todo impensáveis sem a sua contribuição (15). Com a Petrobrás em crise, o fato de pertencer a dois mundos, potencializou a força de dois vetores agindo em direções opostas - o vetor do interesse de outros capitais, dito público, e o interesse específico da reprodução do capital da empresa.

A década de 1985-94 foi de disputa entre as duas faces da Petrobrás. Durante os primeiros cinco anos, o objetivo do governo foi tornar a empresa um dos aríetes da luta pelo ajuste macroeconômico que desejava implementar, sem expressar maiores preocupações com o risco de romper com o equilíbrio bifacial.

Foi nesse período que entraram em ebulição novas e velhas forças em torno da Petrobrás. Trabalhadores, sindicatos e uma parcela significativa das gerências, sem omitir suas diferenças, assumiram a dianteira na defesa da empresa contra os constrangimentos do governo. A força desse grupo tão heterogêneo vinha do petróleo que jorrava dos poços em quantidades crescentes. Justamente por isso, consideravam que era necessário garantir as condições de sua produção.

Criada para ser o espelho público da empresa privada, livre das regras rígidas de controles da administração direta, a Petrobrás não colaborou com as novas orientações do governo. Mesmo assim, aspectos sensíveis da vida da empresa foram abalados. Os preços dos derivados de petróleo tornaram-se variável importante da política antiinflacionária. A suspensão dos investimentos, a exigência da distribuição dos lucros e a obsessão por cortes nos gastos com pessoal tornaram cada vez mais difícil o gerenciamento da empresa. Isso sem falar do fantasma da privatização e do fim do monopólio, assunto obrigatório em todos os lugares onde estivesse alguém da Petrobrás.

Esse foi um período em que as fronteiras entre os amigos e os inimigos da Petrobrás tornaram-se menos nítidas do que durante os governos militares. No geral, o que se viu foi a Petrobrás como um todo, lutando contra o governo. Mas, em muitas situações, o governo foi o aliado dos técnicos-gerentes e até mesmo dos petroleiros nas disputas internas. São alianças e conflitos entre atores com grande poder acumulado. O grupo de técnicos-gerentes, investido do comando de uma empresa com controle de 2,8 por cento do PIB do país, de 6,3 por cento do produto do setor industrial e responsável por um milhão e meio de empregos diretos e indiretos. Os petroleiros, convencidos de serem os porta-vozes do povo, na empresa e nas campanhas pela democratização do país. O governo, alicerçado nas aspirações da sociedade por estabilidade e democracia. E, grupos de interesses privados nacionais e estrangeiros, movendo-se nas sombras do Estado e dos organismos internacionais de financiamento (BIRD, Banco Mundial, FMI).

Na situação vivida na segunda metade da década de 1980, ganharam relevância as discussões em torno dos projetos de preservação financeira da empresa, ao lado do debate sobre a natureza estatal e monopolista da Petrobrás. A ofensiva do primeiro governo da Nova República para inverter o fluxo de recursos, do circuito interno para o externo, levou os técnicos-gerentes às estratégias defensivas. A primeira estratégia foi traçada para preservar os mecanismos de reprodução do capital. Para tal, não lhes restava outra alternativa a não ser dissociarem-se do governo e de sua política para a empresa.

"[A Petrobrás] é uma sociedade de Economia Mista, isto é, o seu acionista maior é o próprio Estado brasileiro (não é o governo, na personalização dos seus mandatários). Isto significa dizer que qualquer prejuízo causado à companhia é um dano que debitamos ao Estado brasileiro, ou seja, ao seu povo do qual somos parte" (16).

O trecho citado foi publicado no boletim da empresa, provavelmente em 1988. A distinção entre Estado e governo é excessivamente conceitual para uma publicação empresarial, mas os trabalhadores e gerentes estavam aptos para assimilar os significados da mensagem, principalmente porque sabiam a quem estava dirigida.

A segunda estratégia defensiva do grupamento gerencial foi traçada para responder às campanhas pela privatização. A posição social desses gerentes, enquanto empresários do Estado (17), dependia de manterem sua condição de ator público. Tinham de enfatizar sua face pública, o que era complicado, pois ao longo do processo de construção de sua identidade como grupo, as gerências haviam se diferenciado do restante da burocracia vinculada ao aparelho de Estado. Todavia, no momento em que a condição estatal da Petrobrás se vê ameaçada, aceitaram esse risco. Quanto ao monopólio, sua necessidade sempre dividiu opiniões entre os técnicos. Estrategicamente, agiam para ressaltar a face privada da Petrobrás, ainda que nessa postura, revelassem sua face pública. Não é conhecido nenhum caso de empresário privado monopolista manifestar o desejo em deixar de sê-lo. Em torno desse conjunto de três questões – o papel da Petrobrás nas políticas econômicas, a natureza estatal e o monopólio da empresa – viu-se a formação de alianças de interesses entre as lideranças empresariais e as lideranças sindicais. Alianças em conflito, pois não só a questão da defesa ou não do monopólio os dividia, havia outras questões, passadas e presentes ainda não resolvidas. Sob o manto genérico da defesa da empresa, esses atores, por serem distintos, também tiveram diferentes estratégias.

A dimensão e profundidade de tal dilema, nunca é demais recordar, era que estava colocado no seio do próprio debate sobre o papel do Estado. Era o de sempre, mas ocorria num momento especial, pois o país estava em pleno processo constituinte. Com extrema habilidade, as lideranças da Petrobrás conseguiram aglutinar forças para defender suas posições. A Constituição de 1988 manteve a Petrobrás como empresa estatal, afirmou seu monopólio e, em certos aspectos, até reforçou seu papel na economia do país. Porém, a empresa sofreu perdas, saiu financeiramente abalada, o que dificultou o enfrentamento dos desafios da década de 1990 e do novo milênio.
 

Os símbolos verde e amarelo tornar-se-ão souvenirs!

O Programa Nacional de Desestatização – PND – foi instituído por uma medida provisória, quinze dias depois da posse de Fernando Collor de Mello, em março de 1990. Suas diretrizes, transformadas em lei, foram o fio condutor do processo de remodelação do Estado durante os anos seguintes. Nele, a Petrobrás não estava incluída para ser privatizada. Com base nas experiências internacionais de privatização, os técnicos do BNDES, que assumiram a liderança do processo de desmonte do Estado desenvolvimentista, recomendaram deixar para mais tarde a privatização das empresas onde a resistência da sociedade pudesse ser maior.

Para a revista Business Week, em matéria reproduzida no boletim da oposição sindical do Rio de Janeiro, se Collor cumprisse o prometido "os símbolos verde e amarelo iriam tornar-se souvenirs:" O logotipo verde e amarelo BR do monopólio estatal do petróleo está em todos os lugares do Brasil. Agora, a gigante do petróleo está na mira do novo Presidente do Brasil, Fernando Collor de Mello" (18).

Ao longo de sua história, acompanhamos a Petrobrás se expandir de seu núcleo central – exploração e produção - para várias outras atividades: refino e distribuição de derivados; estruturação dos setores petroquímico e de fertilizantes; estruturação de uma rede de transporte marítimo e de cabotagem; e internacionalização da exploração e comércio do petróleo. Só para se ter uma idéia, antes de se iniciar o processo de privatização do setor químico e petroquímico, a Petrobrás controlava inteiramente quatro empresas, tinha 23 coligadas com participação acionária diretamente e 43 coligadas com participação de subsidiárias, que em conjunto representavam oitenta por cento da indústria petroquímica do país (19).

Nos primeiros cinco anos da década de 1990, vimos uma Petrobrás sendo reduzida a sua atividade básica: a produção de petróleo. Uma estampa do processo de retração da empresa foi a drástica redução do número de empregados. Entre 1989 e 1995, cerca de quatorze mil postos de trabalho foram extintos, eqüivale dizer que 23 por cento dos trabalhadores em 1989 saíram da empresa. Dos quase sessenta mil trabalhadores, permaneceram trabalhando apenas 46 mil. Além disso, a Petrobrás que já era uma das maiores empresa mundiais de petróleo, em poucos anos foi se retirando de importantes setores onde detinha o controle e a liderança, como o petroquímico e o de fertilizantes.

Contrastando com os outros indicadores, em 1998, atingiu a marca histórica da produção de um milhão de barris de petróleo/dia. O governo não deixou de aproveitar esse episódio para reafirmar sua convicção no processo de reestruturação do setor. Uma Petrobrás - empresa e símbolo - diferente surgiu para enfrentar os desafios dos anos 2000. De símbolo do nacional-desenvolvimentista, do modelo de substituições de importações, foi escolhida para se tornar o símbolo de um Estado aberto ao exterior e afeito aos paradigmas privados de gestão.

O problema do governo era convencer a sociedade das vantagens de uma empresa menos estatal, ao mesmo tempo em que tinha de vencer as resistências dentro da Petrobrás. Nem a primeira tarefa, nem a segunda foram fáceis.

O dilema do governo era que não podia substituir a todos os de dentro por outros afinados com o seu projeto. Não fosse por outras razões, porque o monopólio das informações e o controle do processo, a vida da empresa, estava com os que lá trabalhavam. Como disse Claus Offe, do ponto de vista do Estado, essas forças têm de ser "transformadas em componentes integrantes dos mecanismos através dos quais a política pública é formulada. Sua função positiva potencial é tão significativa quanto seu potencial de obstrução" (20). Trabalhando no limite, mesmo uma Petrobrás privatizada, precisaria de seus integrantes, ou melhor, do seu savoir faire.

No governo Fernando Henrique, os argumentos e as concessões à autonomia gerencial na empresa acabaram por envolver parcelas importantes do corpo técnico. Aqui, aplica-se bem o ditado popular: entregaram os anéis, para não perderem os dedos. Sobre o fato, numa pesquisa realizada por Flávio Santos Toyal de Araújo junto aos dirigentes da Petrobrás, em 1994/95, 90 por cento consideraram pouca ou nenhuma a possibilidade de reverter a internacionalização da empresa. Tal diagnóstico explica razoavelmente bem a opção por estratégias adaptativas à nova situação. A partir de certo momento, convencidos da incapacidade de evitarem as transformações, as lideranças gerenciais passaram a se articular dentro e fora do aparelho de Estado. Como em outras vezes, para permanecerem como empresários do Estado, deviam provar sua eficiência gerencial. Por isso, lutavam pela preservação das condições mínimas para exercê-la.

No caso das lideranças sindicais, as táticas do governo mostraram que não esperava cooptá-las. A postura foi a do enfrentamento, visando enfraquecê-las perante suas bases e a população. É bom observar, que estamos falando de lideranças sindicais bem articuladas aos interesses dos trabalhadores da empresa. Nos primeiros cinco anos da década de 1990, os petroleiros realizaram duas grandes greves nacionais. Logo, a tarefa do governo não era fácil. Suas dificuldades, no entanto, não se converteram em facilidades para as lideranças sindicais. Estas foram colocadas em uma incômoda posição, onde a rejeição à privatização confundia-se com a defesa de um Estado concentrador, com sistemas educacional e de saúde falidos. Ao vencerem essa primeira barreira, tinham de articular seus interesses corporativos aos de defesa do monopólio e da Petrobrás estatal. No início dos anos 1990, o contexto do governo Collor ajudou-os nessas tarefas. No entanto, os sindicalistas não conseguiram reunir forças suficientes para vencerem as batalhas da segunda metade da década.

Não era fácil o empreendimento dos sindicalistas para vincular sua mobilização reivindicatória à defesa da Petrobrás estatal e monopolista. Tinham de articular os interesses particulares – próprios dos trabalhadores da Petrobrás - aos interesses sociais. Além disso, essa reunião tinha de ser convincente aos olhos dos não petroleiros. Uma das elaborações mais acabadas desse discurso ocorreu na minuta de reivindicações encaminhada à empresa, como proposta de acordo coletivo de trabalho, em 1992. A pauta veio precedida por um tópico denominado de "Objeto do Acordo". Sua leitura é fundamental:

"O objeto do presente Acordo é estabelecer um conjunto de condições segundo às quais a Companhia se compromete, pela sua Direção, a pautar-se durante a vigência desse Acordo com parâmetros que assegurem a rentabilidade dos seus produtos e de suas atividades econômicas (...) garantindo que trabalhará com um PMR – Preço Médio de Realização que remunerará efetivamente os seus custos e sua margem de investimentos, sob pena de sujeitarem-se às penalidades previstas no Estatuto da Cia. Decreto 81.217, de 13/01/78, tudo de modo a assegurar o que a seguir é pactuado no que concerne aos compromissos com salários, vantagens e benefícios, ..." (21) .

A primeira cláusula arrematava:
"A Cia. garantirá a suspensão imediata do processo de privatização das empresas do Sistema Petrobrás e a retomada imediata dos investimentos em todas essas empresas" (22) .

Inventivos, os petroleiros se utilizaram de um instrumento, que sabiam ser formalmente não apropriado, para afirmar seu discurso político. Essa é uma primeira consideração de ordem geral. Interessa especialmente verificar se os sindicalistas conseguiram estabelecer uma lógica vinculando a primeira à segunda proposição (23) .

Na primeira, o petroleiro expôs sua face de trabalhador assalariado brigando pelo excedente: se a direção da empresa garantir uma redistribuição das margens de lucro, estarão asseguradas as condições para o investimento e para remuneração dos trabalhadores. O primeiro enunciado – ações para rentabilidade – conduz ao segundo – salários, vantagens e benefícios. Sua construção confunde-se com a de qualquer trabalhador assalariado, exceto por um detalhe importante: a cobrança de uma conduta empresarial voltada à lucratividade, desnecessária se fosse uma empresa privada. Essencialmente, no entanto, o petroleiro está instando os dirigentes da Petrobrás a assumirem um comportamento baseado nos paradigmas privados de condução empresarial. Em outras palavras, as lideranças sindicais estavam defendendo um aumento na margem de lucro da Petrobrás, em detrimento da administração de preços em favor das políticas governamentais – o subsídio, a uniformidade dos custos de transportes e outras formas de transferência de renda inter-setoriais e inter-regionais. Quer dizer, estavam minimizando o lado estatal da empresa.

Logo a seguir, o petroleiro nos lembra que a Petrobrás deve permanecer estatal. Tem pronto vários argumentos para justificar essa necessidade, como se vê nos boletins sindicais: (1) foi um investimento público é patrimônio do povo brasileiro; (2) é estratégica para o desenvolvimento e soberania do país; (3) trás ganhos para o bem estar social do país. Escapa totalmente às nossas intenções discutir a validade desses argumentos. Nossa preocupação é, destacar a lógica que liga as duas proposições e problematizar a tentativa dos sindicalistas em reunirem-nas coerente e convincentemente.

No final dos anos 1960, na Europa, principalmente na Alemanha, houve um impulso à discussão teórica dessa questão. Genericamente, tais debates deram origem ao que é conhecido como "teorias da derivação", cujos expoentes são os grupos de Frankfurt (escola da lógica do capital) e o de Berlim (24). Essas teses nos interessam, pois expressam teoricamente o dilema do petroleiro na sua ação. Os derivacionistas definem teoricamente duas categorias de trabalho: uma tipicamente capitalista, o trabalho assalariado voltado à geração do excedente; a segunda, o trabalho consumidor de valor. No capitalismo, é trabalho produtivo aquele organizado pelo critério unívoco da criação de valor. Em sentido oposto,

"...o trabalho dos funcionários [públicos] fica inequivocamente caracterizado como ‘improdutivo’, por ser trabalho não vinculado à forma-mercadoria (...) Os serviços burocráticos se inscrevem em um contexto social em que não passam pelo processo de ‘valorização’ (...) eles entram imediatamente no consumo social. Para eles não existe mercado." (25)

É, portanto, força de trabalho concreta, não é mercadoria e não gera mercadoria. Ao contrário, está voltada para gerar valor de uso absorvido pelos demais trabalhadores e pelos capitalistas. Essa característica não excluí esse trabalho do sistema, ao contrário. Ele existe para viabilizá-lo, onde o capital individual é incapaz de fazê-lo (26). No entanto, esse trabalho consumidor de valor é visto como um confisco parasitário do valor gerado pelo trabalho assalariado (27).

No Brasil do capitalismo tardio, o espaço de atuação do Estado expandiu-se sob forma de empresas produtoras de bens e serviços. As estatais incorporaram tanto as funções regulatórias, quanto os paradigmas privados de gestão empresarial. Dessa forma, as estatais tornaram-se um loci onde são gerados valor na forma típica do capitalismo (mercadorias), assim como valores de uso (mais comuns se feitos sob o controle direto do Estado) (28)

Acompanhando o raciocínio teórico de Claus Offe, podemos falar no nascimento de uma forma híbrida de trabalho que por um lado, rompe com a lógica do trabalho voltado exclusivamente para geração de lucro (típico do assalariamento capitalista), mas que não chega a ser exclusivamente, trabalho gerador de valor de uso, típico dos funcionários públicos. Essa bifacialidade, já tratada, reflete-se sobre a identidade do trabalhador da Petrobrás. Seu cotidiano, seus problemas no trabalho, suas aspirações e reivindicações são as mesmas do trabalhador empregado na empresa privada. Porém, de forma recorrente, os acontecimentos lhe mostram que é um trabalhador submetido ao capital público. E no conflito das campanhas salariais, essa duplicidade ganha contornos dramáticos.

Sua face, digamos, privada sobressai quando o governo contrapõe às suas reivindicações salariais, o caráter público da empresa. O trabalhador, as lideranças sindicais e, nesse aspecto, também os técnicos-gerentes, são empurrados para a defesa dos seus interesses corporativos e para a defesa do ethos empresarial da Petrobrás. O trecho da minuta para o acordo coletivo, citado pouco antes, é uma expressão bem acabada desse comportamento.

Mas a face pública do trabalhador da estatal se revela quando a política do governo para a empresa visa aproximá-la do paradigma privado – no limite a privatiza. O trabalhador, nessas ocasiões, assume o papel de defensor do caráter público do capital. Torna-se, sem que tenha sido investido institucionalmente para tal, o representante interno dos interesses que julga serem os da sociedade como um todo (29).

Ao invés de ter um único discurso, o petroleiro fala com duas lógicas que guardam relativa independência entre si. Uma, que se confunde com os interesses corporativos, embora não deva ser reduzidos a isso, pois também é uma colocação de limites ao uso público da empresa pelo governo; outra, onde o argumento ideológico predomina.

Enquanto os petroleiros tentavam estabelecer uma ponte entre os interesses público e os seus interesses corporativos, o governo não poupava esforços para semear a idéia de que o projeto dos petroleiros, - de uma Petrobrás estatal -, não passava da defesa de condições privilegiadas de trabalho num país onde a maioria da população encontrava-se em precárias condições de vida. As campanhas governamentais induziam a uma falsa associação: entre as vantagens dos trabalhadores das estatais e a péssima distribuição da renda no país.

Os petroleiros ficaram numa posição incômoda. Em sua ação, os petroleiros mostraram a dificuldade em articular sua dupla face em um só discurso. A greve de mais de 30 dias, em 1995, não obteve os resultados reivindicatórios, nem impediu que em 7 de junho, a Câmara dos Deputados aprovasse, em primeiro turno a autorização da quebra do monopólio. Numa quarta-feira, 8 de novembro de 1995, a decisão foi aprovada, em segundo turno, pelo Senado. Com isso, foi alterado o parágrafo primeiro do artigo no 177 da Constituição e autorizada a contratação de empresas estatais ou privadas para a exploração do subsolo. Dois anos depois, em março de 1997, a Câmara dos Deputados sancionou a lei que regulamenta a quebra do monopólio, por 307 votos a favor e 107 contra.
 

Conclusão: um souvenir para o novo modelo

A superação da marca do milhão de barris/dia, anunciado com alarde nas primeiras páginas dos grandes jornais, enterrava definitivamente o debate sobre a existência ou não de petróleo no país. Dias depois, como um déjà vu, os homens da Petrobrás assistiriam nas telas das emissoras de televisão o Presidente da República anunciar novos recordes dos campos de Marlin e Roncador. Em uma reunião dos presidentes dos países latino-americanos, em Caracas, Fernando Henrique Cardoso permitiu-se anunciar o desejo de integrar a OPEP (30).

Mas o pessoal da Petrobrás já não comemorava cada novo poço, as comemorações agora, conforme transparece nos relatórios da empresa, ficavam por conta dos grandes negócios. Pouco tempo depois do anúncio presidencial, a Petrobrás divulgaria o balanço do primeiro semestre de 2000, destacando o maior lucro da história da empresa: mais de quatro bilhões de reais (31). A estatal reuniu o binômio petróleo e lucro.

No comando estava o economista Phillipe Reichstul, que assumira a presidência da Petrobrás no lugar de Joel Rennó. Sua nomeação foi saudada pela revista Veja com o título de "A fera domada – como o governo finalmente assumiu o controle da Petrobrás" (32). Segundo a matéria, Fernando Henrique Cardoso precisou quatro anos, dois meses e 24 dias para assumir uma parcela significativa de seu "reinado": a maior empresa brasileira. No dia 8 de junho de 2000, o jornal Valor Econômico estampava na primeira página a foto de um sorridente Philipe Reichstul comemorando a vitória no leilão da Agência Nacional de Petróleo. Reichstul celebrava a compra de oito das dez áreas de exploração petrolífera oferecidas pelo governo através da ANP. Ou seja, a Petrobrás acabava de comprar algo que até bem pouco tempo pertencia à própria empresa no exercício do monopólio. Para os petroleiros - como de resto para uma parcela da sociedade brasileira com a memória de uma certa época -, talvez o mais espantoso na operação tenha sido as parceiras da Petrobrás nos negócios: Chevron, British e Shell, Esso e Mobil (33). Agora, quase todas as Sete Irmãs estavam juntas com a Petrobrás na exploração de petróleo no país. No final da matéria, um comentário discreto do jornalista: "Apesar dos protestos da Federação Única dos Petroleiros (FUP), não houve incidentes" (34).

Não se passou muito tempo e a Petrobrás voltou aos noticiários. O cartel internacional da OPEP reduziu a produção mundial de petróleo. Como conseqüência, os preços superaram os patamares das crises do petróleo de 1979. O binômio petróleo e lucro estava agora ilustrado por uma crise internacional do petróleo, trazendo de volta o cenário que tantas vezes envolveu os episódios aqui narrados .

O sucesso empresarial da Petrobrás passou a ser usado como símbolo da política governamental de reestruturação do Estado. Nesse papel, a idéia de uma Petrobrás cujo dono é o povo brasileiro adquiriu uma roupagem prosaica, mas representativa dos novos tempos.

Em julho de 2000 os trabalhadores foram autorizados a utilizarem parte dos saldos depositados em suas contas do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço para aquisição de ações da empresa. A noção abstrata de que o dono da Petrobrás é o povo brasileiro, tantas vezes mencionadas pelos sindicalistas e nacionalistas, ganhou sua forma pragmática de ações. Isso nos leva a indagar quais serão os significados dessa transformação para a Petrobrás do século XXI ?
 

Notas

1Ver Abranches & Dain (1978), Prado (1990), Contreras (1994) e na ótima síntese em Martins (1995).
2 Sampaio, M. Deus não é brasileiro, nem o petróleo é nosso. Rio de Janeiro: Nordica. 1992, p. 15.
3 Entrevista de Antônio Carlos Spis, liderança sindical dos Petroleiros, ao autor em novembro de 1999.
4 Na pesquisa de Caldeira Brandt, os entrevistados são citados apenas como sindicalistas. Brandt, 1990, p.39.
5 Aldo Zucca, diretor da Petrobrás, entrevista realizada em 1988 por pesquisadores do CPDOC/FGV, p 249.
6 Carvalho, 1977, p.178.
7 O termo "empresa imperial" é de Aldo Zucca, op.cit., p. 113.
8 Ver a discussão em Sainsaulieu, 1987, p.119 e Lieu, p. 121.
9 Carvalho, op. cit., p.138.
10 A designação irônica de "Sete Irmãs" é do italiano Enrico Mattei, fundador da Ente Nazionale Idrocarburi (ENI).
11 Zucca, op.cit., p.597.
12 Marinho Jr., op.cit., p.364, parafraseando os nacionalistas sem citar nomes.
13 Ibid., p.363.
14 Ibid., p. 365, parafraseando os nacionalistas.
15 O exemplo mais expressivo foi no setor petroquímico e de fertilizantes.
16 Petrobrás. Informando. Provavelmente publicado em 1988.
17 Ver Contreras, op.cit.
18 Surgente, Boletim do Sindicato dos Petroleiros, 11/mai/1990.
19Contreras, op.cit., p.98. As empresas coligadas são aquelas onde a Petrobrás ou uma de suas subsidiárias detém participação acionário em associação com outras empresas públicas ou privadas.
20 Offe, 1989, p.235. O autor, obviamente, não está tratando o caso citado e sim de grupos de interesse em geral.
21 Sindipetro-RJ, 04/ago/1992.
22 Ibid.
23Utilizamos os conceitos largamente desenvolvidos por Michel Foucault, 1986, p 135-6.
24 Da qual, segundo Prado, Elmar Altvater e Joaquim Hirsch são os mais representativos. Ver Prado, 1990, p.38.
25 Offe, op.cit., 183.
26"...seja porque a produção de certas condições materiais de produção não é geradora de lucros, seja porque o grau de generalidade de certas regulamentações é elevado demais para a percepção dos capitalistas individuais" Altvater apud Offe, op.cit., p.184.
27 O descaso com que é visto o trabalho no setor público, em parte, tem muito a ver com essa idéia.
28 Prado, op.cit., p. 16.
29 Representatividade entendida aí, como uma delegação legitimada por mecanismos social, democráticos e institucionais.
30 Folha de São Paulo, 7/abr/2000.
31Petrobrás. www.petrobras.com.br, out/2000.
32 Silvio Ferraz, Veja, 31/mar/1999, p. 110.
33 Foram parceiras ainda a YPF, a Perogal e Amerada Hess.
34 Valor, 8/jun/2000, p. A5.
 

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© Copyright Scripta Nova, 2002
 

Ficha bibliográfica

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