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Scripta Nova
REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES
Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98
Vol. VI, núm. 119 (130), 1 de agosto de 2002

EL TRABAJO

Número extraordinario dedicado al IV Coloquio Internacional de Geocrítica (Actas del Coloquio)
 

TURISMO, TRABALHO E DESENVOLVIMENTO SOCIOESPACIAL EM RECIFE/BRASIL:
O PROGRAMA COMUNIDADE SOLIDÁRIA E O CENTRO PÚBLICO DE PROMOÇÃO DO TRABALHO
E RENDA COMO PROPOSTAS DE INTEGRAÇÃO

Cláudio Jorge Moura de Castilho
Prof. Adjunto do Programa de Pós-Graduação em Geografia, da Universidade Federal de Pernambuco, Brasil *


Turismo, trabalho e desenvolvimento socioespacial em Recife/Brasil: o programa comunidade solidária e o centro público de promoção do trabalho e renda como propostas de integração (Resumo)

Discutimos as relações entre as atividades turísticas e o mercado de trabalho em Recife/Brasil, na busca do desenvolvimento socioespacial efetivo. As atividades turísticas têm crescido muito ao longo dos doze últimos anos in loco; ademais essas atividades têm sido compreendidas pelos pobres, como uma oportunidade para encontrar um trabalho e/ou uma ocupação na busca da sua mobilidade socioespacial. Por outro lado, as elites político-econômicas locais pensam em promover a idéia do desenvolvimento socioespacial, com base na realização de ações no espaço urbano a fim de fazer crer que estão fazendo algo nesse sentido; mas o desenvolvimento socioespacial nunca acontece, em razão das condições locais do subdesenvolvimento regional. É por isto que devemos pensar numa outra política urbana para o emprego; conditio sine qua non para o desenvolvimento.

Palavras chave: turismo, mercado de trabalho, desenvolvimento socioespacial


Tourism, work and socio-spatial development in Recife, Brazil: the solidary comunity program and the public centre of work and rent promotion as integrating proposals (Abstract)

We discuss the relationship between touristic activities and work market in Recife/Brazil, seaching for social and spatial development. Touristic activities has increased a lot during the last twelve years in loco; moreover these activities has been understanding by poor people as an opportunity to find a work and/or an occupation, searching for their social and spatial mobility. On the other hand, the politico-economic elites think promote the idea of spatial and social development based on spatial actions in the city in order to create the illusion of urban development; but the social and spatial development don’t really happen due to local underdevelopping conditions. That’s why we have to thinking an other urban policy for working in the city; conditio sine qua non to promote the development.

Key words: tourism, work market, social and spatial development


Aborda-se aqui o tema do trabalho relacionado com as atividades ligadas ao turismo, na perspectiva da concretização do desenvolvimento socioespacial em Recife/Brasil. Nesse sentido, o artigo foi estruturado com uma breve contextualização do tema, seguida por três seções: uma primeira tratando das relações do terciário-trabalho-espaço com a criação de perspectivas de integração socioespaçial; uma segunda definindo o capital material e sociocultural como condições seletivas de integração/inserção ao mercado de trabalho urbano e uma última tentando concluir o artigo, sem fechá-lo, recolocando os embates entre as perspectivas de crescimento econômico e as de desenvolvimento efetivo mediante duas experiências que se esboçam in loco.
 

Contextualizando o tema

Pretende-se aqui analisar o papel das atividades ligadas ao turismo como possibilidades (reais) de promoção do aumento do número de postos de trabalho, mediante os quais os indivíduos dos grupos sociais pobres (1) podem conseguir a sua efetiva integração socioespacial; na perspectiva e na busca do efetivo desenvolvimento socioespacial. Falamos aqui daqueles indivíduos que sempre estiveram alijados das estratégias concretas de integração à economia urbana, mas que nunca perderam as suas esperanças.

A perspectiva acima citada, presente no discurso das elites economico-políticas locais constituídas por homens políticos e empresários, sempre desempenhou um papel importante no sentido de fazer com que aqueles grupos sociais acreditassem, mediante a criação de imagens positivas da/na cidade, que eles também teriam condições de integrarem-se ao espaço urbano; o que se fez necessário sobretudo em contextos históricos de crises econômicas. Atualmente, com as implicações socioespaciais da invasão neoliberal (Bourdieu, 1998), o desejo de encontrar um posto de trabalho na economia urbana (formal) se torna mais difícil de ser realizado. Daí a pertinência da criação de fábulas para atenuar as iminentes tensões sociais.

A reestruturação econômica global, cujos elementos essenciais se apresentam mediante práticas de intensificação da flexibilização e da precarização no mercado de trabalho tem contribuído sobremodo para dificultar as chances reais de integração socioespacial daqueles indivíduos; isso num contexto permanente de subdesenvolvimento regional.

O Estado brasileiro sempre se voltou para o crescimento econômico nacional com o intuito de fazer do nosso país uma das grandes potências econômicas mundiais, deixando de lado e mesmo negligenciando as questões sociais – dentre as quais destacamos aquela que diz respeito à formação/integração dos brasileiros ao mercado de trabalho – tratando-as apenas com medidas pontuais, assistenciais e clientelistas. Por outro lado, a ausência de um Estado social e o desmonte do Estado desenvolvimentista, promovido pelo já citado avanço do projeto neoliberal, dificultam a formação de mecanismos de integração socioespacial dentre os quais destacamos o acúmulo de um capital material e de um capital sociocultural, ao longo da história de vida de cada indivíduo.

Situação essa que continua deixando margem à formulação de discursos e representações socioespaciais sem eficácia social, mas capazes de manterem a realidade capitalista existente (Castilho, 2000). Neste sentido, o turismo tem apresentado uma verdadeira capacidade de articulação da sociedade em torno do discurso das elites locais.

Dito isso, cabe indagar em que medida o crescimento, a expansão, a diversificação e a modernização das atividades ligadas ao turismo têm condições efetivas de engajar os indivíduos que se acham no exército industrial de reserva e/ou no lumpemproletariado; desmascarando o mito do desenvolvimento pela dinâmica dos serviços urbanos, fundamentado no discurso único do neoliberalismo econômico. Mas ao mesmo tempo, mediante a perspectiva da transdução (Lefebvre, 1999), identificando possibilidades de mudanças na busca da construção concreta do desenvolvimento socioespacial.
 

Terciário-trabalho-espaço e criação de perspectivas de integração socioespacial

É importante dizer que as relações das atividades terciárias com o mercado de trabalho e o espaço sempre exerceram um papel muito importante no processo de construção do espaço urbano. Em Recife, isto se deu desde os primórdios da formação socioterritorial brasileira (Castilho, 1998). Centro de uma metrópole terciária, situada na região Nordeste do Brasil, Recife sempre teve no comércio e na prestação de serviços o seu ponto mais forte, mediante o qual o seu papel de pólo econômico regional tem sido reforçado em cada contexto histórico.

A partir do século XVI, com a sua fundação, até o século XIX, o terciário – calcado em atividades ligadas à administração, ao comércio e aos serviços – foi progressivamente conquistando um lugar importante na economia urbana local; o que foi intensificado notadamente com a abertura dos portos brasileiros às nações amigas. O processo de crescimento industrial, ao longo do século XIX, a partir da lei Alves Branco (1844), e sobretudo com as medidas protecionistas durante as primeiras décadas do século XX fizeram de Recife um centro de produção industrial considerável e diversificado (Singer, 1977). Isto atrelado à ausência ainda da concorrência com as indústrias instaladas na região Sudeste do Brasil.

Esse crescimento industrial, promoveu o engajamento de pessoas no setor produtivo, provocando o aumento do assalariamento e, por conseguinte, do mercado consumidor na cidade; o que certamente fez crescer também a demanda por atividades terciárias ligadas sobretudo ao comércio – atacadista e varejista – e à prestação de serviços – à produção, de distribuição, sociais e individuais. Contudo as elites dirigentes locais continuavam voltadas ora para as atividades agroexportadoras, ora para as industriais, na medida em que, para elas, essas atividades eram estratégicas para o seu crescimento econômico. Desde então, pelo menos em nível do imaginário social local, a indústria continuou a ser vista como atividade fator de desenvolvimento até a segunda década do século XX.

De acordo com a lei de zoneamento urbano de 1961, argumenta Bitoun (2000), as atividades industriais ainda eram consideradas como atividades essenciais ao desenvolvimento da cidade, os seus pontos fortes; o que justificava a preocupação no sentido da criação e gestão de distritos industriais na cidade. Somente com a nova lei de zoneamento urbano de 1983, é que o comércio e os serviços passam a serem considerados como atividades essenciais ao crescimento econômico; o que não era à toa posto que já se vivia naquele período um processo de desindustrialização – já desde os anos 50 –, a crise do Estado em nível mundial e o crescimento do terciário, o qual continua forte nas grandes cidades.

É a partir dos anos 90 do século passado que o comércio (com 19,80%) e os serviços (com 48,57%) passam a ocupar quase 70 por cento da População Economicamente Ativa/PEA em Recife; enquanto isso, o setor industrial ocupava apenas 12,63 por cento desta PEA (Recife,1997). Desse modo, não sem razão, foram aquelas duas primeiras atividades que passaram a assumir papéis importantes – real e virtual – nas políticas de crescimento/desenvolvimento urbano, reforçando a ilusão dos Planos Estratégicos que propunham, fundamentados em aspectos do empreendedorismo urbano (Harvey, 1989), a criação de cidades competitivas; mas competitivas para quem? Para as empresas, para o capital.

Com efeito, entre os anos sessenta e setenta nos países desenvolvidos e nos anos oitenta e sobretudo noventa no Brasil,

a administração urbana orientou-se mais no sentido de prover um ‘bom clima de negócios’ e oferecer todos os tipos de atrativos para trazer capitais para a cidade [...] A tarefa da administração urbana consiste, em resumo, em atrair para seu espaço, uma produção altamente móvel e flexível e fluxos financeiros e de consumo (Harvey, 1996, p.57).

Não podemos também deixar de colocar que, como em muitos lugares que têm se re-inserido na dinâmica econômica e espacial contemporânea, as alternativas para a construção de uma cidade estratégica gerencial em Recife tem-se dado, pelo menos até o ano de 2000 – quando ainda do período das administrações conservadoras –, de modo fugaz e incerto, consolidando um quadro vulnerável às incertezas da globalização perversa. Com efeito,

A ênfase no turismo, na promoção e consumo de espetáculos, na promoção de eventos efêmeros numa dada localidade representam os remédios favoritos para economias urbanas moribundas. Investimentos urbanos desse tipo podem ser paliativos imediatos apesar de efêmeros aos problemas urbanos. Mas estes são, em geral, altamente especulativos. (Harvey, 1996, p.59)

Desse modo, os serviços se fizeram cada vez mais presentes e visíveis no espaço urbano, seja de modo desconcentrado localizados nos principais lugares centrais da cidade e/ou área metropolitana, seja concentrados espacialmente formando os conhecidos pólos terciários urbanos a exemplo do Pólo Médico-Hospitalar, Pólo Comercial, Pólo de Lazer e Entretenimento, Pólo de Ensino Superior e Pesquisa e do Pólo de Turismo; mais recentemente, após a febre do turismo como panacéia e, em nível sobretudo estadual, tenta-se vender a imagem do Pólo Tecnológico, conhecido como Porto Digital.

Essas atividades, argumenta Vargas (2000, p.77), devem ter lugar de destaque em qualquer política urbana que se pretende séria e eficaz no sentido do desenvolvimento urbano. Mas não pensadas como única solução à resolução da problemática social a partir de mudanças em determinados pontos do espaço urbano e dos seus entornos. Só que a ação dos poderes públicos locais continuou, pelo menos até a gestão municipal conservadora que finda em 2000, estimulando a concentração dessas atividades em territórios previamente selecionados e negligenciando a complexidade do real; ações com base no território urbano que foram utilizadas mais para fins ideológicos no sentido da permanência do que no da mudança social. Com efeito,

Una vez asumida la esencia inauténtica de estos entornos, entonces es posible recrear espacios hiperreales, simulaciones a escala 1:1 de otros espacios, de períodos históricos o de la propia imaginería colectiva. Estas simulaciones son ofrecidas como una verdadera superación de la realidad [...] (Donaire, 1998, p.59)

A percepção e tentativa de controlar esta dinâmica ajudou as elites dirigentes locais a fortalecerem as suas propostas e os seus discursos político-administrativos – mediante estratégias de revitalização/turistificação de espaços, de promoção de eventos espacialmente localizados, etc. – no sentido da sua manutenção no poder. O restante da sociedade, os pobres, por seu lado, compreendiam que a sua participação nesta dinâmica socioespacial poderia levá-los a mudarem de vida; criando perspectivas diversas de integração ao mercado de trabalho urbano local.

Em outras palavras, a percepção dessas mudanças espaciais contribuiu para a criação de perspectivas de integração socioespacial no grupo social dos pobres. Pode-se também considerar o fato da experiência de vida de alguns dos seus familiares e conhecidos que conseguiram engajar-se formalmente no mercado de trabalho urbano, ainda que sob condições muito flexíveis e precárias de trabalho. Mas quantos conseguem integrar-se de fato? Quais as suas chances reais de integrar-se ao mercado de trabalho urbano? O que acontece com aqueles que não conseguem integrar-se a esse mercado? Não estariam eles mais uma vez sendo iludidos e manipulados pelas elites no poder, pelo discurso da integração calcado no turismo e na turistificação de espaços?
 

O capital material, o capital sociocultural e a integração/inserção ao mercado de trabalho urbano

Partindo da hipótese de que existem condições específicas – econômicas, pessoais, sociais, culturais e territoriais – que influem na forma de integração/inserção ao mercado de trabalho urbano em Recife, podemos considerar diversas formas de relação dos indivíduos com as atividades urbanas em questão: os contratados e os não contratados; os contratados permanentes e os contratados temporários/sazonais; os trabalhadores (no setor formal) e os ocupados (no setor informal).

Todavia, adiantamos que as chances reais de integração socioespacial são muito restritas; em razão sobretudo da forte seletividade do/no espaço e, por conseguinte, do/no mercado de trabalho contemporâneos. Apenas os indivíduos que possuem um capital material e um capital sociocultural, acumulados durante a sua história de vida, conseguem de fato integrar-se a esse mercado, cabendo ao restante uma mínima inserção por meio de atividades informais e clandestinas. (Castilho, 1999)

Consideramos capital material o montante de dinheiro que os indivíduos possuem, utilizando-o como recurso financeiro, pagando a sua inscrição num curso de capacitação/qualificação profissional, comprando/adquirindo material de estudo, custeando passagens de ônibus a fim de freqüentar o curso que escolhem, comprando algumas roupas para ficarem mais apresentáveis diante dos seus colegas etc.

O capital sociocultural compreende o conjunto dos conhecimentos adquiridos na escola mediante os quais eles conseguem uma vaga num dos cursos oferecidos pelas instituições competentes, o portar-se/apresentar-se em lugares públicos, bem como as suas relações sociais – familiares e de amizade com pessoas "integradas" – tecidas no curso da história de vida de cada um.

Os dois tipos de capitais supracitados constituem mecanismos essenciais sem os quais não se consegue um emprego no mercado de trabalho urbano contemporâneo. Se antes já era difícil encontrar um trabalho (2) em razão das condições inerentes ao subdesenvolvimento regional, hoje, com a aceleração da globalização perversa (Santos, 2000), as chances de obtê-lo tornam-se cada vez mais difíceis; mas não impossíveis, resta-nos dizer. É dura a trajetória percorrida pelos indivíduos mais desprovidos daqueles capitais, na busca da sua integração e mesmo inserção no mercado de trabalho urbano.

Ao Estado, não adianta portanto fazer crescer as atividades econômicas e estimular a sua territorialização revitalizando espaços urbanos, se não se estabelecem ações no sentido da integração efetiva da sociedade local. Em vez de agir no sentido de promover o acesso às condições efetivas de integração socioespacial, o Estado brasileiro sempre promoveu ações tópicas, pontuais, assistenciais e clientelistas. O processo de integração do contingente de pessoas que chegavam em Recife, durante o boom do êxodo rural (anos 40, 50 e 60 do século XX), sempre foi tímido, sem a proteção de um (ausente) Estado social; todavia, em razão do seu desejo de integração ao urbano, aquele contingente continua a lutar na busca de melhores condições de vida.

O próprio fato de se instalarem na cidade mais importante do estado, Recife, onde existe um número maior e mais diversificado de atividades e postos de trabalho, já indicava a superação de uma etapa no sentido da sua integração. Posteriormente, a inserção de parte dessas pessoas, ocupando pequenos postos de trabalho, nos setores produtivo e terciário constitui outra etapa visando a sua integração socioespacial; mas um número grande de pessoas continuava sem qualificação para integrar-se à economia formal, engrossando, por seu lado o setor informal da economia urbana, sempre em processo de crescimento (3).

Nos anos 50/60 Recife conhece, argumentam Cézar (1985) e Castilho (1992), um processo de organização sócio-territorial de moradores em seus bairros, que se articulam politicamente com o executivo municipal a fim de reivindicarem equipamentos urbanos e serviços sociais, diversificando as suas táticas de lutas por melhores condições de vida, enfim para a conquista do seu direito à cidade. O golpe militar interrompe esse processo de organização social que se vinha gestando em Recife, reinstalando práticas de gestão urbana autoritárias, conservadoras e opacas, as quais se voltam mais para obras de infra-estrutura urbana com vistas à concretização do que o Henri Lefebvre chama cidade industrial (1999); negligenciando portanto o bem-estar dos homens. Daí o forte crescimento da pobreza e da informalidade, consolidando o processo de produção de um espaço desigual e segregado.

Durante a distensão/abertura política, ao final dos anos 70 e início dos 80, o Estado brasileiro, em razão da sua crise econômico-financeira e política, não conseguia mais manter a ordem autoritária estabelecida a partir de 1964, lançando mão de experiências de gestão assistencialistas e populistas com o intuito de manter a sua legitimidade, fazendo também uso do discurso da descentralização político-administrativa do poder. Neste período aceleram-se as preocupações com a inserção – não com a integração (4) – de pessoas a fim de fazer-lhes crer, pelo menos em nível do discurso político-social, que seria desta vez que o bolo preparado no período do "milagre econômico" seria dividido.

Algumas instituições financeiras internacionais como o BM e o BIRD financiam projetos de intervenção em bairros pobres da cidade. Uma parte desses investimentos volta-se para melhorias em equipamentos coletivos urbanos e outra parte é enfim investida em programas de qualificação de pessoas com potencial de serem inseridas em ocupações remuneradoras. Com esta finalidade, mas por meio de soluções tópicas, o Estado brasileiro institui cursos "profissionalizantes" destinados à produção de artigos mediante os quais aqueles indivíduos pudessem conseguir algum ganho a fim de sobreviverem num mercado cada vez mais competitivo e seletivo. A criação das Unidades Produtivas Comunitárias/UPC em áreas pobres constituem os pontos de referência mais visíveis do discurso do Estado.

As UPCs – espaços criados para a produção de tapetes, vestimentas, bonecas, almofadas, massas, refeições, sorvetes, queijos, detergentes, água sanitária, bancos, chaveiros, jogos e outros objetos – constituíram, argumenta Arcoverde (1991), estratégias de criar expectativas de ocupação e geração de renda e, ao mesmo tempo e não menos importante, de promover a paz social, garantindo a acumulação global do capital nos domínios da produção e do consumo.

Ao mesmo tempo, a sociedade vinha retomando as suas práticas e experiências de associações de moradores visando à conquista de bens de consumo coletivo, na busca da melhoria das suas condições cotidianas de vida. Ela consegue ampliar o acesso a equipamentos e serviços urbanos, mas não conseguem ainda o acesso ao mercado formal do emprego urbano (Castilho, 1999); os movimentos sociais urbanos territorializados tornam-se menos freqüentes como estratégias visíveis de integração socioespacial, notadamente ao longo dos anos 90, fazendo com que os indivíduos movimentem-se procurando em outros espaços de referência – onde há atividades que possam integrá-los ao mercado do trabalho, nos pólos terciários – as suas chances de integração.

Com os encaminhamentos na direção da implantação de um empreendedorismo urbano em Recife durante os anos 90, nada muda. Para o próprio Harvey (1996, p.58)

Dado que o objetivo principal tem sido o ‘de estimular ou atrair empresas privadas através da criação de pré-condições para um investimento lucrativo’, o governo local ‘de fato acabou por sustentar a empresa privada, participando do fardo dos custos de produção’. Uma vez que o capital tende a ser mais móvel nos dias de hoje, segue-se que, ao mesmo tempo em que os subsídios locais para o capital provavelmente irão aumentar, a provisão local para os menos privilegiados irá diminuir, produzindo uma maior polarização na distribuição social da renda real. [...] Os tipos de emprego criado em muitas instâncias atuam igualmente contra toda mudança progressista na distribuição da renda, uma vez que a ênfase em pequenas empresas e na subcontratação podem ter efeitos secundários que encorajam diretamente o ‘setor informal’ como base para a sobrevivência urbana.

Além disso, temos de considerar que não se concretiza uma proposta de desenvolvimento socioespacial fundamentando-se em soluções tópicas e fugazes tais como revitalização de territórios, turistificação e criação de ocupações informais; representando isso tudo mais uma vez uma tentativa de iludir a sociedade vendendo um projeto de organização espacial que nunca se concretiza. Mas parece-nos que a sociedade brasileira vem percebendo o verdadeiro significado da proposta da cidade estratégica gerencial.

Cresce portanto a luta social por soluções mais reais, a exemplo da demanda por cursos de qualificação não mais para uma mera ocupação mediante a qual se consegue uma renda para manter a sua sobrevivência; mas sobretudo para o exercício de uma profissão e/ou de uma atividade produtiva, ligadas aos espaços dinâmicos dos pólos terciários da cidade. Nesse contexto o Governo Federal lança o Programa Comunidade Solidária/PCS e, em março de 2001, o Governo Municipal lança a proposta de criação dos Centros Públicos de Promoção do Trabalho e Renda/CPPTR. As duas propostas constituem pois, pelo menos em nível do discurso ideológico, duas tentativas elaboradas com a finalidade de promover a integração de pessoas ao mercado de trabalho na perspectiva da concretização do desenvolvimento social. Mas qual delas possuem ou podem possuir as perspectivas reais de desenvolvimento?
 

Ocupação ou trabalho, crescimento econômico ou desenvolvimento socioespacial?

Tradicionalmente, o que se tem visto em Recife são ações no sentido da criação de mecanismos de promoção do crescimento de lucros das empresas. Estas calcadas em táticas de empreendedorismo urbano e de estímulo à competitividade econômica, mediante a revitalização com base na turistificação de espaços (Castilho, 1999 e 2000) e protelando a resolução da problemática social. Daí a necessidade de se continuar refletindo acerca das ações e experiências da formação socioespacial de uma sociedade na sua complexidade.

Fazer uma reflexão sobre a integração dos pobres constitui hoje uma das condições sine qua non à concretização do desenvolvimento socioespacial (5) de uma metrópole, na medida em que o trabalho tem adquirido uma dimensão social e econômica de grande complexidade no contexto histórico atual (6). Ademais, achamo-nos diante de um objeto de estudo bastante complexo, muito dinâmico e ainda pouco conhecido que possui forte repercussão sobre a vida social.

Em outras pesquisas já apontamos (Castilho, 1999) o crescimento, a expansão, a diversificação e a modernização das atividades de interesse do turismo em Recife; mas privilegiando apenas dois territórios do espaço urbano, bem como os grupos sociais já integrados e aqueles que têm condições efetivas de se integrarem ao sistema capitalista contemporâneo. Posteriormente, Hazin, Oliveira e Medeiros (2000) dizem que há uma forte diferença entre o real e o ideal, ou seja, se por um lado as atividades em questão conhecem expressivo crescimento, por outro, não conseguem gerar empregos permanentes suficientes e de qualidade para a sociedade local.

Analisando a situação dos trabalhadores na rede hoteleira local, as autoras supramencionadas chegam às conclusões que os empregos ali existentes são mal remunerados, que os trabalhadores possuem baixo índice de escolaridade/qualificação; além do que há uma situação dada de insatisfação e, portanto, de alta rotatividade no emprego em hotéis e pensões; desafiando-nos a refletir sobre a qualidade não somente dos serviços ofertados aos turistas como também, implicitamente, acerca das condições no/do emprego urbano contemporâneo.

Como já mencionamos na seção anterior, há, em Recife, dentre tantas outras, duas propostas de ações voltadas para a integração de indivíduos ao mercado de trabalho urbano: uma já em implantação e outra em fase de implantação. No caso do PCS, programa do Governo Federal de caráter eminentemente compensatório, possui como objetivo a capacitação de jovens procedentes prioritariamente de bairros pobres da cidade para o desenvolvimento de uma atividade remunerada, contribuindo para o fortalecimento institucional e operacional das organizações da sociedade civil. Na prática, entretanto, vemos que há uma preocupação apenas com a realização de cursos e seminários visando o aprimoramento de funções de coordenação ou gerência de projetos sociais, a exemplo dos cursos de gestores sociais e planejamento e gestão de microempreendimentos; o que não concretiza uma efetiva mobilidade socioespacial e, ao mesmo tempo, desarticula os movimentos sociais.

Portanto, o seu verdadeiro sentido acaba sendo o de dar mais uma vez uma solução simplista à questão da formação do trabalhador-cidadão, desviando as atenções para o problema da ineficácia do papel do Estado de promotor de um Estado social garantidor por exemplo de uma educação plena e integradora. Na Região Metropolitana do Recife/RMR o PCS tem o seu início (1998) com a aprovação de 124 projetos sobre um total de 634 apresentados pela sociedade.

De acordo com o relatório final, o ano de 1999 foi considerado, pelo grupo que coordena o programa em nível nacional, como um ano fundamental em relação ao anterior, em função do número de projetos e de associações financiados pelas instituições envolvidas, bem como do contingente de alunos que foram capacitados. Contudo, há uma forte distância entre as dimensões quantitativa, que respalda o referido programa, e a qualitativa, que mostra o seu verdadeiro papel na dinâmica social (entre o real e o ideal). Cabe então indagar para que e para quem serve essa capacitação?

Os cursos que foram oferecidos, neste período, incluem-se nas áreas de construção civil, informática, artesanato, turismo/hotelaria e alimentação entre outros. Já conseguimos, numa pesquisa recente, entrevistar 15 pessoas (7) que os freqüentaram; os resultados desta entrevista não têm sido muito animadores: desse total apenas 04 pessoas conseguiram inserir-se em empresas ligadas aos setores de turismo/hotelaria e comercial, exercendo funções de digitadores (02), barman (01), recepcionista de hotel (01), porém sob padrões temporários e, muitas vezes, precários de trabalho. O restante (11) continua sem nenhum emprego formal desde 1999, quando finalizaram o seu curso de capacitação, continuando a exercer pequenas atividades informais para se manterem como citadinos.

Dentre aqueles que coseguiram integrar-se ao circuito formal da economia urbana local, nenhum dos entrevistados acham-se satisfeitos, pois que:

O Governo Federal, através do PCS só nos ensinou um ofício para conseguir um lugarzinho numa loja, num hotel, restaurante ou escritório. Continuamos ganhando pouco [dois salários mínimos no caso] e sem condições de termos uma promoção porque só aprendemos a fazer uma tarefa [barman].

Antes eu ganhava muito mais no que fazia [não quis revelar a profissão anterior] do que ganho agora. Só aprendi a fazer uma tarefa; fora isso [digitador] não sei fazer mais nada.

Aqueles que ainda não conseguiram, desde 1999, um trabalho exercem ocupações informais. Estes, portanto, não estão nada satisfeitos com a sua situação:

Não adiantou fazer curso nenhum, porque não consegui nada certo; faço um bico aqui, outro ali e não sei se terei alguma coisa para comer amanhã. Foi muita promessa que fizeram para nós, mas na realidade não saí da situação em que me encontrava quando fiz o curso oferecido pelo governo. O governo também não é tão culpado assim, sabe? Eu estudei em colégio público.

Programa Comunidade Solidária? O que é isto? Nada consegui depois que fiz o meu curso de digitador. Foi só promessa do governo. Além de tudo, não tenho o mesmo preparo que outros colegas meus tinham; sabiam ler melhor do que eu, sabiam fazer contas e até tinha um que sabia falar inglês.

Apesar de não ter conseguido nada até agora, acho que futuramente conseguirei alguma coisa, pois cada vez mais o comércio, o turismo e outros negócios estão crescendo na nossa cidade, não é?

De qualquer modo, o Estado tenta, como argumenta Dejours (2000), fazer com que os jovens acabem aceitando as tarefas polivalentes e mesmo a situação perversa da economia contemporânea sem regatear. Ademais, continua o autor (Ibidem, p.52), dizendo que o

medo [de não conseguir integrar-se à economia urbana, neste caso] é permanente e gera condutas de obediência e até de submissão. Quebra a reciprocidade entre os trabalhadores, desliga o sujeito do sofrimento do outro, que também padece, no entanto, a mesma situação.

Situação que simultaneamente reforça a fábula da globalização, descrita por Santos (2000), impedindo propostas alternativas que mostrem também e ao mesmo tempo a sua perversidade e as suas possibilidades no sentido da construção de uma cidade mais justa.

Em princípio, parece-nos que o discurso é mais forte do que a realidade, evidenciando que as verdadeiras intenções do Governo Federal consistem em criar um discurso para atenuar a flexibilidade exacerbada, a precarização e o agravamento da seletividade no mercado de trabalho urbano. Os capitais material e sociocultural continuam desempenhando papel fundamental nesse processo de qualificação de pessoas, chegando mesmo, na sua ausência, a limitar o acesso a um desses cursos, na medida em que, para se conseguir uma vaga num deles, os candidatos têm de submeterem-se a testes de admissão, notadamente em razão da demanda que cada vez se torna maior.

Na ausência desses capitais, fica fácil também fazer valer mais uma proposta tênue e fugaz que, sem discernimento do seu verdadeiro sentido, em vez de qualificar pessoas para se tornarem microempreendedores e/ou trabalhadores efetivos, acabam oferecendo mais um paliativo aos deserdados

Conceptualmente hablando, la microempresa no debe ser confundida com un tipo singular de unidad económica que se denominó en su momento la ‘organización económica popular’, es decir aquélla cuya función era el simple ejercicio de actividades de subsistencia de períodos anteriores. La diferencia fundamental es que la microempresa [e aqui acrescentamos o trabalho], pretende afirmarse como proyecto económico viable y que la actividad de subsistencia funda su razón de ser en consideraciones más bien de índole coyuntural. Si la primera se apoya en criterios crecientes de racionalidad económica, la Segunda integra criterios de gestión válidos para la satisfacción de necessidades inmediatas de segmentos de la población. (Baeza & Rojas, 1996, p.80)

O alvo dessas ações está nos jovens desocupados e sem qualificação pois que, como diz a maioria dos responsáveis pelo PCS, jovens ocupados não ficam nas ruas fazendo arruaças; o que fica mais patente em contexto de agravamento da violência urbana. Por isso há também uma necessidade do Estado de fazer-se presente em lugares pobres, espacializando as suas Organizações Capacitadoras/OC em parceria com a sociedade civil. Num primeiro cartograma que estamos elaborando, vê-se que as OC estão presentes nos lugares dos pobres (Centros Sociais Urbanos, Conselhos de Moradores, Sindicatos, Igrejas, etc.) obedecendo ao critério da proximidade geográfica e/ou alhures, obedecendo ao critério da centralidade. Para muitos indivíduos, este último critério ainda apresenta dificuldades quanto ao acesso dos seus freqüentadores dado que as pessoas que moram em bairros mais distantes com relação àqueles do centro – e não são poucas – não possuem todos os dias condições materiais para se deslocarem até às OC.

Analisando a localização de muitas das iniciativas atreladas a esse programa, nota-se o quanto o espaço local é importante. No seminário sobre a microempresa popular urbana e suas relações no desenvolvimento local (Medeiros e Silva, 2001, p.143), chega-se a assumir que

O espaço local é por excelência o lugar de expressão da vida, onde se gesta a solidariedade, fruto da convivência humana cotidiana dos vizinhos, da comunidade e da proximidade territorial. Nas grandes metrópoles estas expressões são descaracterizadas. A vida das pessoas no espaço local cria redes e tecidos sociais e econômicos que se imbricam e se interrelacionam, daí porque não se pode mais pensar as estruturas e os modelos de forma vertical e burocrática.

Eles também admitem o espaço local como uma dimensão que possui ao mesmo tempo a possibilidade da mudança social, na medida em que afirmam que

A realidade exige um repensar mais ousado, que horizontalize os processos decisórios e de controle social. Quanto maior o controle social das políticas e dos programas pelos cidadãos, maior a transparência da informação e maior a possibilidade de resultados de impacto. Dessa forma, o espaço local reúne condições para que se possa construir uma gestão democrática com controle público. O Estado pode passar a ter também uma governabilidade pública, menos estatal e menos privada. Nesse espaço, pode-se exercer o ideário de um Estado mais próximo da sociedade.

Mas o Governo Federal, mediante o Programa Comunidade Solidária, está utilizando o espaço apenas para se fazer presente garantindo a permanência do seu projeto de sociedade. Os cursos são pontuais e intermitentes conforme a lógica da flexibilização, oferecendo soluções tópicas e assistencialistas para fins político-eleitoreiros. Por outro lado, em entrevistas com alguns dos coordenadores dos cursos financiados por esse programa, nota-se que muitas vezes os responsáveis pelos cursos acabam, nos seus lugares de ação, passando para os alunos uma sensação de satisfação para com o programa.

Daí a necessidade de formular e levar propostas alternativas de promoção da efetiva integração socioespacial dos pobres, nos seus próprios lugares de existência, estimulando-os à participação efetiva nas decisões que lhes concernem. Sem essa proximidade geográfica não somente quantitativa mas qualitativa, não se pode democratizar o acesso à vida urbana.

Com base em experiências territoriais (8), continua-se a pensar em alternativas ao PCS. No que tange à proposta do CPPTR, ainda em processo de discussão e implantação intermediado pela equipe do prefeito João Paulo/PT, podemos avançar que a criação desses centros pretende, articulado com outros projetos de inclusão social e desenvolvimento da auto-estima dos cidadãos, construir alternativas concretas de geração de trabalho e renda; promovendo o desenvolvimento integral através do aprendizado ativo e compartilhado, com base na cultura como ferramenta de integração do conhecimento, do trabalho e da cidadania. (Recife, s/d)

Os cursos que esses centros pretendem oferecer, também acompanhando a dinâmica econômica contemporânea, são aqueles ligados às áreas de: informática básica, manutenção de microcomputador, manutenção de eletrodomésticos, gestão empreendedora, pintor imobiliário, assentador de forro de gesso, montador de parede de gesso, aplicador de revestimento de gesso, bombeiro, eletricista instalador predial, políticas públicas e desenvolvimento social e serigrafia.

Os instrumentos estratégicos do CPPTR são os seguintes: (a) observatório da situação de emprego, geração de trabalho e renda e formação profissional, constituindo um espaço de pesquisa, investigação e discussão sobre emprego e desemprego, um ambiente de estudos socioeconômicos para propor políticas públicas de trabalho e renda e refletindo sobre novas possibilidades; (b) laboratório de socialização e sistematização de metodologia e desenvolvimento tecnológico, como instrumento de sistematização, elaboração e publicação de metodologias voltadas para uma nova prática educativa, propondo-se também ser um espaço de incubação de novos empreendimentos e desenvolvendo tecnologias adequadas às demandas da economia local. (Recife, s/d)

No processo de discussão da proposta para a criação dos centros públicos, discute-se outras experiências com base em posturas teórico-metodológicas sensíveis à articulação da questão do trabalho com a da cidadania. Dentre tais experiências, destacam-se aquelas que deram/estão dando certo em outros lugares, na Europa e no Rio Grande do Sul. Na Europa, em países como França, Itália, Alemanha e Reino Unido, argumenta Homs (2001) os Observatórios Institucionais do Mercado de Trabalho, alguns dos quais criados há mais de trinta anos, possuíam como objetivo principal o melhor conhecimento dos mecanismos do mercado de trabalho para conseguir uma melhor planificação dos fluxos e a adaptação dos recursos humanos às necessidades de produção da economia, cumprindo com função de estudo e análise. Na atualidade, a intervenção das administrações públicas no mercado de trabalho se dá no sentido de torná-lo mais transparente para que os atores possam tomar as decisões de modo mais apropriado aos seus interesses.

Além disso, esses observatórios, continua Homs, têm-se constituído em redes de informações, conhecimentos e análises do mercado de trabalho, aproveitando-se das sinergias dos atores; possuem, em outras palavras, uma função de antecipação das tendências de evolução do mercado de trabalho, coordenando os fluxos de informação a fim de facilitar a tomada de decisões pela própria sociedade.

Nas Diretrizes para a Proposta Metodológica do Observatório do Trabalho do governo do estado do Rio Grande do Sul (Rio Grande do Sul, s/d), numa perspectiva semelhante à proposta anterior, destacamos: o mapeamento e a identificação dos problemas; a compreensão do problema; a geração de um arquivo de acompanhamento, por cada problema, permitindo a sofisticação da sua análise; a estruturação de um cadastro de variáveis e fontes; o estabelecimento de parcerias com as entidades produtoras de informação, com recortes setorial, regional e temático; o envolvimento dos técnicos que assessoram os diferentes atores sociais na produção do estudo; o fato de propiciar espaço à proposição de alternativas ao enfrentamento do problema, bem como o conhecimento de outras experiências; e fundamentar-se no conhecimento acumulado pelos especialistas e tendo em vista o encurtamento dos caminhos para o atendimento dos problemas.

Esta proposta, contrapõe-se portanto à idéia tradicional de diagnóstico (monólogo construído por alguém que está afastado da situação, encerrado na sua própria visão de mundo que o rodeia), propondo a realização de uma apreciação situacional, ou seja, o estabelecimento de um diálogo entre um ator e os outros atores, cujo relato um dos autores assume de modo inteiramente consciente do texto e do contexto situacional que o torna coabitante de uma realidade conflitiva que admite outros relatos.

Em definitivo, sugere-se um monitoramento, rastreamento dos problemas, sua identificação e lançamento em um sistema de mapeamento de problemas; exploração, explicação mais articulada possível do problema, identificando os elementos que possam apoiar a tomada de decisão; análise, quando se pretende explicitar o campo complexo que envolve a explicação do problema; elaboração da proposta de solução. Contudo esses quatro momentos são, ao mesmo tempo, autônomos em termos de objetivos e métodos e articulados como percurso metodológico de construção da complexidade de um problema buscando tomar decisões e elaborar conscientemente propostas de ação no sentido da mudança social.

Esses elementos acham-se portanto visivelmente presentes nas discussões e nos debates com vistas à elaboração do projeto para a criação dos Centros Públicos de Promoção do Trabalho e Renda, indicando portanto uma via alternativa ao programa compensatório do Governo Federal.

É portanto colocando a formação da cidadania acima de tudo que se vislumbra a possibilidade do desenvolvimento socioespacial, visto que este é um processo muito mais complexo e abrangente do que simples e setorial. Nesse sentido, diz Cocco (2000) que, nos nossos dias, devido às transformações no mundo do trabalho, não é mais a inserção produtiva que legitima a cidadania, mas esta última que torna possível a inserção produtiva; entendendo esta inserção produtiva não somente como aquela que se refere ao setor produtivo da economia urbana, mas também àquela das atividades ligadas aos serviços e à própria vida na cidade.

Em face do exposto, caberia justificar que se faz necessário, quando se estuda o papel do PCS no processo de produção do espaço que era o foco central inicial da nossa pesquisa, considerar também, como contraponto, o papel também do CPPTR, em processo de construção mediado pelo Partido dos Trabalhadores. Isto porque esta proposta poderá constituir uma alternativa à gestão municipal de políticas urbanas onde a questão do trabalho também deve ser efetivamente pensada.

É no diálogo com os atores (e/ou agentes?) socioespaciais envolvidos com a criação desses centros que vislumbramos a possibilidade de construirmos, juntos com outros setores da sociedade, táticas para desmontar o discurso único neoliberal, promovendo o real desenvolvimento socioespacial. Isso sem descuidarmos dos problemas que o processo de construção desses centros públicos, pelo fato de não ser linear mas dialético, pode engendrar, em razão de especificidades locais tais como: tensões/conflitos existentes no interior da máquina político-administrativa do Estado (resistências à mudança efetiva), divergências entre o setor público e o terceiro setor, preocupação predominantemente com a reeleição e sobretudo a ausência de uma participação efetiva dos grupos sociais para os quais esta alternativa é pensada.

Estaremos, dessa forma, cumprindo com o nosso papel de geógrafo (urbano) num mundo em mutação, o qual não pode mais se restringir, como argumenta Smith (1995), à coleta e à coordenação de grandes quantidades de dados detalhando-os e apresentando-os sistematicamente; mas também, e concomitantemente dizemos nós, considerando como as cidades deveriam ser organizadas, como os problemas urbanos são definidos e qual a forma a ser adotada pelas políticas urbanas. Desse modo, buscamos recuperar a dimensão ativa da Geografia, isto é, aquela que pretende contribuir para, de maneira mais atuante, apontar caminhos à mudança social.
 

Notas

(1) Este grupo é constituído pelo conjunto de indivíduos que, ganhando até dois salários mínimos mensalmente, não dispõem de serviços sociais de qualidade (saúde, educação, formação profissional, segurança, etc.) e que residem nos bairros mais carentes e precários do ponto de vista da prestação daqueles serviços e do funcionamento da infra-estrutura urbana básica: saneamento, pavimentação de ruas, habitação.

(2) Cabe distinguir os termos trabalho e ocupação. Enquanto o primeiro refere-se a uma ocupação permanente ou temporária que se exerce mediante contratação formal, carteira assinada e, às vezes, direitos sociais garantidos; a ocupação não requer tanto rigor podendo muitas vezes ser exercida mediante acordos verbais sem nenhum vínculo formal empregador-empregado.

(3) De acordo com pesquisa da PNAD/IBGE, em 1990, 48,9 por cento da população da Região Metropolitana do Recife/RMR é considerada pobre, achando-se portanto inserida na economia urbana local pelo setor informal.

(4) Também temos que esclarecer o uso aqui dos termos inserção e integração. O primeiro refere-se à mera entrada dos indivíduos no mercado de trabalho, sem nenhum vínculo com o mesmo, mediante a qual o máximo que conseguem é garantir a manutenção da sua própria pessoa e da sua família; ao passo que a integração vai além da inserção no mercado de trabalho, havendo mesmo uma situação de inclusão do indivíduo. É mediante a sua integração que os indivíduos podem almejar a sua mobilidade socioespacial (Castilho, 1999). Porém, há várias formas de integração, em razão do tipo e do grau dos capitais material e sociocultural de cada trabalhador.

(5) Concordando com M. J. L. de Souza, compreendemos o desenvolvimento socioespacial [...] como um processo de superação de problemas e conquista de condições (culturais, técnico-tecnológicas, político-institucionais, espaço-temporais) propiciadoras de maior felicidade individual e coletiva [exigindo] a consideração simultânea das diversas dimensões constituintes das relações sociais (cultura, economia, política) e, também, do espaço natural e social. É evidente que, desse ângulo de abordagem, o crescimento econômico e o progresso técnico são totalmente insuficientes como parâmetros definitórios (podendo, até mesmo, ser antes parte do problema que da solução: pense-se, por exemplo, no crescimento que se dá à custa de taxas ascendentes de degradação ambiental ou no progresso técnico que se faz acompanhar por desemprego tecnológico e exclusão). (Souza, 2000, p.18-19)

(6) O trabalho enfrenta uma crise sem par, desde o início do intervencionismo estatal nos anos 30; o que é consolidado pelo processo de destruição gradual do estatuto do trabalho. O que fica patente, argumenta Pochmann (1997), é que esse processo contribui [...] mais para provocar a precarização das condições e relações de trabalho nas ocupações já existentes do que para a geração [como diz hoje o Governo Federal] de empregos regulares. [...] há um abandono das políticas ativas de regulação do mercado de trabalho e de fortalecimento da democratização das relações de trabalho. O autor também aponta outros problemas daí decorrentes: aumentos da jornada total de trabalho através do maior uso de horas extras, de ocupações sem registro e por conta própria que operam em geral com tempo de trabalho muito intensivo; ausência dos sindicatos das decisões empresariais cruciais sobre o padrão de emprego e uso do trabalho (extensão da jornada de trabalho aos domingos no comércio varejista), sobre os contratos de trabalhadores com custos reduzidos e à margem do estatuto do trabalho (cooperativas de trabalho); e a maior autonomia de patrões na contratação de trabalhadores estimulada pela flexibilização do/no mercado de trabalho. Daí a necessidade de promover um processo de democratização no sistema de relações de trabalho no Brasil, o que constitui um passo decisivo para o desenvolvimento socioespacial.

(7) A nossa pesquisa de campo acha-se ainda na sua fase inicial, o que explica o fato de nos basearmos apenas em 15 entrevistas as quais só abrangem os cursos de informática e hotelaria/turismo; os cursos ligados aos setores que foram apontados como prioridades nos Planos Estratégicos das gestões municipais anteriores a 2001.

(8) Os primeiros Centros Públicos de Promoção do Trabalho e Renda serão criados/implantados em Tejipió e Casa Amarela, dois bairros com os seus respectivos entornos situados à proximidade dos lugares onde há uma forte concentração de grupos sociais pobres e jovens.
 

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Ficha bibliográfica

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