IX Coloquio Internacional de Geocrítica

LOS PROBLEMAS DEL MUNDO ACTUAL.
SOLUCIONES Y ALTERNATIVAS DESDE LA GEOGRAFÍA
Y LAS CIENCIAS SOCIALES

Porto Alegre, 28 de mayo  - 1 de junio de 2007.
Universidade Federal do Rio Grande do Sul

O PROCESSO DE ESTRANGEIRIZAÇÃO NO ENSINO DE GEOGRAFIA[1]

 

Ângela Massumi Katuta

Universidade Estadual de Londrina/PR - Brasil

angela.katuta@gmail.com

 


 

O processo de estrangeirização no ensino de Geografia (Resumo):

 

Parte-se do pressuposto de que a geografia ensinada nos diferentes níveis de escolaridade deve auxiliar os discentes no processo de compreensão das ordenações espaciais dos fenômenos, e do fato de que estes são apreendidos e sistematizados por meio das linguagens. A não focalização destes pressupostos realiza o processo que denominei de “estrangeirização discente”. Por isso, discuto a noção de estrangeirização em contraponto com o conceito de alienação e demonstro que a primeira coloca em relevo a relação epistêmica do sujeito com os lugares que se realiza por meio das linguagens. O conceito de alienação não enfatiza a relação de estranhamento do sujeito com os lugares e as linguagens – primeiro momento do conhecimento, característica marcante de estrangeiros –, ao passo que a noção de estrangeirização o faz, o que a torna relevante na discussão da geografia ensinada.

 

Palavras-chave: ensino de geografia, compreensão das ordenações espaciais, estrangeirização discente, alienação, relação dos sujeitos com os lugares.

 


 

The foreignization process in geography teaching (Abstract):

 

I start from the assumptions that geography taught at the various levels of schooling should help students comprehend the spatial orders of fenomena and that such are learnt and systematized by means of languages. The lack in focus on both assumptions renders a process I have called “learners’ foreignization”. Hence, I discuss the idea of foreignization in confrontation with the concept of alienation and show that the former highlights the epistemic relation of the subject with places by means of languages. Alienation does not emphazise the relation of the subject’s estrangement with regard to places and languages – the first moment of knowledge, a remarcable characteristic of foreigners -, while foreignization does, which makes it relevant to the discussion of the geography taught in schools.

 

Keywords: geography teaching, comprehension of spatial orders, learner’s foreignization, alienation, subjects’ relation to places.

 


 

O ensino de geografia em todos os níveis da educação formal - séries iniciais a ensino superior - tem como objetivo precípuo a elaboração e disseminação dos conhecimentos sobre a ordenação espacial dos fenômenos. Esta última somente passível de ser apreendida e compreendida por meio do conjunto dos códigos ou linguagens que são social e espaço-temporalmente construídos pelos diferentes grupos humanos, em suas relações com o meio, através do trabalho.

 

Inúmeras são as linguagens ou códigos elaborados em distintas espaço-temporalidades que permitem apreender, mapear e compreender as geografias dos diferentes grupos sociais. Estas, resultantes da relação Homem X Meio norteada pelo trabalho cujos desdobramentos podem ser verificados em toda a produção humana, inclusive no conjunto de linguagens criadas pelos mais diferentes grupos sociais. Dentre o amplo rol das linguagens existem algumas que, em função de sua especificidade, são imprescindíveis às análises das ordenações espaciais do fenomênico. Trata-se das linguagens que exprimem a geograficidade[2] dos objetos por meio de imagens.

 

Em outro trabalho defendo que as imagens constituem-se em estruturas cognitivas fundamentais para a construção do conhecimento humano, portanto, para o conjunto de ações humanas no mundo. Não por acaso o ato de cartografar imagens do espaço, associadas ao pensamento e imaginação espaciais, parece remontar ao surgimento do Homo Sapiens sapiens, que são os seres humanos anatomicamente modernos. Autores como Szamosi (1988) afirmam que os neandertalenses – Homo Sapiens ou pré-sapiens – já elaboravam imagens de espaço, possuindo pensamento e imaginação espaciais em função da presença de rudimentos de arte e vestígios de crença em uma vida póstuma. Tais elementos evidenciam a construção da idéia da existência de um outro local ou mundo. Contudo, até o momento, não há indícios de que a atitude de cartografar era um habitus[3] dos neandertalenses, ao contrário dos primeiros seres humanos anatomicamente modernos do Paleolítico superior, cujas expressões artísticas – gráficas, plásticas, cartográficas e outras – apresentavam a visão que esses últimos tinham da realidade do seu ambiente, suas espacialidades, geografias e sua consciência do mundo[4].  Neste sentido,

 

Pode-se afirmar que as primeiras figurações espaciais de que se tem registro remontam aos seres humanos anatomicamente modernos ou à espécie Homo Sapiens sapiens. Ao produzir e, dessa maneira, ordenar suas imagens de espaço, suas figurações espaciais, seus mapas, suas geografias ou outros produtos simbólicos, os seres humanos ordenavam e, ainda hoje, ordenam a si mesmos e aos lugares. Tentam compreender a si e ao Outro, entendido aqui como todo e qualquer conjunto de alteridade, buscando, dessa maneira, dar um sentido à sua vida e, portanto, ao mundo[5]. O mapa, assim como qualquer outra produção cultural, apresenta a percepção que os diferentes grupos humanos possuem de si, dos outros, dos lugares, bem como da sua cosmologia[6] e de sua geografia. (KATUTA, 2004, p. 19-20).

 

Com base no exposto, pode-se afirmar que as linguagens-imagens constituem-se em elementos relevantes no processo de hominização e de construção dos conhecimentos humanos, principalmente aqueles que se referem aos modos de os Homens se organizarem espacialmente no mundo. Isso não significa que outras linguagens não imagéticas são desnecessárias no processo de construção intelectiva humana. Pelo contrário, ao negar a possibilidade de sobreposição das distintas linguagens, visto que cada uma possui sua especificidade, sendo, portanto, insubstituíveis, acabamos por assumir que cada uma delas amplifica a capacidade humana de apreensão e compreensão dos fenômenos, portanto, de intervenção no real.

 

Dessa maneira, as linguagens-imagens aliadas a outras não imagéticas constituem-se em elementos essenciais na construção da racionalidade humana, seja ela mítica, religiosa, científica ou de senso comum. Em outras palavras, a construção das diversas racionalidades humanas resultou da ação das pessoas no mundo que, necessariamente, exigiu a formação sócio-histórica e espacial dos processos comunicativos, portanto, das linguagens.

 

É neste contexto que defendo a relevância da aprendizagem das mais variadas linguagens no âmbito da educação formal. É impossível qualquer construção intelectiva destituída de linguagens, o próprio processo de ensino e aprendizagem tem um forte componente comunicativo. Contudo, é sempre importante lembrar que esta aprendizagem não se realiza em si e per si, como se as linguagens se constituíssem em conteúdo específico do ensino da geografia. Trata-se de trabalhar concomitantemente o conjunto de conceitos, os conhecimentos geográficos e as linguagens a favor da construção da habilidade de saber pensar o espaço para em sua ordenação intervir (LACOSTE, 1989).   

 

No caso específico da construção dos conhecimentos geográficos, há que assumir a relevância das linguagens-imagens e a necessidade de ampliação do repertório lingüístico e sintático dos geógrafos no processo de apreensão e compreensão das paisagens bem como da relação dos diferentes grupos humanos entre si no meio em que vivem. Trata-se de ampliar o rol de coordenadas semióticas que são, na perspectiva de Deleuze e Guattari (2002), o amplo conjunto de sentidos e significados que os grupos humanos constroem socialmente em torno de índices que acabam, no conjunto total das relações sociais, por se transformarem em sinais.

 

A ampliação das coordenadas semióticas permite a construção identitária do Outro ou dos grupos sociais, bem como das espacialidades criadas pelo(s) mesmo(s). Pode permitir a compreensão do que denominamos de real a partir de múltiplas perspectivas societárias. Não por acaso, é a partir do momento em que apreendemos as linguagens de grupos sociais distintos do nosso, seus sistemas de atribuição de significados às coisas, portanto, também parte de seus valores e cosmologia, que melhor compreendemos os elementos norteadores de suas ordenações e relações espaciais, suas racionalidades, geografias e visões de mundo.

 

Na história da ciência ocidental os sucessivos deslocamentos territoriais que ocorreram por ocasião das grandes navegações – ampliação da geograficidade ocidental – desembocaram na ampliação do universo lingüístico e cognitivo do Ocidente que, aproximadamente duzentos anos depois, culminou com a revolução científica do século XVII. Assim, em geral, deslocamentos territoriais ampliam não apenas nosso horizonte geográfico mas também auxiliam em nossa construção intelectiva, ou seja, epistemológica e lingüística.   

 

Reside no aspecto ora exposto a relação umbilical entre as linguagens e a compreensão das ordenações espaciais. Isso não significa dizer que a apreensão das linguagens se desdobra automaticamente na compreensão das ordenações espaciais, contudo, esta última não se realiza sem linguagens. Não por acaso, a partir do deslocamento territorial dos europeus pelo mundo – espraiamento do capital –, forja-se a criação de um conjunto de conceitos, saberes, modos de classificação, linguagens e distintas formas de uso das mesmas. Tal fato pode ser explicado porque, distintamente de outros mamíferos, desenvolvemos uma grande capacidade para a criação de símbolos, ou seja, diferentemente dos outros animais, elaboramos um amplo conjunto de coordenadas semióticas na ação com os objetos que passam à existência em nossa relação com os mesmos por meio do trabalho[7]. Este mundo simbólico, ordenado por noções de espaço e tempo também simbólicas resulta de nossa identidade triádica: somos, ao mesmo tempo, seres psicológicos (indivíduo), sociais (sociedade) e biológicos (corpo).

 

Pode-se afirmar que o ensino da geografia, as ordenações espaciais e as linguagens nutrem uma íntima relação entre si. Não é possível compreender as formas espaciais dos grupos sociais no mundo sem o uso de linguagens que permitam o estabelecimento de uma teia de racionalidade sobre e entre os lugares: conhecidos e aqueles desconhecidos, que compõem o território de um grupo e aqueles de outros grupos, já apropriados e aqueles em vias de apropriação. Em outras palavras, a compreensão da própria geograficidade e daquelas pertencentes aos Outros somente pode se realizar por meio das linguagens que, neste caso, devem ser ensinadas e apreendidas na escola. Cumpre salientar aqui que não se trata de uma aprendizagem das linguagens em si ou per si, trata-se da inserção de grades de linguagens – termo usado por Lefebvre (1991) – a fim de compreender as grades dos lugares para que o sujeito cognoscente possa construir significados sobre as espacialidades diferenciais. Um ensino de geografia que impeça a realização deste movimento intelectivo acaba por promover um processo ao qual denominei de estrangeirização discente, que abordo no próximo item. 

 

O processo de estrangeirização discente no ensino de geografia: a explicitação de uma noção

 

Para a elaboração da noção ou idéia sobre o processo de estrangeirização utilizei o romance de estréia do escritor, dramaturgo e filósofo Albert Camus (1997), escrito em 1957 e intitulado O Estrangeiro. Nele, o autor narra o cotidiano de um homem comum do século XX, ao qual denomina Mersault. A vida do personagem criado por Camus situa-se pendularmente entre o absurdo de alguns aspectos das relações sociais historicamente engendradas que atenta contra as liberdades não colocadas nos moldes ou padrões da sociedade em que vive e a relativa liberdade individual de ação. O protagonista durante seu julgamento realizado em função de um assassinato que cometeu, acaba por avaliar como irrelevantes algumas normas sociais de seu cotidiano, optando, deliberadamente, pela pena capital.

 

Mersault vive em um mundo comum, com pessoas comuns que acabam julgando-o como culpado por um crime que cometeu em uma situação banal[8]. Boa parte do romance tem como foco de debate o comportamento do protagonista, entendido como anormal ou não padronizado segundo o entendimento das testemunhas do processo. Tal fato lembra os processos da Santa Inquisição estudados pelo historiador Carlo Ginzburg ao longo de sua vida acadêmica e entendidos por esse como atos de eliminação de formas de vida e entendimentos de mundo e, portanto, de geograficidades, contrárias àquelas disseminadas pelos setores hegemônicos da sociedade.

 

O coletivo acaba se contrapondo à opção de Mersault pela subjetividade-liberdade que torna seu viver e ser diferenciados e, por meio de situações de estranhamento, Camus evidencia a negação do outro ou das diferenças freqüentemente tornadas inconciliáveis entre os seres humanos sob a égide do modo de produção capitalista, cuja realização supõe processos de homogeneização, repetição e padronização, portanto, ocultamento e eliminação das diferenças e dos diferentes modos de os seres humanos ser e estarem no mundo.

 

O autor, neste livro, denuncia a homogeneização dos habitus – “[...] sistema dos esquemas interiorizados que permitem engendrar todos os pensamentos, percepções e as ações característicos de uma cultura e somente esses.” (BOURDIEU, 1997, p. 347) −, e o próprio processo civilizador característico do Ocidente moderno que, sob a superfície de um discurso pretensamente democrático[9], oculta o autoritarismo e o desrespeito pela diferença e, conseqüentemente, pelo Outro e suas geograficidades, como foi o que ocorreu com inúmeros povos dizimados no processo de colonização da América pelos europeus. É importante salientar que o habitus, enquanto conjunto de práticas humanas, também se refere à organização do território ou ao modo como os seres humanos realizam sua coabitação nos lugares; portanto, interfere nas geograficidades engendradas pelos seres humanos e, ao mesmo tempo, sofre interferências das mesmas. 

 

Santos (2000, p. 137) nos auxilia a entender a problemática colocada por Camus (1997), ao abordar o problema da descontextualização espaço-temporal da identidade na modernidade, tornada hegemônica, inicialmente na Europa, espraiando-se posteriormente para o restante do mundo, com graves conseqüências, dentre as quais cabe ressaltar o genocídio e o etnocídio enquanto materialização da negação do Outro, de suas geograficidades e a afirmação da metafísica[10] inerente a toda sociedade absolutista e dominadora, que auxilia no processo de espraiamento de formas de ser e estar no mundo dos grupos sociais hegemônicos.

 

Ao polarizar e disseminar a idéia de indivíduo-Estado como a única legítima e verdadeira, o processo civilizador encetado acabou por eliminar, inviabilizar ou tornou inexeqüível a construção de outras identidades, entendimentos de mundo e geograficidades: “[...] Na tensão entre subjectividade individual e subjectividade coletiva, a prioridade é dada à subjectividade individual; na tensão entre subjectividade contextual e subjectividade abstracta, a prioridade é dada à subjectividade abstracta. [...]”. (SANTOS, 2000, p. 137). Essa tensão, encarnada por Mersault e a sociedade em que vive, foi o foco ou a matéria-prima do romance de Camus (1997) por meio do qual acabou por denunciar as opções societárias das classes hegemônicas do Ocidente em sua face dominadora. São destinados à prisão ou morte aqueles que não se prenderam ao projeto societário estabelecido, estão livres os sujeitos encarcerados ao projeto societário e espacialidades hegemônicas[11].

 

Camus (1997), n’O Estrangeiro, expõe com sensibilidade e dramaticidade o cerne das desilusões, desentendimentos e desatinos do coletivo no qual se insere Mersault: a construção, assunção, reprodução e disseminação de subjetividades individualistas e abstraídas de suas espaço-temporalidades que não se enxergam no Outro, por não terem aprendido a olhar-se, não-saber este produzido por sociedades absolutistas e autoritárias como é a erigida sob o modo capitalista de produção.

 

Para Lévi-Strauss (apud Bauman, 2001, p. 118), duas são as estratégias básicas usadas pelos ocidentais no momento em que se vêem na obrigatoriedade de enfrentar a alteridade e, portanto, o Outro:  

 

-  a primeira delas é a antropoêmica, que consiste em “[...] ‘vomitar’, cuspir os outros vistos como incuravelmente estranhos e alheios: impedir o contato físico, o diálogo, a interação social e todas as variedades de commercium, comensalidade e connubium.” (BAUMAN, 2001, p. 118).  Esta estratégia está voltada para a total negação do Outro, seu exílio ou aniquilamento, e as ações derivadas desta vão desde o encarceramento, deportação e assassinato até formas mais “leves” de negações, igualmente violentas, como a defesa da legitimidade do direito ao acesso diferenciado aos espaços sociais.

 

- a segunda estratégia usada no enfrentamento da alteridade é denominada de antropofágica e visa ao total aniquilamento da alteridade do Outro por meio da assimilação forçada – cruzadas culturais, guerras declaradas contra costumes locais, calendários, cultos, dialetos e o estabelecimento e disseminação de preconceitos e superstições, aculturação-culturação por meio da educação formal.       

 

A estratégia antropoêmica foi a usada pelo coletivo em relação à alteridade de Mersault. Aniquilar o Outro por meio da pena de morte seguiu-se à conscientização da diferença e da impossibilidade do diálogo. A metáfora do espelhamento de Lewis Carrol (2002), presente em Através do Espelho, pode então ser evocada para colocarmos o problema do olhar invertido da sociedade na qual vive o protagonista de Camus (1997). Nas situações de espelhamento, ao longo do romance, o eu visto no Outro, acaba por causar repugnância, desalento e uma série de sensações a serem extirpadas por meio da extinção ou assassinato do outro e, portanto, da “alteridade”.  

 

Mersault, o homem comum, ao revelar e assumir seus pensamentos e sentimentos e, portanto, negar-se à dissimulação e assim à homogeneização, torna-se O Estrangeiro em sua própria terra e junto ao seu próprio povo. É condenado à pena de morte por um conjunto de pessoas cujo mundo não é o dos sentimentos e gestos autônomos − alienação da subjetividade coletiva contextual −, mas aqueles pertencentes ao rol dos habitus[12] previamente estabelecidos pelo, para e no contexto social do Estado Nação. Conceito este inventado, segundo Santos (2000, p. 142), tanto para legitimar a dominação de uma etnia sobre as demais quanto para criar um denominador sócio-cultural comum com mínima diversidade e máxima homogeneidade, funcionando assim como base sócio cultural adequada à obrigação política geral e universal exigida pelo Estado, inicialmente na Europa, espraiando-se posteriormente para outros territórios juntamente com o modo capitalista de produção.

 

Os que vivem no mundo tentando desempenhar os papéis que a sociedade hegemônica a eles imputou, também vigiam e condenam pessoas que rompem com as regras estabelecidas, como foi o caso de Mersault, que encontra a paz quando aprende ou descobre que, nas palavras de Arthur Dapieve, comentarista do livro, Absurdo e Liberdade são faces da mesma moeda. Ao desejar e optar por essa última, o protagonista acaba por negar muitos aspectos absurdos da sociedade em que vive, aceitando assim, a pena capital.

 

A alusão centrada no livro de Camus (1997) O Estrangeiro foi realizada pelo fato de que este me pareceu útil para expressar o que ocorre, em geral, com o aluno nas aulas de geografia do ensino básico como também do superior. Via de regra, o discente se vê obrigado a reproduzir os hábitos discursivos, comportamentais, de pensamento e conhecimento considerados apropriados aos discentes da referida disciplina. Nela, não raro, as geograficidades são abordadas por meio da abstração, de maneira a não explicitar o sujeito enquanto seu produtor, as quais, desde o surgimento dos primeiros hominídeos, se realizam coletivamente. Ao não reconhecer, saber, compreender que a produção das geograficidades e dos próprios seres humanos se realiza coletivamente, as identidades constituídas sob a égide do modo de produção capitalista acabam por serem produzidas em uma perspectiva individualista e abstrata e, portanto, estrangeirizada.  

 

Uma das expressões da problemática discutida é o processo que estou a denominar de estrangeirização discente, que pode ser observado no âmbito da escola formal quando ocorre o estranhamento do aluno em relação às geograficidades abordadas em sala de aula. Estas, em grande parte, são trabalhadas como se fossem constituídas por individualidades abstraídas das relações cotidianas, ou seja, por seres abstratos[13] e atópicos[14]. Dessa maneira o estranhamento não se dissipa, pelo contrário, acaba sendo naturalizado e recrudescendo, o que torna o aluno um estrangeiro em sua própria terra pois o mesmo não consegue, por meio dos instrumentos cognitivos da disciplina de geografia, compreender as geograficidades por ele vivenciadas.

 

O aluno, posto diante de materiais que apresentam as mais diversas geograficidades, como os mapas nas aulas de geografia, via de regra, demonstra que não se reconhece como um dos produtores das ordenações espaciais apresentadas, tornando-se, dessa maneira, O Estrangeiro em sua própria terra. A incompreensão das geograficidades vivenciadas e produzidas pelos sujeitos sociais implica a impossibilidade da constituição de laços de identificação coletivos e contextualizados, propiciando assim a formação de identidades individuais e abstratas dos sujeitos[15], expressão e, ao mesmo tempo, meio de realização dos processos alienadores atuantes nas sociedades capitalistas.  

 

Descrever e desenhar ”o mundo da geografia escolar”, menos instigante que o “mundo das maravilhas” de Alice, personagem de Carroll (2002), constituem-se nas principais atividades cognitivas que os docentes demandam dos alunos[16] na referida disciplina. A efetivação dessas, via de regra, impede a construção da capacidade de apreensão, compreensão e entendimento da ordenação territorial dos fenômenos pelos alunos e, assim, do mundo em que vivem, do outro e de si mesmos. Por isso, identifiquei metaforicamente esses últimos com Mersault, o protagonista do romance de Camus, cuja morte implicou individualmente sua redenção, apesar da prevalência da alienação e violência junto ao coletivo.

 

Por meio da referida disciplina, cria-se um mundo próprio no interior da escola, o “Mundo da Geografia”, como se a existência e cientificidade da geografia ensinada se justificassem naquilo que ela aparentemente tem de mais real, sob a ótica da tradição empirista, no contexto do pensamento científico hegemônico: a descrição descontextualizada, cindida e genérica dos objetos no espaço.

 

A tradição científica moderna tem como fundamento a concepção de cientificidade elaborada no contexto da física newtoniana. A partir da mesma se pensa a natureza como

 

[...] uma máquina matemática enorme e autocontida, consistente de movimentos de matéria no espaço e no tempo, e o homem, com seus propósitos, sentimentos e qualidades secundárias, foi varrido dele como um espectador sem importância e como um efeito semi-real do grande drama matemático exterior. (BURTT, 1991, p. 82).

 

Na perspectiva da concepção científica moderna, a realização de descrições descontextualizadas, cindidas e genéricas faz parte do habitus científico. Na geografia hegemônica ensinada, este habitus se expressa por meio de discursos sobre o relevo, clima, vegetação, embasamento rochoso, sem que se considere o ser humano, o trabalho por ele realizado, suas relações com os outros elementos da natureza e as diversas espacialidades.

 

O ser humano é reduzido a mero espectador[17] do espetáculo geográfico e, quando lançado como objeto de estudo na trama discursiva e cartográfica da geografia hegemônica, transmuta-se em população, força-de-trabalho ou algum fenômeno passível de codificação matemática. Por meio deste procedimento metafísico, a referida geografia[18] cria um mundo “estranho”, diferente daquele em que o aluno vive, processo ao qual denominei de estrangeirização, e que acaba por gerar um forte sentimento de estranhamento do ponto de vista do sujeito cognitivo: o aluno torna-se O Estrangeiro em seu próprio mundo. Contudo, diferentemente de Mersault, não é assassinado; o sistema de ensino realiza seu ritual antropofágico por meio da assimilação forçada, auxiliando a aniquilar a possibilidade de constituição de subjetividades coletivas e contextualizadas, objetivando a subjetividade capitalista.  

 

Em se considerando as respostas ou reações dos alunos nas aulas − apatia, desinteresse, indisciplina para o trabalho a ser realizado em sala de aula −, e porque também não dizer de uma parte significativa de professores, todos esses “estrangeiros no “mundo” da geografia”, a tendência de ampliação do debate em torno e a favor do desaparecimento da disciplina é grande[19].

 

As geograficidades que deveriam ser o foco central dos estudos geográficos se constituem em sistemas complexos, pois o todo não se constitui na mera soma das partes. O que dá identidade ao conjunto dos espaços geográficos não são os elementos que os constituem em si e per si, mas a relação que os seres humanos estabelecem entre si e com os outros elementos da natureza, a fim de prover as suas condições materiais[20] de existência. Branco (1989, p. 212), em seu estudo sobre a dialética da natureza, afirma que:

 

[...] Em qualquer sistema complexo o todo não coincide com a soma das partes. A importância das relações de interacção entre as partes do todo sobrepõe-se à consideração quantitativa dos elementos constitutivos. As propriedades do sistema não são predizíveis a partir do conhecimento das propriedades dos elementos que o constituem nem das leis que regem as suas interacções [...].

 

Por isso, a descrição e mesmo a apresentação cartográfica de cada um dos elementos da natureza – relevo, clima, vegetação, hidrografia, recursos naturais, população entre outros –, não equivale ao conhecimento ou entendimento das geograficidades produzidas pelos seres humanos e, muito menos, implica a possibilidade de predição e elaboração de leis gerais e absolutas que as regem[21].

 

Os conhecimentos desenvolvidos pelas ciências não-clássicas, como a termodinâmica e a teoria da evolução biológica, refutam a idéia de estabilidade associada à crença em um universo acabado e imóvel. Essas teorias confirmam que esta é a imagem do inexistente. Também os estudos sobre as concepções de espaço, e suas transformações ao longo de diferentes modos de produção, apontam para a impossibilidade histórica de absolutização dos saberes humanos, a despeito da tentativa dos grupos hegemônicos de legitimação e perpetuação das suas cosmologias. As verdades e os saberes possuem existência espaço-temporal; tentar aprisioná-los a partir da crença em estabilidades a-históricas absolutizantes é furtá-los do contexto de sua realização, significa negar o seu fundamento social ou sua essência. 

 

É importante deixar claro que não se trata de fazer a defesa corporativa de uma disciplina que agrada a poucos. Antes, trata-se de chamar a atenção para a necessária manutenção da mesma, em função da importância da sistematização de saberes, na escola, acerca das geograficidades produzidas pelos seres humanos, enquanto elemento fundamental para a construção de entendimentos, identidades e ações no mundo. Recordemos as palavras de Lefebvre (1991, p. 34), que nos advertem sobre o fundamento tópico de nossa vida e identidade desde os primórdios: Onde?, é uma questão ligada à sobrevivência da espécie realizada filogenética e ontogeneticamente, pelos seres do gênero Homo e, conseqüentemente, por nós, seres humanos anatomicamente modernos. 

 

Somadas às reações dos discentes em relação ao ensino da geografia, existem ainda aquelas de outros grupos sociais que, sob as mais diferentes formas[22], reforçam o questionamento sobre a necessidade do ensino e aprendizagem dos saberes geográficos[23]. Estas atitudes, pontas de um iceberg, devem ser tomadas como manifestações sociais engendradas na sociedade ocidental, no contexto de um longo processo de obscurecimento da relevância cognitiva da compreensão das espaço-temporalidades em favor do pensamento metafísico, próprio de tradições alinhadas aos setores hegemônicos. Há de se entender, portanto, o processo de “estrangeirização”, por meio do qual o ensino da geografia, via de regra, torna os saberes sobre o espaço irrelevantes aos olhos de uma grande parte da sociedade.

 

Para além das geograficidades apresentadas nos mapas social e historicamente engendrados e disseminados em todo o Ocidente, sempre existirão aquelas provenientes de nossa memória e imaginação, fontes de mapas “mais verdadeiros e mais claros”, porque constituídos a partir de “uma nossa linguagem mais forte”. Tais espacialidades, marginalizadas historicamente por uma geografia hegemônica[24], também devem ser abordadas pela geografia que se ensina, dado que se constituem em fundamento para a criação do que Marx (1993) denomina de homem genérico e de sua universalidade, podendo, dessa maneira, auxiliar no processo de ruptura com o que, na presente reflexão, estou a denominar como processo de ”estrangeirização” discente.

 

No item que segue apresento o contraponto entre a noção de estrangeirização e alienação no contexto do ensino da geografia. É importante salientar que não se trata de adotar uma noção em detrimento da outra, como se a adoção de uma inviabilizasse a assunção da outra. A intenção do presente trabalho é a de ampliar o debate em torno da construção e adoção de noções e conceitos que coloquem a questão da ordenação espacial em evidência, facilitando e melhor operacionalizando a elaboração de análises em torno das geograficidades.

 

Estrangeirização e alienação: o (des)encontro do sujeito com os lugares

 

O pressuposto fundamental do debate que ora proponho é que os conceitos constituem-se em constructos do pensamento elaborados a partir de nossa atividade prática que nos permitem recortar, apreender e compreender aspectos do real para nele agir. Por meio dos conceitos, em um determinado momento do pensamento, construímos compreensões acerca da essência dos fenômenos com os quais entramos em contato que nos permitem caracterizá-los, compreender suas particularidades e singularidades e, ao fazermos isso, estabelecemos vínculos entre os diversos elementos que os compõem para, posteriormente, agir no mundo.

 

Todo conceito é um constructo mental cuja formação deriva da interação dialética entre a prática cotidiana dos sujeitos e a tecedura ou formação sócio histórica e espacial de seu pensamento abstrato. Trata-se de um instrumento teórico-prático que se move pendularmente e em espiral entre o imediato que nos é dado pela prática social que realizamos nos lugares e o mediato, resultante das abstrações que elaboramos. Por isso, o conceito possui momentos:

 

Um conceito, num certo sentido, é abstrato; é um pensamento. É alcançado a partir do imediato, da impressão sensível e do conteúdo. [...] Entre os momentos do conceito, figura igualmente a atividade prática. O conceito brota dessa atividade, já que é através dela que entramos em contato com o mundo e que o sensível faz parte da prática. E volta a ela, pois o pensamento abstrato, o conceito, tem por ‘finalidade’ e verdade suprema a prática, a ação. Criar e desenvolver o conceito de ‘casa’ é construir casas reais e, em seguida, aperfeiçoar essas casas. (LEFEBVRE, 1991, p. 223).

 

Dessa maneira é importante “[...] notar [...] que a prática e o conceito são graus, momentos do pensamento, que o método dialético, em seguida, reconhece e legitima racionalmente. [...] O imediato e o mediato, portanto, intercambiam perpetuamente as suas determinações enquanto tais. São eles, alternadamente, a negação um do outro, bem como a negação dessa negação.” (LEFEBVRE, 1991, p. 272). Eis os fundamentos do debate ora proposto em torno dos conceitos de estrangeirização e alienação.

 

Compreendo que entre ambos os conceitos, a despeito de os mesmos estarem altamente correlacionados, existem diferenças fundamentais. No que tange ao conceito de estrangeirização poder-se-ia afirmar que o estranhamento do sujeito com o meio se constitui em ponto nodal para a realização deste processo. Dessa maneira, torna-se estrangeiro aquele conjunto de sujeitos que não se identifica e, portanto, não compreende as geograficidades que vivencia cotidianamente. Em outras palavras, a estrangeirização se realiza por meio de sucessivos processos de estranhamento dos sujeitos com as geograficidades que vivenciam cotidianamente.

 

O ensino da geografia ao não colaborar com o processo de construção intelectiva acerca das geograficidades vivenciadas pelos sujeitos acaba por auxiliar no seu estranhamento com o meio e, dessa maneira, os mesmos são mantidos em sua condição de estrangeiro. É neste sentido que este conceito põe em relevo as relações dos sujeitos com as geograficidades, daí sua importância nos estudos geográficos que se propõem a compreender as construções intelectivas derivadas das relações dos seres humanos com e no meio em que vivem.

 

Por sua vez, o conceito de alienação, em uma perspectiva marxista coloca em relevo as relações econômicas de produção no contexto do capital. Marx (1993, p. 162-163) descreve da seguinte maneira o processo de alienação do trabalhador:

 

[...] o trabalho é exterior ao trabalhador, quer dizer, não pertence à sua natureza; portanto, ele não se afirma no trabalho, mas nega-se a si mesmo, não se sente bem, mas infeliz, não desenvolve livremente as energias físicas e mentais, mas esgota-se fisicamente e arruína o espírito. Por conseguinte, o trabalhador só se sente em si fora do trabalho, enquanto no trabalho se sente fora de si. Assim, o seu trabalho não é voluntário, mas imposto, é trabalho forçado. Não constitui a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio de satisfazer outras necessidades. [...] O trabalho externo, o trabalho em que o homem se aliena, é um trabalho de sacrifício de si mesmo, de mortificação. [...] Chega-se à conclusão que o homem (o trabalhador) só se sente livremente activo nas suas funções animais − comer, beber e procriar, quando muito, na habitação, no adorno, etc. − enquanto nas funções humanas se vê reduzido a animal. O elemento animal torna-se humano e o humano, animal. Comer, beber e procriar, etc., são também certamente genuínas funções humanas. Mas, abstractamente consideradas, o que as separa da restante esfera da actividade humana e as transforma em finalidades últimas e exclusivas é o elemento animal.

 

Os elementos que este conceito põe em relevo são de ordem sócio-econômica e não geográfica, destaca-se no mesmo as relações sociais de estranhamento do trabalhador com o produto de seu trabalho no contexto do capital. É o próprio Marx (1993, p. 166) quem afirma: “Partimos de um facto econômico, a alienação do trabalhador e da sua produção.” Eis o discernimento que se deve ter ao se operar com ambos os conceitos.

 

O conceito de estrangeirização remete ao estranhamento entre o sujeito e as geograficidades que vivencia. Já o de alienação refere-se diretamente às relações socioeconômicas que se estabelecem no processo de produção no contexto do capital. A despeito das diferenças assinaladas, como afirmei anteriormente, ambos os conceitos possuem grande correlação. É no contexto da alienação do sujeito em face ao capital que o processo de estrangeirização se realiza. Neste sentido Caiado (1998, p. 79) afirma que: “[...] devido  ao caráter externo do trabalho, o indivíduo não se apropria diretamente do seu mundo perceptível, pois este  é medido  pelo dinheiro (salário abstrato), em decorrência da transformação da força de trabalho numa mercadoria.” Verifica-se neste trecho a confirmação da correlação entre o conceito de alienação e o de estrangeirização. Marx (1993, p. 166) também corrobora com o entendimento ora expresso:

 

[...] o trabalho alienado transforma: [...] a vida genérica do homem, e também a natureza enquanto sua propriedade genérica espiritual, em ser estranho, em meio da sua existência individual. Aliena do homem o próprio corpo, bem como a natureza externa, a sua vida intelectual, a sua vida humana.

 

Com base no exposto, poder-se-ia afirmar que ambos os conceitos são imprescindíveis no processo de análise do ensino da geografia no contexto das sociedades capitalistas. Dessa maneira, não podem ser confundidos, muito menos utilizados como sinônimo um do outro em função de que se trata de fenômenos que possuem forte correlação. Substituir um pelo outro, pelo menos no tocante às análises relativas ao ensino da geografia nas sociedades capitalistas, pode levar ao obscurecimento das dimensões sócio-econômica e geográfica, bem como de suas sobredeterminações.

 

Para finalizar, fica aqui registrada a necessidade de ampliação e verticalização dos estudos e debates em torno dos dois conceitos brevemente abordados, bem como de suas sobredeterminações. Afinal, compreender o ensino de geografia em nossa sociedade, a fim de nele intervir, pressupõe a ampliação de nosso universo epistêmico e conceitual.      

   

Referências bibliográficas:

 

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SANTOS, Boaventura de Souza. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 7. ed. São Paulo: Cortez, 2000. 

 



Notas:

 

[1] Parte das reflexões deste trabalho estão presentes em minha tese de doutoramento defendida em março de 2005 na Universidade de São Paulo – São Paulo/Brasil. 

[2] A título de esclarecimento entende-se por geograficidade “[...] o ser-estar espacial do ente – pode ser o homem, um objeto natural ou o próprio espaço (quando este é posto diante da indagação: o espaço, o que é, qual a sua natureza) – seja qual for o caráter de sua qualidade. No caso do homem, a geograficidade é a forma como a hominização enquanto essência do metabolismo exprime sua existência na forma do espaço. A geograficidade do homem é então a forma como a liberdade da necessidade emerge e se realiza através da forma concreta de existência espacial na sociedade.” (MOREIRA, 2004, p. 33-35).

[3] Termo usado por Bourdieu (1997, p. 42).  Para esse autor “Os ‘sujeitos’ são, de fato, agentes que atuam e que sabem, dotados de um senso prático [...], de um sistema adquirido de preferências, de princípios de visão e divisão (o que comumente chamamos de gosto), de estruturas cognitivas duradouras (que são essencialmente produto da incorporação de estruturas objetivas) e de esquemas de ação que orientam a percepção da situação e a resposta adequada. O habitus é uma espécie de senso prático do que se deve fazer em dada situação.”

[4] Ver também Marconi e Presotto (1986, p. 209 et seq).

[5] Estou remetendo a uma concepção mais ampla do vocábulo: mundo. Esse deve ser aqui entendido não apenas em uma perspectiva fisicalista que valoriza os aspectos mensuráveis ou quantificáveis do objeto. As representações sociais, a dimensão simbólica ou o mundo simbólico compõem o que denominamos “mundo humano”.    

[6] Para Harley e Woodward (1987, p. 3) “[...] maps constitute a composite of graphics elements that reveals the cultural context of the map’s origin.” “[...] mapas constituem um conjunto de elementos gráficos que revelam o contexto cultural de suas origens.” (Tradução da autora). 

[7] A prova material desta capacidade pode ser apreciada na totalidade da produção material humana.

[8] É importante salientar que Camus, a meu ver, teceu a cena do assassinato com a intenção de explicitar o contexto banal ou comum no qual o mesmo ocorreu. Assim procedendo, nos transmite subliminarmente a idéia de que, no contexto apresentado, qualquer ser humano poderia ter cometido o crime. Dessa forma, o autor captura o leitor, que, ao longo do restante do livro, acaba se identificando com Mersault

[9] Para aqueles que assumem as regras, as normas sociais e comportamentais que apontam para uma territorialidade que viabilize os setores hegemônicos da sociedade.

[10] Esta palavra teve inúmeros significados depois de sua criação por Andronico de Rodes (50 a.C.) que, ao organizar um conjunto de textos aristotélicos que sucediam ao tratado da física, o traduziu como “após a física”, dessa maneira, passou a usar o termo para algo que está além da física, que a transcende. Segundo Japiassú e Marcondes (1996, p. 180), tanto a tradição clássica quanto a escolástica fizeram usos específicos deste termo; contudo, não os explicitarei pois não é no contexto de tais filosofias que o estou utilizando. Para saber a distinção do significado da palavra metafísica na tradição clássica e, na escolástica, sugiro uma consulta à obra dos autores citados. Assumirei aqui o conceito de ‘metafísica’ usado por Lefebvre (1991) entendido por ele como aquele pensamento que separa o que é ligado, fundamento de sua crítica à metafísica kantiana: “[...] A separação metafísica entre sujeito e objeto − que, ao mesmo tempo, coloca o problema e o torna insolúvel − reproduz e agrava, nas condições da consciência moderna, a separação imaginária, o desdobramento fictício entre a parte lúcida de nosso ser (a alma, o espírito) e a parte ‘natural’ (o corpo, o mundo).” (LEFEBVRE, 1991, p. 53-56). Dessa maneira, afirma o autor: “[...] designaremos como ‘metafísicas’ as doutrinas que isolam e separam o que é dado efetivamente como ligado.” (LEFEBVRE, 1991, p. 50). A separação arbitrária do sujeito e do objeto do conhecimento deriva do posicionamento metafísico. Nesse contexto, este último termo se torna um problema, pois elementos ontologicamente ligados são separados, o que leva muitos metafísicos a raciocinarem do seguinte modo: “[...] ‘O sujeito do conhecimento, o ser humano, é um indivíduo consciente, um eu; que é um eu? É um ser consciente de si e, portanto, fechado em si mesmo. Nele, não pode haver senão estados subjetivos, estados de consciência. Como poderia sair de si mesmo, transportar-se para fora de si a fim de conhecer uma coisa diversa de si? O objeto, caso exista, está fora do seu alcance. O pretenso conhecimento dos objetos, a própria existência destes, não são mais que uma ilusão [...]’.” (LEFEBVRE, 1991, p. 51).

[11] Sobre as mudanças na vida social e política no contexto da modernidade, ver a obra de Bauman (2001) intitulada Modernidade líquida, na qual o autor faz uma análise perturbadora das alterações sofridas pela vida humana ao analisar a transformação do significado de léxicos como emancipação, individualidade, tempo/espaço, trabalho e comunidade.

[12] Em um sentido eliasiano ou bourdieusiano.

[13] Problemática esta discutida por Moreira (1987) em seu livro O discurso do avesso.

[14] Estou usando esta expressão para distinguir o atópico do utópico; o primeiro termo revela o que não tem lugar e jamais o terá, qual Deus e a razão moderna, onipotentes e oniscientes em suas descontextualizações espaço-temporais e o segundo, o que pode ter lugar mas que ainda não foi realizado. A desconsideração das espaço-temporalidades é um dos fundamentos do pensamento metafísico, daí a possibilidade lógica da eliminação da diferença, que se torna visível se as referidas relações forem consideradas. 

[15] Abordarei a questão com maior detalhe mais adiante.

[16] Essa constatação tem demonstrado ser denominador comum nas pesquisas, debates e reflexões sobre o ensino da geografia.           

[17] Atentar para o lugar em que o sujeito é colocado para observar o planisfério: sua visão é a de quem está fora de um mundo composto por objetos mensuráveis, pairando no ar, assistindo ao que nele está ocorrendo, fato esse que indica que na linguagem cartográfica a prioridade é a da res extensa, domínio dos objetos mensuráveis.

[18] Esta geografia vem sendo criticada por muitos autores, dentre eles Lacoste (1989) e Moreira (1987) em suas obras intituladas, respectivamente: A geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra e O discurso do avesso – para a crítica da geografia que se ensina.

[19] No final da década de 1990, no Brasil, muitos segmentos da área da educação vêm propondo a junção de várias disciplinas das ciências humanas em um único bloco denominado de humanidades. Esta proposta, em geral, tem como fundamento a tese de que, ao se realizar a interdisciplinaridade, o conhecimento do objeto seria resgatado em sua totalidade, como se esta fosse a mera soma das partes. Os disseminadores dessa tese se esquecem de que o próprio ato de conhecer implica, necessariamente, a realização de recortes; não é possível a tudo conhecer e nem a tudo ver. A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9.394/96 pode ser tomada como expressão do  processo de desvalorização social da disciplina de geografia. No Capítulo II que dispõe sobre a Educação básica – educação infantil, ensino fundamental e médio –, no artigo 26 que reza sobre o currículo do ensino fundamental e médio, a Lei faz menção direta a uma série de disciplinas como língua portuguesa, matemática, arte, educação física, história e língua estrangeira moderna. Os saberes tradicionalmente ensinados pela geografia são citados sem nenhuma referência à disciplina, fato este que passa a ser entendido por muitos educadores enquanto possibilidade de inserção de outros profissionais das ciências humanas, como se pode verificar no trecho que segue: “Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente, o estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil.” (BRASIL, 1997, p. 15). Na seção IV, no artigo 36, que trata do currículo do Ensino Médio, verifica-se a indicativa das seguintes diretrizes nos itens I e III, respectivamente:  “I - destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; a língua portuguesa como instrumento de comunicação; acesso ao conhecimento e exercício da cidadania [...] III – domínio dos conhecimentos da Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania.” (BRASIL, 1997, p. 19-20). Nos níveis mais avançados do ensino básico, como é o de nível médio, os saberes geográficos sequer são citados, o que permite antecipar um possível desaparecimento ou maior desvalorização da disciplina e dos saberes geográficos no Brasil. Os saberes aos quais não se teve acesso não são valorizados.                    

[20] Entenda-se também simbólica dado que inexiste separação entre produção material e simbólica, como adequadamente nos lembra Marx (1993, p. 163-164): “O homem é um ser genérico, não só no sentido de que faz objecto seu, prática e teoricamente, a espécie (tanto a sua própria como a das outras coisas), mas também − e agora trata-se apenas de outra expressão para a mesma coisa − no sentido de que ele se comporta perante si próprio como a espécie presente, viva, como um ser universal, e portanto livre. A vida genérica, tanto para o homem como para o animal, possui sua base física no facto de que o homem (como o animal) vive da natureza inorgânica, e uma vez que o homem é mais universal do que o animal, também mais universal é a esfera da natureza inorgânica de que ele vive. Assim como as plantas, os animais, os minerais, o ar, a luz, etc, constituem, do ponto de vista teórico, uma parte da consciência humana, enquanto objectos da ciência natural e da arte − são a natureza inorgânica espiritual do homem, seus meios de vida intelectuais, que ele deve primeiro preparar para a fruição e perpetuação − assim também, do ponto de vista prático, formam uma parte da vida e da actividade humanas. No plano físico, o homem vive apenas dos produtos naturais, na forma de alimento, calor, vestuário ou habitação, etc. A universalidade do homem aparece praticamente na universalidade que faz de toda a natureza o seu corpo inorgânico: 1) como imediato meio de vida; e igualmente 2) como objecto material e instrumento da sua actividade vital. A natureza é o corpo inorgânico do homem, isto é, a natureza na medida em que não é o próprio corpo humano. O homem vive da natureza, quer dizer: a natureza é o seu corpo, com o qual tem de manter-se em permanente intercâmbio para não morrer. Afirmar que a vida física e espiritual do homem e a natureza são interdependentes significa apenas que a natureza se interrelaciona consigo mesma, já que o homem é uma parte da natureza.”

[21] Sobre esse assunto ver a obra de Branco (1989) Dialética, Ciência e Natureza, principalmente o Capítulo VI intitulado Sintomas da dialética da natureza (p. 205-249).

[22] A disciplina de geografia, em geral, é trabalhada de maneira descontextualizada do viver cotidiano das pessoas e, por isso, não raro está associada apenas a atividades alienantes por se realizarem apenas em si e per si, como o trabalho alienado sob a égide do modo de produção capitalista. Atividades como o decalque e pintura de mapas, memorização de informações topológicas ou de respostas descritivas são facilmente identificadas pelos mais diferentes atores sociais como sendo próprias da disciplina de geografia. Junto a muitos estudiosos das ciências humanas também existem aqueles que, por meio de uma noção de espaço e tempo métricos, cujos fundamentos residem na física clássica, ao considerarem o tão propalado fenômeno da compressão espaço-temporal, característico da modernidade ou pós-modernidade, estão a decretar o fim da geografia, à maneira de Francis Fukuyama, o apologeta do fim da história. Richard O’Brien e Paul Virílio estão entre os fiéis disseminadores da disparatada idéia do fim da geografia. O que há de interessante nas teses do fim da história e da geografia está no fato de que as mesmas podem ser tomadas como sintomas de que as noções de espaço-temporalidade estão a sofrer transformações. A crítica, negação da relevância e o incentivo ao abandono de uma concepção de espaço são ações que apontam na direção de sua transformação.     

[23] Este questionamento e embate não são novos pois, segundo Escolar (1996, p. 70), já na primeira década do século XX, a Geografia − ciência e disciplina − é criticada pelas outras ciências humanas, dentre elas a história, sociologia e economia política. Segundo Escolar (1996, p. 69), do ponto de vista interno às ciências humanas, a rápida aparição da sociologia somada ao distanciamento da geografia em relação à filosofia, são argumentos utilizados pela economia política e história na tecedura dos seus questionamentos endereçados à ciência geográfica.

[24] Esta geografia foi denominada por Lacoste (1989, p. 31) como “geografia dos professores” e caracterizada como aquela que, apesar de ter aparecido há menos de um século sob a égide do Estado nação, “[...] se tornou um discurso ideológico no contexto do qual uma das funções inconscientes é a de mascarar a importância estratégica dos raciocínios centrados no espaço.”, pois é, aparentemente, extirpada de práticas políticas, militares e decisões econômicas, ou seja, da práxis humana realizada no contexto do atual modo de produção, dissimulando, dessa maneira, a eficácia e relevância das análises espaciais enquanto instrumentos de ação dos espaços. De minha parte, acrescentaria às observações do autor que essa geografia nega, sobretudo, as espacialidades não hegemônicas ao impedir o estabelecimento de racionalidades acerca das mesmas e, assim, acaba por marginalizar seus portadores, atuando como elemento altamente alienador.


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