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Nova REVISTA ELECTRÓNICA DE GEOGRAFÍA Y CIENCIAS SOCIALES Universidad de Barcelona. ISSN: 1138-9788. Depósito Legal: B. 21.741-98 Vol. VII, núm. 146(130), 1 de agosto de 2003 |
O PARCELAMENTO DO SOLO E A FORMAÇÃO DE ESPAÇOS DE POBREZA EM NATAL-RN
Alexsandro Ferreira
Cardoso da Silva
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Brasil
O parcelamento do solo e a formação de espaços de pobreza em Natal-RN (Resumo)
O processo de segregação espacial tem se realizado, nas cidades brasileiras, através da exclusão social relacionada com a formação do espaço habitacional, ou melhor, através da segregação de classes sociais na cidade. Uma população pobre está localizada em áreas periféricas, distante das áreas centrais e mal assistidas de serviços públicos; este artigo pretende analisar a formação destes espaços na Região Norte da cidade de Natal, mais especificamente, o parcelamento de terras e a ocupação destas nos últimos vinte anos, verificando o desgaste social resultante.
The parcel of the land and the formation of poverty space in Natal-RN (Abstract)
The process of space segregation has been realized, in the Brazilian cities, through the social exclusion related with the formation of the habitational space, or better, through the segregation of social classes in the city. A poor population is located in suburban areas, distant of the central and badly attended areas of public services; this article intends to analyze the formation of these spaces in the North Area of the Natal city, more specifically, the parcel of lands and the occupation of these in the last twenty years, verifying the resulting social wear.
A rápida urbanização por qual passou o Brasil, nos últimos 50 anos, trouxe no seu rastro uma série de problemas relacionados principalmente com a provisão de habitações para as classes de renda mais baixa, assim como a qualidade dos espaços urbanos destas habitações. Em 2000, cerca de 82% dos brasileiros moram em cidades, sendo que 33,6% moram nas 12 regiões metropolitanas (Grostein,2001,p.13);nestas regiões, verifica-se (no período de 1991-1996) um maior crescimento das áreas periféricas, 14,7%, contra os centros mais tradicionais, que cresceram em média 3,1% (Maricato, 2000,p.25), o que indica uma espécie de "explosão da periferia". Tal crescimento e expansão dão-se através, primordialmente, de um processo que envolve o aumento do preço do solo nas áreas centrais, ocupadas por classes de renda mais alta, e a parcelamento do solo nas áreas mais periféricas e distantes dos núcleos centrais.
Nesse sentido, forma-se um tipo de morfologia urbana marcada pela construção verticalizada nas áreas mais caras (ocupadas pela classe de renda mais alta) e horizontalização em áreas cada vez mais distantes destes núcleos centrais, ocupada por uma população de baixa renda. Essa divisão socio-espacial marca as cidades brasileiras, principalmente as cidades de médio e grande porte, onde tal fenômeno de segregação é cada vez mais presente. Este trabalho pretende investigar este processo através da análise da (re)produção do espaço urbano nestas áreas periféricas e analisar como tal processo de parcelamento do solo, por meio da abertura de loteamentos privados (legais e ilegais), consubstancia a formação de espaços de pobreza; para isso tomamos como estudo de caso a Região Administrativa Norte[1] ou simplesmente Zona Norte, da cidade de Natal, capital do Rio Grande do Norte. O objetivo da pesquisa[2] é compreender o processo de formação do mercado de terras parceladas e comercializadas nesta região periférica de Natal e analisar como esse parcelamento do solo relaciona-se com a formação de espaços de segregação e exclusão urbanística e social.
Como hipótese inicial, temos que a expansão habitacional ocorrida em Natal, nos últimos 20 anos, seguiu um modelo de urbanização periférica, primordialmente através da segregação da população mais pobre em áreas específicas da cidade. A construção de conjuntos habitacionais por parte do Estado e a abertura de loteamentos, na maioria ilegais, consolidaram extensas áreas residenciais caracterizadas por: pouca diferenciação de rendas familiares (a maioria de baixa renda), com baixo padrão construtivo, bairros com carência no provimento de serviços e infra-estrutura (como escolas, saneamento, segurança, abastecimento de água, etc.), precariedade da titularidade Jurídica fundiária e habitacional, desequilíbrio entre áreas com alta densidade e outras com terrenos vazios (especulação imobiliária), dentre outros aspectos. Nosso estudo analisa, como estudo de caso, a formação e consolidação de quatro destes loteamentos nesta região da cidade, buscando avaliar estes desgastes sociais decorrentes do tipo de parcelamento do solo ocorrido no intervalo de 1974-1998.
A urbanização de Natal e a formação dos espaços de pobreza
A cidade de Natal, deve seu processo de urbanização e adensamento aos últimos 50 anos, quando passou a apresentar taxas de crescimento cada vez maiores, notadamente através do incorporação de suas áreas rurais, sendo que na década de 1980 já era considerada, pelos órgãos oficiais, como tendo 100% de sua área urbana. Tal produção habitacional ganhou impulso a partir da Segunda Guerra Mundial, quando Natal foi sede da maior base americana fora dos Estados Unidos (Clementino, 1995); tal participação no conflito atraiu não apenas investimentos em infra-estrutura e modificações no modo de vida da população, até então bastante provinciana, mas também iniciou o mercado de terras com a criação do primeiro loteamento em 1946 (Ferreira, 1996).A partir de então a cidade se expande em um ritmo cada vez mais intenso, possuindo pouco mais de 10% da população do estado em 1950 e mais de 25 % no ano 2000 (Clementino, 1995, p.162 e Idema,2001,p.53). Tal ritmo só não foi maior devido ao crescimento intenso que ocorreu nos 06 municípios que compõem a Região Metropolitana.
Essa metropolização decorreu, basicamente, dos investimentos públicos que foram concentrados na capital do estado, atraindo a população das cidades do interior e, assim, forçando uma demanda habitacional. Essa população foi "acomodada" nos novos loteamentos que cada vez mais surgiam na periferia da cidade tradicional, seguindo um padrão tipológico e morfológico diferenciados que acabaram por configurar bairros de "elite" e bairros com uma população de baixa renda. Tal processo fez surgir espaços desiguais, consolidando uma região centro-sul rica e outra oeste-norte mais pobre; tal dualidade está apoiada em estruturas de segregação e auto-segregação, onde se localizam os extremos de Natal relacionados com a qualidade habitacional e o preço do solo.
A partir da década de 1960 tem início um novo "agente" nesta configuração socio-espacial: o Estado. Na vigência de um regime militar, é criado em 1964 o Banco Nacional da Habitação (BNH), que tinha como meta oficial a tentativa de solver a "questão da moradia no Brasil", isto é, evitar aumento do déficit habitacional. A inserção de um modelo desenvolvimentista e industrial, também teve como conseqüência o aumento da migração para as cidades e, assim, uma maior procura por habitações. Foram fomentadas empresas públicas como a COHAB (Companhia Brasileira de Habitação), que atendia a população com renda entre 3 e 5 salários mínimos, e o INOCOOP (Instituto de Orientações à Cooperativa Habitacionais),para financiar habitações para uma classe de renda entre 5 e 12 salários mínimos.
A falência do BNH irá ocorrer em 1986, acompanhada de severas críticas relacionadas tanto com seus objetivos (de não solver o problema habitacional das camadas mais pobres) quanto com sua operacionalização. Este último ponto nos interessa: a escolha por um modelo de desenho urbano modernista (baseado em princípios da Carta de Atenas) e o "respeito" às práticas do mercado de terras, acirraram a segregação socio-espacial nas cidades brasileiras ao preferir construir enormes conjuntos habitacionais (de até 2.000 moradias), dotadas de áreas zoneadas, com funções específicas, financiadas (com objetivo de retorno do investimento) a população de baixa renda, foi necessário procurar terras mais baratas possíveis e que atendessem a estes requisitos. Nesse sentido, as terras rurais, periféricas, adjacentes ao núcleo urbano são a escolha "natural", mas devido a distância destes conjuntos com a "cidade", criam-se verdadeiras "cidades dormitório", além de configurar (com carimbo estatal) as área ocupadas por pobres de maneira bastante nítida.
Em Natal tal processo não foi diferente. A política habitacional implantada através da construção de conjuntos habitacionais seguiu o modelo concentrador de população com a mesma faixa de renda em uma mesma região.
A Região Administrativa Norte foi configurada, enquanto área periférica de Natal, seguindo uma pré-definição onde aparecem como agentes ativos, o capital imobiliário (seja pequeno, médio ou clandestino) e o Estado (na medida em que este implementou a infra-estrutura necessária à construção de aproximadamente 22.000 unidades habitacionais no período de 1978-1992 pela COHAB e, após 1986, Caixa Econômica Federal). Tais agentes (mercado de terras e programas habitacionais com recursos públicos), transformaram uma área rural do município na maior Região Administrativa da cidade com cerca de 40% da população total e 33,59 % dos domicílios, com uma variação populacional de 500% entre 1980-2000 (IBGE apud Mineiro, 1998, p.68). Nesse sentido, a construção dessa área, como essencialmente habitacional, recebeu (no seu início) boa parte da população de baixa renda, (na figura da casa própria da COHAB e na oferta de lotes individuais para autoconstrução).
Foi a partir da década de 1960 que o mercado de terras na Zona Norte passou a existir, com a venda de lotes à prestação, mas é a partir da construção dos conjuntos habitacionais pelo Estado, que ganha impulso o reparcelamento destes lotes iniciais, criando novos loteamentos, voltados a uma população de baixa renda, que não teriam condições de comprar um terreno ou casa nas zonas Leste ou Sul[3], isto é, havia uma determinada demanda por esses espaços mesmo que fossem distantes do centro da cidade e que não possuíssem infra-estrutura para receber esta população.
O partido urbanístico de tais parcelamentos se apoiou, na sua maioria, na conexão com a malha viária dos conjuntos habitacionais estabelecidos, de modo que foram criados prolongamentos de vias[4] , ou melhor, trechos ou faixas destinadas à circulação de pedestres e veículos, sem qualquer tipo de benefício à circulação. A pavimentação e a drenagem de tais vias, ainda hoje, constitui objeto de luta por parte dos moradores.
Em outra região de Natal, na Zona Sul, temos um efeito contrário, onde a emergência do setor de serviços e, principalmente, o turismo fizeram com que esta região da cidade viesse a possuir, junto com a região Leste, um incremento significativo em melhorias; nestas regiões concentra-se o comércio, os bancos, os equipamentos de lazer, os hotéis, etc., isto é, onde são lançados os maiores valores de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) da cidade. Enquanto na Zona Norte, naquele momento, só havia moradores, na Zona Sul, expandiam-se os consumidores. Este fato consolidou uma fragmentação social que podemos identificar como um processo de segregação.
A existência de uma barreira física que separa a região Norte do restante da cidade, o rio Potengi, vencido com sua ponte sendo um marco nesta divisão espacial e a própria conformação viária dos conjuntos, que possuem um desenho "retalhado", acirraram essa segregação habitacional, relacionada com as dificuldades de provimento de serviços públicos, não apenas no sentido da sua existência ou não, mais da qualidade destes serviços.
Também é percebido um estigma social que acompanha esta região como um todo, fato único na cidade: não se percebe um preconceito contra os moradores das demais zonas da cidade, percebe-se a existência de um certo preconceito, em relação aos moradores de determinados bairros[5], bem como o status[6] que alguns deles proporcionam. Enfim, a Zona Norte não é apreendida no quotidiano como constituída por diversos bairros, mas sim uma "outra cidade", onde seus moradores são identificados como sendo "da Zona Norte" e não por seus bairros constituintes.
Os conjuntos habitacionais construídos com recursos do Sistema Financeiro da Habitação (SFH), não apenas reforçaram a divisão da população em regiões específicas, como foram fundamentadas nesta divisão. A literatura sobre tal ocupação evidencia esta característica como sendo formadora de uma segregação habitacional para a cidade, pois os conjuntos localizados na região sul de Natal eram melhores dotados de acesso e serviços, em ralação aos da Zona Norte (Vidal, 1998, p.52).
Outra variável relacionada com a formação de áreas de pobreza na Zona Norte é distribuição da renda por bairros em Natal, onde em 1991 28,4% da população localiza-se na faixa de ganho de até 01 salário mínimo[7] por chefe de domicílio; para Zona Norte (34,2%), Leste (26,1%) e Oeste (39,2%) o maior valor também se encontra neste estrato. Para a Zona Sul, o maior percentual (25%) concentra-se no estrato correspondente a faixa de 5 a 10 salários por chefe de domicílio, sendo que no estrato de 10 a 20 salários, esta região da cidade, supera com larga folga (16,5%) as demais. Estes breves números (IBGE apud Mineiro, 1998, p.107) já demonstram uma forte divisão da cidade por classe e renda, tendo as Zonas Norte e Oeste como áreas de população de baixa renda; a Zona Leste aparece como uma área intermediária, devido a presença de bairros como Rocas e Mãe Luiza; a Zona Sul, difere com uma população de altos ganhos. Em 1981, a renda familiar média da população do bairro de Igapó (na Zona Norte), por exemplo, ficava em 3,7 salários mínimos contra 10,38 salários em Ponta Negra, Zona Sul de Natal. (Mineiro, 1992 e 1998).
O censo demográfico 2000 apontou como renda média correspondente a estes dois bairros, respectivamente, os valores em salários mínimos vigentes na época da coleta pelo IBGE, de 2,93 e 9,43. Ainda, comparando dados de renda, destacam-se os bairros de Petrópolis e Tirol, da Região Administrativa Leste, apresentam as mais altas rendas médias do município, e melhor qualidade de sua infra-estrutura e serviços públicos. Estas, em salários mínimos equivalentes a 22,10 para Petrópolis e 21,63 para Tirol, revelam a desigualdades e a diferenciação no espaço.
A Zona Norte possui 33,59% dos domicílios ocupados em Natal, o maior número das quatro regiões, mas, só apresenta 6,9% do valor lançado do IPTU; por outro lado, a Zona Sul concentra 23,2 % da população e é responsável por 45% do valor lançado. Ora, considerando que, o padrão dos imóveis e a qualidade da infra-estrutura urbana são parâmetros que exercem os maiores pesos, no cálculo desse imposto, a partir desses dados, fica demonstrado que a maior região da cidade, em termos de população, encontra-se em desvantagem em relação a outras áreas da cidade. Por exemplo, seguindo esta linha de reflexão, das praças existentes em Natal, a Zona Norte apresenta 15,97% do total, contra 34,03 % na Zona Sul, 39,68% na Zona Leste e 10,32% na Zona Oeste (PMN, 1999, p.75). As regiões com maior concentração de habitantes (Quadro 1), Oeste e Norte, são as que menos possuem praças públicas e/ou áreas de lazer.
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Natal | 177.317 |
Zona Leste | 30.046 |
Zona Norte | 59.721 |
Zona Oeste | 47.209 |
Zona Sul | 40.807 |
Fonte: Censo IBGE, 2000. |
O relatório Pemas (2000) revela que do total de assentamentos subnormais em Natal no ano de 2001, a Zona Oeste (31,43%) e Zona Norte (28,57%) possuíam mais destes tipos de habitação do que a Zona Sul (15,71%) e Leste (24,24%).
Os loteamentos na periferia norte de Natal
Delineado os caminhos tomados pela Zona Norte, cabe focalizar nosso estudo em uma parcela dessa região, onde poderemos vislumbrar os processos de maneira mais específica, para tanto, foram escolhidos para serem os objetos de pesquisa, 04 loteamentos localizados na Zona Norte. Mas porque os loteamentos e não os conjuntos habitacionais? Em primeiro lugar pelo tipo de produção do espaço, referente a cada um: nos conjuntos, o Estado é o agente direto no processo, intervindo e viabilizando a construção das moradias; nos loteamentos, o mercado é o intermediário entre a população e a casa: os efeitos perversos inerentes ao processo de acesso a terra, através do mercado imobiliário, ficam mais evidentes. Também será o trabalhador que ficará responsável por financiar a aquisição do lote e, então, construirá com seu próprio esforço físico a moradia - autoconstrução.
Por suas características especiais de produção, os conjuntos habitacionais acabaram por apresentar uma melhor qualidade habitacional; as ruas pavimentadas, escolas, hospitais, enfim, melhores serviços e benefícios públicos. Isto faz surgir graus diferenciados de segregação dentro da Zona Norte, revelando uma heterogeneidade que contradiz a homogeneidade do espaço presente até então na literatura. Será, então, nos loteamentos que encontraremos o material necessário para a compreensão da expansão contemporânea da cidade nos últimos 20 anos do século XX, e apontaremos as perspectivas futuras deste processo.
Os quatro loteamentos estudados estão todos inseridos no bairro de Nossa Senhora da Apresentação[8], onde se localiza, também, o conjunto Parque dos Coqueiros (último grande conjunto habitacional, financiado pela Caixa Econômica Federal) que conta com 2.088 casas entregues aos mutuários em 1993. Seu traçado viário e tipologia diferem radicalmente dos loteamentos, por esse motivo não será objeto de estudo.
O bairro de Nossa Senhora da Apresentação possui 56.222 habitantes (Censo IBGE, 2000) com aproximadamente 47.000 pessoas morando (excetuando o conjunto habitacional Pq. dos Coqueiros) que são (por ordem de antiguidade) nos loteamentos Vale Dourado, Aliança, Bom Jesus, Boa Sorte e Libanês. O bairro apresentou uma taxa de crescimento elevada de 25,44%, entre 1980-1991(PMN, 1998), com 13.948 domicílios (Censo IBGE, 2000) e com apenas 20 % de suas vias pavimentadas.
Através de pesquisa realizada na SEMURB (Secretaria Especial do Meio Ambiente e Urbanismo - Prefeitura Municipal de Natal /PMN), que catalogou 36 loteamentos existentes na Região Norte sendo seis registrados e 30 não registrados, 83,33 % dos loteamentos estão irregulares (sem registro em cartórios ou não aprovados pela PMN). A Prefeitura também registra um fato importante: mesmo sem áreas de lazer ou praças, o bairro Nossa Senhora da Apresentação possuía, em 1998, o montante de 3.624 vazios urbanos; lotes particulares a espera de melhores preços para depois serem comercializados, em outras palavras, para servir à especulação imobiliária. (PMN, 1998).
Segundo Iplanat (apud Mineiro, 1998, pg. 157) Natal em 1993 contava com 118 loteamentos irregulares, sendo 35,6% na Zona Norte, 28% na zona sul, 25% na zona leste, 15,2% na zona oeste, a maioria sendo da zona norte surgidos na década de 1980. Vale ressaltar que dos nossos quatro loteamentos apenas 01 possui registro em cartório[9]. Mas o fato destes loteamentos terem ou não registro imobiliário não significa dizer que eles são "legais" ou clandestinos. Acontece que a planta de registro inicial do loteamento Santarém Grande (Vale Dourado), 1974, não constitui a realidade urbanística que existe hoje, pois um crescente processo de desmembramentos fatiou de tal maneira o solo deste loteamento, de modo que descaracterizou a forma original. Áreas destinadas a espaços verdes, equipamentos públicos foram loteadas ou invadidas, constituindo um outroloteamento. (não constam registros de aprovação na prefeitura e cartórios). Isto pode ser visto nos processos da SEMURB referentes aos quatro loteamentos alvo deste estudo; poucos são os projetos de desmembramento[10] dos lotes originais.
O loteamento Vale Dourado, por exemplo, foi registrado com um número de 103 quadras e 1700 lotes, sendo que três destas quadras (superfície de 13 Ha) eram destinados à áreas públicas e equipamentos. Vinte e seis anos depois, o loteamento apresenta 201 quadras, com mais de 3.000 lotes de variados tamanhos[11] e formas. Um detalhe: apenas 15% destes desmembramentos encontram-se registrado e 85% dos empreendimentos estão, de alguma forma, irregulares. Isso representa mais de 2.000 lotes sem qualquer comprovação legal. Nesse número encontramos desde áreas de posse, pequenos loteamentos (de até 10 lotes) ou até empreendimentos de imobiliárias com registro legal.
Ora, o bairro Nossa Senhora da Apresentação possui 11.860 casas que estão localizadas nos quatro loteamentos em questão. Destes, encontramos algum tipo de registro (nesse caso, qualquer referência em cartório ou prefeitura, mesmo que estivesse irregular) apenas na soma de 2.788 lotes que de alguma forma tiveram um plano urbanístico. Isso representa apenas 23,5 % dos lotes existentes, 76,5% simplesmente não existem para a prefeitura, ou seja, para sermos mais incisivos, uma população total de mais de 9.000 chefes de domicílio não possuem registro público do seu lote[12].
Mas, o que configura a Zona Norte, como um espaço segregado também socialmente, ainda mais, na área dos loteamentos, é a distribuição de renda global da cidade. Na tabela 2 vemos que as zonas oeste e norte possuem quase 50 % da sua população que ganha entre ¾ e 2 salários mínimos; em outro extremo, apenas 17,3% da população da zona sul ganha nessa faixa. Nesses números já há indícios de uma divisão não apenas espacial, mas também relacionada com a renda da população, pois será justamente na Zona Oeste e Norte que encontraremos os maiores espaços de pobreza de Natal, com favelas e loteamentos irregulares.
Município ou região administrativa | Rendimientos |
Natal | 38,92% |
Zona Leste | 34,03% |
Zona Norte | 46,5% |
Zona Oeste | 49,87% |
Zona Sul | 17,30% |
Fonte: Elaboração do autor sobre dados do Censo IBGE, 2000. |
Outra característica é o número de loteamentos irregulares na Zona Norte (30 deles no total de 36), e podemos dizer, também, relacionados aos demais, aumenta na mesma proporção que o número de unidades habitacionais são construídas pela COHAB. Isso demonstra o encilhamento dos dois processos de produção habitacional. Na medida que o Estado trazia mais infra-estrutura para a Zona Norte, mais terras eram parceladas e comercializadas e mais acentuado era o descumprimento das legislações básicas, mormente a lei 6.766/79. Ao largo da "solução habitacional", proposta pelo Estado para acomodar a classe trabalhadora, surgia uma imensa oferta de terras mais acessíveis a população pobre; a perversidade do processo não está, então, na falta de solo urbano, mas sim na qualidade de oferta desse solo.
Espaços de Pobreza x Espaços de Progresso: uma nova periferia?
Tendo a periferia norte de Natal como estudo de caso, e mais especificamente tendo um conjunto de loteamentos como objeto de análise, podemos perguntar: houve modificações relativas à qualidade habitacional nessas áreas? Como vimos em alguns números acima, a situação da Zona Norte e Oeste de Natal apresentam-se como geradoras em potencial de espaços de pobreza o que se evidencia quando sabemos que estas duas regiões contêm mais de 50% da população e 60% do total de favelas do município (Pemas,2002).
Mas partindo de análise mais aproximada podemos concluir que tais modificações não foram essencialmente negativas para a região, e até em alguns bairros o nível de renda da população apresentou efetivas melhoras. Isso reporta ao que comenta Marques (2001,p.50):
"Os investimentos realizados nas últimas décadas elevaram as condições médias da infra-estrutura das periferias, reduzindo em muitos casos os diferenciais entre elas as regiões habitadas pelas camadas mais ricas da população. Essa expansão tornou a compreensão do fenômeno da segregação espacial na cidade menos dependentes da presença ou equipamentos e serviços, e mais associada à qualidade, à freqüência e aos padrões de atendimento diferenciados entre as diversas regiões".
Vejamos se tal caso pode aos loteamentos mais antigos do bairro de N. Sra. da Apresentação, na Zona Norte de Natal. Trabalharemos com alguns indicadores como (a) posse legal do solo urbano, (b) abastecimento adequado de água encanada, (c) instalação e esgotamento sanitário, (d) coleta regular de lixo doméstico, (e) instrução do chefe de família e (f) renda. No período de 1990-2000, ocorreu uma variação populacional de aproximadamente 330%, sendo que de 1980-1991, essa variação foi de 1.108,8% (Mineiro, 1998,p.67) muito superior a média da cidade que foi, neste último período, de 45,5%.Tal crescimento deu-se com o reparcelamento dos loteamentos originais (que datam da década de 1970) e da ocupação através de uma população de baixa renda, migrante de outros bairros (principalmente da região Leste e Norte). Com mostramos acima, a grande maioria dos lotes não possuem escritura pública, provenientes de loteamentos irregulares e/ou clandestinos, o que é agravado pelo desrespeito as normas de construção das casas (como Código de Obras e Plano Diretor). Mas, tal ocupação também obrigou ao poder público instalar cada vez mais uma oferta de serviços. Em 1991, apenas 33,26% dos domicílios nos loteamentos possuíam abastecimento de água com canalização interna (por rede geral) e em 2000 esse número já é de 90,08%[13]. Em 1991, 78,52% dos domicílios possuíam banheiro com esgotamento sanitário (por fossa séptica ou rudimentar) e dez anos depois o número já alcança 96,77% das casas existentes (também baixo para o conjunto da Zona Norte). Do total de lixo produzido nos loteamentos, em 1991, 45,43% era coletado contra 96,65%, em 2000. O grau de instrução do chefe de domicílio também melhorou no período: por exemplo, se pegarmos a faixa de pessoas responsáveis pelo domicílio com até 01 ano de estudo, em 1991 teríamos 56,10% contra 32,54 % em 2000, com melhora também nas outras faixas de instrução (inclusive em curso superior).
Para finalizar, a renda dos chefes de domicílio apresentou sensíveis melhoras como pode ser resumida na tabela abaixo.
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Até 1 | 45,14% |
26,01% |
1-3 | 40,97% |
39,45% |
3-5 | 5,44% |
11,51% |
5-10 | 2,77% |
7,25% |
10-20 | 0,34% |
1,68% |
Mais de 20 | 0,03% |
0,38% |
S/rend. | 5,31% |
13,72% |
Total | 100% |
100% |
Fonte: Elaborado pelo autor sobe dados do Censo 1991 e 2000. |
Percebemos uma melhora nas faixas de menor renda (até 01 e 1-3 S.M.), mesmo que 65% dos chefes de domicílio ainda pertençam a esta. A faixa intermediária (3-5 S.M.) duplicou seu valor e nas faixas de maior renda (5-20 S.M.) encontramos 8,93% dos chefes contra 3,11% em 1991. Entretanto, na faixa de chefes sem rendimento temos um aumento de 8,41 %, o que diminui a média geral de ganhos.
Ampliando o enfoque, se tomarmos o Rendimento Nominal Mediano Mensal dos chefes de domicílios em Natal (no Censo IBGE 2000) o bairro Nossa Senhora da Apresentação apresenta-se na faixa média de 1-1,5 S.M., que é a faixa onde estão 32,35% dos bairros de Natal[14]. Com relação a existências de negócios privados no bairro, encontramos 1.315 estabelecimentos empresarias, principalmente no setor de comércio e serviços (93,06% contra 6,94% de indústrias) o que aponta uma tendência de crescimento dessas atividades empregadoras para a próxima década (PMN, 2002). Um dos grandes problemas do bairro dá-se em época de chuvas, quando os alagamentos em áreas de declive e bacias são freqüentes; muitos lotes foram comercializados irregularmente sobre bacias naturais.
Considerações finais
A presente pesquisa ainda não está concluída, restando ainda a realização de outras análises complementares, mas mesmo assim, pode-se apontar certas "redefinições" nos conceitos sobre a relação entre a periferia e os espaços de pobreza, instalados nestas periferias. Como visto, um processo de fragmentação do espaço rural e sua transformação em urbano, sem seguir qualquer planejamento ou legislação específica, foi determinante para configurar a região norte de Natal como área segregada por excelência, sendo responsável por fornecer moradia a estratos da população que não tem condição de comprar um imóvel em outra região da cidade. Pela observação da renda, vemos que cada vez mais setores de classe média-baixa, digamos, "migram" para a região, fugindo dos altos preços cobrados na zona Leste e Sul. Os serviços públicos e de infra-estrutura tem estado mais presentes, até mesmo nos loteamentos populares, inclusive com a construção, nos últimos 05 anos, de escolas e postos de saúde[15]. É cada vez maior o número e a variedade de negócios (comércio, serviço e indústrias) na região o que indica que esta pode deixar de ser apenas um "bairro dormitório" como a literatura existente aponta.
Mas será que podemos afirmar que os espaços de pobreza deixaram de estar na periferia? Nos parece que não, e nesse sentido Marques (2001, p. 65) afirma que "A melhora das condições de vida de uma parte expressiva da periferia, acompanhada de espaços extremamente precários, indica a existência de um degrau urbano (e social) (...)"; de fato, embora alguns bairros da periferia norte tenham melhorado sua condição de vida, na média geral das zonas administrativas a Zona Norte e Oeste ainda permanecem com os piores indicadores sociais, assim como há duas décadas houve melhoras sim, mas não suficiente para inverter ou minorar as desigualdades na cidade, gerando "um padrão de segregação mais complexo, mais difícil de conceituar, mas nem por isso menos injusto" (Marques, 2001, p.66).
Os espaços de progresso, portanto, aparecem como faixas "cercadas" por espaços de pobreza e que não tem o poder de modificá-los pela simples presença. Uma maior heterogeneidade de classes socais e atividades não significa que temos uma periferia melhor, mas que temos uma nova periferia, que mantêm laços de segregação diferenciados. Para uma outra aferição dessa nova periferia não é possível ver os bairros de forma isolada, mas sim como partícipes definitivos do desenho social da cidade. Nesse sentido, os ganhos foram poucos. Também é necessário avaliar o papel do poder público e as relações eleitoreiras com os bairros (a zona Norte é o maior colégio eleitoral da cidade, e já elegeu alguns vereadores) além da importância, ainda, dos movimentos sociais de bairro. A partir daí, poderemos enxergar melhor os espaços de segregação e pobreza das nossas cidades, com olhos renovados.
Destaca-se
que esse aspecto de urbanização periférica não
está restrita apenas à Zona Norte, estando presente até
em áreas mais centrais e tradicionais, mas cada vez mais estes
espaços sofrem pressão do mercado imobiliário no
sentido deste ocupar e utilizar tais áreas, "expulsando" a população
original que tenderá a procurar moradia na periferia da cidade,
expandindo para além dos seus limites, a área urbana.
O processo de produção do espaço comporta-se consumindo
sua área mais imediata da cidade, criando novos "espaços
progressistas" (que atraem uma população de renda média)
e criando, como conseqüência, mais "espaços de pobreza"
em terras mais distantes. Os custos e desgastes sociais já podem
ser aferidos, juntamente como o "preço" social inerente a todo
o processo. Sem uma política urbana que interfira no mercado
(ilegal) de terras na periferia das cidades, a segregação
sócio-espacial continuará a ser a tônica destes
espaços urbanos.
Notas
1. Natal é dividida em quatro regiões, ou Zonas, administrativas: norte, sul, leste e oeste. Criada pela Lei n. 6998/97, mas que ainda não foi regulamentada. Hoje a Região Metropolitana de Natal representa 37,61% da população do estado do Rio Grande do Norte.
2. Este trabalho é parte da dissertação de mestrado "Depois das fronteiras: a formação de espaços de pobreza na periferia Norte de Natal-RN", desenvolvida no PPGAU-UFRN, sob orientação da professora Angela Lucia de Araújo Ferreira.
3.A Zona Oeste também configurou-se como uma região de periferia pobre em relação a Natal.
4.Neste caso, a Lei 3175/84 em seu artigo 118, alínea a define como uma das formas de parcelamento do solo o arruamento, que consiste da divisão de glebas em quadras, mediante a abertura de novas vias de circulação ou pelo prolongamento das já existentes.
5. Rocas é um bairro estigmatizado da região Leste; Felipe Camarão e Guarapes, na Região Oeste.
6.Tirol e Petrópolis da região Leste; Ponta Negra na Região Sul.
7. O valor atual (2003)do Salário Mínimo é de R$ 200,00 ou cerca de U$$ 60,00.
8. Instituído pela lei n.4.328 de 05 de abril de 1993.
9. Cf. Lei 3.175/84 - art 118, alínea c, desmembramento: repartição de um lote para formar novos lotes, com aproveitamento, sem qualquer alteração ou acréscimo, do sistema viário existente ou subdivisão de um lote em parcelas para a incorporação de lotes adjacentes.
10. A configuração resultante desse extenuado reparcelamento, é um traçado viário que desfavorece à circulação de transporte público, aumentando o percurso. Um resultado perverso disso constata-se no não interesse das empresas em alcançar áreas afastadas quase 2 km da via principal(!).
11.Dados preliminares obtidos em pesquisa na SEMURB (Secretaria Especial de Meio Ambiente e Urbanismo da Prefeitura Municipal de Natal) e 1o.Cartório de São Gonçalo do Amarante. Neste último, a pesquisa ainda não finalizou pois não foram analisados todos os detalhes de cada processo.
12. Tais indicadores são apenas alguns utilizados em nossa dissertação de mestrado (em andamento na UFRN) que faz um estudo de caso de quatro loteamentos do bairro N. Sra. da Apresentação, que inclui ainda uma análise do mercado de terras na região,conjunto de serviços e infra-estrutura pública,presença de conselhos de bairro, etc.
13.Ainda assim inferior a média da Zona Norte (96,42%), e de alguns bairros centrais como Tirol (96%),etc.
14. Na Zona Norte como um todo, apenas o bairro de Potengi apresenta uma Renda Nominal Mediana na faixa de 1,5-2 S.M.o que é muito inferior a alguns bairros da zona Sul e Leste (5-10 S.M. e acima de 10 S.M.)
15.
Ocorreu uma ampliação nos serviços de saúde
na Zona Norte com um acréscimo de 84,4% no número de atendimentos
médicos na rede pública, além de instalação
de clínicas particulares.(Mineiro,1998,125).
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Alexsandro Ferreira Cardoso
da Silva, 2003
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