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Nos limites da sensatez poderemos dizer que a sorte de Lisboa, na sua história de 2 milénios, tem muito de necessidade, sem esquecer que o acaso tem sempre um papel no que toca a evolução dos seres vivos.
De facto, se olharmos um mapa mundo verificamos a singularidade da fachada atlântica da Península Ibérica e aí resulta logo a centralidade da vertente ocidental: na viragem do mediterrâneo para o Mar do Norte, um finisterra que defronta as Américas, a dois passos da costa africana.
A aproximação, possível por aumento da escala cartográfica, mostra-nos a localização junto à foz de um grande rio, o Tejo, navegável em grande parte da sua extensão, por isso, com capacidade para drenar economicamente grande parte da Península Ibérica, o que se verificou até à difusão do caminho-de-ferro, embora o transporte fluvial só tivesse sucumbido definitivamente perante a concorrência do automóvel.
Um novo "zoom" e estamos perante a grandiosidade do cenário do sítio: o Tejo espraia-se num largo regolfo, o Mar da Palha, depois de ter depositado uma série de pequenas ilhas, os mouchões, formando como que um delta; o Mar da Palha mostra as suas margens assimétricas, a sul, baixas e planas, irrigadas por um número de braços, os esteiros, a norte enquadrado por sucessivas encostas em que se destacam algumas colinas calcárias ou montes vulcânicos - não é a Lisboa das 7 colinas, como se qualificou a cidade à imagem da mãe Roma, mas a Lisboa das múltiplas elevações, donde é possível ver sempre o outro lado, num percurso de reencontros.
Foi numa destas situações que nasceu Lisboa: junto à praia do Mar da Palha, numa encosta que sobe para o natural oppidum, onde os povos do mediterrâneo (fenícios, gregos, cartagineses, romanos), encontraram um aglomerado, defensivo, um castro já de influências cruzadas, com destaque para o contributo celta. A opção definitiva, como em tantas outras decisões que determinam a organização do território na Europa, pertenceu aos romanos: Lisboa seria uma cidade-porto, drenando os produtos que a navegação fluvial trazia do interior e, ao mesmo tempo, tinha na pesca local uma base exportadora própria e, aparentemente, inesgotável.
O Mar da Palha e os seus esteiros, que penetravam a terra, fornecendo a possibilidade de um transporte rápido, eficaz, barato, vão criar um sistema territorial com actividades especializadas à volta de um plano de água não só navegável, como rico em peixe, articulando o Continente (pela navegação fluvial) com o Oceano (pela navegação marítima).
À localização privilegiada, juntam-se as excelentes condições do sítio, para possibilitar as trocas, para permitir a defesa, para gerar riquezas, para facultar aos habitantes condições de higiene e fácil abastecimento nos mais variados produtos. Ou seja, para os antigos, o sítio de Lisboa respondia perfeitamente às condições que se exigiam para edificar uma cidade, tal como nos deixou escrito, em súmula, Aristóteles, no seu Tratado de Política.
Às excelentes acessibilidades - locais, regionais e para mundos mais longínquos - juntava-se a bondade do clima, em que sobrelevava a vantagem da dominância dos ventos de Oeste e de Noroeste, vindos do lado do Mar e soprando sobre o Mar da Palha, onde desaguava o Tejo e penetrava o Oceano.
O relevo ribeirinho era marcado por um certo número de pequenas linhas de água, que desaguavam em enseadas imperfeitas, por onde penetrava a maré em curtas distâncias. E, separando esses elementos fluviais, elevavam-se colinas, abruptas, que sugeriam boas condições para a defesa em relação a ataques do exterior. Para o interior, estendiam-se superfícies mais ou menos planas e alguns fundos aluviais, que ofereciam boas perspectivas para uma agricultura de apoio local.
As águas eram variadas e abundantes. As características tectónicas do sítio explicam a existência de águas termais, aproveitadas desde a Antiguidade, para banhos, que se tornaram afamados. A estrutura geológica originava excelentes condições para a constituição de lençóis freáticos, a diferentes níveis, que eram explorados em poços, fontes e minas. Certas nascentes, a poucos quilómetros da orla ribeirinha, eram tão abundantes que alimentavam alguns ribeiros, cujas águas se mantinham ao longo de todo o ano, proporcionando verdura para os gados e, com o tempo, alimentando regadios.
O subsolo tinha uma composição geológica variada, que proporcionava não só um bom apoio para diferentes tipos de construções, como por alteração originava solos aráveis com diversificadas aptidões agrícolas.
A argila, abundante e de qualidade, alimentou cerâmicas e olarias - até à actualidade. Os calcários têm sido extensivamente utilizados na construção, das mais modestas residências às mais monumentais edificações; servindo ainda para a produção de cal, utilizada como cimento e também para dar a cor branca aos rebocos, adobes e taipas. O basalto serviu para alvenarias menos apuradas, mas ficou sobretudo marcado como elemento de pavimentação de ruas e calçadas. A série estratigráfica do miocénico, além das argilas, margas e calcários de tipo variado, é rica em areias, que originaram areeiros, explorados até aos nossos dias.
As rochas vulcânicas, que constituem o chamado Manto Basáltico, proporcionam excelentes solos, adequados às culturas cerealíferas; os terrenos resultantes da "mistura" miocénica originam, em geral, solos de aptidão variável, mas onde se adaptaram muito bem a vinha, o olival, os pastos e os hortejos - estes favorecidos pelas possibilidades de regadio feito nas margens das ribeiras, mas, sobretudo, a partir dos inúmeros poços que polvilhavam o território do Termo de Lisboa.
Desde cedo foi destruída a cobertura florestal, mas, a sul, facilmente acessível pela navegação fluvial, existiam excelentes condições para a produção de lenha e carvão, potencial que sucessivas determinações do poder (local e central) permitiram que se mantivesse eficaz até ao advento do uso dos combustíveis fósseis, do gás e da electricidade.
A madeira para a construção, embora não abundasse
no Termo e na envolvente, chegava, com relativa facilidade, do interior
do País ou dos mares do Norte e Báltico, em barcos que vinham
carregar as produções locais: vinho, sal, frutos.
A DESCOBERTA DO SÍTIO: O SAGRADO E O PROFANO
A descoberta do sítio e das suas vantagens, foi um processo longo e continuado, aprofundado à medida que se alargavam os contactos de civilização e a cidade crescia com mais exigências a implicar novas soluções.
O sítio povoava-se, estendendo a sua influência ao território envolvente, descobrindo e valorizando as dimensões do material e do espiritual. Neste processo, a tudo sobreleva a relação terra-mar, de onde emerge a essência de Lisboa, desde as suposições sobre o significado do próprio nome, à base económica e às maravilhas da sagração de lugares que desde a pré-História são entendidos na espiritualidade.
Arrábida, a sul, e Sintra, a norte, são as duas montanhas geradoras, as serras-madres de Lisboa, que se terminam Oceano dentro por promontórios sacralizados da Antiguidade até hoje: em qualquer deles se localizam azóias, túmulos de homens santos muçulmanos, que deram nome a aldeias; em qualquer deles os cristãos viram milagres; ao da Roca, o ponto mais ocidental da Europa Continental, vão todos os anos milhares e milhares de "peregrinos" a olhar o Mar Oceano e aos fins de semana têm aí encontro ritual muitas dezenas/centenas de motociclistas/cavaleiros do asfalto. Sagração e Consagração dos nossos dias: depois de monges que aí edificaram conventos e de poetas que contaram os mistérios revelados, Arrábida e Sintra tornaram-se, oficialmente, santuários de uma religão dos nossos dias: o culto da Natureza - são Parques Naturais.
Os pontos altos do sítio serão escolhidos para funções defensivas, fortificações ou atalaias. O Oppidum-Alcácer-Castelo (de São Jorge) será o eleito entre todos, mas também serão marcados, sobretudo após a conquista aos muçulmanos, por instituições religiosas: capelas, igrejas, conventos ou mosteiros, que irão funcionar como pólos irradiadores do povoamento e ocupação agrária do território. Por isso, um dia, Lisboa pode aspirar à assimilação a Roma, a metrópole por excelência, considerando-se também detentora de sete colinas - todas mais ou menos "santificadas" (sacralizadas).
Outra função dos cerros e outeiros, que também marcou a paisagem (e a toponímia) de Lisboa e do Termo, foi a dos moinhos de vento que, com os moinhos de maré, abasteciam a cidade, contribuindo para o seu engrandecimento.
Alguns plainos, melhor acessíveis, no caminho da cidade ou logo à sua entrada, terão uma apropriação colectiva, destinando-se-lhes uma polivalência de funções: são os rossios, bem documentados desde o tempo dos muçulmanos. O actual Rossio, tem essa origem, realizando-se aí, desde o século XIII, a feira que antes se efectuava às portas do alcácer (ainda aí persiste o topónimo "Chão da Feira"); a esta função vieram juntar-se, como em tantas outras cidades, actividades lúdicas como as touradas ou actos públicos de demonstração do poder, como os autos de fé. O actual Rossio rapidamente se integrou na cidade, com funções orientadas para a população da urbe e do Termo (além da feira, hospital, sede da inquisição, estalagens, comércio, local de corridas de toiros), mais tarde com a chegada do caminho-de-ferro a sua centralidade cresceu, tornando-se o centro de gravidade da capital e do País - adquirindo, acima de todas, uma dimensão simbólica.
Os elementos geomorfológicos lineares, vales, linhas de cumeada,
percurso ribeirinho, são aproveitados como eixos de circulação,
que a importância dos locais de confluência e as potencialidades
funcionais acabarão por hierarquizar. O facto urbano vai, assim,
crescendo a partir de um núcleo ribeirinho, segundo um modelo radial,
em que a dimensão mais forte é a que acompanha - para nascente
e para poente - a orla aquática do Tejo/Mar da Palha. Estrutura
radial, "determinada" pelas condições do terreno e marcada
regularmente por objectos religiosos (capelas, igrejas, conventos, irmandades...),
que "acompanhavam" o visitante para a cidade e, ao mesmo tempo, funcionavam
como concreções de vida urbana, originando subúrbios
que acabaram por ser integrados na malha urbana.